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Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade

versión impresa ISSN 0104-7043versión On-line ISSN 2358-0194

Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade vol.29 no.58 Salvador abr./june 2020  Epub 15-Dic-2020

https://doi.org/10.21879/faeeba2358-0194.2020.v29.n58.p119-133 

DOSSIÊ TEMÁTICO

A SALA DE AULA SOB A VONTADE DA NEUTRALIDADE DE SENTIDOS

THE CLASSROOM UNDER THE WILL OF THE NEUTRALITY OF MEANING

LA SALA DE CLASE BAJO LA VOLUNTAD DE NEUTRALIDAD DE SENTIDOS

Simone Tiemi Hashiguti (UFU)1 
http://orcid.org/0000-0002-9230-9640

Fabiane Lemes (UFU)2 
http://orcid.org/0000-0002-5368-6718

Rogério de Castro Ângelo (UFU)3 
http://orcid.org/0000-0002-0936-5028

*Doutora em Linguística Aplicada pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Professora Associada do Instituto de Letras e Linguística da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). E-mail: simonehashiguti@gmail.com.

**Doutoranda em Estudos Linguísticos pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Bolsista CAPES - PPGEL/UFU. E-mail: lemesfabiane.ufu@gmail.com.

***Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Professor de português/inglês do Instituto Federal do Triângulo Mineiro (IFTM), campus Ituiutaba. E-mail: rogerioangelo@iftm.edu.br.


RESUMO

Em meio às disputas políticas entre partidos conservadores e progressistas nos últimos anos, a sala de aula tem sido um espaço de intensa disputa de sentidos. Uma interpretação que tem sido frequente sob a ótica conservadora é a de que, ao invés de ser um espaço politicamente neutro, a sala de aula tem sido lugar de doutrinação política, ideológica e moral por parte de docentes. Uma das iniciativas que visa a legislar contra o que foi chamado de “abuso da liberdade de ensinar” é o Programa Escola sem Partido. Neste artigo, a partir de uma perspectiva discursiva de linguagem, realizamos uma análise discursiva do site informativo desse programa. Observamos, intra e interdiscursivamente, como a escola, os conteúdos didáticos, o professorado e o alunado são objetificados a partir de um ideal de língua como instrumento de comunicação e de sala de aula como ambiente do sujeito-suposto-saber, controlado e consciente.

Palavras-chave: Interpretação; Linguagem; Escola sem Partido

ABSTRACT

Among political disputes between conservative and progressive political parties in the past years, the classroom has been a place of intense dispute of meanings. An interpretation that has been frequent under the conservative view is that, instead of being a politically neutral place, the classrooms have been a place of political, ideological and moral indoctrination by teachers. One of the initiatives that aims at legislating against what is being called “abuse of the freedom to teach” is the program “School Without Party”. In this article, from a discursive perspective of language, we make a discursive analysis of the website of this program. We observe, intra and interdiscursively how school, teaching materials, teachers and students are objectified from an ideal of language as an instrument of communication and the classroom as an environment of the subject supposed to know, controlled and conscious.

Keywords: Interpretation; Language; School without Party

RESUMEN

En medio a disputas políticas entre partidos conservadores y progresistas en los últimos años, la sala de clase ha sido un espacio de intensa disputa por los sentidos. Una interpretación que ha sido frecuente desde una perspectiva conservadora es que, en lugar de ser un espacio políticamente neutral, el aula ha sido un lugar de adoctrinamiento político, ideológico y moral por parte del profesor. Una de las iniciativas que tiene como objetivo legislar contra lo que se ha llamado “abuso de la libertad de enseñar” es el Programa Escuela Sin Partido. En este artículo, desde una perspectiva discursiva del lenguaje, realizamos un análisis discursivo del sitio web informativo para este programa. Observamos, intra y interdiscursivamente, como la escuela, los contenidos didácticos, el profesor y los alumnos son objetificados desde un ideal del lenguaje como instrumento de comunicación y del aula como un ambiente del sujeto-supuesto-saber, controlado y consciente.

Palabras clave: Interpretación; Lenguaje; Escuela sin Partido

1. Introdução

No contexto de aumento mundial da mobilização de grupos e discursos conservadores em que escrevemos, neste ano de 2020 do século XXI, assistimos à criação e retomada, no Brasil, de diversas propostas de gestão e relação pública e privada e de legislação sobre diferentes setores da sociedade. Uma delas, que foi pensada em 2003 e revisitada em 2016, é a que foi intitulada Escola sem Partido.

A proposta foi elaborada pelo procurador do Estado de São Paulo, Miguel Nagib, que também propôs a organização de uma associação informal, com o mesmo nome, e que foi, como ele mesmo aponta, inspirada em um movimento semelhante, nos Estados Unidos, o No Indoctrination.1 A iniciativa, que propõe a afixação, em todas as salas de aula, de cartazes em que se listem obrigações dos professores, começou com um site 4 5 com instruções a pais ofendidos por ocorrências, “rotineiras” nas escolas, conforme texto do próprio site, a saber: a “doutrinação político-ideológica dos alunos por parte dos professores” e a “usurpação dos direitos dos pais na educação moral e religiosa de seus filhos” (ESCOLA SEM PARTIDO, 2020). Essas práticas foram qualificadas, no site, como práticas passíveis de denúncia (BEDINELLI, 2016). Conforme ali descrito:

[...] o único objetivo do Programa Escola sem Partido é informar e conscientizar os estudantes sobre os direitos que correspondem àqueles deveres, a fim de que eles mesmos possam exercer a defesa desses direitos, já que dentro das salas de aula ninguém mais poderá fazer isso por eles. (ESCOLA SEM PARTIDO, 2020).

