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Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade

versión impresa ISSN 0104-7043versión On-line ISSN 2358-0194

Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade vol.29 no.58 Salvador abr./june 2020  Epub 15-Dic-2020

https://doi.org/10.21879/faeeba2358-0194.2020.v29.n58.p326-343 

Estudos

CURRÍCULO E JUDICIALIZAÇÃO NA MODERNIDADE: FUNDAMENTOS HISTÓRICOS EM RELAÇÃO

CURRICULUM AND JUDICIALIZATION IN MODERNITY: HISTORICAL FOUNDAMENTS IN RELATION

CURRÍCULO Y JUDICIALIZACIÓN EN LA MODERNIDAD: FUNDAMENTOS HISTÓRICOS EN RELACIÓN

*Doutor em Educação pela Universidade de Lisboa, Portugal. Professor Associado com agregação da Unidade de Investigação e Desenvolvimento em Educação e Formação (UIDEF), Instituto de Educação, Universidade de Lisboa. E-mail: jorge.o@ie.ulisboa.pt

**Doutora em Educação pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Professora Associada da Faculdade de Formação de Professores e Programa de Pós-graduação em Políticas Públicas e Formação Humana da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). E-mail: estela@uerj.br


RESUMO

Como instrumento dileto para massificar a escola, o currículo emerge a serviço de uma forma de controle social sustentada na classificação e pasteurização dos conteúdos, com a função precipua de ensinar hierarquia e obediência a partir de um padrão de verdade. Ensinamentos imprescindíveis para a ordem juridica liberal, sustentada no reconhecimento da verdade única, subjetivada como premissa à civilização. Uma tecnologia pedagógica que opera por meio de instrumentos (tais quais o currículo), que têm como efeito uma produção subjetiva que aciona procedimentos entendidos como externos e superiores aos profissionais, invisibilizando os efeitos de mutilação do pensamento próprios às práticas judicializadas. A grande conexão que a instituição escolar estabelece não é, portanto, com o saber ou o conhecimento, mas distribuindo a fatalidade de destinos sociais no interior de uma pirâmide cuja manutenção vai justificando-se pela sua correspondência com a realidade da meritocracia.

Palavras-chave: Currículo; Judicialização; Subjetivação.

ABSTRACT

As a privileged instrument to turn the school a mass institution, the curriculum emerges in the service of a social control sustained in classification and pasteurization of contents, in order to teach hierarchy and obedience, parting from a pattern of true. Those are Basic elements for juridical liberal order, sustained in recognition of one only true, subjetivated as fundamental for civilization. A pedagogical technology that operates through instruments (as the curriculum), that have as effects subjective productions making work procedures, understood as external and superior to professionals, while turning unvisible the effects of mutilation of thought, as in judicialized practices. Thus, the great connection that school establishes is not with knowledge, but with the distribution of fatality of social destiny, in a pyramid that is justified given the correspondence with the reality of meritocracy.

Keywords: Curriculum; Judiciatization; Subjetivation.

RESUMEN

Como instrumento para masificar la escuela, el currículo emerge a servicio del control social basado en la clasificación y la pasteurización de los contenidos, con la función precipua de enseñar jerarquía y obediencia a partir de un patrón de verdad. Enseñanzas imprescindibles para el orden jurídico liberal, sostenido en el reconocimiento de la verdad única, subjetivada como premisa para la civilización. Una tecnología pedagógica que opera por medio de instrumentos (tal cual e currículo), que tiene como efecto producciones subjetivas que accionan procedimientos entendidos como externos y superiores a los profesionales, invisibilizando efectos de mutilación del pensamiento propios de las prácticas judicializadas. Así, la gran conexión que la escuela establece no es con el saber o con el conocimiento, sino distribuyendo la fatalidad de destinos sociales internos a una pirámide que se justifica por su correspondencia con la realidad de la meritocracia.

Palabras-clave: Currículo; Judicialización; Subjetivación.

Disciplina curricular e lógica judiciária

A partir dos estudos de Michel Foucault, o disciplinamento desponta como fundamento da pedagogia moderna e objetivo maior das práticas escolares. Uma pedagogização do conhecimento emerge na Europa do século XVI, tendo como efeito o controle do saber e, com ele, de todos os mecanismos de aprendizagem. Desde então, um controle assentado no caráter universal dos conteúdos restringe o processo de construção do próprio conhecimento. Capacidade e aptidão tornam-se condição para “deter” esse saber, acompanhando os princípios do capitalismo de acordo com o qual o conhecimento é um bem a ser consumido. São nestes termos demarcadas tanto as diferenças no modo, grau e sentido da sua produção - de acordo com a condição socioeconómica - quanto as condições de adquiri-lo, na qualidade de proprietários ou de sujeitos a serviço de uma rede de informação/formação.

Como um bem produzido zelozamente, o saber tem uma história articulada às práticas de controle que fazem emergir um novo sujeito de conhecimento, fundamental às novas formas de exercício de poder surgidas na chamada modernidade. Ensino e aprendizagem não são portanto questões técnicas, como tampouco é a escola, mas uma relação tornada ferramenta basal à normalização do conhecimento (da sua produção e apropriação) que trascende os muros dos estabelecimentos prestadores de serviços, produzindo modos de subjetivação sob a perspectiva do disciplinamento interno do sujeito. No cerne das práticas pedagógicas está a tensão proposta por Foucault ao longo da sua obra - em particular nos cursos do início da década de 1980 - entre subjetividade e verdade. Uma verdade que afete o sujeito ou um sujeito que se torna objeto de um discurso verdadeiro são as relações que, para ele, demarcam já o sentido da filosofia antiga e também do pensamento Moderno. No dizer de Foucault (2006), quando a relação com o conhecimento ergue-se sob o ângulo da prática, do exercício de si, e não mais sob o conhecimento do mundo, da pergunta pelo conhecimento de si, “nos encontraremos em uma ordem de coisas que seguramente não é mais aquela da verdade, mas a da lei, da regra do código” (FOUCAULT, 2006, p. 383).

Um único corpus de saber passou a ser compreendido como um modo de massificar e de abrir as portas da escola a novas camadas da população, consolidando um consenso político-social da nossa civilização em termos da administração e unificação do pensamento. O currículo, como uma das tecnologias pedagógicas, é a expressão de tal concentração de poder, a serviço de uma certa forma de controle político distante de uma rotina preocupada com a motivação e o domínio de ferramentas de libertação. Antes de doutar os estudantes com conteúdos classificados e pasteurizados, ensinam-se a hierarquia, a obediência, a aceitação de um escopo definido por um padrão de verdade, qualidades estas necessárias para fazer funcionar a ordem jurídica que dá sustentação ao modo de governar que emerge no século XVI e se consolida no XVIII. Nessa ordem jurídica, e como toda instituição de governo da verdade, o tribunal requer um pensamento subordinado como imperativo para a desqualificação dos saberes espontâneos atomizados.

Apresentado como verdade, o saber opera por meio de instrumentos, estratégias, regras, distantes do domínio dos conteúdos, como uma produção subjetiva que faz funcionar as relações sociais, tal qual máquinas que acionam procedimentos entendidos como externos e superiores àqueles que de fato executam tarefas (professores, médicos, delegados, porteiros, juízes etc.), certos de estarem cumprindo com o seu dever. Assim funcionam as equipes de trabalhadores escolares e fazem funcionar os estudantes, todos submetidos a currículos acionados por procedimentos pedagógicos que não somente enquadram a vida escolar, mas a vida em todos os seus domínios, consolidando um modo de ser indivíduo.

