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Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade

versão impressa ISSN 0104-7043versão On-line ISSN 2358-0194

Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade vol.29 no.60 Salvador out./dez 2020  Epub 24-Ago-2021

https://doi.org/10.21879/faeeba2358-0194.2020.v29.n60.p17-30 

DOSSIÊ TEMÁTICO

O (IM)POSSÍVEL DE EDUCAR EM TEMPOS DE CRISE: PSICANÁLISE E EDUCAÇÃO CRÍTICA

THE (IM)POSSIBLE TO BE EDUCATED IN TIMES OF CRISIS: PSYCHOANALYSIS AND CRITICAL EDUCATION

EL (IM)POSIBLE DE EDUCAR EN TIEMPOS DE CRISIS: EL PSICOANÁLISIS Y LA EDUCACIÓN CRÍTICA

Marta Regina Furlan de Oliveira*  (UEL)
http://orcid.org/0000-0003-2146-2557

Cleide Vitor Mussini Batista**  (UEL)
http://orcid.org/0000-0002-2213-1496

*Pós-doutorado em Educação pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP). Doutora em Educação pela Universidade Estadual de Maringá (UEM). Professora adjunta do Departamento de Educação e do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Estadual de Londrina (UEL). E-mail: mfurlan.uel@gmail.com

**Pós-doutorado em Psicologia pela Universidade de São Paulo (USP) e em Psicanálise pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Doutora em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Professora associado da Universidade Estadual de Londrina (UEL). E-mail: cler.psico@gmail.com


RESUMO

A psicanálise comunga com a educação crítica a preocupação com a subjetividade humana, uma vez que provoca investimentos e emoções que permitem reflexões em tempos de crise, principalmente ao inspirar no professor um permanente retorno a si mesmo, ou seja, a autorreflexão. Esse texto objetiva buscar, na relação entre psicanálise e educação crítica, possíveis referências para além do olhar psicologizante educacional que se firma em caminhos restritos da educação e da formação docente. O aspecto fecundo desta relação entre a psicanálise e a crítica da cultura evidencia o pensar educativo pelos limiares da ética e da sensibilidade com/pelo o outro. A metodologia, de caráter bibliográfico, pauta-se na apropriação de uma leitura frankfurtiana do pensamento de Freud, em que denuncia a formação pautada na adaptação do sujeito e, pela relação entre as bases teóricas, anuncia uma educação comprometida com ações emancipatórias do saber escolar.

Palavras-chave: Educação; Contemporaneidade; Psicanálise; Teoria crítica

ABSTRACT

Psychoanalysis shares with critical education the concern with human subjectivity, since it provokes investments and emotions that allow reflections in times of crisis, mainly by inspiring in teachers a permanent return to themselves, that is, self-reflection. This paper aims to seek, in the relationship between psychoanalysis and critical education, possible references beyond the educational psychologizing view that firms itself on restricted paths of education and teaching formation. The fruitful aspect of this relationship between psychoanalysis and the culture criticism highlights educational thinking through the thresholds of ethics and sensitivity with/for the other. The method, with a bibliographic character, is based on the appropriation of a Frankfurtian reading of Freud's thought, in which he denounces the formation based on the adaptation of the subject and, by the relationship between the theoretical bases, announces an education committed to emancipatory actions of school knowledge.

Keywords: Education; Contemporaneity; Psychoanalysis; Critical theory

RESUMEN

El psicoanálisis comparte con la educación crítica la preocupación por la subjetividad humana, ya que provoca inversiones y emociones que permiten la reflexión en tiempos de crisis, principalmente al inspirar en el profesor un retorno permanente a sí mismo, es decir, la autorreflexión. El presente texto tiene por objeto buscar, en la relación entre el psicoanálisis y la educación crítica, posibles referencias más allá de la visión psicologizante de la educación que se afirma en los caminos restringidos de la educación y la formación docente. El aspecto fructífero de esta relación entre el psicoanálisis y la crítica de la cultura pone de relieve el pensamiento educativo a través de los umbrales de la ética y la sensibilidad con/por el otro. La metodología, de carácter bibliográfico, se basa en la apropiación de una lectura francfortiana del pensamiento de Freud, en la que denuncia la formación basada en la adaptación del sujeto y, por la relación entre los fundamentos teóricos, anuncia una educación comprometida con las acciones emancipadoras del conocimiento escolar.