Cerca de dez anos depois de sua primeira apresentação, a proposta se tornou Projeto de Lei - PL n° 7.180/2014 (BRASIL, 2014) -, ganhando maior visibilidade social e midiática. Desde então, por ser um tema polêmico, discute-se sua aprovação ou não no Congresso Nacional. Em 2019, a proposta ganhou uma nova versão, denominada 2.0, o Projeto de Lei n° 246/2019 (BRASIL, 2019), que praticamente não teve alteração em relação à primeira. Essa proposta foi assinada pela deputada Bia Kicis (PSL-DF).

Neste texto, retomamos essa proposta, tal qual organizada em forma de site, e analisamos os conceitos de linguagem e sujeito ali enunciados, bem como as noções de conteúdo escolar e ideologia. Partimos de uma perspectiva discursiva dentro da Linguística Aplicada (LA), a partir da qual entendemos que todas as práticas linguageiras, ocorram elas dentro ou fora da sala de aula e com materiais didáticos ou não,6 são práticas discursivas, isto é, são necessariamente ideológicas. Práticas discursivas acontecem a partir de gestos de interpretação dos sujeitos frente a materialidades linguísticas, visuais, corporais etc., em determinadas condições e na relação com discursos. Isto é, os sentidos para tais materialidades são produzidos por sujeitos que são posições no/do discurso, de forma que nunca são neutros.

2. A língua(gem) pela perspectiva discursiva e a impossibilidade de neutralidade de sentidos

Dentro das pesquisas em LA, as teorizações sobre linguagem e produção de sentidos da Análise do Discurso (AD) de tradição francesa praticada no Brasil, que tem em Michel Pêcheux e Michel Foucault dois dos principais autores de referência, possibilita-nos analisar a língua como estrutura funcionando como superfície do discurso (PÊCHEUX, 1997, 2002) e as condições de possibilidade de emergência e regularização de sentidos e saberes (FOUCAULT, 1999). Sob essa perspectiva, a partir de Pêcheux (1997), compreendemos o discurso como acontecimento em que história e ideologia se imbricam e o sujeito e o sentido se constituem simultaneamente:

A interpelação do indivíduo em sujeito de seu discurso se efetua pela identificação (do sujeito) com a formação discursiva que o domina (isto é, na qual ele é constituído como sujeito): essa identificação, fundadora da unidade (imaginária) do sujeito, apoia-se no fato de que os elementos do interdiscurso (sob sua dupla forma, [...], enquanto ‘pré-construído’ e ‘processo de sustentação’) que constituem, no discurso do sujeito, os traços daquilo que o determina, são reinscritos no discurso do próprio sujeito. (PÊCHEUX, 1997, p. 163, grifo do autor).

Sujeito, nessa teorização, não se refere à categoria sintática da oração, mas a uma posição discursiva: ao enunciar, o sujeito constitui sentido e se constitui como posição em um discurso e não em outro. Por exemplo, na estrutura da língua portuguesa falada no Brasil, a formulação (a) é totalmente possível de ser enunciada porque obedece às regras sintáticas da língua: “(a) Jovens ricos fazem festas para vender drogas.”7

O sintagma nominal “Jovens ricos”, que ocupa o lugar de sujeito na primeira oração do período “Jovens ricos fazem festas para vender drogas” poderia, de acordo com a sintaxe da língua, ser substituído por outro sintagma como, por exemplo, “Rapazes de classe alta” ou ainda por um termo só, tal como “Traficantes”, de forma que a formulação hipotética (b) também seria gramatical e possível na língua: “(b) Traficantes fazem festas para vender drogas.”

A possibilidade de substituição de termos e formulações sintagmáticas sintaticamente intercambiáveis não significa, contudo, que não haja uma diferença discursiva de sentido. A objetificação discursiva do grupo de pessoas preso que se dá no e pelo sintagma “Jovens ricos” é aquela de um discurso de classe social, em que a identificação das pessoas desse grupo se dá por uma condição social e econômica. Já a que se dá no e pelo termo “Traficantes” é a de um discurso jurídico, em que a identificação dessas pessoas se daria num discurso jurídico, com a objetificação discursiva de criminalização.

Para a AD, não há possibilidade de discursos e sentidos neutros, uma vez que a identificação inconsciente do sujeito com certos discursos já é um posicionamento. Como afirma Faraco (2009, p. 25): “A tomada de posição do sujeito é constante, pois todo enunciado emerge sempre e necessariamente num contexto cultural saturado de significados e valores e é sempre um ato responsivo”. Nesse quadro teórico, portanto, entendemos que os sentidos são produzidos sempre em práticas discursivas das quais participam diferentes pessoas ocupando diferentes posições discursivas em relação umas com as outras e a partir de interpretação. A língua, aponta Pêcheux (1997), é superfície do discurso, e o discurso é a materialidade da ideologia entendida como forma de atribuir sentido e não como máscara que encobriria uma verdade universal.

Sobre a noção de verdade, Michel Foucault (2006) explora profundamente as estratégias linguísticas e as arquiteturas de poder e de sentidos na história dos saberes. Ele explica que os sentidos têm “veridicção”, isto é, sustentam verdades temporárias que se relacionam ao que é possível dizer e fazer dentro de um período histórico. A verdade é, portanto, sempre construída dentro de uma formação discursiva e não em outra:

[...] a descoberta das coisas verdadeiras, mas as regras segundo as quais, a respeito de certas coisas, aquilo que um sujeito pode dizer decorre da questão do verdadeiro e do falso. Em suma, a história crítica do pensamento não é uma história das aquisições nem das ocultações da verdade; é a história da emergência dos jogos de verdade: é a história das ‘veridicções’ entendidas como as formas pelas quais se articulam, sobre um campo de coisas, discursos capazes de serem ditos verdadeiros ou falsos: quais foram as condições dessa emergência, o preço com o qual, de qualquer forma, ela foi paga, seus efeitos no real e a maneira pela qual, ligando um certo tipo de objeto a certas modalidades do sujeito, ela constituiu, por um tempo, uma área e determinados indivíduos, o a priori histórico de uma experiência possível. (FOUCAULT, 2004, p. 235, grifo do autor).

