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Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade

versión impresa ISSN 0104-7043versión On-line ISSN 2358-0194

Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade vol.29 no.59 Salvador jul./sept 2020  Epub 19-Jul-2021

https://doi.org/10.21879/faeeba2358-0194.2020.v29.n59.p417-431 

ESTUDOS

INSTRUIR, MORALIZAR E CIVILIZAR PARA O DESENVOLVIMENTO DA BAHIA: ESTRATÉGIAS DAS CAMPANHAS DE SANEAMENTO E EDUCAÇÃO RURAL DE 1918 E 1952

INSTRUCT, MORALIZE AND CIVILIZE FOR THE DEVELOPMENT OF BAHIA: STRATEGIES OF THE SANITATION AND RURAL EDUCATION CAMPAIGNS OF 1918 AND 1952

INSTRUIR, MORALIZAR Y CIVILIZAR PARA EL DESARROLLO DE BAHIA: ESTRATEGIAS DE LAS CAMPAÑAS DE SANEAMIENTO Y EDUCACIÓN RURAL DE 1918 Y 1952

Gilmário Moreira Brito*  (PPGEduC/UNEB)
http://orcid.org/0000-0001-9349-1993

Eliene Rodrigues Ramos**  (UNEB)
http://orcid.org/0000-0003-4308-8471

*Doutor em História Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Professor Titular da Programa de Pós-Graduação em Educação e Contemporaneidade da Universidade do Estado da Bahia (PPGEduC/UNEB) - Campus I. Líder do Grupo de Estudo Educação, História, Cultura e Linguagens (GHCEL). E-mail: gilmariobrito@gmail.com

**Doutoranda em Educação e Contemporaneidade Programa de Pós-Graduação em Educação e Contemporaneidade da Universidade do Estado da Bahia (PPGEduC/UNEB). Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (Fapesb). E-mail: eliroram@gmail.com


RESUMO

O presente artigo discute as concepções políticas das campanhas de saneamento e educação destinadas aos sertões e zonas rurais da Bahia, implantadas, respectivamente, pela Liga Pró-Saneamento, instituída em 1918, e a Campanha Nacional de Educação Rural, em 1952. Examina conceitos de saneamento, educação rural e instrução usados, por esta última, como estratégias para modificar modos de viver e produzir de moradores rurais tendo em vista inseri-los, no contexto de 1950, nos mercados nacional e internacional. A pesquisa recorreu à produção bibliográfica de Neiva e Penna (1999), Penna (1923), Santos (1985, 1998), Williams (1989), Brito (1999), Lima e Hochman (2000), Hochman e Armus (2004), Stepan (2004), Hochman (2005), Mariani (1957), Hall (1950a, 1950b), Souza (2009), Monarcha (2009) e Ramos (2017), bem como a artigos e relatos publicados na Revista da Campanha Nacional de Educação Rural (RCNER), cujos propósitos eram moralizar e civilizar moradores de zonas rurais para o desenvolvimento da Bahia.

Palavras-chave: Liga Pró-saneamento; Campanha Nacional de Educação Rural; Moralizar valores; Desenvolvimento da Bahia

ABSTRACT

The present paper discusses the political conceptions of the sanitation and education campaigns destined to the backlands regions and rural zones of Bahia implemented, respectively, by the Pro-Sanitation League instituted in 1918 and the National Campaign of Rural Education in 1952. It examine concepts of sanitation, rural education and instruction, used by the latter as strategies for modifying rural dwellers ways of living and producing to insert them in the context of 1950 in the national and international markets. The research used the bibliographic production of Neiva and Penna (1999), Penna (1923), Santos (1985, 1998), Williams (1989), Brito (1999), Lima and Hochman (2000), Hochman and Armus, Stepan (2004), Hochman (2005), Mariani (1957), Hall (1950a, 1950b), Souza (2009), Monarcha (2009) and Ramos (2017), as well as articles and reports published in RCNER magazine whose purposes were to moralize and civilize rural dwellers for the development of Bahia

Keywords: Pro-sanitation league; National Campaign of Rural Education; Moralize values; Development of Bahia

RESUMEN

El presente artículo discute las concepciones políticas de las campañas de saneamiento y educación destinadas a los sertões y zonas rurales de Bahia implantadas respectivamente por la Liga Pro-Saneamiento instituida en 1918 y la Campaña Nacional de Educación Rural en 1952. Examina conceptos de saneamiento, educación rural e instrucción usados, por esta última, como estrategias para modificar modos de vivir y producir de moradores rurales con el fin de insertarlos, en el contexto de 1950, en los mercados nacional e internacional. La investigación recurrió a la producción bibliográfica de Neiva y Penna (1999), Penna (1923), Santos (1985, 1998), Williams (1989), Brito (1999), Lima y Hochman (2000), Hochman y Armus (2004) ), Stepan (2004), Hochman (2005), Mariani (1957), Hall (1950a, 1950b), Souza (2009), Monarcha (2009) y Ramos (2017), como a artículos y relatos publicados en la revista RCNER cuyos propósitos eran moralizar y civilizar a los residentes de las zonas rurales para el desarrollo de Bahía

Palabras clave: Liga Pro-saneamiento; Campaña Nacional de Educación Rural; Moralizar valores; Desarrollo de Bahía

INTRODUÇÃO

Autoridades sanitárias relacionadas à Fundação Osvaldo Cruz e à Fundação Rockfeller no Rio de Janeiro e na Bahia planejaram e instituíram em 1918 um processo de intervenção nos sertões da Bahia para implantação da educação sanitária, conforme foi verificado no processo de levantamento, sistematização de fontes e informações para a elaboração deste estudo. Na década de 1950, deu-se a instalação da Campanha Nacional de Educação Rural (CNER) na Bahia, cuja finalidade era promover a educação de moradores do meio rural, orientada por três fundamentos: o saneamento, a educação agrícola e a instrução. A CNER justificava sua intervenção como medida voltada para a promoção da “mudança da paisagem humana e física” das comunidades rurais. Todavia, mais do que mudanças no espaço físico movidas pela intervenção humana, a CNER promoveu ações e desenvolveu estratégias pedagógicas que objetivavam realizar transformações no território, nas relações de trabalho e de produção que pretendiam estabelecer com a região.

