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Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade

versión impresa ISSN 0104-7043versión On-line ISSN 2358-0194

Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade vol.29 no.58 Salvador abr./june 2020  Epub 15-Dic-2020

https://doi.org/10.21879/faeeba2358-0194.2020.v29.n58.p233-249 

DOSSIÊ TEMÁTICO

O OLHAR DA MEDUSA: A OBJETIVAÇÃO DO TRABALHO DOCENTE NO MOVIMENTO ESCOLA SEM PARTIDO

THE MEDUSA’S EYES: THE OBJECTIVATION OF THE TEACHER PRACTICES IN THE MOVEMENT SCHOOL WHITHOUT PARTY

LA MIRADA DE MEDUSA: LA OBJETIVACIÓN DEL TRABAJO DOCENTE IN EL MOVIMIENTO ESCUELA SIN PARTIDO

Márcio Danelon (UFU)1 
http://orcid.org/0000-0003-0416-7273

Mauro Sérgio Santos da Silva (UFO)2 
http://orcid.org/0000-0002-3699-7661

*Doutor em Educação pela Universidade de Estadual de Campinas (UNICAMP). Professor na Faculdade de Educação da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). E-mail: marcio.danelon@ufu.br

**Doutorando em Educação na Universidade Federal de Uberlândia (UFU). E-mail: mauro.filos@hotmail.com


RESUMO

Este artigo é o resultado de uma pesquisa bibliográfica que tem por objetivo fazer uma reflexão sobre o Movimento Escola sem Partido, particularmente sobre a proposta de gravação das aulas, denúncia e julgamento do professor nas redes sociais. Essa reflexão será feita a partir da filosofia da intersubjetividade presente na fenomenologia existencial de Jean-Paul Sartre. Com esta chave de interpretação, constatamos que essa tecnologia de vigilância e denúncia do Movimento Escola sem Partido sobre o professor produz, de fato, um profundo mal-estar ao tornar as práticas pedagógicas e o professor objetos de julgamento nas redes sociais.

Palavras-chave: Educação; Fenomenologia e educação; Movimento Escola sem Partido; Olhar; Sartre

ABSTRACT

This paper is the result of the bibliographical research aiming to reflect on the Movement School without Party, specially on the proposal of classes recording, denunciation and judgment of teachers through social networks. This analysis was performed based on intersubjectivity philosophy which is present in the existential phenomenology of Jean-Paul Sartre. Using this interpretation key, we verified that the technology of vigilance and denunciation adopted by the Movement School on the teachers produces, in fact, a deep negative impact due to transform the pedagogical practices and the teacher in objects of judgement in the social networks.

Keywords: Education; Phenomenology and education; Movement School; Gaze; Sartre

RESUMEN

Este artículo es resultado de una investigación bibliográfica cuyo objetivo es reflexionar acerca del “Movimiento Escuela sin Partido”, particularmente respecto a la propuesta de grabación de clases, denuncia y juicio del profesor en las redes sociales. La reflexión se hará mediante la filosofía de la intersubjetividad presente en la fenomenología existencial de Jean-Paul Sartre. Con esta clave de interpretación, comprobamos que esta tecnología de vigilancia y denuncia del “Movimiento Escuela sin Partido” acerca del profesor produce, de hecho, un profundo malestar al convertir las prácticas pedagógicas y el profesor en objetos de juicio en las redes sociales.

Palabras clave: Educación; Fenomenología y educación; Movimiento Escuela sin Partido; Mirada; Sartre

Considerações iniciais

Sérgio adentrou no colégio Ateneu aos onze anos para, ali, “encontrar o mundo”, como lhe diria seu pai às portas do imponente prédio. Transitando entre rostos desconhecidos, vozes estranhas, corpos multiformes e pensamentos diferentes deparou-se, pela primeira vez até então, com o inusitado: viu-se em meio à outridade. Longe do aconchego amoroso e familiar da educação doméstica, descobriu que o outro, com seus rostos, vozes, corpos e pensamentos, também faz parte disso que se chama de educação escolar (POMPÉIA, 1991). Estar com o outro era irremediável, descobrindo isso pela única forma possível, a saber, pela violência do olhar:

Entretinha-me a espiar os companheiros, quando o professor pronunciou o meu nome. Fiquei tão pálido que Mânlio sorriu e perguntou-me, brando, se queria ir à pedra. Precisava examinarme. De pé, vexadíssimo, senti brumar-seme a vista, numa fumaça de vertigem. Adivinhei sobre mim o olhar visguento do Sanches, o olhar odioso e timorato do Cruz, os óculos azuis do Rebelo, o nariz do Nascimento, virando devagar como um leme; esperei a seta do Carlos, o quinau do Maurílio, ameaçador, fazendo cócegas não teto, com o dedo feroz; respirei no ambiente adverso da maldita hora, perfumado pela emanação acre das resinas do arvoredo próximo, uma conspiração contra mim da aula inteira, desde as bajulações de Negrão até a maldade violenta do Álvares. Cambaleei até à pedra. O professor interrogou-me; não sei se respondi. Apossou-me do espírito um pavor estranho. Acovardou-me o terror supremo das exibições, imaginando em roda a ironia má de todos aqueles rostos desconhecidos. Amparei-me à tábua negra, para não cair; fugia-me o solo aos pés, com a noção do momento; envolveu-me a escuridão dos desmaios, vergonha eterna! liquidando-se a última energia... pela melhor das maneiras piores de liquidar-se uma energia. (POMPÉIA, 1991, p. 26).

A experiência ficcional de Sérgio é paradigmática de muitas vivências reais que acontecem no cotidiano de todas as pessoas. A outridade, ou a descoberta do outro, é condição intrínseca da existência humana. Na qualidade de seres de cultura, cuja humanidade emerge no mergulho que todo ser humano faz no mundo instituído da cultura, estabelecemos uma relação dialética com o mundo das coisas (naturais ou produzidas pelas formas de transformação da matéria) e com o mundo dos homens (corpo e símbolos). É dessa relação que nos humanizamos. Essa relação, por sua vez, é mediada pelo olhar3 - o ato de debruçar a consciência sobre algo ou sobre alguém. Assim, todo olhar carrega uma intencionalidade, ou, em outras palavras, uma intenção de dar significado àquilo que se debruça o olhar, conforme reitera Alfredo Bosi, em Fenomenologia do olhar: “[...] ato de olhar significa um dirigir a mente para um ‘ato de intencionalidade’, um ato de significação” (BOSI, 1996, p. 65, grifo do autor). Pelo nascimento,4 5pessoas aparecem no mundo destituídas, em si mesmas, de qualquer tipo de historicidade. Vazias, portanto, de si mesmas, estabelecem ligações, mediadas pelo olhar, com o mundo que as cerca - seus arredores: coisas, pessoas, sons e símbolos - num processo que demarca o distanciamento de si mesmas com o mundo. É esse distanciamento que permite a esse ser, que aparece no mundo pelo nascimento, reconhecer-se como diferente do mundo que o cerca.

Em outras palavras, permite-lhe perceber-se como uma subjetividade:6 um ser que pensa a si mesmo na diferença com o outro, seja esse outro pertencente ao mundo humano, seja pertencente ao mundo das coisas. É essa a premissa antropológica da fenomenologia de Husserl (2001) - ancorada na tese de Franz Brentano - de que “toda consciência é consciência de...”. Trata-se da abertura da consciência para o mundo, ato fundador, tanto da consciência de si quanto do mundo. Assim sendo, consciência e mundo passam a existir nesse ato de abertura da consciência para o mundo. “Consciência de...” é o ato da consciência debruçar-se sobre algo - metáfora do olhar - fundador da subjetividade, ou, em outras palavras, da condição humana. Assim, tornamo-nos humanos nesse ato epistemológico de se distanciar das coisas e das pessoas para apreendê-las, para conhecê-las, para produzir sentido sobre nossos arredores.