Para exemplificar esse caráter de transitoriedade de sentidos tomados como verdadeiros, podemos relembrar como a cientificidade moderna e a noção de saber nesse período fez ser possível a teoria darwiniana (DARWIN, 2009) sobre a evolução das espécies ser tomada, por vários cientistas, como uma verdade universal. Por outro lado, essa explicação é conflituosa e impossível em discursos que se apoiam na visão criacionista. O sentido para a AD, portanto, não é exato, literal ou fixo e se baseia em gestos interpretativos do sujeito em determinados discursos. Nessa perspectiva, os sentidos emergem como possibilidades em determinadas formações históricas, ideológicas e sociais, estando em constante movência e sob ação de forças político-institucionais. Há disputa por legitimação de alguns sentidos em detrimento de outros e pela fixação de verdades universais. A regularização de sentidos e a manutenção de discursos que os sustentam são, então, estratégias de poder.

Conforme explica Foucault (1987), cada período histórico, com sua formação social, possui mecanismos de controle que atuam por regularidades enunciativas, as quais estabilizam sentidos: “[...] não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar” (FOUCAULT, 1996, p. 10). Já para Pêcheux (1997), os processos de regularização de sentidos, bem como os diferentes sentidos em jogo, por exemplo, podem ser feitos visíveis em análises discursivas de formulações linguísticas que, em seus elementos mínimos (fonemas, palavras, frases), repetem sentidos de maneira intradiscursiva, isto é, na cadeia coesiva horizontal do dizer - a saber: a sequência de palavras e sua organização entre o que se disse antes, o que se diz agora e o que será dito depois -, e na cadeia interdiscursiva - a saber, a dimensão da língua(gem) que se refere à memória que nos constitui como sujeitos de linguagem e que determina quais sentidos são possíveis de ser elaborados. Esta memória, também referida como interdiscurso, é da ordem daquilo que sempre fala antes, em outro lugar (PÊCHEUX, 1997) e é re(significado) a todo momento nas práticas linguageiras.

3.Análise do corpus

Nesta seção, destacamos algumas sequências discursivas (SDs) retiradas do site do Escola sem Partido (2020). Elas foram extraídas dos textos constantes do site, que descrevem a proposta do Programa Escola Sem Partido (ESP) e argumentam a seu favor. Uma vez em contato com o material e já numa leitura analítico-discursiva, pudemos observar que algumas formulações linguísticas dos textos ali disponíveis objetificam as figuras de docente e estudante, o conteúdo escolar e a linguagem em uma determinada direção. Objetificar no discurso significa constituir um objeto de discurso que tem formas de referência e sentidos específicos repetidos no interior do discurso. Essas construções linguísticas e sentidos em movimento na prática discursiva vão criando representações imaginárias, regiões de sentido cristalizadas que são tomadas como verdades.

Em nossa análise, compreendermos estar em funcionamento, no corpus analisado, as seguintes representações imaginárias, que formulamos em forma de sintagmas nominais: (3.1.) Professores como manipuladores e estudantes como receptáculos vazios e (3.2.) Saber escolar como transmissão de conhecimento e língua(gem) como transparente.

3.1 Professores como manipuladores e estudantes como receptáculos vazios

Um dos primeiros materiais a que temos acesso no site do Programa ESP, e que está disposto em sua página inicial, é uma citação atribuída a Max Weber8 em que lemos:

SD1: Em uma sala de aula, a palavra é do professor, e os estudantes estão condenados ao silêncio. Impõem as circunstâncias que os alunos sejam obrigados a seguir os cursos de um professor, tendo em vista a futura carreira; e que ninguém dos presentes a uma sala de aula possa criticar o mestre. É imperdoável a um professor valer-se dessa situação para buscar incutir em seus discípulos as suas próprias concepções políticas, em vez de lhes ser útil, como é de seu dever, através da transmissão de conhecimento e de experiência científica. Max Weber. (ESCOLA SEM PARTIDO, 2020).

Nesse fragmento, podemos visualizar algumas associações semânticas para cada um dos elementos elencados anteriormente, as quais agrupamos no Quadro 1.

Quadro 1 Associações semânticas presentes na SD1 

Docentes Estudantes Conhecimento Língua(gem)
Detentor da palavra Condenados ao silêncio Transmitido numa via unidirecional professor → aluno Instrumento (transparente) de comunicação
Buscar incutir obrigados    
Ser útil Futura carreira    
Transmissão de conhecimento e de experiência científica [não podem] criticar o mestre    
Mestre Discípulos    

Fonte: Elaborado pelos autores deste artigo.

Contrastando as representações de docente e de estudante presentes na SD1, percebemos a repetição de um padrão nas orações, em que os docentes são representados exercendo papel de agentivo9 (IGNÁCIO, 2007) nas orações, isto é, como sujeito da voz ativa verbal e agente da característica semântica volitiva do verbo, ao passo que os estudantes são referenciados sempre como objetos que sofrem essas ações, ou seja, argumentos do tipo paciente. Explicamos.

Em “a palavra é do professor”, apesar de “professor” estar ocupando uma posição sintática de predicativo do sujeito, sendo que o sujeito sintático nessa oração é “a palavra”, semanticamente podemos perceber que essa oração equivale a dizer que “o professor detém a palavra”, em que os sujeitos sintático e semântico “o professor” coincidem. Já o sintagma “a palavra” passa a exercer papel sintático de objeto direto. Uma vez estabelecida a representação para os docentes como aqueles que falam (podem falar) e agem (podem agir) na sala de aula, percebemos em “os estudantes estão condenados ao silêncio” um processo diferente. Neste caso, os estudantes aparecem como o sujeito sintático da oração, porém, conforme Ignácio (2005), por se tratar de uma oração com verbo de ligação, trata-se de um sujeito inativo, ao qual é atribuído uma predicação de “condenados ao silêncio”. Ressaltamos aqui que a predicação “condenados” para “os estudantes” transforma “os estudantes” em objetos da ação de condenar de alguém, isto é, como pacientes.