Indícios de aproximações e afastamentos entre as campanhas da liga pró-saneamento e a CNER relacionados aos objetivos, às perspectivas políticas e culturais, às concepções de educação e de saneamento referentes às diferentes conjunturas de 1918 e 1950 são observados. As diferentes expectativas giravam em torno dos contextos das relações firmadas entre os poderes estadual e federal para a realização do saneamento e da educação como pressupostos para alcançar as referências de progresso, civilização, modernização e desenvolvimento.

Na década de 50 do século XX, mais de trinta anos depois, o propósito de sanear zonas rurais da Bahia e de outros estados do país é retomado pela Campanha Nacional de Educação Rural (CNER), que estabeleceu a estratégia de implantar em comunidades rurais atendidas um padrão de higiene semelhante àquele estabelecido para os centros urbanos. Para tanto, justificava que as comunidades rurais foram acometidas por enfermidades provenientes da falta de saneamento, carência que tornava necessário o estabelecimento de um padrão de higiene que deveria ser assimilado e seguido por seus moradores.

Organização dos serviços de saúde e educação nas zonas rurais da Bahia em 1918 e 1950: requisitos para civilização, modernização e progresso

A utilização da concepção de saneamento rural, um dos fundamentos da Liga Pró-Saneamento e da Campanha Nacional de Educação Rural, está diretamente ligada à proposta de reafirmar a construção de uma nova identidade do país inserida nos projetos de modernização e progresso e do nacional desenvolvimentismo, que buscavam afirmar estas noções nos pressupostos de três conceitos fundamentais, quais sejam: sanitarismo, higienismo e eugenia. O sanitarismo é a adoção de medidas profiláticas voltadas para identificar ocorrências de doenças que podem ameaçar a manutenção da saúde pública e individual; inserido em uma política direcionada para o higienismo, que, de acordo Houaiss (2009), é uma especialização da Medicina que visa a preservação da saúde mediante o estabelecimento das normas e preceitos para prevenir doenças e a educação voltada para disciplinar os hábitos que conduzem ao bem-estar e à saúde. Segundo Stepan (2004), a eugenia, ciência que explica “o aprimoramento racial”, no Brasil assume explanação sociológica para afirmar que os problemas de crime e responsabilidade legal eram intimamente vinculados à questão racial. A esse respeito Stepan (2004, p. 345) considera que “sanear era eugenizar, visto que os cientistas brasileiros se preocupavam em analisar conflitos familiares, educação sexual, exames e atestados nupciais”. Nesse sentido, as concepções de saneamento e de eugenia estavam intimamente associadas ao pensamento higienista que recomendava o combate rigoroso de hábitos e costumes praticados em larga escala, pela maioria da população do país, que, neste período, ainda habitava, de forma predominante, em propriedades rurais. Nesse contexto, a campanha visava estabelecer normas e padrões de limpeza corporal e étnica voltados, supostamente, para prevenir doenças e preservar a saúde dos moradores da zona rural. Esta concepção médico-higienista, formulada à sociedade brasileira como requisito fundamental no processo de construção nacional, era compartilhada por intelectuais e diferentes atores sociais envolvidos no debate sobre natureza, doença e raça.

Apesar da atenção sanitarista direcionar-se às áreas litorâneas do país, notadamente às cidades emergentes e mais urbanizadas, de acordo com Santos (1998), no final da década de 1910, a Bahia recebeu aportes das novas políticas da Nação para o setor da saúde pública, tendo em vista as reprováveis condições de saúde das populações da zona rural, principalmente do sertão e de áreas da região do Rio São Francisco.

Citando informações dos relatórios da comissão federal elaborados por Neiva e Penna (1999) e Penna (1923) e enviados à diretoria geral de saúde pública, Souza (2009) comenta que os relatos de médicos e de cientistas que percorreram o sertão da Bahia em 1916 indicavam que a população da zona rural do Estado estava abandonada, vítima do rodízio das epidemias e de flagelos endêmicos como a doença de Chagas, a ancilostomíase e a sífilis.

Construções de referências ao sertão como antagônicas ao litoral foram, muitas vezes, utilizadas como sinônimo de pobreza e atraso da zona rural e de seus habitantes. Ao examinar conflitos religiosos e culturais no sertão do São Francisco na Bahia em 1938, Brito (1999, p. 48) identificou que grupos letrados de Salvador publicaram em jornais juízos desqualificadores sobre aquele território porque seus costumes e valores eram diferentes daqueles concebidos por esta categoria, que interpretava como bárbaros os modos de vida e atitudes de moradores do sertão que se expressavam na manifestação de uma cultura religiosa da caatinga.

Os jornais se constituíram em espaços privilegiados de expressão de segmentos urbanos letrados que vislumbravam na capacidade de ler, escrever e compreender códigos e leis a possibilidade de estabelecerem para toda a sociedade os parâmetros de sua cultura, aqui referenciada em noções de saneamento, higienização, educação, moralização, desenvolvimentismo, disciplina e ordem, conceitos de um “processo civilizador” da urbe. Através de relatos na imprensa, agentes letrados das cidades de Salvador, Petrolina e Rio de Janeiro projetavam imagens do sertão como negação e contraponto dos ideários urbanos. Para construir esta reflexão, recorremos a Williams (1989), que ajudou a compreender que as relações entre as comunidades humanas do campo e da cidade são frequentemente contrastadas. Percebemos nas relações com o interior do sertão que, em 1938, a maior parte da população era iletrada, vivia na zona rural, sob o domínio patriarcal de poderosas famílias, o que significa a necessidade de atentar para tensões e confrontos inerentes a diferentes modos de vida e de trabalho, valores, concepções de mundo e de luta.