Como todo ato epistemológico, posicionar a consciência diante do mundo - seja o mundo humano, seja o mundo das coisas, reitero - significa estabelecer uma relação de objetividade. Consciência e mundo estão separados, distantes um do outro, numa relação dialética. Ao abrir-se para o mundo, a consciência elimina essa distância no ato de debruçar-se sobre esse mundo, até então distante dela. Assim, posicionar-se diante de algo significa colocar esse “algo” como objeto da consciência, permitindo a produção de sentido desse mundo. O conhecimento que a consciência produz sobre o mundo é, então, o resultado do ato de posicionalidade da consciência diante do mundo. Pensar, dar sentido, conhecer, implica, necessariamente, colocar isso que se pensa, que se dá sentido, que se conhece (o mundo) como objeto dessa consciência conhecedora e doadora de sentido. Essa é a vertigem experimentada por Sérgio ao emergir na sala de aula enquanto o “mundo humano” sobre o qual as inúmeras consciências - do professor e dos colegas - se debruçavam sobre ele. Ser visto é ser objeto da consciência do outro; é vivenciar a desconfortável experiência de ter o seu ser tomado, capturado pela consciência do outro; é a nauseante experiência de não ter o controle sobre seu próprio ser, de estar à mercê do outro, daquilo que o outro pensa: Sérgio é, naquele momento em que é visto, tão somente o que as diversas consciência pensam sobre ele. Sem controle de si, abandonado à consciência do outro, tornado objeto em meio à arena das diversas consciências que a sala de aula se transformou, Sérgio perde os sentidos de si, pois não é mais pessoa e, sim, uma coisa pensada pelo outro. Esse é o drama de Sérgio, esse é o drama de todo professor e de todo aluno colocado nessa posição de objeto diante da outridade. É essa, enfim, a chave de leitura com a qual queremos refletir sobre o projeto de lei do Movimento Escola sem Partido, em particular a proposta de filmar as atividades em sala de aula a fim de submeter à “consciência fiscalizadora dos pais”.

O projeto de lei que institui o Programa Escola sem Partido é o resultado de um processo de olhar, de debruçar a consciência sobre a escola que remonta a 2004, quando foi fundado o Movimento Escola sem Partido. Esse movimento surgiu, conforme as palavras de seu fundador, Miguel Francisco Urbano Nagib:

2. [...] como reação a duas práticas ilegais que se disseminaram por todo o sistema educacional: de um lado, a doutrinação e a propaganda ideológica, política e partidária nas escolas e universidades; de outro, a usurpação - pelas escolas e pelos professores - do direito dos pais dos alunos sobre a educação religiosa e moral dos seus filhos. (ESCOLA SEM PARTIDO, 2018).

A justificativa para a criação de tal movimento seria uma “doutrinação ideológica, política e partidária” que ocorre nas escolas e que se mostra “3. [...] um problema sistêmico, cujas origens remontam a meados da década de 807 do século passado (ESCOLA SEM PARTIDO, 2018).

Num hiato de dez anos, “Há poucas informações disponíveis na internet sobre as ações do movimento entre 2004 e 2014. As matérias de imprensa que tratam do assunto, em geral, mencionam a criação em 2004 e depois ações a partir de 2014” (BRAIT, 2016, p. 162). A partir de 2014, o Movimento Escola sem Partido começa a se tornar conhecido e a ter certa repercussão social fundamentalmente com a divulgação em redes sociais de práticas pedagógicas doutrinadoras e usurpadora da educação moral e religiosa dos pais, na visão dos integrantes do movimento. Essa divulgação, feita na página da WEB (ESCOLA SEM PARTIDO, 2014) e no Facebook (ESCOLA SEM PARTIDO, 2020a), ambos do movimento, é composta de textos e, mais importante, de vídeos que denunciam as práticas doutrinadoras dos professores. Além disso, o Movimento fez uso da estratégia de aproximação com setores políticos conservadores e ligados a igrejas e a movimentos religiosos a fim de induzir a apresentação de projetos de lei que instituem o Programa Escola sem Partido, projetos esses, elaborados com base em um “modelo” produzido pelo próprio movimento (ESCOLA SEM PARTIDO, 2020b). Assim, é a partir de 2014 que são apresentadas nas casas legislativas8 as primeiras propostas de instituição desse programa.

Em nossa análise, a técnica de vigilância e de exposição do professor em redes sociais denota uma forma de objetificação do professor, com vistas a desqualificação tanto da pessoalidade do professor quanto de suas práticas pedagógicas. Essa técnica está sustentada no ato de olhar presente não somente na letra da lei proposta pelo Movimento Escola sem Partido, quanto das práticas desse Movimento. Sendo assim, veremos, em primeiro lugar, o estatuto da fenomenologia do olhar sobre as práticas do professor, para, em seguida, mostrar como esse Movimento se funda nas técnicas de vigilância e de exposição como forma de legitimar sua proposta de legislação sobre a escola.

Olhar - concepção fenomenológica de olhar e sua implicação na educação

Esteno, Euríale e Medusa, três irmãs que, num passado distante, eram belas mulheres, cuja vaidade faziam-nas se compararem com as deusas do Olimpo, considerando-se ainda mais belas do que elas. Como castigo pela vaidade, as divindades as transformaram em Górgonas.9 Substituíram os cabelos por serpentes e deformaram a boca, colocando presas de javali no lugar de dentes. Por fim, substituíram os braços e as pernas por garras de bronze e deram-lhes asas para voar. Como maior castigo pela vaidade, dotaram-nas do terrível poder de petrificar todo aquele ser que olhasse para elas, tirando delas o antigo prazer de ser admiradas pela beleza. Das três Górgonas, a mais feroz e medonha era Medusa, contudo, a única mortal, castigo dado a ela por Atenas, pois, não satisfeita em ter desafiado as deusas gabando-se da sua beleza e da sua formosura, Medusa ainda cometera o sacrilégio de engravidar de Poseidon, dentro do próprio templo de Atenas (BRANDÃO, 1988).10

O mito das Górgonas é um contraponto ao princípio délfico do “conhece-te a ti mesmo” (gnothi sauton), fortemente presente na cultura grega,11 cuja assimilação pela filosofia e posterior influência em toda a cultura ocidental encontra na obra de Platão sua maior representação.12 Se com o olhar para si mesmo presente no ato de reflexão - voltar-se para si e pensar seu próprio ser - o homem pode encontrar a verdade de seu ser, como resultado do conhecer a si mesmo, realizando o princípio délfico do gnothi sauton, o olhar da Medusa paralisa, petrifica, tornando estéril o ato de debruçar-se sobre si. O voltar-se e olhar a si mesmo, exercício necessário para o “conhece-te a ti mesmo” atravessado pelo olhar da Medusa, petrifica porque revela as entranhas da alma humana; revela a condição de uma existência que se arrasta e que se degenera dia após dia nas tragédias da facticidade humana. Em última instância, olhar para si transpassado pelo olhar do outro objetiva a alma humana porque revela uma existência cuja tragicidade está no olhar do outro: é o olhar da Medusa sobre o homem que o paralisa e não o olhar de si para si mesmo. Assim, o mito da Górgona se mostra um contraponto ao exercício filosófico de olhar a si mesmo como condição necessária para conhecer a si mesmo, revelando a esterilidade desse processo. Em outras palavras, não há um ser ou uma essência a ser descoberta no ato de olhar a si mesmo, pois esse olhar é rasgado e atravessado pelo olhar do outro - da Medusa - que captura, que paralisa e que petrifica a alma humana.

É como contraponto ao gnothi sauton que o mito da Medusa nos serve de metáfora para refletirmos sobre a condição humana estar a mercê do olhar do outro, tal qual a experiência narrada por Sérgio, no Ateneu (POMPÉIA, 1991). Ora, se há uma essência13 14ou uma verdade de si prestes a ser revelada ou descoberta pelo exercício do gnothi sauton, então o olhar do outro não incomodaria, não petrificaria, seria indiferente e não causaria vertigem como narrado por Sérgio. Entretanto o olhar da Medusa paralisa, petrifica; o olhar do professor e dos colegas causaram vertigem em Sérgio, exatamente porque o ser não está em si mesmo (prestes a ser revelado pelo olhar de si para si mesmo), mas é uma construção que ocorre no meio do mundo - no mundo da cultura e entre pessoas - em que o outro, que nos atravessa pelo olhar, representa o polo decisivo nessa empreitada antropológica. O outro paralisa, objetiva, petrifica, causa vertigem. Assim, o mito da Medusa revela a tragédia da existência humana em ter seu ser no olhar do outro.