Conforme aponta Ignácio (2007, p. 127), há relações semânticas específicas entre os elementos da oração em orações do tipo ativo-processivas:

Em princípio, as orações ativo-processivas constroem-se a partir de um verbo de, no mínimo, dois lugares que seleciona na posição de sujeito um argumento Agentivo ou Causativo ou Instrumental e na posição de objeto um argumento Paciente afetado, havendo uma relação de causa e efeito entre o fazer realizado pelo sujeito e o acontecer verificado no objeto.

Modificando a voz verbal da oração “os estudantes estão condenados ao silêncio”, poderíamos reescrevê-la valendo-nos do verbo condenar, de natureza de ação-processual, assumindo a forma “Alguém condena os estudantes ao silêncio”. Dessa forma, há um sujeito agentivo em potencial (IGNÁCIO, 2007, p. 128) que, nesse caso, é “o professor”, que, tendo a palavra, condena os estudantes ao silêncio, numa representação da relação entre docente e estudantes em que ao docente cabe a ação (falar) e ao objeto, os estudantes, cabe a passividade (silêncio). Cabe ressaltar aqui que, ainda conforme Ignácio (2007, p. 81, grifo do autor), “a presença do objeto Paciente afetado é que vai caracterizar o ‘processo’ nas estruturas ativo-processivas. Esse afetamento inclui uma modificação que pode ser (i) uma alteração na estrutura física; (ii) uma alteração psicológica; ou (iii) uma mudança de lugar”.

Na situação em que estamos analisando, percebemos a recorrência da posição do docente como sujeito agentivo (volitivo, manipulador) e os estudantes como pacientes que sofrem uma alteração do tipo psicológica.

O caráter semântico manipulador do sujeito agentivo “o professor” e o caráter semântico de manipulado do sujeito inativo “os estudantes” em SD1 se repete discursivamente na formulação: “É imperdoável a um professor valer-se dessa situação para buscar incutir em seus discípulos as suas próprias concepções políticas”, em que “o professor” intencionalmente se vale(ria) de sua posição de poder para incutir concepções em seus discípulos (estudantes sem ação).

Esse movimento de posicionamento do docente como agentivo e do estudante como paciente repete-se no período seguinte, conforme podemos observar em “Impõem as circunstâncias que os alunos sejam obrigados a seguir os cursos de um professor”. Em primeiro lugar, percebemos a naturalização dessa relação assimétrica entre docente e estudantes ao atribuir a responsabilidade sobre essa relação ao sujeito causativo (IGNÁCIO, 2007) “circunstâncias”, que exerce função sintática de sujeito da oração principal. Em relação à oração subordinada, novamente os estudantes exercem função de sujeito sintático, porém atribuindo-se a eles a função passiva de serem obrigados a seguir um curso, isto é, são, semanticamente, o argumento paciente na acepção discutida por Ignácio (2007). Já em relação ao docente, apesar de aparecer sintaticamente como um termo acessório, um adjunto adnominal, podemos perceber uma relação semântica em que ele é posicionado como aquele que dá a direção do curso que será seguido pelos estudantes.

Em outra seção do site (ESCOLA SEM PARTIDO, 2020), organizada em forma de perguntas e respostas, os defensores do programa ESP discutem uma questão referente à possibilidade ou não de o(a) professor(a) posicionar-se em sala de aula: “O programa impede o professor de dar sua opinião sobre questões controvertidas?”, para a qual eles dão a seguinte resposta:

SD2: A liberdade de ensinar do professor - inteiramente preservada no anteprojeto de lei - lhe assegura o direito de opinar sobre temas controvertidos que façam parte da sua disciplina. Não, todavia, o direito de tentar impor suas opiniões aos alunos nem o de omitir ou apresentar de forma distorcida pontos de vista concorrentes sobre a matéria.

Tal como verificamos na SD1, os docentes são os atores sociais que exercem a função semântica de agentivo. No caso da SD2, as ações atribuídas aos docentes são “opinar”, “tentar impor”, “omitir” e “apresentar (de forma distorcida)”, enquanto os estudantes aparecem novamente no lugar de objeto, pacientes em relação às ações dos docentes, o que vai compondo uma discursivização sobre os docentes como os únicos que agem na sala de aula, enquanto os discentes seriam somente receptáculos para os depósitos de conteúdos que seleciona o professor.

Essa relação entre docente e alunos nos remete a uma trecho da tese de Sousanis (2015), que coloca em questão justamente essa relação em que pressupõe-se um processo eficiente de transmissão do conhecimento do docente (agente-volitivo) aos estudantes (pacientes-sem volição), o que pode ser visualizado na Figura 1.

Fonte:Sousanis (2015, p. 10).

Figura 1 Representação da situação de sala de aula com o docente como agentivo e estudantes como pacientes 

Retomando a SD2, apesar de os docentes serem associados semanticamente aos verbos, na condição daqueles que agem em sala de aula, em oposição aos estudantes, notamos na construção dessa sequência discursiva um rompimento com esse posicionamento do professor como agentivo, catalisado pela introdução do advérbio de negação “não” e da conjunção adversativa “todavia”. Enquanto no primeiro período da SD2 reconhece-se a legitimidade de os docentes emitirem opiniões em sala de aula (“A liberdade de ensinar do professor - inteiramente preservada no anteprojeto de lei - lhe assegura o direito de opinar sobre temas controvertidos que façam parte da sua disciplina.”), garantida pela liberdade constitucional de ensinar, o segundo período funciona como uma interdição a essa liberdade, marcada linguisticamente pelo advérbio “não” e pela conjunção adversativa “todavia”: “Não, todavia, o direito de tentar impor suas opiniões aos alunos nem o de omitir ou apresentar de forma distorcida pontos de vista concorrentes sobre a matéria.” (ESCOLA SEM PARTIDO, 2020, grifo nosso).