Em outro contexto, a figura do Jeca Tatu é uma caricatura emblemática dessa afirmação. O Jeca foi um personagem criado por Monteiro Lobato, em 1914, como uma representação dos moradores do interior do país, depois de ter observado o comportamento, os costumes e atitudes dos moradores de uma fazenda que herdou do avô no interior paulista a qual muito influenciou em sua obra. Para Azevedo (2012), o Jeca Tatu foi o primeiro lamento que ecoou pelos matos e cidades do Brasil afora. Representando o morador da zona rural nos jornais e revistas, a imagem do Jeca se transformou em uma caricatura que se explica pelo desenvolvimento do pensamento higienista, que seu autor descreve em duas fases. Na primeira fase Monteiro Lobato caracteriza o personagem Jeca Tatu como o “caipira, indolente, imprevidente e parasita, um piolho da terra” (LIMA; HOCHMAN, 2000, p. 321), o responsável por sua condição de vida miserável; mas, na segunda fase, Lobato desloca o problema do atraso na zona rural para as doenças endêmicas. O personagem do Jeca Tatu, que era identificado como “indolente”, volta a figurar no cenário dos meios de comunicação como a personagem que busca uma perspectiva de “superação da mentalidade tradicional de miséria e indigência” (LIMA; HOCHMAN, 2000, p. 321) para tornar-se vítima das doenças e da irresponsabilidade com “a situação de abandono das comunidades rurais” (LIMA; HOCHMAN, 2000, p. 321). Para Ramos (2017), apesar da metamorfose sofrida, é possível identificar no estereótipo do personagem Jeca Tatu a construção de um emblema que significava a dificuldade de transformação que impedia o país de alcançar a modernização e o progresso. Um personagem composto como ícone de um imaginário, de práticas e costumes coletivos transformados em um símbolo para representar determinados valores, crenças e atitudes que ficaram inculcados na memória dos moradores rurais e urbanos.

Contudo, voltando à questão do saneamento, o morador da zona rural com esse perfil, nos anos 1950, ainda era o objeto das ações educativas promovidas pela CNER, que estava disposta a modificá-lo porque, na sua avaliação, representava um entrave ao desenvolvimentismo e, por isso, exigia modificações.

Para dar conta dos problemas do saneamento nas zonas rurais do Brasil, foi instituída a primeira campanha higienista no Brasil, iniciada em 1916, com atenção especial para os sertões e os interiores considerados como áreas esquecidas do país. Os médicos Belisário Penna e Artur Neiva, pesquisador baiano, financiados pelo Instituto Oswaldo Cruz, realizaram viagens de sondagem e produziram um relatório que forneceu dados para que, em janeiro de 1918, Belisário Penna (1923) publicasse o livro intitulado Saneamento no Brasil: sanear o Brasil é povoá-lo; é enriquecê-lo; é moralizá-lo, no qual denuncia as condições de isolamento e abandono das regiões sertanejas. No livro, Belisário Penna (1923) sugere medidas e encaminhamentos para que o Estado assuma o controle do sistema de saúde pública brasileiro, notadamente no que se refere ao combate às endemias, e aponta a necessidade da elaboração de um código sanitário para o Brasil, além da divisão do território nacional em oito zonas sanitárias.

Um mês após a publicação do livro Saneamento no Brasil, em fevereiro de 1918, Belisário Penna, em parceria com outros higienistas, instituiu a Liga Pró-Saneamento do Brasil, cujo patrono era Oswaldo Cruz,1 potencializando o movimento sanitarista para a zona rural com o lema “Sanear o Brasil é povoá-lo, é enriquecê-lo, é moralizá-lo” (PENNA, 1923). Assim, é possível compreender que a preocupação da campanha sanitária não era essencialmente acabar com as enfermidades, objetivava também instituir uma outra moral que promovesse os primeiros acenos em direção às concepções maturadas na década de 1950, da promoção do desenvolvimento como condição necessária para enriquecer o Brasil e, nesse sentido, destaca que o “problema sanitário não é apenas médico e higiênico, é, sobretudo, social, político e econômico” (PENNA, 1923, p. 11). Por isso, os crimes, a miséria e a degradação da população eram considerados como consequências apenas do abandono e da ignorância. Nesse mesmo ano de 1918, o governo federal criou o Serviço de Profilaxia Rural, subordinado à Diretoria de Saúde Pública, sob a direção de Belisário Penna, com o objetivo de combater no âmbito nacional, em parceria com a Fundação Rockfeller,2 as endemias mais preeminentes no Brasil: a malária, ancilostomose (ou amarelão ou doença do Jeca Tatu) e a doença de Chagas.

Durante a República Velha havia duas correntes sanitaristas, uma eugenista e outra higienista, presentes no pensamento nacionalista. A eugenista preocupava-se em recuperar, no interior do país, as raízes da nacionalidade e a integração do sertanejo ao projeto de construção nacional, buscando êxito para o processo de branqueamento. Stepan (2004) considera que esta aspiração era um tipo “latino” de eugenia porque apontava, como resposta às questões nacionais iminentes, a miséria e a falta de saúde da população, os cruzamentos “promíscuos”3 ocorridos no Brasil desde os tempos coloniais. Esta concepção identifica que o país havia produzido um povo degenerado, instável, incapaz de desenvolvimento progressivo. A outra corrente de pensamento, a higienista, adotada por Belisário Penna e seguida por outros médicos higienistas, em consonância com o Estado, sonhava com um Brasil moderno, depositava no crescimento e no progresso das cidades brasileiras os sinais da conquista da civilização.

Ainda no contexto da República, Lima e Hochman (2000, p. 314) elaboram a hipótese de que “o movimento pelo saneamento teve um papel central e prolongado na reconstrução da identidade nacional a partir da identificação da doença como elemento distintivo da condição de ser brasileiro”. Nesse sentido, o movimento pretendia adotar medidas sanitárias para combater as doenças que atacavam brasileiros e os identificava como portadores de incapacidade física e moral para assumir a condição de cidadãos, o que impedia o alcance do progresso. A década de 1920 é considerada como a fase de maior politização do movimento sanitário do Brasil. Apesar de a zona rural ser a mais atingida pelas endemias, as políticas públicas na área de saúde se limitavam às cidades e grandes centros urbanos. Conforme Santos (1985, p. 9), “o amarelão atacava 70% da população, 40% eram vítimas da malária e a doença de Chagas atingia 15% da população rural”.