Palabras clave: Educación; Contemporaneidad; Psicoanálisis; Teoría crítica

Palavras iniciais

A Psicanálise não pode interessar à Educação salvo no próprio campo da Psicanálise, isto é, pela psicanálise do educador e da criança. (MILLOT, 1987, p. 157).

Em tempos atuais, é nítido o incentivo para o desenvolvimento das competências e habilidades em relação ao processo educativo e formativo dos sujeitos envolvidos. Essa tendência educacional moderna, que aparentemente é democrática por defender alunos autônomos que buscam o conhecimento de maneira independente nos diversos recursos existentes, auxilia na produção de sujeitos sem subjetividade. Desde seu início, a educação é uma forma de (im)posição de novas maneiras de se comportar, de ver o mundo, de se adaptar à sociedade em que se vive.

Segundo Zuin (2012, p. 9), “[...] há uma violência implícita no processo de ensinar e aprender. E o professor, pelos muitos anos que o aluno permanece na escola, particularmente na sociedade contemporânea, é o representante primeiro da polis para realizar essa função”. A sociedade, por sua vez, segundo esse autor, estabelece e acompanha o que deve ser ensinado, ou seja, por meio de costumes, normas e leis dá ao professor o suporte material para a condução do processo educacional.

Ao considerarmos, pela ótica psicanalítica, a função materna como fundante da educação, compreendemos o ato educativo como estruturado a partir das experiências primordiais, sem as quais nossa existência ficaria comprometida, e não o ato educativo como ação que desenvolve habilidades e competências e oferece formação em nível meramente institucional. Em Zuin (2012, p. 10), “o aluno, desde criança, se desenvolve à contramão de sua natureza primeira, antes se adapta ao que lhe impõe a sociedade que constrói a autonomia de seu eu [...]”. Ainda, é acometido de descrença e desencanto, cada vez maior, de que o processo educacional e formativo lhe possa de fato proporcionar uma melhor qualidade de vida.

Dessa forma, indagamos: Qual seria o possível lugar da civilização e da educação na constituição do sujeito? A Psicanálise pode transmitir ao professor uma ética, um modo de ver e de entender sua prática educativa? Este saber pode gerar uma intencionalidade de trabalho na ação docente?

Para responder tais indagações, temos que pensar no debate sobre a educação em tempos de crise (século XXI) e nos reportarmos às questões da instituição escolar enquanto um dos espaços formativos contemporâneos e não necessariamente o mais importante. Em Freud (1981e), há a compreensão de que, antes da escola, a criança vivencia experiências psíquicas por um tempo longo e significativo. Em Adorno (1995) há, também, a compreensão acerca da formação a partir de uma determinada condição social assumida pelo contexto histórico. Adorno (1995), nesse sentido, deposita na escola poucas possibilidades de emancipação frente à barbárie civilizada.

Esta barbárie civilizada direciona para dois lados cruciais no processo educativo-formativo:

De um lado, o sadismo pedagógico dos mestres, que desde tempos remotos sentem prazer em castigar, diante de seus colegas de classe, os alunos que erram; de outro lado, os sentimentos de amor e ódio dos discípulos em relação aos seus mestres, sentimentos que, igualmente, acompanham a profissão de ensinar desde seus inícios e que, em tempos de tecnologias da informação e comunicação, ganham destaques, intensidade e dramaticidade. (ZUIN, 2012, p. 10).

Por conseguinte, em relação aos professores, “é necessário eliminar quaisquer limitações e obstáculos existentes na realidade que dão suporte aos tabus com se cercou o magistério” (ADORNO, 1995, p. 114). Sobretudo, no que se refere à formação docente “é necessário tratar aqueles pontos nevrálgicos ainda na fase de formação dos professores, em vez de orientar a sua formação pelos tabus vigentes” (ADORNO, 1995, p. 114).

Nesse sentido, refletimos que se ao esforço da educação for aliada uma perspectiva psicanalítica e crítica, pode-se pensar em um sentido parcialmente eficiente no que tange à formação humana. Na esfera educacional somos desafiados a refletir e atuar de modo comprometido com a desnaturalização da concepção de subjetividade, com a ruptura da lógica patologizadora, instrumental e discriminatória. Cabe rompermos com os reducionismos, com visões adaptativas do conhecimento e tecer narrativas outras.