O registro do gnothi sauton é uma tradição essencialista porque permite a descoberta de um ser, de uma essência necessária e condicional de toda verdade de si. “Conhecer a si mesmo” é conhecer algo que está “em si mesmo”, daí a premissa de um ser ou de uma alma (psiquê) a ser descoberto pelo ato de olhar para si mesmo. A existência de “algo” para o qual se debruce o olhar ou que se volte o pensamento é condição sine qua non de toda forma de conhecer. Contudo, a metáfora da Medusa revela que esse “si mesmo” - típico de toda interioridade e “algo” sobre o qual se debruça o olhar no gnothi sauton -, quando atravessado pelo olhar do outro, é petrificado, objetivado. A tese, fundamentada na fenomenologia existencial, de que o olhar do outro objetiva, paralisa e petrifica esse si mesmo, essa interioridade - representada na metáfora da Medusa - que nos servirá de referência conceitual para nossa reflexão sobre o Movimento Escola sem Partido.

A experiência de Sérgio nos mostra uma condição do processo educativo: ele é intersubjetivo, necessariamente. Se é possível ser autodidata e aprender algo sozinho, adquirindo algum tipo de conhecimento, de habilidade de relações que o ser humano mantém com o outro e com as coisas” (SALZMANN, 2000, p. 43). ou de competência para resolver problemas, o processo de formação é intersubjetivo: a constituição de si, como pessoa, faz-se na relação com o outro. Refiro-me, aqui, à tradição da educação como formação: bildung. 11 É no “ser-com”15 16que a formação de si como pessoa e como cidadão acontece. Assim, são as vivências e as experiências do sujeito travadas no mundo da vida que marcam o processo formativo de cada pessoa. Para além da informação, das habilidades e das competências, essas sim, possíveis de serem adquiridas solitariamente, a formação de si como sujeito do mundo (pois é produto do mundo) e no mundo (pois é situado dentro do mundo) acontece em meio à cultura:17 expressões artísticas, linguagem, valores, ideologias - das mais diversas matizes: política, econômica, religiosa -, trabalho, lazer. Conforme afirma Saviani (2005, p. 13):

[...] o ato de produzir, direta ou intencionalmente, em cada indivíduo singular, a humanidade que é produzida histórica e coletivamente pelo conjunto dos homens. Assim, o objeto da educação diz respeito à identificação dos elementos culturais que precisam ser assimilados pelos indivíduos da espécie humana para que eles se tornem humanos [...].

Esse mundo da cultura, instância formativa de nosso ser no mundo, é coletivo, plural, diverso e intersubjetivo. Assim, a cultura como instância formativa da pessoalidade nasce e se alimenta, perpetuando-se, nas relações interpessoais de si com o outro. Dessa forma, todas as pessoas são educadas e se educam pelo outro, bem como elas mesmas educam o outro, tudo intermediado pelo mundo da cultura.

O ponto de inflexão, aqui, é o significado e o estatuto do “outro” nas relações formativas que cada pessoa estabelece em meio ao mundo. O que a convivência com o outro no meio do mundo significa para cada pessoa? O que é o outro no mundo de cada pessoa? A vivência paradigmática de Sérgio no Ateneu (POMPÉIA, 1991) nos revela a dramática experiência de uma pessoa numa relação de alteridade: conviver com o outro e estar sob o olhar do outro. Se “é o Outro que me torna um ser humano” (BURSTOW, 2000, p. 109), é esse mesmo outro que invade, que desestabiliza, que petrifica e que objetiva nosso ser, causando a náusea e a vertigem de ter o ser capturado pelo olhar do outro. A fenomenologia existencial revelou, amiúde, essa intrincada relação eu-outro18 inerente à condição humana.

A relação Eu-Outro é marcada pela desestabilização, pelo desconforto e pela náusea do Eu tornar-se objeto do olhar do Outro. Da mesma forma que o sujeito olha determinada coisa e, nesse olhar, torna-a um objeto de sua apreensão, dando a essa coisa utilidade, sentido, significado, esse mesmo sujeito olha outro sujeito tornando-o objeto de seu olhar. Nessa relação, atribui ao sujeito objetificado sentidos e significados: ‘Assim, o outro é para mim, antes de tudo, o ser para o qual sou objeto, ou seja, o ser pelo qual adquiro minha objetidade” (SARTRE, 1999, p. 347, grifo do autor). Mais adiante, corrobora: “O outro está presente a mim onde quer que seja, como aquilo pelo qual eu me torno objeto” (SARTRE, 1999, p. 359). É enquanto objetificado que o homem adquire, pelo outro, um ser, um sentido, um significado. Assim, a relação Eu-Outro é a relação sujei-to-objeto, necessariamente atravessada pelo olhar. Em outras palavras, é o olhar do Outro que torna o Eu objeto da apreensão da sua consciência: “A prova de minha condição de homem, objeto para todos os outros homens vivos, lançado na arena debaixo de milhões de olhares e escapando-me a mim mesmo milhares de vezes [...] É o conjunto do fenômeno que determinamos olhar" (SARTRE, 1999, p. 360, grifo do autor). Então, o outro, que detém o olhar sobre o sujeito-objeto,

[...] é o ser ao qual não volto minha atenção. É aquele que me vê e que ainda não vejo; aquele que me entrega o que sou como não-revelado, mas sem revelar-se a si mesmo; aquele que me está presente enquanto me visa e não enquanto é visado; é o polo concreto e fora de alcance de minha fuga, da alienação de meus possíveis e do fluir do mundo rumo a um outro mundo, mundo este que é o mesmo e, contudo, incomunicável com aquele. [...] Se sou totalmente entregue à minha vergonha, por exemplo, o outro é a presença imensa e invisível que sustenta esta vergonha e a envolve por todo lado; é o meio de sustentação de meu não-ser-revelado. (SARTRE, 1999, p. 346, grifo do autor).

Em sua condição humana, o homem está situado, desde o nascimento, no meio do mundo entre outros homens. Dessa condição não pode escapar, pois perderia a condição de humanidade, perdendo-se no mundo da natureza. Assim, a humanidade é estar na cultura, no mundo e entre outras pessoas, ou que o ser do humano, e aquilo que torna possível a sua especificidade, a saber a sua humanidade, é estar no meio do mundo, em meio a outros homens:

Desse modo, eu, que, enquanto sou meus possíveis, sou o que não sou e não sou o que sou, a partir de agora sou alguém. E esse que sou - e me escapa por princípio - eu o sou no meio do mundo, na medida que me escapa. Por isso, minha relação com o objeto, ou potencialidade de objeto, decompõe-se sob o olhar do outro [...] (SARTRE, 1999, p. 339, grifo do autor).

Nesse raciocínio, a condição antropológica é atravessada pela epistemologia, pois aquilo que o sujeito é, somente o é como resultado de uma consciência que, através do olhar, debruça-se sobre ele, objetificando-o:

Assim, a noção de outro não poderia, em qualquer circunstância, ter por objetivo uma consciência solitária e extramundana, na qual sequer posso pensar: o homem define-se com relação ao mundo e em relação a mim [...] é também uma relação concreta e cotidiana que experimento a cada instante: a cada instante o outro me olha. (SARTRE, 1999, p. 332, grifo do autor).

Como relação Eu-Outro permeada pela epistemologia, o Eu precisa, necessariamente, do Outro para ganhar um sentido, para ter um significado, para possuir uma subjetividade e para ter um lugar no mundo enquanto um ser-no-mundo. Assim, “Para obter qualquer verdade sobre mim, é necessário que eu considere o outro. O outro é indispensável à minha existência tanto quando, aliás, ao conhecimento que tenho de mim mesmo” (SARTRE, 1987, p 16-17). Nesse caso, o conhecimento de si que o sujeito produz é o conhecimento que o Outro tem desse sujeito e com o qual serve de matéria-prima para o conhecimento de si. A ciência de si é rasgada pela ciência que o Outro, pelo olhar, produz. No Ser e o Nada (SARTRE, 1999, p. 438) encontramos: ‘A consciência não conhece seu caráter - salvo determinando-se reflexivamente a partir do ponto de vista do outro [...]”. E continua: “Esse caráter, portanto, só existe ao nível do Para-outro [...]” (SARTRE, 1999, p. 439). A antropologia dilui-se, então, no campo da epistemologia, pois qualquer pensamento sobre si necessário para o conhecimento de si (gnothisauton) advém do outro: “E a presença sem intermediário desse sujeito é a condição necessária de qualquer pensamento que tento formar ao meu respeito” (SARTRE, 1999, p. 348). É assim que, na fenomenologia existencial sartreana, o Eu é o Outro, pois esse Outro detém, em seu olhar, o ser de todo sujeito objetificado:

O outro detém um segredo: o segredo do que sou. Faz-me ser e, por isso mesmo, possui-me, e esta possessão nada mais é do que a minha consciência de me possuir. E eu, no reconhecimento de minha objetidade, tenho experiência de que ele detém esta consciência. A título de consciência, o outro é para mim aquele que roubou meu ser e, ao mesmo tempo, aquele que faz com que ‘haja’ um ser, que é o meu. (SARTRE, 1999, p. 454-455).