Nessa última formulação da SD2 (“Não, todavia, o direito de tentar impor suas opiniões aos alunos nem o de omitir ou apresentar de forma distorcida pontos de vista concorrentes sobre a matéria.”), apesar de “o professor” ainda ser o sujeito semântico agentivo dos verbos “tentar (impor)”, “omitir” e “apresentar”, a relação de forças discursivas entre as figuras “professor” e “estudantes” se desloca, pois ao objetificar “o professor” como aquele não tem “direito” a essas ações, além de se acusá-lo de efetivamente realizar tais ações, também se afirma que ele não é o único a ter poder na sala de aula, já que ele “tentar(ia)” realizá-las.

De uma perspectiva funcionalista nos estudos da linguagem, Neves (2017) esclarece que formulações negativas “assenta[m] [...] informações já expressas”

Quando o falante compõe um enunciado negativo, ele indica ter mais suposições sobre o conhecimento do ouvinte do que quando compõe um enunciado afirmativo. A partir daí, do ponto de vista comunicativo, pode-se dizer que os enunciados negativos não são empregados primariamente para expressar informação nova, mas sim para assentar uma manifestação acerca de informações já expressas, ou supostas na interação linguística (NEVES, 2017, p. 329-330).

Em nossa leitura discursiva sobre essa teorização, compreendemos que a negação em SD2 reforça determinados sentidos que, na ordem do discurso, são tomados como verdade absoluta acerca de um objeto discursivo. Assim, ao mesmo tempo em que se afirma que “o professor” não “teria direito” de X, também se o acusa de realizar X.

A representação do(a) professor(a) como aquele(a) que quer incutir seus ideais nos(as) alunos(as) se repete também nas SDs 3 e 4. Vejamos: pode ser percebido em outra página do site do programa ESP, no qual nos deparamos com a seguinte sequência discursiva:

SD3: Por uma lei contra o abuso da liberdade de ensinar. A doutrinação política e ideológica em sala de aula ofende a liberdade de consciência do estudante; afronta o princípio da neutralidade política e ideológica do Estado; e ameaça o próprio regime democrático, na medida em que instrumentaliza o sistema de ensino com o objetivo de desequilibrar o jogo político em favor de um dos competidores. (ESCOLA SEM PARTIDO, 2020).

Conforme discutido para as SDs anteriores, a representação de professor é a daquele que tem a palavra e que, por esse motivo, pode tentar incutir concepções em seus estudantes, objetificados, por sua vez, como sujeitos silenciados e condenados. Em SD3, as ações antiéticas e autoritárias do campo semântico em torno da figura do professor (tentar impor, omitir, distorcer) são potencializadas por sintagmas nominais: “abuso de liberdade”; “doutrinação política e ideológica”; “ofende a liberdade de consciência do estudante”; “afronta o princípio da neutralidade”; “ameaça o próprio regime democrático”. A prática didática do professor é, portanto, interpretada a partir dos discursos político e jurídico.

SD4: A liberdade de ensinar, obviamente, não confere ao professor o direito de se aproveitar do seu cargo e da audiência cativa dos alunos, para promover os seus próprios interesses, opiniões, concepções ou preferências ideológicas, religiosas, morais, políticas e partidárias; nem o direito de favorecer, prejudicar ou constranger os alunos em razão de suas convicções políticas, ideológicas, morais ou religiosas; nem o direito de fazer propaganda político-partidária em sala de aula e incitar seus alunos a participar de manifestações, atos públicos e passeatas; nem o direito de manipular o conteúdo da sua disciplina, com o objetivo de obter a adesão dos alunos a determinada corrente política ou ideológica; nem, finalmente, o direito de dizer aos filhos dos outros o que é certo e o que é errado em matéria de religião e de moral. (ESCOLA SEM PARTIDO, 2020).

Conforme a SD4, o professor é novamente referenciado discursivamente por meio de verbos, o que lhe confere, sintaticamente, a posição de sujeito semântico agentivo e constrói a representação de pessoa ativa em sala de aula: “ensinar”, “aproveitar”, “promover”, “favorecer”, “prejudicar”, “constranger”, “fazer”, “incitar”, “manipular”, “obter” e “dizer”. Em complementação a alguns desses verbos, nota-se a regularidade do substantivo “direito” sempre precedido por advérbios de negação, como “não” e “nem”. Nesse sentido, a referenciação discursiva do docente funciona numa contradição: ao mesmo tempo em que é a única figura que “tem a palavra” na sala de aula e que poderia, por isso, “abusar” de seu poder, como mencionado em SD1, é também a figura sobre quem se propõe uma série de proibições que indicam que ele não é a única figura a “ter a palavra”. Da mesma maneira, a referenciação aos estudantes como pessoas passivas, silenciadas e manipuláveis se repete discursivamente no sintagma “audiência cativa”.

O advérbio “finalmente” aciona o fecho da argumentação apresentada no excerto, ao mesmo tempo em que enfatiza a próxima ideia como a principal da sentença. A última ponderação se apresenta como pontual, pois não cabe aos docentes “dizer aos filhos dos outros o que é certo e o que é errado em matéria de religião e de moral”. Por conseguinte, a expressão “filhos dos outros” ressalta a imprescindibilidade de o professor não fazer menção a qualquer tipo de referência a questões de natureza moral e religiosa, tomados, nesse discurso, como de incumbência exclusiva dos pais e/ou familiares.

Ainda sobre a objetificação dos estudantes manipuláveis, podemos observar na frase “fazer a cabeça”, em SD5, uma representação de estudante como receptáculo vazio de conhecimentos e sujeitos acríticos: “SD5: A pretexto de ‘construir uma sociedade mais justa’ ou de ‘combater o preconceito’, professores de todos os níveis vêm utilizando o tempo precioso de suas aulas para “fazer a cabeça” dos alunos sobre questões de natureza político-partidária, ideológica e moral.” (ESCOLA SEM PARTIDO, 2020, grifo do autor).