Trata-se da mesma lógica que associamos às práticas jurídicas sustentadas na produção de verdade. Verdade como ato comprovável, seja por meio de testemunhos, provas, inquirição ou indagação, formatando conteúdos inapeláveis quando submetidos ao crivo dos que são “certificados para certificar” a veracidade. Lógica esta que atravessa o campo pedagógico por meio de um currículo definido como padrão de conhecimento a ser absorvido por todos os que disputem algum lugar de prestígio ou respeito, desde a entrada de preceptores nas propriedades abastadas até a consolidação dos estabelecimentos de ensino ao longo do Seiscentos - que ficou conhecido para a história da educação, na Europa, como o grande século da didática. Textos distribuídos para serem trabalhados, mesmo que ainda patenteassem a assinatura dos autores clássicos, eram previamente controlados, selecionados, descontextualizados e expurgados, a fim de se compatibilizarem com as necessidades doutrinais das autoridades religiosas do tempo. Ordem e método, unidade e semelhança, adequação e beatitude estruturaram as opções e vincularam a produção antológica, compendiária e manualística para uso dos escolares, sob o crivo daqueles que definem o que e o como se deve saber.

Essas mesmas técnicas e esses mesmos procedimentos de extração e constituição do saber legítimo se estenderam a partir das instituições de ensino superior, isto é, do topo para a base do sistema, tal qual o sistema judiciário. Como um modo da produção de conhecimento, a produção de verdade (seja em um cenário jurídico ou pedagógico) requer condições subjetivas que reconheçam em tais procedimentos a autoridade do que passa a ser definido como saber e como verdade. A construção subjetiva é condição para uma perspectiva judicializa-da extrapolando os tribunais ou, por outra, tornando, aos poucos, os âmbitos cotidianos em pequenos tribunais nos quais, mais que dialogar e construir coletivamente encaminhamentos, prevalecem as práticas de juízo e punição. Desde então as autoridades escolares e pedagógicas não mais cessaram de imaginar formas de sequenciação e complexificação do saber, a perseguir objetivos comuns e a ser classificados de acordo com grades e critérios universais que importaram do mundo acadêmico e da esfera jurídica. Círculos cada vez mais alargados da pedagogia europeia, com grande influência nas autoridades escolares, foram convergindo paulatinamente na necessidade de submeter as concepções e os produtos de conhecimento a um autêntico rolo compressor.

No interior das instituições de saber, a escrita passou a ser espelho ou um duplo da leitura e não mais um prolongamento dela, dotando todas as profissões de um novo recurso técnico, menos para ampliar os horizontes e mais para ampliar o domínio de um poder que faz a todos repetir em raciocínio uma mesma forma de pensar e de sentir. O padrão definido por meio de parâmetros de verdade inaugura um aprendizado que se diz vasto e complexo, tendo como perspectiva a retração dos horizontes cognitivo e afetivo. De norte a sul da Europa e também nas colônias vistas como um “Novo Mundo”, os Estados modernos e contemporâneos foram construindo os respectivos sistemas nacionais de ensino não abdicando desta apertada política de governo da cognição, que não é outra que o governo da verdade, conduzido por um lugar de poder, seja nas linhas de um currículo ou de um arcabouço legal. De fato, no que diz respeito quer ao figurino institucional, quer ao conjunto de interações, métodos e processos de trabalho adotados pelas autoridades escolares nos períodos moderno e contemporâneo, eles têm fortalecido as soluções que apontam para a objetivação e padronização do saber e das correlatas possibilidades de ser.

A escola na modernidade e as práticas jurídicas

Entrevemos nessa evidência histórica a possibilidade de uma análise que fundamente um diagnóstico do nosso tempo. Falar de escola na contemporaneidade implica falar de objetivos e procedimentos em torno do saber científico que deliberadamente ignoram a esplendorosa diferença que as ideias, as pessoas e as coisas exibem entre si; por isso mesmo, tais objetivos e procedimentos não têm qualquer relação objetiva com a verdade que eles mesmos veiculam e incansavelmente afirmam estabelecer. Não se pode deixar de sublinhar a violência com que a escola vem mantendo a sua noção de um saber universal - a um tempo segmentado por províncias disciplinares, mas também interligado pela utopia totalizante do enciclopedismo - para perfilar as consciências e os corpos ainda em formação. Procedimentos, entretanto, possíveis pela articulação de toda produção de conhecimento a uma lógica de produção de verdade que se quer universal e que depende de seu enraizamento para dominar uma sociedade que aos poucos vai perdendo as tradicionais formas de obediência sustentadas nos princípios de soberania. O princípio universal de verdade, antes de dar sustentação à prática pedagógica, fundamenta a prática jurídica, sendo o pensamento pedagógico um instrumento central para disseminar a lógica penal.

A tarefa da crítica consiste aqui em procurar compreender como o trabalho de enunciação da verdade se construiu por meio de esvaziamentos e deslocamentos do conhecimento que, entretanto, por efeito das regras de funcionamento que atravessam e animam as várias instituições de saber, transformou o fluxo de enunciação da verdade em estruturas, leis e invariantes, como quer a organização de uma estrutura judicializada.

Há, portanto, um efeito de desconhecimento do que se produz na afirmação performática do próprio conhecimento. As concepções pedagógicas e as práticas escolares que vemos imporem-se crescentemente ao trabalho sobre si do estudante e aos patamares cognitivos em que passou a decorrer a sua aprendizagem ajudam-nos a perceber como de fato se construíram relações e modelos de objetivação do conhecimento que ainda circulam na nossa sociedade e que vão muito além da sala de aula. O grande efeito civilizacional que o modelo jurídico e agora escolar consubstanciou é o da massificação de um poder epistemológico que consiste em administrar aos alunos e extrair deles um saber já devidamente controlado, reduzindo-os a engrenagens que aceitam e também produzem os conteúdos valizados como verdade, sem os quais o poder judiciário não tem como estabelecer os juízos que sustentam uma ordem que se diz tecnicamente necessária para conduzir as condutas.

A pedagogização do conhecimento, crescentemente em articulação com as doutrinas da Igreja, primeiro, e do Estado-nação, em seguida, implicou “uma passagem da coerção da verdade à coerção da ciência”, melhor dito, “a passagem da censura dos enunciados à disciplina inscrita na própria enunciação”, como salienta Julia Varela (1994, p. 91). Os tribunais, assim como os espaços que vão sendo restritos às corporações dos especialistas sustentados em uma plataforma epistemológica fragmen-tadora, são fortalecidos não pelo domínio coletivo (pretensamente universal) dos conteúdos, mas pelo reconhecimento universal de uma verdade única; pela despotencializa-ção dos saberes (em sua pluralidade) e pela concentração do poder em um Estado que faz acreditar que qualquer um - diferentemente da lógical senhorial - pode aceder aos espaços de mando ao doutar-se das verdades instituídas. Os emergentes sistemas de ensino que foram convertendo as crianças e os jovens em alunos, a partir da Reforma protestante, ergueram uma autêntica “maquinaria escolar” que subordinou de forma implacável os saberes e a sua transmissão a padrões rígidos, fenômeno este que atingiria, embora com intensidades variáveis, não só a todos os ciclos, desde o próprio ensino superior até aos bancos em que se aprendia as primeiras letras, mas também àqueles que não habitam o sistema escolar.