Assim, o “Outro é para mim, então, um escândalo [...] O outro não é somente essa existência que me rouba o mundo, que me descentraliza, mas também porque o organiza senão ele, o mundo que eu era o centro [...]” (JEANSON, 1965, p. 214). O Outro, ao petrificar o sujeito no olhar que o atravessa, torna possível a emergência do Eu desse sujeito. Conforme vimos, aquilo que o sujeito se constitui enquanto subjetividade advém através do olhar do Outro, daí esse Outro possuir, nas palavras de Sartre, o “segredo do que sou”. Essa redução do sujeito a objetidade no olhar do Outro é desconfortável, desestabilizadora e vertiginosa, pois o Eu do sujeito está à mercê daquilo que o Outro pensa dele, daquilo que a consciência do Outro revela ao debruçar-se sobre o Eu objetificado. Ser visto é estar à mercê da consciência do Outro sobre si, conforme ilustra essa passagem: “Acabo de cometer um gesto desastrado ou vulgar: esse gesto gruda em mim, não o julgo nem o censuro, apenas o vivencio [...] Mas, de repente, levanto a cabeça: alguém está ali e me viu. Constato subitamente toda a vulgaridade de meu gesto e sinto vergonha.” (SARTRE, 1999, p. 289). Essa vergonha de ter seu ser capturado, petrificado no olhar do Outro, é o mesmo olhar que “empalideceu” Sérgio ao ser chamado, durante seus estudos no Ateneu, pelo professor causando-lhe “vertigem”; é o mesmo olhar que o deixou “vexadíssimo”, “cambaleando” ao ir em direção à pedra e que instalou nele o “pavor” ao adivinhar o “olhar visguento e odioso” dos colegas diante da cena, imaginando-se na “roda a ironia má de todos aqueles rostos desconhecidos” (POMPÉIA, 1991, p. 26). Essa experiência de estar à mercê do Outro, sob milhares de olhares objetivadores de si, que causou vergonha, náusea e desmaio em Sérgio é o paradigma da existência de todas as pessoas que, cotidianamente, se veem jogadas, no meio do mundo, nessa mesma experiência. Em síntese, “[...] meu eu-objeto não é conhecimento em unidade de conhecimento, mas mal-estar [...]” (SARTRE, 1999, p. 353). Contudo, o mal-estar de ter seu ser objetificado no olhar do Outro é apenas uma face da facticidade humana. Esse Outro, além do olhar objetificador sobre o Eu, detém outro elemento avassalador: ele é livre; ele possui um olhar livre. Essa liberdade é potencializadora do desconforto e da vertigem de ter seu ser no pensamento do Outro.

A liberdade é ontológica. Não é concedido ao ser humano a possibilidade de não fazer escolhas. Escolher é intrínseco à humanidade. A liberdade de olhar o outro é condição presente nas relações intersubjetivas, conforme afirma Sartre (1987, p. 16):

Nessas condições, a descoberta de minha intimidade desvenda-me, simultaneamente, a existência do outro como uma liberdade colocada na minha frente [...] Desse modo, descobrimos imediatamente um mundo a que chamamos de intersubjetividade e é nesse mundo que o homem decide o que ele é e o que são os outros.

Sendo a liberdade ontológica, essa consciência é absolutamente livre para conferir a esse sujeito, objeto do olhar, os sentidos e significados que escolher em sua liberdade:

Este ser que sou conserva certa indeterminação, certa imprevisibilidade [...] E essas características novas não decorrem do fato de que não posso conhecer o outro, mas provêm também, e sobretudo, do fato de que o outro é livre; ou, para ser exato e invertendo os termos, a liberdade do outro revela-se a mim através da inquietante indeterminação de ser que sou para ele [...] tal ser me é dado como um fardo que carrego sem que jamais possa virar o rosto para conhece-lo, sem sequer poder sentir seu peso [...] (SARTRE, 1999, p. 337, grifo do autor).

A consciência desfruta de total liberdade para atribuir os sentidos, os significados e a utilidade para os objetos e para as coisas que estão sob a mirada dessa consciência. E essa liberdade permite que esses sentidos, significados e utilidades sejam, inclusive, absolutamente distintos daqueles consagrados pela cultura e pela cotidianeidade, de forma que a consciência pode criar os sentidos e os significados do mundo que o rodeia. É assim que uma criança procede quando, por exemplo, atribui um sentido lúdico e uma utilidade de brincadeira a determinado objeto que a cultura e a cotidianeidade consagraram como de uso para o trabalho: uma panela não é, necessariamente, um objeto para fazer comida, mas também pode ser para produzir sons e brincadeiras. O objeto está à mercê da consciência. O mesmo processo ocorre quando uma consciência, através do olhar, debruça-se sobre outro sujeito. Como sujeito que olha, a liberdade permite-lhe conferir uma interioridade, um sentido, um significado, um conjunto de valores e de avaliações sobre esse outro, tal qual procedemos com o mundo dos objetos. Contudo, se no mundo dos objetos isso não se constitui num problema, no mundo da intersubjetividade essa liberdade é totalmente desconfortável. Ser olhado implica não ter controle sobre o que esse Outro pensa sobre mim, pois é um ser livre para pensar e para atribuir os sentidos e os significados que julgar pertinentes a mim. Essa experiência significa estar à mercê de uma liberdade estranha e da qual não se tem o menor controle:

E o outro, através do qual esse eu me advém, não é conhecimento nem categoria, mas o fato da presença de uma liberdade estranha. Na verdade, meu desprendimento de mim e o surgimento da liberdade do outro constituem uma só coisa; só posso senti-los e vivê-los juntos; sequer posso tentar conceber um sem o outro. (SARTRE, 1999, p. 353, grifo do autor).

Assim, “[...] o ser-visto constitui-me como um ser sem defesa para uma liberdade que não é a minha liberdade. Nesse sentido, podemos considerar-nos ‘escravos’, na medida em que aparecemos ao outro” (SARTRE, 1999, p. 344, grifo do autor). Isso deixa o ser humano numa condição de desamparo diante do olhar do Outro: nada há que se fazer diante do olhar avaliador. O sujeito, em suas relações sociais - família, amigos, trabalho, lazer, religião -, constrói uma imagem de si com base no que ouve e no que percebe desses outros que convivem com ele. Essa imagem de si é carregada de sentidos e de significados e possui características de forma a permitir a esse sujeito sentenciar “eu sou assim...”. Essa imagem de si pode ser “boa” ou “má, “saudável” ou “doentia”, socialmente “aceita” ou “execrável”, “religiosa” ou “não religiosa”, “conservadora” ou “libertária”, dentre outras classificações possíveis. Contudo, tudo isso se evapora diante do olhar do Outro, que opera como um elemento de desintegração dessa imagem de si. Esse Outro, cuja consciência é livre e estranha, olha para o sujeito e, ciente ou não dessa imagem de si que ele construiu para si mesmo, pensa, atribui sentido e significado, avalia, julga, constrói uma interioridade para este sujeito, objeto de seu olhar. Por isso somos escravos do Outro:

Sou escravo na medida em que sou dependente em meu ser do âmago de uma liberdade que não é a minha e que é a condição mesmo de meu ser. Enquanto sou objeto de valores que vêm me qualificar sem que eu possa agir sobre essa qualificação ou sequer conhece-la, estou na escravidão. (SARTRE, 1999, p. 344).