Essa reflexão busca avançar na problemática que a formulação do (im)possível de educar nos delega em relação aos pontos de atravessamento entre a educação e as práticas escolares humanizadoras do ensino. Freud, no Prefácio àJuventude Desorientada” de Aichhorn (FREUD, 1980a) e no texto Análise Terminável e Interminável (FREUD, 1980b), alerta que educar, psicanalisar, governar são “ofícios impossíveis” porque se exercem nesse movimento necessário, que não cessa de fluir, que escapa, portanto, a toda apreensão pelo conceito.

A psicanálise entende que é impossível que o ato de educar garanta um desempenho elevado e regular dos gestos profissionais; que a noção de competência é bastante vacilante para se fixar como razão; que o fracasso do empreendimento educativo é sempre constitutivo; que toda racionalidade técnica e metodológica é impedida de excluir o insucesso e o erro.

Lacan (2005, p. 58) salienta que “as pessoas não percebem muito bem o que querem fazer quando educam [...] e são tomadas pela angústia quando pensam no que consiste educar”. Na realidade, um professor vive essa angústia sob o signo da impotência ao estar diante das incertezas de seu ato, das pulsões, das manifestações da sexualidade de si e do outro, das ambivalências, das invariantes diagnósticas, das irrupções da violência, do desinteresse e da apatia dos alunos, além de estar diante de sujeitos em sua pura diferença, tendo que exercitar o legítimo imperativo social de fazê-los incluídos. Ou seja, é como se o professor se sentisse paralisado catatonicamente ao saber e ter de lidar com os afastamentos, os diversos modos de aprender, a experiência subversiva da agressividade e da sexualidade e se afirmar: “Não sei mais o que fazer! Não tem mais jeito! Frente a isso me sinto impotente!”.

Assim, esses ofícios impossíveis se tornam possíveis sem, contudo, ter a garantia de que eles venham a obter resultados tangíveis e definitivos. E salientamos que aqui reside a angústia: não ter a garantia. Ao contrário, os resultados têm a ver, de um lado, com o real, o impossível, portanto, o não mensurável e, ainda, com a contingência, que é também imprevisível. Em outras palavras, “isso requer processos formativos pautados no respeito às alteridades e práticas de liberdade entretecidos com a construção da ética, da cidadania, da democracia e referenciais de justiça” (SCHWARZ; BARBOZA, 2020, p. 119). Assim, para Adorno (2010, p. 13):

A formação devia ser aquela que dissesse respeito - de uma maneia pura com seu próprio espírito - ao indivíduo livre e radicado em sua própria consciência, ainda que não tivesse deixado de atuar na sociedade e sublimasse seus impulsos. A formação era tida como condição implícita a uma sociedade autônoma: quanto mais lúcido o singular, mais lúcido o todo.

Desse modo, esse ensaio teórico tem como objetivo principal buscar na relação entre psicanálise e educação crítica possíveis referenciais formativos que vão para além do olhar psicologizante da educação e da formação docente. Ao considerarmos o aspecto fecundo desta relação é possível pensar a educação em tempos de crise, bem como construir horizontes de sentido e de esperança. A metodologia, de caráter bibliográfico, pauta-se na apropriação de uma leitura frankfurtiana do pensamento de Freud, em que denuncia a formação pautada na adaptação do sujeito e anuncia uma educação comprometida com ações emancipatórias em contraposição ao praticismo reinante nas intervenções educativas e formativas.

Essa forma adaptativa da educação promove a crise ou falência do ensino que, ancorada por um ideal de sujeito, tem buscado um tipo de sociedade e de humanidade. Esta crise ou falência revela certa racionalidade sobre o indivíduo, visando dominar e oferecer garantias à ordem social e utilitarista. Em contraposição a este modelo de educação e formação, buscamos em Adorno (2010) a autoridade do professor enquanto possível sustentáculo humano do processo educacional-formativo do aluno.