Conceitos como currículo, classe, didática, método, disciplina, programa, grade, formação, socialização, aluno etc. configuraram desde o século XVI uma verdadeira tecnologia educacional - utilizando uma verborragia que bem pode compor as práticas judiciárias - a partir da qual o conhecimento foi codificado, representado e administrado sob a lei “compendiária”, isto é, aquela que, mesmo percorrendo caminhos confusos, ínvios e impenetráveis, como os que a natureza e as coisas humanas nos oferecem, encontra sempre uma ordem respeitadora das matérias sobre as que se debruça, uma via rápida e eficaz para reproduzir um saber manuseável. Nestes termos, a cultura escolar constituiu-se para exprimir a necessidade de veicular a comodidade, a ordenação, o resumo e a uniformização do conhecimento, ou seja, discorrer sobre todos os assuntos com o menor dispendium possível. Artefatos produzidos para uso dos escolares submetem invariavelmente o discurso a procedimentos rápidos, simplifi-cadores, a uma economia orientada a tolhir as possibilidades de adensamento do pensamento mas, sobretudo, a instigação. Parcimônia e sumarização estrategicamente formuladas de modo a que as ideias expressas não dispersem a atenção e as realidades descritas não causem dúvida ou, dito por outro viés, garantam adesão. Porque o objetivo permanece o mesmo - inviabilizar o contraditório, o pensamento livre e desenfreado, o desejo do dissemelhante.

Os saberes escolares assumem-se não apenas como verdadeiros mas também como lícitos, incorporando a perspectiva jurídica, de acordo com a qual dizer a verdade não é o suficiente, sendo necessário dizê-la no marco das normas institucionais que definem um arcabouço moral. Pensamento jurídico e currículo produzem, mais que conhecimentos objetivos, juízos de valor que entendem o desvio de seus protocolos e conteúdos como atos ilícitos. No dizer de Bernard (2015, p. 261), “[...] a lei não se destina a ser estritamente aplicada, mas a gerir as margens da legalidade, sendo um instrumento de gestão”. Sob tal lógica é gerida também a escola por meio de suas tecnologias de controle, dentre as quais o currículo, cuja aplicação no cotidiano obedece mais ao dis-ciplinamento que ao domínio de conteúdos técnicos-científicos.

Tanto os conteúdos acadêmicos quanto os legais são entendidos como um bem e um direito universal, comum a todos e legitimados, conduzindo uma gestão que garanta a obediência dos subordinados, exertados do âmbito do político, naturalizados como espelho do real e necessários aos bons costumes. Práticas de coação por submeter a um olhar superior as relações sociais, produzindo relações de violência a serviço da regulação social, das quais não escaparam aqueles que teorizaram o campo pedagógico desde os alvores da modernidade. De então e para as várias autoridades escolares, à disciplina do objeto devia e deve corresponder a disciplina dos espíritos.

O trabalho da inculcação, integrando numa mesma construção cognitiva a vida pessoal e familiar com a vida religiosa e pública, apenas começou a tornar-se possível porque luteranos, calvinistas e católicos, não obstante as suas divergências agudíssimas, “estabeleceram uma mesma autoestrada intelectual” (HAMILTON, 2001, p. 196), a partir do legado de Santo Agostinho, de São Tomás de Aquino - entre outras figuras do cristianismo, bem entendido - e também da retórica clássica. As suas diferentes ordens e escolas religiosas foram efetivamente pavimentadas com os mesmos “propósitos disciplinares da ordem mental e social” (HAMILTON, 2001, p. 196). Unificadas pela ruptura com a filosofia antiga, escolas e ordens religiosas têm como preocupação, para a organização da vida e a construção do pensamento, a condensação das informações e a obediência aos códigos reguladores do corpo e da alma. Esvai-se a preocupação do método aristotélico com as problematizações, com o modo de colocar os problemas que torna as respostas novas interrogações e não um lugar a chegar. Contrários à certeza científica que o direito natural trouxe nos primeiros séculos do segundo milênio e que se fez presente na produção subjetiva que estruturou o pensamento pedagógico, os antigos entendiam a busca pelo conhecimento e nele pela verdade como resultado de exercícios pessoais associados não à certificação de uma ordem externa e superior, mas aos prazeres da contemplação e à ação na vida - noções apenas compreensíveis se articuladas. Impossíveis seriam as transformações trazidas pelo processo de conhecimento, de acordo com a filosofia antiga, sem o senso coletivo, sem pensar nos grupos de pertencimento daquele que estuda e na cidade - referência em que se sustentava o senso de justiça. Entre a filosofia antiga e a pedagogia moderna contrasta não só a ênfase em um “modo-de-ser-indivíduo” (GUATTARI; ROLNIK, 1996) centrado em uma genialidade ou dedicação particular que tem como destino uma devoção pela autossuperação, mas também a certeza da “necessidade humana” de subordinar-se aos conteúdos jurídicos ditados como universais e aos mecanismos pedagógicos (também estruturados sob as lógicas jurídicas) que justificam qualquer tipo de pressão e punição. Sob a perspectiva da filosofia antiga,

Inversamente, é bem preciso reconhecer que uma transformação puramente legislativa ou coercitiva das relações humanas não serve, em última instância, para nada, se ela não é acompanhada de uma transformação do sujeito. A Antiguidade pensava, antes de tudo, na ‘formação’ (paideia) do sujeito; o mundo moderno está centrado na ‘informação’. (HADOT, 2014, p. 285, grifo do autor).

O que vemos é que não há, no trabalho prático de organização dos conhecimentos administrados e nos modelos de existência perseguidos, qualquer diferença significativa entre a ordem religiosa e a ordem política, entre uma instituição escolar que no século XVI vertia para os seus livros escolares a herança cristã ou aquela que, cem ou duzentos anos mais tarde, procuraria erguer uma ciência civil, os direitos dos estados e os deveres do cidadão. Faz igualmente todo o sentido a posição do historiador André Chervel (1991, p. 63), para quem os conteúdos escolares se apresentam como “entidades sui generis, próprias da classe, independentes até certo ponto de qualquer realidade alheia à escola” e dotados de uma organização, uma economia própria e uma eficácia que se originam antes de mais em si mesmas, isto é, na sua própria história. Eis porque disciplina continua a ser um conceito que não perdeu a sua ligação ao verbo “disciplinar” e o seu sentido permanece atual. Uma “disciplina”, para nós, continua a significar uma forma de disciplinar a mente, “de procurar métodos e regras para abordar os diversos campos do pensamento, do conhecimento e da arte” (CHERVEL, 1991, p. 63).

A cultura pedagógica foi-se centrando paulatinamente na intensificação da rigidez da ciência disciplinar e, por essa via, contribuiu muito para uma evidente retração da autonomia da invenção, posto que “todos os currículos escolares”, como sublinha Fernando Gil (1984, p. 389) em Mimesis e negação, passaram a exibir “a forma extrema e acabada da organização do saber”. Este é o ponto central para o qual convergiu a demanda pedagógica em que se sustentou a posterior massificação do ensino. Na realidade, o modelo escolar articulado e expandido a partir da Idade Moderna europeia vulgarizou a noção segundo a qual qualquer disciplina corresponde a “um tratamento correto, completo e ordenado por certos preceitos, de coisas tornadas homogêneas a um objeto formal superior” (GIL, 1984, p. 389). Como se, a partir de então, o ensino procedesse de um conhecimento preexistente, e tudo, mas tudo mesmo, tivesse que ser feito para que os seus destinatários não pudessem sair desse circuito que, mais que reprodução, constrói adesão a uma leitura de mundo condensada, esquemá-tica, evolucionista e, o que é mais profundo, limitada pela fatalidade.