3.2 Saber escolar como transmissão de conhecimento e língua(gem) como transparente

No que se refere à representação sobre o saber escolar, isto é, institucionalizado, e sobre o conceito de língua(gem) que atravessa as proposições no site, retomamos novamente SD1 para iniciar nossas reflexões:

SD1: Em uma sala de aula, a palavra é do professor, e os estudantes estão condenados ao silêncio. Impõem as circunstâncias que os alunos sejam obrigados a seguir os cursos de um professor, tendo em vista a futura carreira; e que ninguém dos presentes a uma sala de aula possa criticar o mestre. É imperdoável a um professor valer-se dessa situação para buscar incutir em seus discípulos as suas próprias concepções políticas, em vez de lhes ser útil, como é de seu dever, através da transmissão de conhecimento e de experiência científica. Max Weber. (ESCOLA SEM PARTIDO, 2020).

Na construção final dessa SD “em vez de lhes ser útil, como é de seu dever, através da transmissão de conhecimento e de experiência científica”, que poderia ser reformulada como “o docente deve ser útil aos estudantes através da transmissão de conhecimento e de experiência científica”, compreendemos que o processo de ensino-aprendizagem escolar é entendido como conteúdo estritamente científico que pode ser transferido do docente para os estudantes numa via unidirecional. Esse sentido é repetido na SD6, que elenca a lista de deveres que os professores devem cumprir e que, segundo a proposta do ESP, deve ser impressa em formato de cartaz e afixada em todas as salas de aula, de todos os níveis educacionais:

  • SD6: 1) O professor não se aproveitará da audiência cativa dos alunos para promover os seus próprios interesses, opiniões, concepções ou preferências ideológicas, religiosas, morais, políticas e partidárias.

  • 2) Não favorecerá nem prejudicará ou constrangerá os alunos em razão de suas convicções políticas, ideológicas, morais ou religiosas, ou da falta delas.

  • 3) Não fará propaganda político-partidária em sala de aula nem incitará seus alunos a participar de manifestações, atos públicos e passeatas.

  • 4) Ao tratar de questões políticas, socioculturais e econômicas, apresentará aos alunos, de forma justa - isto é, com a mesma profundidade e seriedade -, as principais versões, teorias, opiniões e perspectivas concorrentes a respeito da matéria.

  • 5) Respeitará o direito dos pais dos alunos a que seus filhos recebam a educação religiosa e moral que esteja de acordo com as suas próprias convicções. (ESCOLA SEM PARTIDO, 2020).

Novamente, nessa lista, o sujeito agentivo é apenas o professor, enquanto os estudantes são a “audiência cativa”. A agentividade dos estudantes, sua participação ativa e intelectual, colaborativa e cooperativa no processo de aprendizagem escolar fica, em todo o texto, apagada. A relação entre docente e estudantes é, então, de submissão e hierarquia, numa representação de educação escolar construída somente a partir da palavra docente e de conteúdos científicos. Além disso, novamente os estudantes aparecem como figuras passivas, cujos posicionamentos políticos, morais, éticos e religiosos seriam construídos unicamente no âmbito familiar e a partir de seu controle sobre eles. Contudo, todo sujeito é sujeito de língua(gem) (PÊCHEUX, 1997) e de práticas discursivas em diferentes grupos sociais e formações discursivas. Essas práticas que podem ser culturais, escolares, de entretenimento etc. e que variam de sujeito para sujeito no interior de estratos históricos constituem os horizontes interpretativos (HASHIGUTI, 2016) de cada sujeito e possibilitam a produção de diferentes sentidos para um mesmo objeto.

Na SD6, um dos sentidos que fica mais visível para nós, no elenco dos deveres dos professores, é a concepção de língua(gem) como instrumento de comunicação, código transparente de informação que estaria livre da ação interpretativa de cada sujeito. Em todos os itens, as ações relacionadas à figura do professor se baseiam numa ideia de língua(gem) que tem sempre o mesmo sentido. À exceção do item (4) ‘Ao tratar de questões políticas, socioculturais e econômicas, apresentará aos alunos, de forma justa - isto é, com a mesma profundidade e seriedade -, as principais versões, teorias, opiniões e perspectivas concorrentes a respeito da matéria.” (ESCOLA SEM PARTIDO, 2020), todos os outros itens supõem que a expressão de preferências e orientações políticas, religiosas e morais por parte do professor é sempre um ato consciente, baseado numa literalidade de sentidos:

  • 1) O professor não se aproveitará da audiência cativa dos alunos para promover os seus próprios interesses, opiniões, concepções ou preferências ideológicas, religiosas, morais, políticas e partidárias.

  • 2) Não favorecerá nem prejudicará ou constrangerá os alunos em razão de suas convicções políticas, ideológicas, morais ou religiosas, ou da falta delas.

  • 3) Não fará propaganda político-partidária em sala de aula nem incitará seus alunos a participar de manifestações, atos públicos e passeatas.

5) Respeitará o direito dos pais dos alunos a que seus filhos recebam a educação religiosa e moral que esteja de acordo com as suas próprias convicções. (ESCOLA SEM PARTIDO, 2020).

Assim, como mencionamos na introdução deste texto, o conteúdo “teoria da evolução” proposto por Charles Darwin (2009), pode, em determinadas escolas, ser considerado um conteúdo de doutrinação e ser proibido,10 11em outras, ser uma teorização possível dentre outras interpretações sobre a origem do ser humano, ou ser tomada como a única verdade, ou ainda ser refutada pela visão criacionista.8 Outros exemplos atuais em discussão no Brasil, por exemplo, se referem à inclusão, exclusão ou manutenção de conteúdos relacionados a temas como gênero, sexualidade e raça.12

A questão sobre a interpretação do sujeito para produzir sentidos, da impossibilidade de haver apenas um sentido para os conteúdos e da impossibilidade de neutralidade fica bastante visível no exemplo abaixo, retirado de um livro didático de geografia destinado ao sétimo ano do ensino fundamental:

Fonte: APÓS CITAR... (2019).