Por esse ângulo, a estrutura do texto se pauta em quatro momentos didaticamente separados, mas que no movimento do pensamento são correlacionados: a) contextualização da civilização na constituição do sujeito via psicanálise e educação crítica; b) reflexão sobre a escola enquanto lócus do conhecimento dialético com o outro; c) a psicanálise, a educação crítica e o sentido de educar em tempos atuais; d) em formato conclusivo, a psicanálise e a condução da ética na educação.

Destarte, intencionamos apresentar e caracterizar à luz da reflexão crítica os ditames formativos estabelecidos, bem como a ausência do compromisso com a vida humana em sua subjetividade, que denomina no termo utilizado por Adorno (1995) como crise da formação. Ainda, a relação entre a psicanálise e a educação crítica como momento de travessia em busca de uma educação ética e comprometida com a formação íntegra dos sujeitos sociais pelas confluências entre o espírito e a autonomia que, de certa forma, constitui o conceito de formação (ADORNO, 2010). Desse modo, o homem deve ser um cidadão de seu tempo, integrando-se no conhecimento e no desenvolvimento das potencialidades humanas. Ainda, precisa ser um crítico de seus dias, problematizar as injustiças existentes sem se permitir ser dominado pelo coletivo.

A civilização na constituição do sujeito: temida e, ao mesmo tempo, sagrada

A questão da finalidade da vida humana já foi posta inúmeras vezes. Jamais encontrou resposta satisfatória, e talvez não a tenha sequer. Muitos dos que a puseram acrescentaram: se a vida não tiver finalidade, perderá qualquer valor. (FREUD, 1981e, p. 20).

A civilização moderna, temida e, ao mesmo tempo, sagrada, tem levado ao limite novas formas de intensificação dos estímulos ligados à característica indomável da pulsão, ou de verdadeiras “drogas”, nos dizeres de Türcke (2010), desviando a consciência dos homens de sua constituição no mundo. Pelas lentes psicanalíticas freudianas há a percepção de uma sociedade em que pessoas usam de medidas falsas e buscam poder, sucesso e riqueza para si mesmas subestimando os autênticos valores da vida. Correm o risco, num julgamento genérico, de esquecer a variedade do mundo e da vida humana e psíquica.

Freud (1981e) afirma que nós, homens civilizados, trocamos nossas possibilidades de felicidade por uma parcela de segurança. A vida, segundo esse autor, proporciona ao homem muitos sofrimentos, decepções, tarefas impossíveis de serem realizadas. O sofrimento ameaça o homem em três direções: o próprio corpo fadado à decadência; o mundo externo que pode voltar-se contra ele com forças de destruição; o relacionamento com os outros como sendo a fonte do sofrimento mais penoso.

Desse modo, há a suposta fragilidade do indivíduo, compensada pela adesão a uma ilusão coletiva que, na maioria das vezes, é representada por um líder e ou ideal, tal como descreveu Freud (1981e). O sentimento de onipotência gerado por fazer parte de um grupo compensa a percepção da própria fragilidade, ou, ainda, “a ferida narcisista serve ao narcisismo coletivo” (CROCHÍK, 2011, p. 54).

Contudo, não se trata da desvalorização dessas práticas, mas sim de atentar para o reconhecimento de tais limites. Reconhecê-los não significa recuar diante das tarefas adjetivadas de impossíveis por Freud, mas, todavia, atentar-se para o processo civilizatório quanto à moral, por vezes repressora e que se materializa na sociedade moderna.

Entretanto,

Existem homens que não deixam de ser venerados pelos contemporâneos, embora sua grandeza repouse em qualidades e realizações inteiramente alheias aos objetivos e ideais da multidão. Provavelmente se há de supor que apenas uma minoria reconhece esses grandes homens, enquanto a maioria os ignora. Mas a coisa pode não ser tão simples, devido à incongruência entre as ideias e os atos das pessoas e à diversidade dos seus desejos. (FREUD, 1981e, p. 10).

Ao relacionar com os postulados freudianos, compreendemos no texto Totem e tabu (FREUD, 1981b), a questão do mito em relação às origens da cultura com recursos teóricos não só psicanalíticos, como também antropológicos e sociais. A palavra “tabu” significa misterioso, impuro, proibido, mas também sagrado. O que é visto por uma sociedade deve guardar o aviso de que não deve ser tocado, tendo em vista que se trata de algo temido e, ao mesmo tempo, sagrado (FREUD, 1981b).