Se bem a lógica judiciária emerge como referência para a organização social desde o início da nossa Era, as tecnologias de controle que vão sendo produzidas não só a incorporam, mas contribuem a naturalizá-la. Nesse sentido, a disciplina curricular como exercício de homogeneização dos conteúdos é fundamental para o reconhecimento da lei como uma verdade universal e inquestionável. Do mesmo modo que professores e estudantes apenas têm espaço para questionar o currículo em suas atividades diárias por meio de tensos movimentos organizados, a lei também é assumida como uma verdade a não ser contestada. Antes de se pensar em um currículo ou no dizer da lei, importa produzir consenso, adesão, crença em um discurso que se fabrica verticalmente e se dissemina disciplinarmente.

A noção de disciplina confunde-se, assim, na nossa civilização, com um saber axiomatizado e universal na sua intenção, característica esta que só uma escrita controlada e controlável tem condições de garantir. E se a disciplina é o ensinável, se só acontece no quadro da transmissão unilateral, fácil é igualmente perceber-se que “a ciência também se revela indis-soluvelmente ligada ao ensino” (GIL, 1984, p. 389). À normalização do objeto científico deve corresponder, pela mesma lógica, a normalização da sua representação, razão pela qual historicamente o ensino procura a certificação através da exigência do que entende ser o rigor e a objectividade, as premissas verdadeiras e primeiras. O fundamento atribuído às metodologias didáticas deduz-se de uma ação dupla sobre o entendimento: tanto extirpar o erro ou refutar o falso, conferidos ao senso comum, como transmitir, ensinar e confirmar a verdade. Uma ação que provém da construção da verdade sob o crivo penal, sustentada no exame. A ação e as exigências, mais ou menos explicitadas, do ensino sobre o sujeito - o que se lhe pede e se lhe proíbe em termos de cognição pelos vários métodos de instrução e sistemas de avaliação - dizem grandemente respeito à noção de que há uma perspectiva “objectivista e realista” (GIL, 1984, p. 389) e, portanto - cabe acrescentar - comprovável, à qual obedecem os vários corpos de conhecimento. Afirmar, como é ainda voz corrente nos nossos dias, que a ciência pode ser ensinada significa, no mínimo, manter uma ambiguidade que o próprio conceito de disciplina apresenta desde sempre - o de constituir não apenas um ramo do saber, mas “um saber subtendido por uma vontade de uniformização” (GIL, 1984, p. 439).

Não há dúvida que terá sido a finalidade de transmissão, que quase sempre esgota os objetivos e as práticas nas instituições escolares, a secundarizar a intenção do labor propriamente científico. Aquele tipo de demonstração, que não se propõe obter novos conhecimentos -mas apenas expor um saber já adquirido e que para esse efeito é mister reordenar e hierarqui-zar - tem efetivamente dominado todo o nosso sistema de pensamento. O conflito entre regra e criação, no qual se revela a aporia constitutiva da ciência moderna, permanece à nossa frente porque ainda não encontramos, fora do quadro do saber disciplinar que a escola conduz e administra, formas de pensar e trabalhar alternativas, isto é, em que o aprender se subordine efetivamente ao criar e o adquirir ao produzir.

Para uma arqueologia do currículo

Essas são razões mais do que suficientes para sermos levados a defender um quadro específico de discussão histórico-epistemológica que nos desvende as estratégias, as forças e os mecanismos que tornaram um tipo de conhecimento simultaneamente necessário, válido e útil. Há toda uma história a fazer, não tanto em torno da estruturação do conhecimento escolar no passado, mas antes uma genealogia que permita “compreender como é que uma determinada construção social foi trazida até ao presente influenciando as nossas práticas e concepções de ensino” (NÓVOA, 1997, p. 10, grifo do autor). Práticas e concepções que se institucionalizam tendo o campo pedagógico como espaço dileto para o enraizamento das ideias jurídico-políticas, distanciando-se do método aristotélico-tomista e pautando-se na lógica do Direito, consolidando, mais do que o olhar, o funcionamento penal. Do que se tratará é de compreender o processo de fabricação dos saberes escolares, dos objetivos e interesses sociais que acompanharam a sua institucionalização, a fim de podermos colocar em análise a sua presença nas interações que ocorrem nos nossos dias, entendendo que estes estão a serviço de um sentido que os conteúdos veiculam.

Com a sua inabalável versatilidade e força absorvente, o conceito de currículo é categoricamente aquele que melhor identifica quer os objetivos assacados à educação escolar, quer os métodos e processos desenvolvidos pelas instituições de educação e ensino para a sua aquisição. Historicamente, transporta um valor substantivo de racionalidade e estabilidade, porque supõe sempre que feixes muito diversificados de declarações sobre fatos ou ideias possam dar lugar à transmissão de conhecimentos unívocos, que se disponham organizadamente em planos seriados - por níveis, anos e ciclos - como se de uma mercadoria final efetivamente se tratasse. Desta sorte, o currículo postula a presença de uma tecnologia da abreviação que, por sua vez, impõe uma didática que submete todas as formas de transmissão da ciência e da cultura à economia estreita do manuseamento e da assimilação, razão pela qual os conteúdos programáticos têm sempre a montante todo um longo trabalho de revisão, laminação, harmonização, hierarquização, encurtamento e sumarização de toda a complexidade discursiva em que se originam e em que se sustentam no mundo dos homens.

O exercício de condensação do pensamento tem como base a desapropriação da produção e transmissão do conhecimento em favor de uma estrutura autoritária que pressupõe obediência e submissão. Da ordem necessária para a relação pedagógica ao estreitamento do pensamento submetido a um compêndio há uma gama importante de ações e condições que a lógica jurídica funda para a organização de relações que evadem o elo entre os envolvidos e, a partir dos séculos I e II, embora no campo pedagógico a partir dos séculos XVI e XVII, con-frontar-seão não mais com a sua consciência e o seu exercício do pensar, mas com um grupo dileto que sustenta a sua autoridade em textos que capitalizam a verdade. São práticas em que a ritualística é fundamental para garantir a distância necessária à submissão dos que passam a acreditar que não detêm os conhecimentos necessários à convivência social: a autoridade das equipes pedagógicas frente aos estudantes e suas famílias, as equipes judiciárias frente às quais há que se curvar, a linguagem a ser empregada, a ordem dos procedimentos, os métodos rígidos, a produção de provas, testemunhos, exames, os regulamentos punitivos, em suma, a ordem jurídica passa a enraizar-se no cotidiano, educando muito mais que classes de estudantes. Em todos os âmbitos da vida passam a ser reconhecidos como imprescindíveis conteúdos e sociabilidades apenas passíveis de serem acessados servindo aos impérios da verdade.