Assim, somos atravessados pelo olhar e, por isso, estamos, diante do Outro, cotidianamente em perigo:

Mas, precisamente porque existe pela liberdade do outro, não tenho segurança alguma, estou em perigo nessa liberdade; ela modela meu ser e me faz ser, confere-me valores e os suprime, e meu ser dela recebe um perpétuo escapar passivo de si mesmo. Irresponsável e fora de alcance, esta liberdade proteiforme na qual me comprometi pode, por sua vez, comprometer-se em mil maneiras diferentes de ser (SARTRE, 1999, p. 457, grifo do autor).

Estar em perigo diante de uma consciência livre e estranha “[...] não é um acidente, mas a estrutura permanente de meu ser-Para-outro” (SARTRE, 1999, p. 344). Numa análise fenomenológica existencial, as relações intersubjetivas são, potencialmente, conflituosas,19 quando o sujeito avalia e percebe que a imagem de si é diferente da imagem que o outro tem dele. O desconforto diante de uma consciência que toma e que apreende em seu olhar o ser, a interioridade, os valores, os sentidos e os significados é a condição de um homem que se faz humano nas relações intersubjetivas: a todo momento, no trabalho, no lazer, na escola, na religião, na família, olhamos o outro e somos olhados pelo outro; construímos interioridade e temos nossa interioridade construída; julgamos e classificamos pessoas, e somos julgados e classificados; definimos o que o outro é e somos definidos pelo outro; portamos em nosso olhar o ser do outro, e temos nosso ser à mercê do olhar do outro. O ruborizar-se, a náusea, a vertigem, o desmaio de Sérgio é a experiência de estar diante da arena dos olhares do professor e dos colegas de sala de aula e de ter seu ser capturado pela liberdade do olhar desse outro: “como me veem? O que pensam de mim? O que sou para eles?” A vertigem e o desmaio de Sérgio são diante da liberdade do olhar de consciências que o capturam, avaliam, julgam e constroem um ser para ele. Esse fato ficcional é paradigmático e revelador de uma forma de objetificação do professor. Acreditamos que essa objetificação, através do olhar, é materializada na estratégia de jogar o professor na arena, sob milhares de olhares das redes sociais que o capturam, que o avaliam, que o julgam, que constroem uma interioridade para ele, tornando-o objeto desses milhares de olhares. É essa estratégia que o Movimento Escola sem Partido propõe como tática de controle sobre o trabalho docente, conforme veremos em sequência.

O estatuto do olhar no movimento escola sem partido

Minha verdade, meu caráter e meu nome estavam nas mãos dos adultos; aprendera a ver-me com os olhos deles; eu era uma criança, esse monstro que eles fabricam com suas queixas. Ausentes, deixavam atrás de si o olhar, misturado à luz; eu corria, eu saltava através deste olhar que me conservava minha natureza de neto, que continuava a me oferecer meus brinquedos e o universo. Em minha bela redoma, em minha alma, meus pensamentos giravam, qualquer pessoa podia seguir seus manejos; nenhum canto de sombra. No entanto, sem palavras, sem forma nem consistência, diluída nesta inocente transparência, uma transparente certeza estragava tudo: eu era um impostor. (SARTRE, 1964, p. 53).

“Monstro” e “impostor”: é como Sartre (1964), em sua autobiografia, descreve a forma como fora fabricado pelo olhar do adulto sobre ele. Torná-lo monstro, torná-lo um impostor no mundo todo organizado do adulto: esse é o ser e a interioridade de Sartre criança visto pelo outro, o adulto. Tornar monstro o professor, torná-lo um impostor à ótica avaliativa de uma alteridade é o que me parece o projeto do Movimento Escola sem Partido. Potencializar esse olhar que tornou Sartre um monstro aos olhos do adulto; potencializar o olhar que causou náusea e vertigem em Sérgio é o intuito do Movimento ao defender a gravação das aulas e atirar o professor sob milhares de olhares na arena das redes sociais, para que receba, ali, toda forma de avaliação, de julgamento, de juízo, de classificação e de interioridade. Essa é, de fato, a tecnologia empregada pelo Movimento Escola sem Partido, para controlar não somente o que se ensina em sala de aula, mas, também, para vigiar e para controlar aquilo que o professor pensa sobre política, economia, religião, sexualidade. Classificar o professor como um monstro (ser execrável) e um impostor (não deveria estar lecionando) é o resultado do olhar de um outro - aquele que grava a aula - que avalia, que julga e que condena ao afirmar que o professor está doutrinando os alunos nas suas aulas, endossado e potencializado pelos milhares de olhares das redes sociais, é a tecnologia do Movimento Escola sem Partido. Senão, vejamos.

Olhar é vigiar. Trata-se de uma ação de estar de vigia necessária para produzir um saber sobre isso que se olha. Olhar é, então, estar em vigilância (BOSI, 1996, p. 78, grifo do autor): “Estar de olho, ficar de olho, não perder do olho e trazer de olho marcam um grau de interesse do sujeito que beira a vigilância.” Olha-se porque desperta o interesse e o desejo de debruçar a consciência para saber o que é isso que se olha, a fim de produzir poder e controle. Como o professor está à frente na educação escolar, torna-se um sujeito de grande importância para a formação da criança. Por isso, aquilo que o professor ensina e fala em sala de aula tornou-se objeto de interesse para aqueles que desejam exercer o papel de avaliadores e de julgadores do trabalho docente. Não somente o que o professor ensina, mas, também, o que ele pensa, a sua ideologia, as suas opções políticas, religiosas, e sexuais até, devem ser capturados pelas câmeras e publicados, sob milhares de olhares na arena das redes sociais. Saber-poder emaranham-se nessa forma de controle sobre o professor. Trata-se de um projeto de lei de instituição do panóptico:

[...] quem quer que seja que estabeleça uma escola de acordo com a máxima do princípio da inspeção tem que estar bem seguro a respeito do mestre; pois, da mesma forma que o corpo do menino é fruto do corpo de seu pai, sua mente é fruto da mente de seu mestre; com nenhuma outra diferença que não aquela que existe entre o poder de um lado e a sujeição do outro (BENTHAM, 2008, p. 78, grifo do autor).

De fato, a vigilância não é somente em torno do que o professor faz em sala de aula, ou seja, de suas práticas pedagógicas, mas do que o professor pensa, dos seus conceitos, de suas ideologias, de seus ideais e de seus valores. Na medida em que, acredita-se, há consonância entre o que o professor ensina e o que ele pensa, o processo de vigilância transcende o espaço da sala de aula, indo ao encontro do mundo da vida do professor. É o controle da mente, procedimento altamente eficaz numa sociedade panóptica, conforme descreve Bentham (2008, p. 17: “Trata-se de um novo modo de garantir o poder da mente sobre a mente, em um grau nunca antes demonstrado [...]” Se Bentham (2008) pensava numa arquitetura escolar necessária para a tarefa da vigilância, encontramos no Movimento Escola sem Partido a quebra da arquitetura física de controle rumo à elevação do olhar vigilante sobre mentes e corpos para o mundo das redes sociais, encampada por milhares de pessoas anônimas contaminadas pela cultura do medo. Uma postagem, de 28 de março de 2018, no Facebook do Movimento Escola sem Partido é particularmente ilustrativa dessa simetria entre o que se ensina e o que se pensa e a tecnologia de vigilância empregada sobre o professor. Reproduzo a postagem: “DICA DO ESCOLA SEM PARTIDO PARA SABER SE O SEU FILHO PODE ESTAR SENDO VÍTIMA DE MILITANTES DISFARÇADOS DE PROFESSOR: Acompanhar as postagens dos professores dele nas redes sociais. Lembre-se: a boca fala do que o coração está cheio.” (ESCOLA..., 2018; CONTEE, 2018). Olhai e vigiai. Olhai o professor e objetivai-o, classificando-o, alicerçado no olhar debruçado sobre ele, de “militante”, de “doutrinador” e, por isso, de usurpador da criança e dos valores da família. Essa objetivação, então, é potencializada pelos milhares de olhares, todos vigilantes e presentes nas redes sociais, produzindo dezenas de outras objetivações sobre o professor, acordados com as diferentes formas de olhar de cada consciência. Com certeza, “monstro” e “impostor”, estarão dentre elas.