Para Freud (1980b), “os demônios” que habitam o tabu dizem respeito às projeções das pulsões que podem vir a ameaçar a sociedade. O tabu poderia consistir em coisas que variavam desde uma árvore a outro objeto qualquer. O toque no tabu poderia acarretar algo de grande risco devido ao seu poder, que se manifestaria no momento em que um indivíduo burlasse a lei de não o tocar. Assim como os códigos de lei, o tabu procura barrar ações contrárias a uma certa manutenção da ordem social.

As penalidades decorrentes da violação do tabu eram atribuídas, primeiramente, ao próprio tabu. Posteriormente, a punição viria dos deuses, a partir do momento no qual eles foram vinculados ao tabu. O tempo que culminou com a punição realizada pela própria sociedade encontra-se próximo ao nosso sistema de leis e normas, no qual a sociedade representada pelo judiciário dita a pena a ser cumprida pelo réu. Um outro exemplo reside na instituição moderna escolar, marcada por normas escolares. O tabu, assim como as leis da contemporaneidade, encontra sua eficácia no temor causado aos indivíduos. O tabu provocava temor ao restringir o acesso ao que seria o prazer ou a liberdade, dentre outras possibilidades de satisfazer a pulsão (FREUD, 1980b).

Ultrapassar as regras relativas ao tabu acarretava uma punição. O indivíduo deveria ser punido, pois o seu ato era a manifestação de impulsos inconscientes que poderiam levar a uma desordem capaz de desestruturar um grupo; poderíamos acrescentar − uma instituição. O tabu emerge, portanto, como algo não somente coercitivo, mas também como elemento de coesão. O responsável pela violação do tabu torna-se, ao mesmo tempo, um tabu; essa medida procura garantir que os demais não tenham ações de forma semelhante.

O processo civilizatório impõe ao sujeito uma renúncia pulsional, ou seja, o impossibilita da completa e derradeira satisfação. Sobre isso, vemos em Adorno (1995) que é preciso contrapor-se à barbárie, principalmente no contexto educacional, a fim de construir e disseminar um novo olhar, um olhar adversário de todas as formas de barbárie, principalmente no que se refere ao pensar no sujeito que está à margem. Considerar as minorias vexadas que ainda não superaram os processos pouco perceptíveis impostos pelos detentores do poder. Por isto, é importante, do ponto de vista social, que as instituições formativas assumam sua função emancipatória na formação humana, auxiliando crianças, adolescentes e jovens na tomada de consciência do “pesado legado de representações que carrega consigo (ADORNO, 1995, p. 117).

Ao retomar a civilização, no tocante ao campo educacional dos sujeitos, Freud, um homem da era vitoriana, pôde ver um grande fator para a constituição da neurose; contudo, a cultura, no mesmo golpe que faz instalar a neurose como um dos impedimentos à satisfação da pulsão, também funciona como uma abertura à atuação do princípio do prazer e do desejo. Sobre esse assunto, Türcke (2010) considera que essa neurose apontada por Freud nada mais é do que os fenômenos/efeitos do mundo contemporâneo, no caso. Ainda, situa o cotidiano social e cultural mais tangível em relação aos processos psíquicos e sociais imemoriais e, de certo modo, explica que as neuroses são reflexos de compulsões de sujeitos à repetição e ao sensacionalismo.

A Escola, o Conhecimento e o Outro

Tal conhecimento não produz um efeito paralisante; pelo contrário, ele mostra à nossa atividade a direção que deve tomar. (FREUD, 1981e, p. 29).

A escola é responsável por transmitir conhecimento, mas parece que não só o acúmulo desse, de forma passiva, está em questão. A demanda educativa pressupõe o trabalho de um sujeito do desejo que irá buscar o conhecimento. A pergunta que fica para os alunos é: o que o professor quer de mim? Ou melhor, o que o Outro quer de mim? Contudo, satisfazer o que o Outro quer do sujeito diz respeito a uma condição objetal. Entretanto, a resposta à demanda do Outro pode se constituir como um trabalho do sujeito frente ao Outro e à sua própria condição objetal que lhe é inerente.