Para enfrentar as endemias, foi criada a Delegacia Nacional de Saúde Pública, que aumentou a atuação do Governo Federal nos limites das capitais, portos marítimos e fluviais, mas também estendia sua preocupação às doenças da população do interior. A região Nordeste foi objeto de ação federal e a Bahia ficou entre os estados assistidos pelas políticas nacionais de saúde. Ao instituir e incorporar, em 1920, a Delegacia Nacional de Saúde Pública, o Ministério da Educação e Saúde Pública tinha como objetivo organizar administrativamente a educação e a saúde no Brasil, mas, de acordo com Hochman (2005, p. 129), em 1930 “ainda havia o desafio da febre amarela na capital e portos litorâneos, e da malária pelo interior”. Isto significa que, mesmo após dez anos de atuação, a referida delegacia precisava enfrentar as crises de febre amarela e de malária que ainda estavam presentes em centros urbanos importantes do país.

Os serviços de educação e de saúde, oferecidos de forma restrita e precária à população brasileira, eram considerados os dois entraves ao progresso do País, uma vez que, de acordo com Santos (1985), havia inúmeros problemas com as endemias que assolavam a população brasileira e o índice de analfabetismo, em 1920, chegava aos 70%. Esse índice relacionado ao número de analfabetos do País nas primeiras décadas do século XX, um dado que já chamava atenção, será o mesmo encontrado para o estado da Bahia, no final da década de 1950, uma vez que o estado ainda permanecia “na humilhante casa dos 70% de analfabetos, no total da população geral” (BAHIA, 1957, p. 8). Portanto, mais de trinta anos depois, o estado da Bahia permanecia com a mesma estimativa de analfabetos apontada para o Brasil no Censo de 1920. Este fato foi parte da justificativa para ser instituída na Bahia a Campanha Nacional de Educação Rural com o fito de tentar minorar a defasagem educacional.

Gustavo Capanema assumiu o Ministério da Educação e Saúde em 1934; três anos mais tarde, em 1937, provavelmente utilizando a proposta sugerida por Belisário Penna na década de 1920, recorrendo à Lei nº 378, de 13 de outubro de 1937 (BRASIL, 1937), realizou a divisão do Brasil em oito zonas sanitárias, dotando cada uma com delegacias regionais de saúde. O estabelecimento das delegacias regionais de saúde possibilitou, na perspectiva de Hochman (2005, p. 137), um “reordenamento da estrutura administrativa da saúde pública que, com sua incorporação em novos formatos e conteúdo à agenda oficial do governo, demandou uma nova especialização: o profissional de saúde empregado pelo Estado”. Entendemos que a demanda da “nova especialização” deu início a uma solicitação para a organização de um trabalho conjunto de saúde pública e educação, tendo em vista a necessidade de implantação de um sistema nacional escolar. O perfil e as habilidades requeridas para os novos profissionais de saúde e de educação foram delineando-se lentamente, a partir do final da década de 1930. Quando foi instalada a CNER, na década de 1950, havia uma carência de profissionais técnicos especializados, principalmente professores, para atuar nas Missões Rurais da Campanha.

Durante a gestão de Capanema foram organizados e instituídos os Serviços Nacionais de Educação e Saúde e as Conferências Nacionais de Saúde, cujo objetivo era reunir e discutir nacionalmente a educação. Na primeira Conferência Nacional de Saúde, realizada no Rio de Janeiro, entre os dias 10 e 16 de novembro de 1941, uma das propostas aprovadas foi, segundo Hochman (2005, p. 134), “a manutenção da possibilidade de acordos entre estados e governo federal para que este desenvolvesse diretamente ações de saúde, preferencialmente no combate às endemias rurais”. As preocupações com a saúde da população rural estavam diretamente vinculadas às doenças infectocontagiosas que provocavam perigo à coletividade. Esta inquietação promoveu uma institucionalização mais estruturada da saúde pública e demarcou a atuação do Ministério da Educação e Saúde. A organização do sanitarismo brasileiro no Estado Novo permitiu a consolidação dos cursos de higiene e saúde pública no Instituto Oswaldo Cruz e nas faculdades de Medicina, e o deslocamento de médicos brasileiros para especialização em universidades norte-americanas. Segundo Hochman (2005, p. 138),

O período do Estado Novo, na administração de Gustavo Capanema como Secretário da Educação e Saúde, em particular, organizou, centralizou e profissionalizou a Saúde Pública, mantendo-a formalmente associada ao ideário de construção da nacionalidade por meio de um Estado forte e autoritário.

As considerações de Hochman (2005) indicam que é sob o comando de Gustavo Capanema, durante o Estado Novo, que se consolida a condução da educação pública como responsabilidade da União e a criação do Sistema Nacional de Educação. Sob a perspectiva do sanitarismo e do higienismo, praticados na década de 1950, a zona rural ainda era considerada como espaço propenso a assimilar os ciclos de doença e pobreza como inerentes a este espaço. Lima e Hochman (2000, p. 314) consideram que havia uma busca por um “projeto modernizador que nos desse garantia de uma sintonia com o progresso” e ainda permanecesse centrado no combate às principais endemias do início da República, a exemplo da ancilostomíase, também chamada de amarelão, que era combatida pelo Serviço de Profilaxia Rural, criado desde 1918 em parceria com a Fundação Rockfeller, mas, ainda em 1952, acometia as comunidades assistidas pela CNER.

Saneamento, instrução e moralização para o desenvolvimento da Bahia na década de 1950: estratégias da Campanha Nacional de Educação Rural

As propostas de intervenção sanitária que foram apresentadas no programa da missão rural da CNER no município de Pinhal, em Minas Gerais, e foram disseminadas em outros estados, continham um plano de atividades publicado pelo Departamento Nacional de Educação que discriminava as tarefas a serem executadas em curto prazo. A principal estratégia do plano de atividades era o combate ao amarelão, nome popular da ancilostomíase, causada pelo parasita Ancylostoma duodenale ou Necatur americanos, que deveria ser discutido com a comunidade tendo em vista inseri-lo nas medidas de prevenção à doença.