A tal propósito serve o currículo que se apresenta como condição necessária à civilização, invisibilizando os efeitos de mutilação do pensamento. Como condensação da cadeia de antecipação curricular, que funda a própria “razão educativa”, encontra-se o livro escolar, esse artefato de todos nós o mais familiar e que articula, na opinião de Justino Magalhães (2011, p. 10), “informação, disciplina e verdade”. Um produto muito semelhante a um código penal que define a verdade sobre os comportamentos individuais e coletivos. Com o passar dos tempos, o livro escolar tornou-se o grande “fator de sociabilidade de toda a cultura escrita” (MAGALHÃES, 2011, p. 10), melhor dito, no “disciplinador da atividade leitora” (MAGALHÃES, 2011, p. 10)e no “modelo textual” (MAGALHÃES, 2011, p. 30) por excelência da nossa civilização. Só ele pode garantir a “normalização cognitiva” (MAGALHÃES, 2011, p. 30), do mesmo modo como se entende que só um código penal pode garantir a normalização comportamental. Parte-se e regressa-se, como nos trabalhos de Sísifo, ao livro escolar onde o conhecimento e a informação são expostos de forma sistemática e sequencial, a fim de serem decodificados, parafraseados, sintetizados em exercícios constantes de memorização e de escrita, a exemplo de um código jurídico no que as vidas têm que espelhar-se, expropriadas de qualquer exercício de pensamento e criação. Estamos perante dispositivos de conhecimento organizados para propósitos essencialmente educacionais e não mais um repositório de conhecimentos para ser problematizado e relançado. Embora pareçam domínios tão distantes, as práticas jurídicas e pedagógicas dialogam intimamente. Não obstante as variáveis que esse modelo editorial com fins didáticos possa adquirir ao longo do tempo - compêndios, manuais, tratados, abecedários, silabários, cartilhas, catecismos, súmulas, coletâneas, dicionários... -, uma parte essencial da epis-theme moderna é garantida pela ordem que o livro escolar espelha e pelas repetições que suscita através dos seus capítulos, cabeçalhos, tabelas, ilustrações e exemplos que o compõem invariavelmente.

Nele se foram reiterando e estruturando as categorias sobre as quais se ergue esse grande projeto totalizante e totalizador consubstancial à noção de currículo. É fato que o nosso regime cognitivo relaciona diretamente denominação com classificação e similitude: deduzimos de forma causal e hierárquica, pensamos através de articulações genealógicas e por níveis de complexidade crescente, associamos descrição com sistematização e decomposição com recomposição. Há sempre uma fórmula, um esquema, uma engrenagem que determina a ordem prévia e posterior de qualquer caminho do saber. Este é o propósito maior que anima a expressão de qualquer conteúdo e que nos devolve a perenidade do currículo nas nossas sociedades.

O mais interessante estará em perceber que essas suas afirmações podem bem ser aduzidas a épocas e realidades sociopolíticas bem distintas. É esse o ponto. O local foi transformado em universal, em vez de podermos pensar no enunciado como produção de um tempo, de um grupo específico. Por esta linha, tanto a informação (seja qual for ou como quer que tenha sido produzida) quanto as opiniões adquirem status de verdade e, como em qualquer processo jurídico, uma voz absolutamente estranha define o que é melhor para a vida de todos, construindo assim e atando as subjetividades a um modelo único que justifica o massacre, a destruição, a subordinação colonizadora do pensamento.

Um problema teórico atravessa e permanece como pano de fundo a qualquer discussão em torno do currículo - o de saber-se exatamente o que deve ser ensinado. Como nota Tomás Tadeu da Silva (2000, p. 13), por mais que se discorra e se contrastem as opiniões acerca da natureza da aprendizagem, da cultura, da ciência e da sociedade, volta-se sempre “à questão básica” de determinar “qual o conhecimento importante, válido e essencial para merecer ser considerado parte do currículo” ou ser posto de lado. Vivemos e caminhamos no quadro de uma legitimidade impensada (Ó, 2019). Todo e qualquer percurso de aprendizagem traduz-se na quase impossibilidade em idear um modelo de socialização do conhecimento fora de contextos de seleção e conversão dos conteúdos, fora da lógica da transposição didática ou do que Pacheco (2014, p. 31) denomina de “processo de transformação curricular”. A escolarização do conhecimento, as operações de poder que estão na origem das escolhas e das hierarquias dos conteúdos lecionados, parecem-nos hoje de impossível acesso, como se as diferentes teorias do currículo partissem de uma epis-temologia pura, essencial, desinteressada e inocente. Como se o conhecimento educacional se esgotasse entre as mil e uma tarefas subjacentes ao figurino curricular, às escolhas e ao planejamento, às opções técnicas mais válidas para desenvolver as habilidades e o rendimento dos escolares. Então, porque parte invariavelmente dos mesmos pressupostos, porque não se questiona sobre o gesto primacial da seletividade, a instituição escolar mantém a exigência da reprodutibilidade dos conteúdos sobre a qual se fundou. Toda a busca do melhor e mais eficaz modelo curricular não passa, afinal, de mais um reajuste do pot -pourri, dos princípios de ordem e controle já completamente exigíveis à partida, mas cuja proveniência e intenção estratégica se foram, entretanto, esquecendo na poeira do tempo, uma vez que a educação se transformou nos últimos dois séculos no território privilegiado para os políticos que avançam sob o signo da reforma educacional e para os especialistas cujas soluções alquímicas anunciam sem cessar a nova escola do futuro (ILLICH, 1976). Por isso, e não obstante a especificidade dos contextos ou das diferenças prometidas pelos vários desenhos curriculares, um mesmo modelo escolar nos surge pela frente. É o tal one best system de que nos fala David Tyack (1974). A epistemologia que nos domina é assim realista. Uma vez que se alimenta do princípio de que o conhecimento “é um objeto pré-existente: já lá está; a tarefa da pedagogia e do currículo consiste simplesmente em revelá-lo”, como nota Tomaz Tadeu da Silva (2000, p. 142).

Eis o porquê de a definição de arcabouços universais ser tão celebrada. Quanto mais amplo, mais unânime, mais competente é considerado, como no caso da definição dos Parâmetros Curriculares Nacionais, no Brasil da década de 1990, quando se festejou como parte da luta contra uma ditadura e em favor da democracia a possibilidade de que todos os brasileiros tivessem acesso ao mesmo conteúdo em nome da não discriminação, sem se perceber que o grande avanço foi o da possibilidade de homogeneizar amplamente uma enorme e dispersa população, com culturas e processos de conhecimento os mais diversos a serem terraplanados com tratores pedagógicos. Trata-se de uma operação de contração e subsunção do pensamento como quer a lógica penal fundamentada em verdades transcritas, como se a justiça estivesse acima aguardando ser criptografada; como se a família tivesse um formato único, as relações de trabalho fossem padronizadas em todos os campos, como se o mundo fosse um modelo único a ser executado por uma equipe judiciária, legitimando o enquadramento dos desvios. Uma prática de normalização essencial para o governo do disperso, que se quer único.

Por essa razão, uma arqueologia do currículo que exiba o “regime de deliberação” e o “aquário curricular” em que nos encontramos mergulhados, as mais das vezes sem o perceber, torna-se uma tarefa imperiosa. É que as linhas mestras, a mecânica mesma da vinculação do saber disciplinar a uma filosofia política em consolidação, as exigências das autoridades escolares, assim como a teorização do saber propriamente pedagógico, há muito que se sedimentaram. Pode-se defender que, a partir do século XVI e com as novas dinâmicas trazidas pela reforma protestante, “os ventos humanistas sopraram na Península - uma referência à Portugal - e produziram efeitos na formação” (NEDER, 2007, p. 21) muito antes da reforma pombalina, de grande influência na Universidade de Coimbra, em particular no campo jurídico, que viu-se no século XVIII sob a demanda de incluir na formulação do currículo “não somente a história do direito pátrio, mas [...] também a organização de compêndios que, com prévia aprovação régia, seriam adotados na universidade” (NEDER, 2007, p. 21). Longe de ser um exercício técnico, o currículo foi tomando centralidade ao ampliar-se a tarefa de instalar e avaliar os conteúdos à posição de um objeto autônomo de estudo, de pesquisa universitária, e condição para a referência ao trabalho pedagógico.