Assim, a demanda educativa pode pressupor na criança um sujeito do desejo que seria capaz de metaforizar tal demanda. Assim, caberia ao aluno transformar a demanda educativa em um modo próprio de se apropriar do ensino, transformando-a em desejo de outra coisa. Entretanto, por vezes, a demanda educativa na instituição escolar se mostra excessiva, distanciando-se da garantia de um lugar para as subjetividades humanas. Há uma tendência formativa, na escola, em expressar os modelos sociais mais amplos e, que em alguns casos, é notória a presença do autoritarismo, da discriminação, do preconceito, da dominação, do silenciamento de corpos e de pensamentos por meio das vidas silenciadas.

[...] as vidas silenciadas desde o pacto colonial até as políticas neoliberais estão cada vez mais presentes, alimentando uma pseudoideia, de um progresso com oportunidade para todos, mas, na prática, impacta e anestesia os pensamentos críticos e criativos, desarticula lideranças e aliena os sujeitos por todo o continente (BALBINO; SILVA; SAIKI, 2020, p. 147).

Em Adorno (1995), no texto Tabus acerca do magistério, esse autor referenda a escola enquanto lugar do estabelecimento como esfera da própria vida e dotada de legislação própria. Acrescenta: “certamente, na medida em que as pessoas da escola não permitem interferências, o fechamento da escola sempre tende a se enrijecer, sobretudo face a crítica” (ADORNO, 1995, p. 115).

Por conseguinte, a essência da ação educativa, se é que poderíamos afirmar desse modo, não está “por trás” somente da sua expressão didático-pedagógica, mas, sobretudo, deve vincular o ato educativo com uma racionalidade crítico-reflexiva. Desse modo, segundo Silva (2019, p. 15), “pensar sobre a prática educativa significa mobilizar a reflexão sobre o sentido de ‘educar’, isto é, refletir sobre sua racionalidade formativa diante dos acontecimentos do mundo contemporâneo”.

A práxis da educação pode ser, por certo viés, entendida como uma transmissão de saber que advém do Outro. Desse modo, aquele a ser ensinado recebe um traço do Outro e é na medida em que se apega a tal traço que poderá vir a nele se alienar, distanciando-se, em certa medida, daquele que sustentou o lugar do Outro. Destacamos a palavra “assemelha-se”, pois o sujeito em vias de advir responde parcialmente à demanda do Outro. Inserimos, assim, a dimensão da diferença, no momento em que a criança pode vir a fazer outra coisa que não buscar responder fielmente à demanda do adulto.

Todavia, diante desses pressupostos psicanalíticos em consonância com os fundamentos filosóficos adornianos, ao se referir ao processo de adaptação, repetição servil de uma cultura ou do “outro” (contexto social), revela a “cegueira em coletivos”, quando pessoas são dissolvidas como seres autodeterminados, principalmente quando são consideradas pelo outro como indivíduos pertencentes a uma massa amorfa (ADORNO, 1995).

Ao relacionar com a criança, para Adorno (1995) há a necessidade de uma investida na primeira infância, principalmente quando as ações educativas dirigidas à criança estão envolvidas por processos de desumanização e de coisificação do pensamento via caráter manipulador de quem oferece. Será nesse processo que algo pode vir a restar, a cair, instaurando o vazio que marca a constituição do sujeito do desejo − tão caro à educação e à psicanálise. Na transmissão implicada na práxis da educação, ou no ato educativo, nas palavras de Lajonquiére (2009), um traço é transmitido, buscando assemelhar, dito de outro modo, educar ao formatar aquele que aparece como diferente, tornando-o semelhante. Contudo, no mesmo golpe, o torna diferente, já que o saber, agenciado por aquele que se deixa educar, revela-se parcial, ou seja, não constitui uma resposta conclusiva à pergunta pelo desejo do Outro.

Quando se ensina algo a uma criança, por um lado, a fantasia do adulto comparece, fazendo com que a iniciativa do ato educativo diga respeito ao seu próprio desejo; de outro, transmite-se uma lógica operativa que transcende tal campo. E por quê? Porque se trata da transmissão de um fragmento cultural, de algo que está para todos, cabendo a cada um se haver com isso, o que faz com que o estar da criança na escola, até mesmo o seu aprendizado, constitua-se como uma oferta de laço social. Vale destacar que, no processo abordado nas linhas anteriores, temos o sujeito como efeito da operação da falta no Outro, que leva consigo a diferença que estava em questão no início do processo educativo (entre aluno e professor).