De acordo com o livro Endemias Rurais (BRASIL, 1968), publicado pelo Ministério da Saúde em 1968, a doença poderia ser contraída de duas formas: na primeira, pelo indivíduo quando anda com os pés descalços, caso em que o verme penetra na pele, migra pela derme para os capilares passando pelo coração, pulmões e intestino delgado, local onde se instala e passa a viver; a segunda forma de contágio é a oral, pela ingestão dos alimentos contaminados porque não foram bem higienizados ou foram malcozidos, facilitando a penetração do verme diretamente no intestino delgado. Os sintomas decorrentes da ancilostomíase são hemorragia, anemia, perda de peso, tosse, lesões na pele e falta de apetite, que ocasionam cansaço e fraqueza generalizada ao indivíduo infectado.

A estratégia educativa, realizada pela CNER, para combater o amarelão consistia no ensino de medidas preventivas e recomendação de tratamento administrado por intermédio do posto de saúde, que também se encarregava de repassar informações para os professores, alunos e sitiantes. As ações para combater a endemia eram compostas pela realização de exame clínico nas crianças, encaminhamento dos afetados pelo verme ao posto de saúde e estabelecimento da semana da verminose, na qual eram realizadas palestras que informavam sobre a doença do amarelão e buscavam esclarecer à população sobre as formas de transmissão, as medidas necessárias para evitá-la, suas consequências e as formas de tratamento.

Para auxiliar e potencializar as estratégias da campanha educativa contra o amarelão foram selecionados profissionais das áreas de saúde, educação e engenharia, denominados de “missioneiros”, denominação que estabelece grande aproximação com o conceito de missionários religiosos. De acordo com Brito (1999), no contexto das décadas de 1940 e 1950, os capuchinhos saíam de Salvador em direção ao interior, aos sertões do estado da Bahia para ministrar sacramentos e ações sacerdotais direcionadas para evangelizar e estender aos católicos do interior valores e concepções de moral e respeito à Igreja Católica. A exemplo dos religiosos, os técnicos vinculados ao projeto da CNER também faziam visitas domiciliares, realizavam palestras e exibiam filmes educativos para prevenir a ancilostomose, cujos sintomas eram cansaço e fraqueza generalizada que possivelmente dificultavam o trabalho com a terra. Entretanto, a despeito de combater a “doença do Jeca Tatu”, promoviam ações voltadas a um processo civilizatório que combatiam hábitos e costumes de sertanejos não alfabetizados adoecidos, açodando-os a aderir às normas recomendadas por uma educação sanitária dirigida por professores e médicos treinados para realizar esta missão civilizatória.

As principais intervenções nas comunidades, direcionadas à prevenção e ao combate do amarelão, foram a instalação de sanitários, fossas secas, a melhoria das condições de limpeza e a orientação para o cozimento dos alimentos. Estas ações foram realizadas por meio das reuniões com clubes de mães, clubes agrícolas e os pelotões de saúde que atuavam nas escolas primárias. É importante observar que, no interior da Bahia, além do processo de organização comunitária baseado em “clubes”, um conceito de origem inglesa, segundo Ferreira (1999), “Associação de pessoas com o objetivo de promover debates em torno de matéria de interesse comum [...]”, foram utilizados os “pelotões de saúde”, um conceito militar, empregado por instituições da saúde pública para transmitir a formação de novos hábitos de higiene com evidente propósito de desqualificar as tradições, saberes e costumes de moradores da zona rural do Recôncavo e do sertão da Bahia, porque também os consideravam como analfabetos e ignorantes que, como sugere Carvalho (2013), deveriam, mediante uma educação sanitária, assimilar os hábitos de higiene preconizados por ações pedagógicas e médicas instituídas no país desde 1912.

Analisando o açodamento de médicos sanitaristas, educadores, intelectuais e políticos, Monarcha (2009) considera que havia o ímpeto de recorrer às suas referências científicas e morais para realizar “uma intervenção médica no corpo social para reativar a circulação do fluido da vida do país” e exaltar “a posse do saber dotado de poder de cura dos males que afligiam a nação”. Nesse sentido, o sertão e/ou zonas rurais da Bahia acometidas pelos signos do amarelão, da doença de Chagas e de outras endemias figuram como obstáculos que deveriam ser removidos por meio de ações preventivas e educativas capazes de curar as moléstias para regenerar o corpo doente do país. Ainda segundo Monarcha (2009), o sanitarismo, como processo de intervenção médica no corpo social, passa a ser tomado pela pedagogia, que argumentava a urgência da reconstrução social pela confiança na educação e na saúde consideradas em si mesmas como o estado de saúde.

Apesar de pouco nítidas, imagens ofuscadas publicadas na Revista da CNER nº 8 (BRASIL, 1959, p. 251) revelam, de acordo com a legenda, a “construção do encanamento de água, proteção do manancial, construção de banheiros públicos e lavadores para roupas na comunidade de Sapucaia”, para demonstrar as intervenções técnicas da “missão rural”. Para ampliar a visibilidade desta “missão”, a CNER recorreu à parceria com a prefeitura de Cruz das Almas a fim de dar ênfase a duas ações: transferência de tecnologias e promoção de mediações pedagógicas com a utilização da mão de obra dos moradores da comunidade de Sapucaia. O propósito era formar trabalhadores da comunidade para se tornarem replicadores destas “ações preventivas”. As intervenções indicam que a campanha sanitária executada na comunidade rural não se restringiu ao combate ao amarelão, mas promoveu eventos relacionados à estratégia de manutenção do modelo sanitário.