É sabido que o termo curriculum se originou na Antiguidade Clássica, embora o Oxford English Dictionary situe a definição mais antiga somente no ano de 1663 num documento produzido pela Universidade de Glasgow (BOBBIT, 2004; JACKSON, 1992; PACHECO, 2005). A sua etimologia básica - curriculum como pista de corrida, lugar de realizações articuladas entre si, percurso de uma carreira de vida ou até a carreira em si mesma - manteve-se sempre operacional. De fato, as ideias de sequência ordenada e de totalidade dos estudos nunca nos abandonaram (PACHECO, 2001). Dando corpo a este sentido seminal do currículo, a escolarização impôs a seriação tanto do conhecimento quanto das tarefas, das realizações e das experiências necessárias a que cada aluno se transforme num ator social capaz de responder aos padrões de eficiência -de produção e comportamento - exigidos pela sociedade do seu tempo. Não pode causar por isso estranheza o afirmar-se que o currículo se refere tanto à administração do conhecimento quanto à constituição da cognição e, nela, da identidade dos sujeitos como referência. Um conceito central - o da “identidade dos sujeitos” - à formação em qualquer nível, por dotar as pessoas de um conteúdo padronizado, de acordo com o lugar que irão ocupar. Identidade, papel, lugar, todos conceitos de fixação, duros, que visam reflexos e não desvios, em uma perspectiva unitária do conhecimento, do saber, das práticas, facilitando o exercício de controle pela previsibilidade idealizada pela lógica jurídica, sustentada em enunciados que se querem universais, pedagogicamente construídos, nos procedimentos de todos os campos de ação.

Com a permanente associação entre saber e ser, entre ciência, capacidades, atitudes e hábitos, é toda uma política de governo da vida que de fato o “atletismo” curricular instaura (Ó, 2003). Nestes termos, não é para a realidade dos 10-20 anos que as várias autoridades escolares trabalham incansavelmente, mas, antes, para a realização definitiva e adequada de atividades específicas a concretizar mais à frente. O currículo é a expressão concreta da antecipação, de um futuro já inteiramente conhecido e tornado objetivamente necessário por ação da escola. Jonh Franklin Bobbitt (2004, p. 74, grifo nosso) - autor da obra The curriculum, que é unanimemente reconhecida como a que inicia os estudos especializados no campo há quase um século - referia-se assim ao significado latino da palavra, já tornado banal nas instituições escolares do seu tempo: quando aplicado à educação, “o currículo consiste na série de coisas que as crianças e os jovens devem experimentar para desenvolverem capacidades para fazerem as coisas bem feitas, que preencham os afazeres da vida adulta, e para serem, em todos os aspectos, o que os adultos devem ser”.

Um desejo de totalidade subjaz a um instrumento que retrai o sentido da experimentação a garantidor de relações a serem construídas sem escapar a um escopo estreito: sempre condicionado por uma crença essencializada em uma natureza pronta (e perfeita), frente à qual há que aprender a codificar as relações dadas. O saber curricular, de modo análogo a um código penal, é filtrado por assertivas ditas científicas ou determinadas como verdadeiras, cuja atribuição é garantir que a curiosidade que conduz a experimentação ou o exame não se desvie dos terrenos controlados pelo mesmo discurso que incita à investigação.

As várias investigações conduzidas por David Hamilton (1989), e que estão na raiz de Towards a theory of schooling, fizeram-no recuar cerca de 50 anos relativamente ao dicionário inglês, embora também este historiador acredite que Glasgow tenha sido determinante, mercê da penetração que o protestantismo conhecia à época naquela cidade. O sentimento de disciplina que identifica o currículo não procedeu, em seu entender, tanto das fontes clássicas quanto da irradiação das ideias calvinistas. As conhecidas práticas ascéticas do governo de si mesmo fundiram-se, no ethos protestante, com a necessidade de uma relação estrutural entre conhecimento e controle.

As possibilidades de abertura e variação experimental em face da diversidade textual, que sabemos terem caracterizado a educação humanista, apenas poderiam sobreviver num contexto completamente restrito às elites. Tudo haveria de mudar quando se começou a pensar na utensilagem mental, na conduta moral e nas habilidades técnicas necessárias à produção em larga escala tanto dos soldados como dos generais que espalhariam a força e a potência da Igreja ou do Estado, nessa mole de sujeitos que deveria sustentar o desenvolvimento espiritual e material das sociedades. Um novo paradigma civilizacional haveria de impor objetivos precisos e particularizados, nos quais a margem para qualquer experiência não organizada, dirigida e avaliada foi ficando cada vez mais tênue. A tanto obrigavam a nova ordem social e as exigências racionais da conduta metódica da vida, agora mais que disponíveis, imperativas para todos. A ordem senhorial cede para um saber universal que compreende a todos, como uma justiça universal que a todos inclui. O modelo do estudante perfeito deixou de se referenciar exclusivamente ao habitus aristocrático - em que a instrução nas artes do discurso se confundia com um trabalho físico em que dominava a equitação e o manejo das armas - para se comparar também com as massas vulgares. A noção de igualdade vinculada ao Estado liberal se espraia entre os domínios mundanos alimentando a crença na horizontalidade do acesso seja à justiça, seja à escolarização, seja, ainda, às possibilidades de inserção no mercado de trabalho e nas linhas de consumo. Será o saber o veículo necessário para a vida que passa a ser denominada “incluída” - em referência a um modelo civilizacional -, qual seja, aquela que obedece a um arcabouço con-teudístico que assume o status de verdadeiro, certo, justo.

Hamilton (ANO) defende que a estandardização dos estudos universitários na segunda metade do século XVI foi o reflexo da necessidade de maior controle administrativo das universidades trazido pelo movimento da reforma protestante, mas também pelas autoridades civis, como sucedeu emblemáticamente na Universidade de Paris. Foi, aliás, com o objetivo expresso de garantir esta força de poder que a palavra curriculum começou a associar-se insistentemente àqueles programas educacionais que iam permanecendo ao longo de vários anos, aos planos de estudo que evidenciavam uma estruturação disciplinar interna e, ao mesmo tempo, eram suscetíveis de serem articulados com novos saberes, dando de si a imagem de uma cadeia completa. A tese de Hamilton (ANO) é a de que o currículo, enquanto forma de organização, se impôs essencialmente como um instrumento de eficiência social, um híbrido que fez convergir as necessidades de tipo administrativo com as de tipo pedagógico. O currículo é uma imposição do conhecimento do eu e do mundo que propicia ordem e ação disciplinada aos sujeitos.

O termo curriculum parece haver confirmado a ideia de que os elementos distintos de um curso podiam ser tratados como um todo unitário. Qualquer curso digno desse nome iria incorporar disciplina (um sentido de coerência estrutural) e ordo (um sentido de sequência interna). Portanto, falar de currículo posteriormente à reforma protestante identificaria toda a entidade educativa que se mostrasse uma totalidade estrutural e uma integridade sequencial. Um curriculum não só devia ser seguido como devia também ser acabado. A sequência, a extensão e a conclusão dos cursos medievais estiveram nas universidades relativamente abertas à negociação estudantil (por exemplo em Bolonha) e ao abuso do professorado (por exemplo em Paris), mas não há dúvida que com a emergência do curriculum aumentou o sentimento de controlo sobre o ensino e a aprendizagem. (HAMILTON, 1981, p. 199).