O sitio eletrônico do Movimento Escola sem Partido agrega o link “quero denunciar” (ESCOLA SEM PARTIDO, 2020d), que é bastante ilustrativo da prática de vigilância sobre o professor e de denúncia de práticas pedagógicas classificadas de doutrinação por aqueles que olham o trabalho docente. Nesse link, os interessados em denunciar são orientados a produzir um documento (gravado em texto, em áudio ou em vídeo) da aula ou sobre um conteúdo da aula que, aos olhos desse sujeito que produz o documento, é classificada, por exemplo, de doutrinação. O Movimento, então, torna público, na internet, essa denúncia. Aquilo que o professor faz em sala de aula, aquilo que ele fala ou aquilo que ele ensina ficam à mercê das consciências avaliativas. Logo após o término do primeiro turno da eleição de 2018, mais precisamente em 29 de outubro de 2018, a recém-eleita deputada estadual por Santa Catarina e apoiadora do Movimento Escola sem Partido, Ana Caroline Campagnolo (PSL), criou, em suas redes sociais, um canal de denúncia contra professores. Reproduzo a mensagem:

Filme ou grave todas as manifestações político-partidárias ou ideológicas que humilhem ou ofendam sua liberdade de crença e consciência. DENUNCIE! Envie o vídeo e as informações para (49) 9XXXX-XXXX, descreva o nome do professor, o nome da escola e a cidade. Garantimos o anonimato dos denunciantes. (DEPUTADA..., 2018).

A lógica da denúncia com a tecnologia de gravação da aula, com a finalidade de objetifica-ção e de classificação do professor, é prática recorrente deste Movimento e dos seus adeptos, e é particularmente importante, uma vez que permite submeter, às milhares de consciências avaliadoras, tanto o professor, como sujeito, quanto suas práticas pedagógicas. É com base na exposição da gravação do documento que a objetificação do professor se processa.

A minuta de projeto de lei disponibilizado pelo Movimento Escola sem Partido prevê a gravação da aula do professor, conforme reza o Artigo 7°:

As escolas que não realizarem ou não disponibilizarem as gravações das aulas deverão assegurar aos estudantes o direito de gravá-las, a fim de permitir a melhor absorção do conteúdo ministrado e de viabilizar o pleno exercício do direito dos pais ou responsáveis de ter ciência do processo pedagógico e avaliar a qualidade dos serviços prestados pela escola. (ESCOLA SEM PARTIDO, 2020e).

Na mesma minuta de projeto de lei, lemos no item “Justificação”:

O projeto reconhece também o direito dos estudantes e dos pais de gravar as aulas, caso a escola não o faça ou não disponibilize as gravações. Trata-se de direito que decorre do artigo 206, VII da Constituição - que assegura, entre os princípios com base nos quais o ensino será ministrado, a ‘garantia de padrão de qualidade’ - o que implica necessariamente para os pais o direito de conhecer e avaliar a qualidade dos serviços prestados pelas escolas -; e do artigo 53, pr. Único do ECA, que reconhece aos pais o direito de ter ciência do processo pedagógico vivenciados pelos seus filhos. (ESCOLA SEM PARTIDO, 2020e).

É indiscutível o direito, e também o dever, dos pais em certificarem-se da “qualidade” do ensino ministrado pelo professor, bem como a “ciência” do que se ensina aos seus filhos nas escolas. Entretanto, parece-nos que o objetivo do Movimento com essa tecnologia não é a nobre “melhoria” da educação, mas tão somente saber o que se passa na escola para classificar e para denunciar os professores “doutrinadores”. De fato, existem formas mais afetas à educação que permitem aos pais aferirem a qualidade e terem ciência do que se ensina nas escola, particularmente, fazendo-se presente no cotidiano da escola, em conversa com os professores, em reunião de pais, participando dos conselhos de escola, lendo os planos de ensino e o planejamento anual do professor e da escola, acompanhando os conteúdos, as tarefas e os trabalhos solicitados pelo professores. Ora, se os pais assim não procedem - e o Movimento nem estimula a isso - no que iria “garantir a qualidade da aula” e “saber o que o professor ensina” com a gravação de aulas, se os pais não acompanham o cotidiano da escola e nem sabem se aquela aula está de acordo com o projeto pedagógico da escola e com o plano de ensino do professor? Qual o critério dos pais em avaliar a aula, aferindo qualidade ou não, se eles não têm os documentos institucionais da escola e nem a vivência nela para avaliar o trabalho pedagógico do professor? É evidente que o foco do Movimento não é a escola e nem a melhoria da qualidade do ensino, mas a vigilância, o julgamento e a classificação da prática pedagógica de professores. Retome-se, conforme exposto acima, que o Movimento estimula a denúncia contra professores, sem aos menos expressar o cuidado de situar as práticas pedagógicas do professor dentro do contexto escolar. Assim, uma aula de ciência sobre célula, por exemplo, em que o pai avalie, segundo sua ótica do que seria uma “boa” aula sobre célula, que o desenvolvimento desse conteúdo foi de má qualidade, denunciará o professor e a sua “péssima” aula, sem aferir se havia laboratório ou mesmo materiais pedagógicos para o professor tratar desse conteúdo. Considere que a escola preveja no tema transversal dos direitos humanos de seu planejamento pedagógico anual um projeto de conscientização dos alunos contra o preconceito, bem como os esclarecimentos dos direitos da população LGBT. Os professores, por sua vez, desenvolvem atividades com essa temática em suas respectivas disciplinas ou de forma interdisciplinar. Ora, os pais, ou qualquer outra pessoa, de posse da gravação dessas atividades e que não concordem com tal temática - seja por serem homofóbicos, ou por acreditarem que a única forma de união afetiva é a heterossexual, ou mesmo porque acreditam que seja pecado e “coisa do demônio” indivíduos dentro da comunidade LGBT -denunciarão os professores de “doutrinadores”, pois, para eles, os educadores não respeitaram seu direito de ministrar a educação religiosa e moral que eles acreditam ser a correta, conforme afirma o inciso V, do artigo 4° da minuta de projeto de lei apresentado pelo Movimento Escola sem Partido.20 Esse incentivo à vigilância e à denúncia presentes na minuta de projeto de lei é potencializado pelas redes sociais do Movimento Escola sem Partido. O Facebook do Movimento Escola sem Partido (ESCOLA SEM PARTIDO, 2020a) é particularmente profícuo e extenso na divulgação de uma grande quantidade de vídeos, com depoimentos e com gravações de partes de aulas, de projetos e de atividades escolares, classificadas pelo Movimento como “doutrinação”. O roteiro, então, é a malhação pública de milhares de olhares que objetificam o professor.21

Consideraçõe finais

Na fenomenologia existencial, estar diante do Outro e ter seu ser no olhar desse Outro produz uma série de experiências: desconforto, vertigem, insegurança, impotência, revolta. Todas essas percepções são sintetizadas e condensadas sob o termo “vergonha”. Se todas essas experiências têm origem no olhar do Outro, é, destaco, somente diante do Outro, e nunca diante de si mesmo, que o homem sente vergonha. Em outras palavras, sente vergonha do que é diante do Outro, de forma que “[...] a vergonha é apreensão unitária de três dimensões: ‘Eu tenho vergonha de mim frente ao outro”’ (SARTRE, 1999, p. 370, grifo do autor). Portanto, se o sujeito se revolta diante da interpretação e da avaliação que o Outro produziu dele, somente se revolta porque se envergonha de ser esse ser interpretado e avaliado pelo Outro. A vergonha é sempre “[...] vergonha diante de alguém’’ (SARTRE, 1999, p. 289, grifo do autor). Os atos de avaliação, de julgamento e de exposição do professor não produzem absolutamente nada de salutar nas relações pedagógicas. Não se trata de ações construtivas para uma escola melhor, mas acarretam tão somente dano e punição ao professor. Jogá-lo no estado de vergonha de si mesmo diante do Outro é a consequência daquilo que o projeto de lei e as práticas do Movimento Escola sem Partido acarretam. Ter a prática pedagógica e a sua pessoalidade expostas ao esculacho virtual produz vergonha no professor; vergonha daquilo como é apresentado diante do outro: “O outro é o mediador indispensável entre mim e mim mesmo: sinto vergonha de mim tal como apareço ao outro [...] assim, a vergonha é vergonha de si diante do outro; essas estruturas são inseparáveis” (SARTRE, 1999, p. 290, grifo do autor).