É importante deixar claro que o objetivo não era apenas realizar a prevenção das endemias, mas a obtenção do controle das comunidades rurais. Para King Hall (1950a, p. 8), havia necessidade de “executar um programa amplo de assistência médico-social, fomentar a produção agrícola em escala sem precedentes, modernizar as técnicas de trabalho, desenvolver e aproveitar as fontes de energia, sanear o meio rural”. As recomendações desse autor, realizadas no contexto da proposição e implantação da educação rural, indicam que a CNER pretendia realizar ampla interferência nas comunidades rurais, onde atuava promovendo o fomento à produção agrícola, utilização das fontes de energia, passando inclusive pela modificação da habitação dos moradores, tendo em vista redirecionar o sistema de cultivo, voltado para a subsistência familiar e a comercialização de pequeno excedente nas feiras e mercados locais, para uma produção agrícola em “escala sem precedentes”, voltada para o mercado de consumo do país e do exterior.

Entendemos que a questão sanitária preconizada e ensaiada pela CNER destinava-se à criação de ações profiláticas necessárias à adoção de um modelo produtivo voltado para o mercado consumidor que exigia um padrão sanitário adotado nos Estados Unidos e em países europeus. Isto significa que, no contexto do desenvolvimentismo, já se aprofundava a ampliação e o melhoramento do processo de exportação de mercadorias agrícolas, os commodities, o que servia para induzir a uma estratégia mais ampla, de introduzir as zonas rurais em um processo produtivo, um modo de vida, direcionado para o mercado capaz de “fomentar a produção agrícola sem precedentes” (HALL, 1950a, p. 8). Produzir em grande escala para os mercados também indica que haveria ampliação da demanda de produtos e equipamentos agrícolas produzidos pela indústria e fomentados pelo capital financeiro.

A esse respeito, é importante compreender a análise do problema da economia baiana realizada por Clemente Mariani (1977), em 1957, no mesmo período de atuação da CNER. Em sua análise sobre o processo de desenvolvimento econômico, Mariani (1977, p. 78) considera que, para a Bahia alcançar o progresso firme e contínuo, fazia-se necessário que as lavouras fossem “capazes não somente de proporcionar um maior equilíbrio a sua economia, como, sobretudo, criar uma base de saída para a sua industrialização”. Movido por esta concepção, quando participou da Assembleia Constituinte de 1945, Mariani (1977) propôs, negociou e aprovou duas emendas à Constituição fundidas em uma só na redação final: criar a Comissão do Vale do São Francisco4 e destinar 1% da renda tributária da União para elaborar um plano de desenvolvimento para a região do Vale do São Francisco que deveria ser executado durante 20 anos.

Contudo, a preocupação de Mariani (1977, p. 68) com a região era mais ampla, identificava que era necessário resolver com urgência problemas fundamentais, quais sejam, corrigir a calamidade do analfabetismo, debelar as endemias urbanas e rurais, melhorar o miserável padrão de vida das populações e combater a tuberculose, a esquistossomose, as verminoses e a doença de Chagas, entre outras.

A leitura atenta das informações do ensaio indica que o posicionamento adotado por Mariani remonta a sua participação política durante o Governo Dutra, ocasião em que, como ministro da Educação atuou “[...] junto da universidade da Bahia, [...] para a criação de cursos técnicos voltados para as necessidades locais [...] e agiu também para ampliação das escolas técnicas de Salvador” (MARIANI, 1977, p. 92).

Após detalhada análise para “o equacionamento do problema” da economia baiana, apresentou, entre muitas outras, propostas para a educação das quais apresentamos apenas aquelas relacionadas às ações e estratégias utilizadas pela CNER. Mariani (1977) propôs suplementar a ação educativa do Estado para construir escolas para o ensino primário, com a manutenção de cursos de adultos para formar capatazes na escola de agronomia; quanto às modalidades de ensino médio e superior, propôs a ampliação de cursos profissionais de magistério e de cursos técnicos, sobretudo de agronomia, petróleo, geologia, química, mecânica, eletromecânica, entre outros interessantes ao início do desenvolvimento de um movimento industrial. Observamos que Mariani compreendia muito bem a importância de organizar um plano de desenvolvimento baseado na profunda exploração dos recursos naturais, apostando na capacidade de ampliar em escala geométrica a produção agrícola do Estado para servir como indutora da industrialização. Para alcançar esse estágio, em sua concepção, era necessário que moradores das zonas rurais tivessem condições mínimas de saúde e educação agrícola e técnica direcionada para o desenvolvimento da Bahia.

Nesse sentido, é possível observar que as intervenções das missões da CNER orientavam moradores a adotar novas tecnologias no manejo e profilaxia do plantio, e principalmente na construção de habitações das comunidades das zonas rurais,5 para substituir as casas de taipa tradicionais do sertão pelas de alvenaria construídas com tijolos, revestidas à base de cal para servir de modelos.

Imagens da Revista da CNER (BRASIL, 1959) comparam os dois tipos da habitação com a finalidade de mostrar ao público leitor a forma como eram realizadas a construção e a reconstrução das casas no âmbito das Missões Rurais da CNER. Ao examinar o argumento apresentado na legenda: “o gosto e a ideia do conforto nas habitações foram se aperfeiçoando ao contato das missões rurais” (BRASIL, 1959, p. 136), é possível perceber que os missioneiros se esforçaram para demonstrar que, apesar daquelas localidades se situarem distantes dos grandes centros urbanos e não dominarem as tecnologias de construção em alvenaria, era possível adotar os conceitos, modelos e padrões de construções das casas recomendados e adquiridos nas cidades para perceberem o que significa o “gosto e a ideia de conforto nas habitações” (BRASIL, 1959, p. 136).

Sendo assim, exemplares das construções orientados, possivelmente, por engenheiros das “missões” tinham objetivos claros: mostrar que as edificações e as tecnologias das casas de taipa eram precárias; mesmo que fossem adaptadas às condições de temperatura e luminosidade dos sertões, eram consideradas singelas e rústicas porque oriundas de saberes de moradores da zona rural. Assim, é possível depreender que os construtores usavam a tecnologia da alvenaria tanto para demonstrá-la como superior, porque atendia a um padrão estético largamente utilizado nas cidades, quanto para gerar uma ação educativa com pretensões de ensinar noções de ordenamento espacial à comunidade.