Figura 2 Reprodução de apostila de Geografia da Plataforma de Ensino Eleva que falava em “golpe” contra a ex-presidente Dilma Rousseff 

Fonte: APÓS CITAR... (2019).

Figura 3 Reprodução de apostila de Geografia da Plataforma de Ensino Eleva com errata substituindo “golpe” por “destituição” 

Nas imagens acima, os substantivos “golpe”, destacado na Figura 2 pelo círculo vermelho, e “destituição”, em amarelo na Figura 3, fazem referência ao processo político por que passou a ex-presidente do Brasil, Dilma Rousseff, em 2016. A versão original do material distribuído aos estudantes era a da Figura 2. Contudo, após leitura e apreciação pelos pais e familiares, houve pressão para que o termo “golpe” fosse excluído, o que gerou a substituição, no material didático, pelo termo “destituição”, na Figura 3.

Nesse exemplo, é visível que a substituição de sintagmas nominais atua diretamente na cadeia discursiva do sentido. Logo, o vocábulo “golpe” marca, para alguns sujeitos, um posicionamento ideológico contrário ao processo sofrido por Dilma Rousseff, já que remete ao sentido pejorativo. Sinonimicamente, a palavra “golpe” pode ser vinculada à palavra “armadilha”, o que chancela a inocência da ex-presidente, nesse caso, vítima da situação.

Contrariamente, a palavra “destituição” traz à baila um posicionamento político oposto ao anterior, pois legitima o afastamento de Dilma de seu cargo de líder do Poder Executivo. Nesse sentido, o impeachment pode ser defendido constitucionalmente, atribuindo à ex-presidente a culpa pelo processo sofrido. Em ambos os casos, a simples substituição sintagmática e os gestos de interpretação dos sujeitos, a partir de suas posições discursivas, revelam posicionamentos discursivos, políticos e ideológicos, pois são capazes da qualificação inocente e/ou culpada, respectivamente. Em outras palavras, semanticamente é impossível substituir um termo por outro sem que haja discrepância discursiva de sentido. Logo, o que determina como cada sujeito entende essa narrativa histórica, seja pelo termo “golpe”, seja pelo termo “destituição”, isto é, o valor de verdade de cada versão, dependerá da formação discursiva a que o sujeito esteja inscrito.

Assim, apesar de o Programa ESP defender uma suposta neutralidade em sala de aula por parte dos(as) professores(as), entendemos que a própria seleção do que deve ou não ser ensinado aos alunos, via direcionamentos institucionais sobre a base curricular, não é neutra, uma vez que, na escolha de uma narrativa, teoria ou conceitos, por exemplo, são deixados “de fora” uma infinidade de textos e teorias. Nesse sentido, concordamos com Giroux (1990, p. 177), ao afirmar que:

[...] as escolas não se limitam simplesmente a transmitir de maneira objetiva um conjunto comum de valores e conhecimentos. Pelo contrário, as escolas são lugares que representam formas de conhecimento, usos linguísticos, relações sociais e valores que implicam seleções e exclusões particulares a partir da cultura comum. [...] Em poucas palavras, as escolas não são lugares neutros, e consequentemente tampouco os professores podem adotar uma postura neutra.

Nesse sentido, para que se possa viabilizar um trabalho de real formação intelectual e inovadora, que cremos deva ser o objetivo escolar, entendemos que alguns conteúdos podem ser abordados como versões, tanto de quem escreve, como de quem lê, dado que, frente ao texto, ambos os papéis realizam gestos de intepretação na/da língua(gem). Nossa compreensão dos processos de produção de sentidos, portanto, não se baseia num ideal de língua(gem) como código ou de leitura como uma possível recuperação de sentidos que seriam originais ou verdades. Entendemos que sentidos são sempre produzidos e estão sempre em produção, não sendo nunca acabados e únicos, e sendo sempre determinados pelo trabalho com a língua(gem) que cada sujeito realiza em suas circunstâncias histórica e subjetiva.

Dessa forma, compreendemos que a língua(gem) na qual são expressos alguns conteúdos escolares deve ser sempre posta para problematizações, questionamentos, relações com outros textos e conteúdos, num exercício de leitura que possibilite a emergência e circulação de diferentes sentidos e diferentes posicionamentos discursivos. Tal formação escolar e de leitura dá condições, a nosso ver, para constituir/potencializar a erudição, a criatividade e a criticidade desejáveis para o sujeito escolarizado, e deve, inevitavelmente, se fundamentar na compreensão aprofundada e minuciosa do funcionamento da língua(gem). O que apontamos ser, portanto, uma questão fulcral a ser discutida em propostas como o Projeto ESP é: a partir de quais concepções/ conceitos de língua(gem) e sujeito são apreciadas as práticas de sala de aula, os conteúdos disciplinares, textos e interações de sala de aula que são objetificados como doutrinação?

Malgrado a neutralidade objetivada no ESP, conforme pondera Foucault (2004), à escola não cabe a ilusão da neutralidade. Ao contrário, as instituições são instrumentalizadas, o que pode ser exemplificado em currículos, programas e materiais de ensino que já selecionam o que deve e pode ser ensinado, e que são, por sua vez, sempre textos à espera de interpretação. A objetificação da escola, no corpus que analisamos, por exemplo, vem à tona pela disposição dos sintagmas verbais e nominais, os quais regem comportamentos e atitudes esperadas do professor, na posição sempre de agentivo em relação ao estudante, sempre tomado como silenciado, acrítico, manipulável, numa relação hierárquica de poderes.