A técnica de exposição daquilo que o professor faz em sala de aula - suas práticas pedagógicas - a fim de submeter ao olhar avaliativo e julgador desse Outro produz prejuízo nos conteúdos ensinados em sala de aula. Proscrever conteúdos que, na avaliação de um Outro, atacam os valores da “família”, ou de pessoas de “bem”, tal como gênero, ou conteúdos que vão de encontro a certos valores econômicos, tal como o comunismo, apartam a criança da possibilidade de aprendizagem de conteúdos que expandam sua visão de mundo para além daquilo que ela aprendeu na família e em seu entorno social. Expandir os horizontes formativos da criança, proporcionando a ela contato com uma cultura universalista, diversa e plural, parece-me ser uma tarefa precípua da escola que o Movimento Escola sem Partido propõe subsumir ao crivo de uma cultura familiar e provinciana. Os sistemas de ensino, a escola e o professor não advogam contra a família ensinar aos seus filhos sua cultura e seus valores particularistas. Contudo, não é aceitável retirar da escola sua tarefa de apresentar para as crianças a diversidade e pluralidade de valores, de ideologias, de concepções políticas, econômicas e religiosas, típicas de uma cultura universalista. Essa é uma prerrogativa da escola. Contudo, esse não é o único objetivo dessa estratégia: ela produz um dano na humanidade do professor, ou seja, à sua pessoalidade, à sua subjetividade. Para além das práticas pedagógicas, é o professor que é atacado nas redes sociais. Transformá-lo em monstro, esse é o resultado das estratégias de exposição. Nesse caso, diante do Outro, o professor “já não é mais dono da situação” (SARTRE, 1999, p. 38). Uma vez exposto nas redes sociais, e não sendo mais dono da situação, o dano é irremediável ao professor, pois a exposição já é avaliadora e julgadora. Expõe-se aquilo que já fora avaliado pelo Outro como execrável, doutrinário ou imoral. Aos fiadores do Movimento Escola sem Partido cabe a tarefa de potencializar e de universalizar essa avaliação e execração pública: eles formam o grande tribunal. Ao professor, à mercê dessa consciência avaliadora, não se lhe apresenta escapatória, pois qualquer conteúdo ou prática pedagógica pode ser julgada pelo Outro como doutrinador - dada a imprecisão desse termo - ou imoral - dada a variação de interpretação moral.

Os pais de cada família podem interpretar de uma forma distinta que determinado conteúdo ou prática pedagógica do professor atentou contra “suas próprias convicções morais e religiosas”: na arena, sob milhares de olhares, não há ponto de fuga ao professor. Assim, uma aula de História que trabalhe a importância que tiveram as religiões de matriz africana para a conservação da identidade dos escravos no Brasil pode ser interpretada como afronta aos valores e aos ensinamentos religiosos de uma determinada família; ou uma aula de Sociologia que aborde a diversidade possível de constituição familiar pode ser avaliada e julgada como desrespeitosa aos valores familiares de determinado aluno; ou mesmo uma aula de Filosofia em que se estuda o pensamento e os argumentos que um filósofo utilizava para defender seu ateísmo pode ser olhada como uma afronta diante da religiosidade da família e uma doutrinação do professor sobre o aluno. Diante do olhar avaliativo e julgador do Outro, não há escapatória ao professor. Em qualquer momento e sobre qualquer conteúdo, ele pode ter sua existência e sua integridade moral e profissional totalmente exposta no tribunal condenatório que afiança as técnicas de vigilância do Movimento Escola sem Partido.

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Recebido: 15 de Março de 2020; Aceito: 08 de Junho de 2020

1

Se faz necessário um sutil esclarecimento. Não nos referimos à dimensão fisiológica do olho, ou do objeto olho, pelo qual decorre o olhar. A relação, mediada pelo olhar, que estabelecemos com o mundo das coisas e com o mundo dos homens não é da ordem do substantivo “olho”, mas tão somente do verbo “olhar”, como a ação de debruçar-se sobre algo, conforme deixa claro Sartre (1999, p. 333): “[...] o olhar não é uma qualidade entre outras do objeto que funciona como olho, nem a forma total deste objeto, nem uma relação ‘mundana’ que se estabelecesse entre este objeto e eu. Ao contrário, longe de perceber o olhar nos objetos que o manifestam, minha apreensão de um olhar endereçado a mim aparece sob um fundo de destruição dos olhos que ‘me olham’; se apreendo o olhar deixo de perceber os olhos [...]”. Essa ação não necessita do olho físico, pois trata-se do fenômeno do olhar. Assim, estamos no campo da fenomenologia do olhar. Dito isso, a relação que estabelecemos com as coisas e com as pessoas é uma relação de sujeito-objeto: as coisas e as pessoas aparecem como objetos diante de mim como sujeito. Assim, é a consciência do sujeito que se debruça sobre o objeto (coisas - materiais ou imateriais - e pessoas) numa ação de apreender esse objeto: “[...] isso não nos surpreende, porque, como vimos, jamais são os olhos que nos veem, e sim o outro como sujeito” (SARTRE, 1999, p. 355, grifo do autor). O “olhar” é a metáfora desse debruçar-se da consciência sobre algo ou alguém, constituindo, então, numa dimensão epistemológica e não biológica: “Essa mulher que vejo andando em minha direção, este homem que passa pela rua, esse mendigo que ouço cantar de minha janela são objetos para mim, sem a menor dúvida” (SARTRE, 1999, p. 326, grifo do autor).

2

Não podemos deixar de fazer referência, aqui, à intrínseca relação entre o surgimento de pessoas, pelo nascimento, e a educação. Compartilhamos a tese de Hannah Arendt (1972) em Entre o passado e o futuro, de que somente existe a educação porque pessoas aparecem no mundo pelo nascimento. Em suas palavras: 'A educação está entre as atividades mais elementares e necessárias da sociedade humana, que jamais permanece tal qual é, porém se renova continuamente através do nascimento, da vinda de novos seres humanos.” (ARENDT, 1972, p. 234). Assim, para ela, “[...] a essência da educação é a natalidade, o fato de que seres nascem para o mundo” (ARENDT, 1972, p. 223, grifo do autor).

3

Refiro-me à constituição da subjetividade tal como é tratada por Sílvio Gallo (2000), a título de exemplo, em Subjetividade e Educação: a construção do sujeito. Remeto, notadamente à seguinte passagem: “Entendo a estrutura da subjetividade como fundamentalmente a estrutura da consciência pela fenomenologia existencial de Jean-Paul Sartre. A subjetividade e a consciência são duas realidades justapostas, complementares e simultâneas: a descoberta da consciência dá-se através do reconhecimento da subjetividade - ‘eu sou’ -, e a subjetividade só tem sentido enquanto fenômeno consciente - eu me reconheço como eu mesmo.” (GALLO, 2000, p. 48). A análise eleita por esse autor remete ao processo educativo como procedimento de vinculação ideológica que promove tecnologias de subjetivação do aluno. A análise gravita no campo da escola como instituição que, na maioria das situações, vincula discursos hegemônicos. Esse autor não adentra na discussão de que a subjetividade se dá como construção intersubjetiva e que, necessariamente, é conflituosa. É essa, pois, a chave de entrada que nos propomos a enfrentar neste texto, indo, nesse caso, por caminho alternativo do trilhado pelo professor Sílvio Gallo (2000).

4

Não podemos deixar de fazer referência quanto à data, segundo o fundador e coordenador do movimento, que a doutrinação nas escolas passa a ocorrer: 1980 é exatamente a década da redemocratização brasileira, da anistia, da volta da eleição direta, da liberdade de organização partidária, da construção de uma nova Constituição, do retorno da liberdade de expressão e do fim do governo militar, enfim. Datar a suposta doutrinação nas escolas com o fim do governo militar e com o processo de redemocratização revela muito a visão que esse movimento tem da escola durante o regime militar, do próprio governo militar e da redemocratização brasileira.

5

Foram apresentados projetos de leis nas seguintes câmaras legislativas: Câmara dos Deputados: PL 867/2015. Assembleias Legislativas: Rio de Janeiro - PL n° 2974/2014; Ceará - PL n° 91/14; São Paulo - PL n° 960/2014; Goiás - PL n° 2861/2014; Espírito Santo - PL n° 250/2014; Distrito Federal - PL n° 53/2015; Rio Grande do Sul - PL n° 190/2015; Alagoas - PL n° 7800/2016. Câmara de Vereadores: Santa Cruz do Monte Castelo/PR - PL n° 002/2014; Toledo/PR - PL n° 191/2014; Foz do Iguaçu/PR - PL n° 130/2014; Rio de Janeiro/RJ - PL n° 867/2014; Curitiba/PR; Palmas/TO; Joinville/SC; Vitória da Conquista/BA; Cachoeira do Itapemirim/ES; São Paulo/ SP. (ESCOLA SEM PARTIDO, 2020c).