Nessa perspectiva, as referidas imagens divulgadas na revista da CNER (BRASIL, 1959) pretendiam comparar as construções para distinguir as casas de taipa6 daquelas de alvenaria.7 Para dar destaque ao último modelo, a CNER providenciou a edificação de Centros Sociais de Comunidades com paredes de alvenaria e cobertos por telhas de argila ou cerâmica, nas áreas assistidas na Bahia, mobilizando a participação de moradores através do sistema de mutirão, envolvendo-os no modelo de construção para ampliar o efeito de demonstração.

As atividades de construção de casas e centros cumpriam vários propósitos, quais sejam: repassar novas tecnologias de construção a serem apropriadas de forma coletiva, em mutirão, por moradores da zona rural e destinar o centro social, um equipamento, para o uso comunitário para servir de padrão.

Com esse propósito, foi instalado o centro social do distrito de Cachoeirinha, no município de Senhor do Bonfim, na Bahia. De acordo com relatos da missão rural, a construção

[...] obedece a todos os bons requisitos, estando bem situada, em local alto e arejado, com excelente vista, dando frente para a linha férrea, situada a 150 metros de distância; esse espaço é destinado ao plano de arborização e jardinagem. O salão oferece boa iluminação, pois consta de 6 janelas, sendo 4 laterais e 2 na frente, e 5 portas, das quais uma na frente, duas atrás (no fundo) e 2 que dão acesso aos cômodos laterais; estes também possuem janelas. (BRASIL, 1959, p. 37).

Tais construções deviam servir de referências às outras edificações habitacionais, que consistiam em um salão com 6m X 9m, ou seja, 54m2 e boa iluminação, no qual eram realizados os festejos e as reuniões dos clubes existentes na comunidade. Dois outros cômodos abrigavam um ambulatório médico e um posto de revenda de produtos agrícolas. A sede do centro social da comunidade era uma referência às novas construções escolares e habitacionais, tendo em vista que consistia em casas de estruturas arejadas que atendiam mais a estética urbana do que rural, já que propunham “planos de arborização e jardinagem” (BRASIL, 1956, p. 37) mesmo que estivessem edificadas em territórios caracterizados por ampla e diversificada produção agrícola; supostamente seguras das raras intempéries - chuvas e ventos -, em áreas do sertão cujos índices de precipitação pluviométrica são extremamente baixos, eram justificadas pelo combate ao protozoário Tripanosoma Cruzi, popularmente chamado de “barbeiro”, ou doença de Chagas, que era recorrente no meio rural da Bahia.

É importante frisar que o trabalho de saneamento da saúde realizado pelas missões rurais dentro da Campanha Nacional de Educação Rural (CNER) extrapolava, em muito, sua proposta de ensinar mediante a transferência de novas tecnologias e concepções estéticas urbanas destinadas à edificação de novas habitações. Suas ações se voltavam para orientar os moradores das zonas rurais a assimilar o ordenamento orientado por outra cultura: a realização e manutenção da limpeza do espaço físico, assim como a organização das residências de acordo com o padrão apresentado por moradores da zona urbana; estimular os moradores a se “preocupar com sua apresentação pessoal” (BRASIL, 1956, p. 38), isto é, consumir os bens e os serviços amplamente utilizados por moradores de centros urbanos como modelo a ser seguido.

A esse respeito foi possível observar no relatório trimestral, de julho a setembro de 1956, sobre o distrito da Passagem Velha, município de Senhor do Bonfim, o que a missão rural da CNER, ou funcionários denominados de missioneiros, registrou: “quanto aos hábitos higiênicos, temos anotado relativa melhoria, pois os sócios têm tido ultimamente melhor apresentação no vestuário e, assim, individual” (BRASIL, 1956, p. 38). Importa observar que esta relativa “melhoria [...] dos hábitos higiênicos” (BRASIL, 1956, p. 38) pode significar tanto a mudança de atitudes quanto a incorporação de padrões de consumo pessoais e coletivos que não faziam parte dos modos de viver de grupos moradores da zona rural. Foi com esta pretensão que o setor médico sanitário das missões na Bahia, durante o mesmo trimestre, percorreu outros distritos do mesmo município para intervir nas comunidades promovendo palestras sobre hábitos sadios, orientação do regime dietético, ensinamentos do valor nutritivo e dos modos de preparação das sopas e os benefícios do aleitamento materno para as crianças. Assim, as ações desenvolvidas pela CNER não se limitaram a uma intervenção sanitária compreendida no sentido estrito - pontual e físico -, mas atuou para demonstrar modos de organizar, compreender e atuar na sociedade, direcionando suas concepções éticas e morais para a adoção de um novo modelo de desenvolvimentismo interessado em induzir a pequena produção ao processo de desenvolvimento.

É nesse percurso que o governo projeta a necessidade de ampliação da oferta de instrução básica capaz de possibilitar a preparação de força de trabalho qualificada para suprir a demanda do crescente mercado industrial que marcava a década de 1950. Todavia, é importante atentar para a consideração de Moreira (1959)8 quando afirma que, apesar da tendência de transformação industrial das principais nações do mundo, “ninguém mais pode ser, como nação, exclusivamente industrial” (BRASIL, 1959, p. 88), é necessário ser também uma potência agrícola e, por isso, “O Brasil terá que ser um país agricultor, tanto quanto manufatureiro, quer para atender às suas necessidades de abastecimento, quer para poder manter-se no mercado internacional mediante a diferenciação e o aperfeiçoamento dos seus produtos agrícolas” (BRASIL, 1959, p. 89).