A documentação compilada pelos historiadores da educação mostra também que outra palavra, classe, passou a identificar genericamente a escola na passagem do século XVI para o XVII. Classe tendeu mesmo a justapor-se a currículo, circunstância esta que deve merecer o melhor da nossa atenção, porque remete diretamente para a objetivação de uma ação direta no que diz respeito aos novos desejos de mobilidade social ascendente da época. Com a inovação nunca mais abandonada do regime de classes, a escola associou ao poder de designar o necessário de conhecer à faculdade de hierarquizar e diferenciar, de incluir, reter e excluir os alunos. Então, é como se na época pós-medieval, na Europa, pudéssemos também encontrar a raiz das propostas contemporâneas da escolarização universal, com sua ambição colonizadora antes que de abertura ao exercício do pensar. Tal como nos surge, o currículo funda-se numa separação rígida entre alta e baixa cultura, o ensino para todos e a excelência para um punhado apenas, mas todos submetidos à mesma lógica classificatória e hierárquica. Por isso mesmo é que, desde a Idade Moderna, todos os projetos educacionais que se começaram a destinar especificamente às classes populares e às mulheres quase só se esgotavam na aprendizagem do catecismo e na inculcação de umas quantas normas elementares de submissão e obediência, tecnologia esta que se revelou, na opinião de Julia Varela (2001, p. 121), “apropriada para a produção de sujeitos que foram educados para serem dependentes e mantidos num estado social de inferioridade mental”.

Nas colônias, como no caso do Brasil, o sentido de doutrinação do ensino, mesmo em sua forma escolarizada, foi instrumento essencial à submissão da língua, da cosmovisão, das relações de trabalho. Os modos de organizar aqueles que foram dizimados e explorados foram espelhados na organização pedagógica e, nela, na perspectiva penal, em nome de um querer divino próprio a uma religiosidade que fez tábua rasa de todas as demais formas de entender e cultuar a vida.

Ora, foi no interior dessa importante operação civilizacional que as teorias calvinistas da predestinação - na verdade o seu dogma mais importante - adquiriram um peso extraordinário. Com efeito, a elas se deve uma das grandes matrizes em que se forjou o modelo de hierarquização social em que ainda nos encontramos. Herdamos do protestantismo a tese fundamental de que só uma minoria muito especial pode alcançar tanto a salvação espiritual quanto a direção da política, dos negócios ou da administração pública, assim como produzir conhecimento inovador ou produtos culturais e artísticos diferenciados. Uma narrativa que intente dar nota dos mecanismos históricos de produção da estratificação social na modernidade não pode, neste quadro, deixar de atender à relação estabelecida entre as peculiaridades espirituais inculcadas - em boa medida por uma educação de base profundamente religiosa da comunidade de origem - e a escolha do destino ou da carreira profissional. A influência do calvinismo constituiu um inusitado e radical controle da Igreja sobre os indivíduos, porquanto produziu uma regulamentação “pesada e severa”, invadindo “numa medida quase inimaginável todas as esferas da vida privada” (WEBER, 1995, p. 28). Por esta outra via, um novo quadro mental e institucional se ergueu em contraponto com a então já muito acomodada modalidade disciplinar da Igreja católica, que consistia em punir os hereges, mas ser indulgente com os pecadores. Como se as duas confissões cristãs exibissem, desde então, uma diferença de caráter intrínseco e permanente muito para lá das variadas situações histórico-políticas em que se viessem a confrontar. Segundo Weber (1995), um agudo espírito de negócios capitalista veio a conjugar-se, numa pessoa ou num grupo humano, com formas intensas de devoção que viriam a dominar e a impregnar toda a vida. Essa combinação ter-se-á revelado particularmente forte onde quer que o calvinismo tenha surgido; sob sua jurisdição não apenas uma técnica, mas sobretudo uma ética e um ethos haveriam de se expressar no dever inflexível do indivíduo para com o seu trabalho e respectivo capital. A virtude adquiriu então um cunho utilitário e a moral mais elevada passou a ser aquela que “considerava o cumprimento no quadro da atividade temporal” (WEBER, 1995, p. 28). Uma moral em ação, portanto.

A gênese do modelo da escola de massas está indissociavelmente ligada aos figurinos de tecnologia moral desenvolvida pelas dinâmicas da Reforma e Contrarreforma. Desde logo, a passagem fez-se de forma institucional direta. É sabido que as primeiras escolas populares europeias foram criadas pela Igreja, nos séculos XVI e XVII, enquanto instrumentos de intensificação e aprofundamento da direção pastoral das consciências. Na sua arquitetura organizacional, as diferentes escolas cristãs adotaram formas sistemáticas - racionalizadas, podendo agora afirmar com outra solidez - de contínua conexão entre o princípio do aprofundamento moral com a necessidade de ordem, de eficiência e de hierarquia social. Um modelo - o da pedagogia sustentada na estrutura do currículo - que acompanha o pensamento jurídico racional que, na concepção de Weber (1999), é baseado em regras formais apoiadas na lógica-dedutiva, ancorada em a priori, o que em termos do autor constitui uma “racionalidade lógico-formal” - racionalidade do Direito, de acordo com a qual a lei indica uma ordem “dotada de certas garantias específicas da probabilidade de sua validade empírica” (WEBER, 1999, p. 209). Um procedimento que atravessa a implementação prática de um enunciado tendo como pressuposto o exercício da coação para avaliar a capacidade de um sistema (no caso o do Direito) formular regras universais aplicáveis. Mecânica orientada a trabalhar no sentido de desinstalar os alunos dos seus hábitos anteriores, levando-os na direção de uma “perfeição natural”, como já começava a ser dito de forma explícita na linguagem do tempo, que requer, entretanto, a presença da coação como instrumento pedagógico, tal qual ensina o mundo jurídico que opera sob a lógica penal.