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Palavra derivada do adjetivo gorgós, que significa “impetuoso, terrível, apavorante”? (BRANDÃO, 1988, p. 238).

7

Na evolução do mito encontramos duas variantes. Uma primeira possibilidade estaria ligada ao fato de Medusa competir em beleza com Atenas que, como castigo para tal prepotência, transformou os cabelos dela em serpentes, tal qual acontecera com suas irmãs. Uma segunda variante está ligada à paixão de Poseidon por Medusa. Conta o mito que o deus dos mares se apaixonou por Medusa e, transformando-se num pássaro, transportou-a para o templo de Atenas onde a engravidou. (COMMELIN, 1993). Irritada com este fato, Atenas teria dado um castigo a mais para Medusa: a mortalidade.

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Devemos assimilar que o mito das Górgonas personifica os desafios do mar, de forma que representa as ondas que quebram nas encostas e que tanto perigo causam ao homem grego em suas viagens pelo Mediterrâneo (CIVITA, 1976, p. 450). Assimilemos também que, nas tragédias gregas, as viagens, seja para a guerra, seja para a descoberta de novos lugares, representavam formas de autodescobrimento do homem grego. A alcunha de “herói” ou de “homem nobre”, que dava grande status no mundo grego, derivava, normalmente, dessas viagens em que se talhava o herói no corpo do homem comum. Em Homero talvez encontremos o exemplo paradigmático dessa autodescoberta ao representar a transformação de Odisseu nas narrativas de sua viagem na expedição dos Aqueus até Troia. Assimilemos, por fim, então, que o mito das Górgonas representa mais um desafio nessa viagem de autodescoberta, de autoconhecimento sintetizado no gnothi sauton, ou que elas sinalizam pela impossibilidade de olhar para si mesmo, de forma a ser possível o “conhece-te a ti mesmo”, uma vez que ‘olhar para si” é petrificar-se.

9

Para além da metafísica platônica - canonizada pela chamada “segunda navegação” - condensada na dicotomia mundo sensível/mundo inteligível e a archai do primeiro no segundo, refiro-me ao diálogo Primeiro Alcebíades, obra na qual Platão demonstra a Alcebíades a necessidade do conhecer a si mesmo como requisito do caráter nobre e condição para governar a cidade. Assim, as características essenciais de um governante - nobreza de espírito, justiça e bem comum - são decorrentes pela prática do gnothi sauton, ou, em outras palavras, a sabedoria é fundamento de todas as virtudes.

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Na fenomenologia existencial, não há uma essência humana a priori e definidora daquilo que o homem é na qualidade de ser. Ao contrário disso, o ser humano se faz ser nas relações e interações sociais que trava, cotidianamente, com as coisas e com outras pessoas. Assim, é nessa cotidianeidade que o homem realiza seus projetos, constituindo-se, assim, numa pessoa que é distinta de outras pessoas: “De outro modo, se o homem não tem uma natureza, uma essência que o definiria a priori, nós temos já entrevisto que ele existe sempre em uma certa situação histórica e geográfica particular diante do ser assumido [...] A liberdade se exerce efetivamente, se realiza necessariamente, na multiplicidade emerge como absurda, pois teríamos que admitir uma subjetividade autossuficiente - que produz e que alimenta a si mesma sem nenhuma relação com o mundo externo - e, mais ainda, uma subjetividade que brota de si mesma, ex nihilo - que se autocria do nada.

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Em Educação, sujeito e história, o professor Antonio Joaquim Severino (2002) desenvolve, de forma profícua, as tramas que revelam a tessitura da intrínseca e indissociável relação entre educação e cultura, relação essa que ilustro com essa passagem: “A educação é um investimento intergeracional com o objetivo de inserir os educandos nas forças construtivas do trabalho, da sociabilidade e da cultura.” (SEVERINO, 2002, p. 67).

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Num texto sobre antropologia, Sartre (1973) debruça-se para esmiuçar aquilo que se constitui o homem como um ser, distinto de outros seres, sejam eles materiais (coisas e objetos) ou imateriais (alma, Deus). Num esforço intelectual para distanciar-se do registro da metafísica essencialista, Sartre (1973), aliando-se à fenomenologia, situa o homem como um ser mundano. Assim, o que aglutina a espécie humana numa identidade ao mesmo tempo que a diferencia de outras realidades é estar no mundo em relação com outros homens e com objetos. É nessa relação mundana com outras pessoas e com outras coisas que se caracteriza a natureza humana: “Considero que o campo filosófico é o homem, é dito que qualquer problema pode ser concebido em relação ao homem. Quer se trate de metafísica ou de fenomenologia, em nenhum caso pode colocar-se a questão senão em relação ao homem, em relação ao homem e ao mundo [...] o homem entra, à titulo antropológico, em uma certa relação com o outro, não está frente ao outro senão em situação de relação ao outro. Filosoficamente, a noção de homem não se encerra jamais em si mesma.” (SARTRE, 1973, p. 563-564).

13

Conforme Sartre (1999, p. 531): 'A essência das relações entre consciências não é o Mitsein (ser-com), mas o conflito.”

14

“No exercício de suas funções, o professor: respeitará o direito dos pais dos alunos a que seus filhos recebam a educação religiosa e moral que esteja de acordo com as suas próprias convicções.” (ESCOLA SEM PARTIDO, 2020e).

15

Não é propósito deste artigo fazer estudos de casos. Isso é objeto de outra pesquisa em andamento. A despeito disso, reproduzo, aqui, dois exemplos divulgados pela mídia e que refletem essa tecnologia empregada pelo Movimento Escola sem Partido: em 22 de maio de 2017, numa sala de terceiro ano do Ensino Médio do Liceu Nilo Peçanha, em Niterói (RJ), a professora concluía uma explicação sobre a ascensão da juventude hitlerista. Fez um aparte para responder a um aluno que comparava Adolf Hitler com o deputado Jair Bolsonaro, à época pré-candidato do PSL à presidência. A resposta da professora à pergunta do aluno foi gravada, caiu na internet e viralizou. O resultado da tragédia: “Desqualificada”, “lixo”, “aliciadora”, “comunista satânica”, sentenciaram os comentaristas virtuais na página do vereador Carlos Jordy, do PSC, responsável pela exposição da docente e autor de um projeto de lei que buscava instituir o Escola Sem Partido em Niterói (SALAS, 2018). Em julho de 2016 a professora de Sociologia da CE Professora Maria Gai Grendel, em Curitiba, terminara o desenvolvimento do conteúdo sobre Marx em suas aulas. Como estratégia didática, muito utilizada por professores de cursinho preparatório para processo seletivo de ingresso em universidade, fizera, junto com os alunos do primeiro ano do ensino médio, uma paródia do funk “Baile de favela”, fazendo uso de palavras-chave do pensamento de Marx que eles estavam estudando em sala de aula. Sob a orientação da professora, eles escolheram a música e criaram a letra: “O Karl Marx é baile de favela / O 1º B é baile de favela / Sociologia é baile de favela / E o capitalismo está acabando com a galera.” A professora gravou e publicou em seu Facebook para prestigiar a atividade. Num espaço de 24 horas, o vídeo viralizou. Perfis que não querem saber de Marx (nem de funk) na educação compartilharam as imagens e detonaram a professora, vendo na aula o exemplo mais bem-acabado da doutrinação marxista que, para eles, assola o país. (RATIER; ANNUNCIATO, 2016). Os casos se multiplicam, com professores afastados, outros demitidos, outros notificados por parlamentares e muitos com quadros de sofrimento psicológico decorrente do escrachamento público e, em muitos casos, ameaças à integridade física. A metodologia de vigilância e de perseguição segue um padrão: exposição do professor nas redes sociais, condenação pública - avalizada, normalmente, por políticos -, sem nenhuma forma de defesa e, na maioria dos casos, punição do professor com afastamento e/ou demissão.

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