Como vimos discutindo, os sentidos são produzidos e não atributos das palavras. Isso se dá, pois, ao enunciar; o sujeito inevitavelmente assume uma posição discursiva e o léxico utilizado no momento da enunciação materializa regularidades e dispersões de determinados sentidos em detrimento de outros. Na perspectiva discursiva, entendemos que existe sempre um já-lá, um horizonte possível do dizer que é recortado em discursos no momento da interpretação (HASHIGUTI, 2016). Quando produz sentido, o sujeito está, portanto, desde sempre numa relação de injunção discursiva, ideológica por natureza.

Considerações finais

Embora o Projeto ESP proponha a neutralidade de sentidos nas ações e conteúdos trabalhados por docentes, entendemos, do nosso ponto de vista, que a neutralidade de sentidos é impossível, dado ser necessário que haja interpretação para que os sentidos emerjam. Essa característica da produção de sentidos vem sendo bastante discutida pelas conceptualizações sobre língua(gem), sujeito e sentido que os estudos em Linguística e Linguística Aplicada vêm apontando científicamente através de muitas pesquisas. Apesar de ser uma discussão crucial para todas as áreas do saber que lidam com a língua em seus conteúdos (por exemplo, os textos nos problemas de matemática, os exemplos em física, as narrativas em português etc.), tais problematizações sobre processos de produção de sentidos têm sido desconsideradas e desconhecidas por essas outras áreas.

Sob essa ótica, compreendemos que as práticas linguageiras do material analisado são também práticas discursivas que pressupõem posicionamentos ideológicos. Assim, sujeito e sentido se constituem concomitantemente, pois, ao enunciar, o sujeito estabelece sentido e se estabelece em determinada posição discursiva. A tomada de posição é, portanto, inconsciente, uma prática constante e responsiva baseada em gestos interpretativos.

Pela superfície discursiva, entendemos que as formulações linguísticas analisadas fazem referência a sentidos específicos mediante regularidades que acontecem no interior do discurso, as quais determinamos como representações imaginárias, a saber: (a) professores como manipuladores; (b) estudantes como receptáculos vazios; (c) saber escolar como transmissão de conhecimento; e (d) língua(gem) como instrumento transparente de comunicação.

Isso pôde ser observado nas formulações constantes no nosso corpus que sistematicamente posicionavam os docentes como sujeito agentivo dos verbos e os estudantes como o argumento paciente, além de pressupor uma transferência dos conteúdos de forma unidirecional dos docentes para os estudantes.

Logo, concluímos que os termos oracionais, ou seja, os sintagmas nominais, verbais delimitam sentidos e revelam posicionamentos discursivos, ideológicos e políticos inerentes à língua(gem). Assim sendo, nessa perspectiva, enfatizamos a impossibilidade de o sentido ser neutro e questionamos: como seria possível identificar e separar práticas de doutrinação daquilo que seja, talvez, apenas ensino e que é interpretado como doutrinação?

REFERÊNCIAS

APÓS CITAR “golpe” em material didático, rede de ensino pede desculpas. O Globo, Rio de Janeiro, 18 jun. 2019. Disponível em: https://oglobo.globo.com/sociedade/educacao/apos-citar-golpe-em-material-didatico-rede-de-ensino-pede-desculpas-23749227. Acesso em: 14 mar. 2020. [ Links ]

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Recebido: 15 de Março de 2020; Aceito: 05 de Junho de 2020

1

A inspiração veio a partir do conhecimento da NoIndocrination. org: “Quando começávamos a pôr mãos à obra, tomamos conhecimento de que um grupo de pais e estudantes, nos EUA, movido por idêntica preocupação, já havia percorrido nosso caminho e atingido nossa meta: NoIndoctrination.org. Inspirados nessa bem sucedida experiência, decidimos criar o EscolasemPartido.org [...]” (ESCOLA SEM PARTIDO, 2020). Quando da escrita deste artigo, não estava mais disponível o site NoIndoctrination.org.

2

A proposta Escola sem Partido tem dois sites: o https:// www.programaescolasempartido.org/, que, como compreendemos, apresenta a proposta do Programa e tem caráter mais informativo, e o http://escolasempartido.org/ quem-somos/, que tem as ferramenta de Blog e Denúncia, por exemplo, e em cuja seção Sobre Nós se afirma que: “Escola Sem Partido é uma iniciativa conjunta de estudantes e pais preocupados com o grau de contaminação político-ideológica das escolas brasileiras, em todos os níveis: do ensino básico ao superior.” (ESCOLA SEM PARTIDO, 2020). Para fins deste estudo, analisamos somente o https://www. programaescolasempartido.org/.

3

Cabe mencionar que, neste momento em que escrevemos, circula uma proposta do Ministério da Educação brasileiro para a produção de materiais didáticos qualificados como sem ideologia. A esse respeito, assista à declaração do Ministro da Educação no Twitter (WEINTRAUB, 2020).

4

Essa manchete foi exibida em uma reportagem de jornal televiso (Balanço Geral de Minas Gerais), e postada no site Youtube em 05/12/2017 (JOVENS..., 2017).

5

A citação não é acompanhada pelas informações de título e ano da obra.

6

Em nossa análise, nos baseamos na teoria sintático-semântica da língua portuguesa falada no Brasil para investigar através de quais regras e em quais elementos linguísticos o discurso acontece. O termo agentivo, nessa discussão, se refere ao papel temático em estruturas oracionais em que o agentivo causa ou faz algo que afeta seu objeto (IGNÁCIO, 2007).

7

Assim como no caso de escolas na Turquia, mencionado em reportagem da Reuters de 2017 com título “Turkey to stop teaching evolution theory in high schools: education board” (GUMRUKCU, 2017).

8

Como, por exemplo, foi anunciada como proposta do Coordenador da CAPES, nomeado em janeiro de 2020, segundo matéria do jornal Folha de S.Paulo sob o título “Novo presidente da Capes defende criacionismo em 'contraponto à teoria da evolução’” (SALDAÑA, 2020).

9

A exemplos de trabalhos que discutem essa questão, ver Rohden (2009) e Madureira (2007).

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