A verdadeira “explosão da vontade de aprender” - primeiro nas zonas protestantes como a Prússia e a Áustria, depois nas regiões católicas -, que levaria “à emergência de um universo cultural dominado pela escrita” e instaurou “uma civilização de base escolar”, decorreu efetivamente sob a “tutela das congregações religiosas” até pelo menos meados do século XVIII e supôs amiúde o regime de internato, sublinha Nóvoa (1994, p. 167). Foi sobre esse chão disciplinar estabelecido pela formação religiosa, articulada por um pensamento penal, que se estabeleceram multímodas rotinas organizativas, as práticas pedagógicas, as relações pessoais e interpessoais que efetivamente passaram a ocupar o centro da escola nas centúrias subsequentes. A preocupação retrospectiva e introspectiva começou a ser instilada no indivíduo desde a infância, tomando numa parte a forma de uma autofiscalização consciente e noutra parte a forma de hábitos automáticos que lhe seriam indispensáveis para a visão a longo prazo e a permanente contenção de que precisaria na vida adulta. Estas combinatórias passaram a ser multiestruturadas; para a sua constituição e reprodução deviam concorrer, ao mesmo tempo, os impulsos emocionais e racionais, função essa que só uma intervenção continuada e por etapas, como uma instituição de formação, permite realizar. A escola, confessional ou laica, não mais deixou de lado o desígnio de sobrepor, em cada aluno, a força do hábito à força da vontade - cada um deveria ser capaz de clivar, a partir de si próprio, todo tipo de impulsos e estímulos, associando-os sempre ao bem e ao mal, ao normal e ao anormal, ao útil e ao ocioso, ao triunfo e à derrota. Podemos dizer que se alicerçou nela um princípio político ativo, tão próprio da nossa civilização, que preceitua que a auto-observação leva diretamente à autorregulação, que o treino disciplinar desenvolvido no interior das paredes da sala de aula há de continuar vida adulta adentro. Nas suas circunstâncias próprias e nos seus sucessivos degraus, a instituição escolar passou a partir de Quinhentos a equipar um número crescente de indivíduos com formas cada vez mais especializadas de reflexão ética, apresentando-as como atributos da religiosidade e da cidadania, contribuindo largamente, dessa forma, para universalizar o modelo da pessoa reflexiva (HUNTER, 1996). Continuou o trabalho de subjetivação desenvolvido pelas autoridades protestantes quando estas se determinaram em pressionar o indivíduo a manter-se no limiar da interrogação, tendo por dever disciplinar enquadrar sua problematiza-ção em uma certa estrutura de pensamento, sempre subordinada a uma escala de valores atribuídos às ciências - como estabelecido por Durkheim -, demarcando hierarquias no campo da produção de conhecimento.

Não se trata apenas da capacidade de conquistar um volume de conhecimento - como quer a pedagogia moderna com ambições de domínio semelhantes às de um imperador -, mas de conhecimentos acima de tudo ajustados a um controle que opera por meio de um incentivo cerceado pela aquisição de saberes. Embora o desejo de escolarização tenha se tornado uma produção com pretensões universais, o lastro da tradição canônica de criminalização dos desejos permanece interditando voos que escapem aos enquadramentos epistemológicos. Aqueles que são autorizados a conduzir os processos de produção de conhecimento definem, acima dos conteúdos, o que não pode ser pensado.

É decisivo reconhecer-se que esse programa disciplinar não teria condições de impor-se de modo tão generalizado sem a presença constante de uma organização social que executasse, no mundo moderno, o que antes tinha sido realizado pelas ordens monásticas num plano muitíssimo mais restrito. Coube efetivamente à instituição-escola universalizar um modelo cognitivo que impunha a plena vigilância reflexiva sobre si, ao mesmo tempo que, nas sucessivas e cada vez mais estreitas etapas da corrida curricular, estabelecia entre todos eles a maior competição possível, por forma a evidenciar, com o passar dos anos, a supremacia dos já eleitos. Se a doutrina da predestinação constituiu o pano de fundo dogmático da moral puritana, o sentido de uma conduta metodicamente racionalizada a partir da vocação e do preparo profissional passou a constituir uma marca comum, essa espécie de fantasma que ronda o conjunto dos indivíduos que frequentam a escola. À diferença das qualidades outorgadas pelos deuses na sociedade antiga como base para deter força e prestígio como condição para exercer o poder, o conhecimento adquirido com preparo, método, disciplina, obediência, outorgará o poder de mando e, nessa medida de julgamento, aos poderosos da modernidade. A estrutura política sustentada na ideia de justiça é alicerçada na estrutura pedagógica, de acordo com a qual o conhecimento aprendido corretamente é o único modo de bem conduzir as condutas. O senso de correção de uma prática passa pelo crivo do justo, pela noção de justiça, que subordina a sua dimensão ética à relação pedagógica e não inversamente.

Na verdade, a ética secular, tal como se encontra vinculada às condições da ordem econômica moderna, foi adquirindo uma força irresistível, determinando o estilo de vida das populações ativas, porque a montante uma engrenagem acompanhou e cultivou as crianças e os jovens justamente nesse sentido. O puritano queria ser um homem de profissão; a escola de massas obrigou todos a terem de o ser. Ao passo que destinava um lugar profissional futuro a cada um dos seus alunos, aqueles que eram os mais favorecidos por ação da escola - via de regra os universitários e, na origem histórica do modelo, os estudantes de teologia, cujas faculdades se inscreviam no vértice de todo o sistema acadêmico -, adquiriam uma acutilân-cia especial sobre o fosso intransponível que os separava do resto da população. Mesmo controlando constantemente o seu estado de graça, dir-se-ia que os eleitos pelo sistema escolar, assim como os gênios e os dotados que representam os valores espirituais e culturais tidos por mais elevados, se definem por constituir uma comunidade que carece de qualquer tipo de consciência sobre as suas próprias debilidades. Os longos anos passados entre as paredes das primeiras salas de aula, a passagem pelos colégios e pelas universidades legitimariam a intocabilidade das elites e da consciência culta que, por essa razão, jamais se questiona acerca da sua própria superioridade.

A escola é a instituição que institui. Cumpre-se nela há séculos uma função que se tornou inquestionável - a de unir a ideia de constituição, fundação ou invenção do sujeito com as disposições duradouras, os hábitos e os usos que caracterizarão o seu destino. Todos os ritos de passagem e exames que estabelece se centraram, e ainda se centram, sobre a investidura, a nomeação e os limites de cada um dos seus membros. Consagram, legitimam e naturalizam uma diferença durável entre eles. É por ação da escola que um nome individual passa a ser tomado como uma essência e esta, por seu turno, como uma competência. Um direito a ser que é, na realidade, um dever ser. O aluno é aquele ator social que consome uma energia muito considerável a adquirir disposições duradouras, a ocupar e a exprimir ativamente o lugar que é produzido como o seu, restringindo qualquer perspectiva além do instituído. Dir-se-á que se define por investir, mais ou menos longamente, na apropriação das coisas que um dia se irão apropriar dele. Não é nunca demais insistir neste ponto: todos os sistemas de educação nacionais, hoje espalhados sobre o planeta com a mesma procedência, se originaram a partir de uma bipartição cujo propósito estratégico não se faz notar nem é objeto de interrogação no presente; é por essa razão que os programas sequenciais de estudo, que começaram por ressoar nos projetos pedagógicos renascentistas e reformistas, nos forneceram a melhor chave para o surgimento e manutenção de uma sociedade fortemente estabilizada no que diz respeito à rigidez estrutural das hierarquias que ela mesma inventa. Uma lógica sequencial que não é inaugurada pela pedagogia, mas adotada por ela a partir da concepção evolucionista sustentada na essencialização do humano, que tem na ideia de etapa a concessão para uma ascensão que raramente ocorrerá, mas manterá a todos esperançosos como no aguardo do reino dos céus. Mecânica que também compõe a estrutura judiciária, de acordo com a qual as penas são definidas pelo grau do delito e pela repetição do mesmo. Assim como no mundo escolar, no qual o grau de um estudante corresponde a certas habilidades e comportamentos, a pena prescrita corresponde à classificação dos atos. A grande conexão que a instituição escolar estabelece não é, portanto, com o saber ou o conhecimento, mas com um modelo de sociedade que se concebe a priori à partida como hierarquizado, distribuindo a fatalidade de destinos sociais positivos ou negativos, de consagração ou es-tigmatização no interior de uma pirâmide cuja manutenção se vai justificando sempre como correspondendo à realidade da meritocracia.

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Recebido: 11 de Novembro de 2019; Aceito: 05 de Maio de 2020

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