As considerações apontadas por esse relatório possibilitam reafirmar que havia a intenção da Campanha Nacional de Educação Rural de promover de forma antecipada ações pedagógicas destinadas a preparar produtores e comunidades de zonas rurais da Bahia para estabelecer relações mais amplas, tanto com o mercado de consumo de insumos agrícolas produzidos pela indústria, quanto para selecionar e ampliar a produção agrícola e manufaturada destinadas a atender às demandas dos mercados interno e externo. Assim, buscava aprimorar os requisitos de qualidade na produção de produtos primários para atender aos padrões de exigência do mercado internacional capitalista voltado para grandes transações comerciais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As campanhas direcionadas para o saneamento e a educação dos sertões e zonas rurais da Bahia tinham como pressupostos realizar, através destas intervenções, o combate às doenças epidêmicas do amarelão, sífilis e da febre amarela; promover um processo educativo demarcado por concepções de modernização, progresso e desenvolvimento formuladas por médicos e sanitaristas do Rio de Janeiro e de Salvador ancoradas em concepções de um processo civilizatório que pretendia estendê-las aos moradores dos sertões e das zonas rurais da Bahia.

Todavia, ao examinar relatórios de inspetores de saúde e jornais das primeiras décadas do século XX e o contexto epidemiológico de Salvador, Souza (2009) adverte que também áreas periféricas da cidade passavam por sérias crises e nelas a “miséria era uma porta aberta à infecção” (SOUZA, 2009, p. 51), decorrência da falta de condições da população empobrecida; a cidade era insalubre e havia sérios problemas nos sistemas, tanto de abastecimento d’água, como de esgotamento sanitário, já que faltavam redes de esgoto e grassava a malária; águas servidas, dejetos e detritos das casas corriam em esgoto a céu aberto.

Os médicos desempenharam papel decisivo na organização do projeto higienizador voltado à modernização da cidade, conforme destaca Leite (1996). Propuseram criar instalações urbanas coletivas, redes de assistência pública e, principalmente, promover reformas e controle social recorrendo à colaboração de outros profissionais, agentes políticos, religiosos e governamentais. Se a proposta de modernização da elite profissional sugeria aliar os poderes civis e religiosos para realizar o controle social deste “sertão doméstico”: o subúrbio e a periferia de Salvador, para aquele distante sertão do São Francisco, traduzido em imagens contrastantes, ícones da seca, da fome, da doença e da ignorância, a expectativa dos médicos e sanitaristas era, como sugere Brito (1999), realizar cruzada educativa, uma campanha social de educação do povo para modificar hábitos e costumes enraizados e promover a regeneração dos modos de vida catingueiros qualificados como bárbaros.

A respeito desta tensão, Monarcha (2009) vislumbra no posicionamento de médicos, intelectuais e acadêmicos das grandes cidades a ansiedade de construir a nação por meio da educação, para curar o corpo doente do país. Para tanto recorrem à adoção do sanitarismo como política pedagógica de intervenção médica no corpo de moradores dos sertões da Bahia.

Todavia, a Campanha Nacional de Educação Rural (CNER) implantada em 1952 orientou os significados das expressões saneamento, educação rural e instrução na direção da transferência de tecnologias de construção civil, agrícola e associativa, tendo em vista tanto recorrer a estratégias de mediação pedagógicas para formar técnicos, quanto orientar as inter-relações saneamento e educação à construção de valores morais direcionando-as a inserir modos de organizar a produção de subsistência de moradores das zonas rurais da Bahia para mercados que emergiram ao processo do desenvolvimentismo do país em 1950.

Nesse processo, a zona rural do país, e especificamente da Bahia, foi objeto de intervenção do Estado com o propósito de organizar as condições necessárias para inseri-la no contexto do desenvolvimento. Neste sentido, o Estado adotou medidas pedagógicas para informar sobre as condições médico-sanitárias a serem adotadas para: minorar a ocorrência de doenças endêmicas; transferir modelo de habitação; usar a mão de obra local na construção de centros e clubes sociais; utilizar referências tecnológicas e estéticas urbanas, fora do contexto das culturas material e climática de moradores da zona rural; organizar processo de associação voltado à divulgação de concepções ética e moral direcionadas à assimilação de conceitos e práticas de consumo de equipamentos e insumos com o objetivo de produzir produtos agrícolas e manufaturados de acordo com os padrões determinados e aceitos pelo mercado internacional.

Observamos que compreendiam muito bem a importância de organizar um plano de desenvolvimento baseado na profunda exploração dos recursos naturais, apostavam na capacidade de ampliar, em escala geométrica, a produção agrícola do Estado para servir de indutora da industrialização; para alcançar esse estágio, essa concepção recomendava ser necessário que moradores das zonas rurais tivessem condições mínimas de saúde e educação agrícola e técnica direcionada para o desenvolvimento da Bahia.

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1Oswaldo Cruz é reconhecido como fundador da higiene científica no país e considerado precursor do saneamento no Brasil. Criador do Instituto de Patologia Experimental, morreu em fevereiro de 1917.

2Fundação norte-americana criada em 1913 com a missão de promover estímulo à saúde pública, ao ensino e à pesquisa. No Brasil encontrou uma tradição de pesquisa bacteriológica e deu início às suas atividades no Rio de Janeiro em 1916. As campanhas patrocinadas pela Fundação Rockefeller contra a ancilostomíase e a febre amarela representaram os principais eventos na saúde pública baiana durante a década de 1920.

3O surgimento da eugenia brasileira foi condicionado pela situação racial do país, nação racialmente híbrida, resultado da fusão de indígenas, africanos e povos europeus (STEPAN, 2004).

4Artigo 29 das disposições transitórias e criação do governo do Presidente Dutra.

5A Revista da CNER (BRASIL, 1959) inseriu fotografias sobre a reconstrução das casas das zonas rurais que assistia, mas não foi possível uma boa reprodução das imagens que demonstram os dois tipos de habitação.

6Construídas com estrutura de madeira e barro, a técnica de edificação de parede é à base de argila e cascalho molhados e pilados, que são socados com as mãos e cobertos com palhas.

7Construídas com tijolos/adobes e cobertas por telhas de cerâmica.

8João Roberto Moreira, sociólogo catarinense, auxiliou Anísio Teixeira no INEP na década de 1950, início da década de 1960, coordenou a Campanha Nacional de Erradicação do Analfabetismo, produziu diagnósticos e refletiu sobre as relações entre educação e desenvolvimento no Brasil.

Recebido: 20 de Março de 2020; Revisado: 03 de Agosto de 2020; Aceito: 08 de Agosto de 2020

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