Nessa direção, podemos inferir que a educação comporta uma transmissão, mas não se exaure nela e, até mesmo, coloca-se em evidência quando as práticas pedagógicas “ortopédicas” entram em cena (FREUD, 1981e). Em sintonia com os limiares da teoria crítica e dos pensadores da Escola de Frankfurt, há nesse conceito - práticas pedagógicas ortopédicas - a fragilidade de uma cultura formativa ou a educação convertida ao caráter antirreflexivo, em seu praticismo, no sentido de permanecer estanque em relação ao próprio conceito, ou seja, é a educação pautada na severidade, disciplina rígida, dureza e indiferença ao outro, próprios da produção material da vida refletida pela barbárie.

Desse modo, a educação precisa combater a frieza produzida intencionalmente, conhecendo os aspectos que a produzem. Segundo Adorno (1995, p. 136), “o conhecimento desses mecanismos é uma necessidade”. Contudo, por mais que haja aproximações, faz-se necessária a diferenciação entre a pedagogia e a educação no que tange às consequências de ambas para o sujeito. Trata-se, pois, de uma crítica à falta de diálogo entre professor e aluno ou de respeito à singularidade de cada um, junto com a possibilidade de o próprio professor aprender com o que o aluno pode vir a lhe ensinar numa relação dialética e humanizadora do ensino.

Quanto ao lugar ocupado pelo professor, Ranciére (2005) propõe o de orientador de um caminho apontado pelo próprio aluno. Trata-se daquele que se situa em um outro lugar diante da obra, haja vista ela já ter passado em um momento outro. A proposta de Ranciére (2005) é a de que essa certa distância entre o professor e aquilo a ser transmitido pode vir a abrir possibilidades outras de leitura da obra. Poderíamos afirmar, no bojo da presente pesquisa, que se trata da aposta de que o aluno/a criança possa vir a inventar algo na escola a partir da sua própria singularidade − o que pode ser um ponto de partida para a aprendizagem e para uma educação contra a barbárie.

Psicanálise, Educação Crítica e o Sentido de Educar

O pensamento aguarda que, um dia, a lembrança do que foi perdido venha despertá-lo e o transforme em ensinamento. (ADORNO, 1995, p. 10).

A relação entre psicanálise e educação vem de longa data, principalmente no que se refere ao interesse freudiano pela pedagogia na intenção de predispor uma melhor compreensão por parte dos professores sobre o desenvolvimento da criança e do adolescente (FREUD, 1981b). À luz dos preceitos de Freud, afirmamos que os professores exercem grande influência sobre a criança por estarem investidos da relação afetiva primitivamente dirigida ao pai. Os sentimentos de admiração e de respeito são transferidos do pai para o professor, assim como a "ambivalência afetiva" que reside na antítese amor-ódio.

Mesmo sem nos ter deixado escrito algo sobre a educação, realçamos que, em toda a obra de Freud há uma inquietude constante com as questões desse campo formativo, no sentido de que a psicanálise, nascendo de uma prática clínica, constrói um corpo teórico fundamentando uma nova concepção de mundo e de homem, como ser histórico, social e cultural, e tenta compreender como se dá a inserção desse homem na cultura. Os textos Totem e Tabu (FREUD, 1981b), O porvir de uma ilusão (FREUD, 1981d) e O mal-estar na civilização (FREUD, 1981d), de Freud, expõem sua visão evolutiva tanto do indivíduo como da cultura, considerando o desenvolvimento do homem numa interação com o meio social.

Crochík (2011, p. 19), urdido dos fundamentos frankfurtianos em sintonia com as contribuições de Freud, revela que a “formação do indivíduo ocorre na relação sujeito-objeto e a distinção entre esses dois polos e a predominância de um deles sobre o outro apresentam problemas na sua constituição”. Há em nosso tempo, e até mesmo contexto da escola, a dificuldade de identificação expressada pela identificação negada e pela ausência de identificação, ou seja, “se os homens não podem mais se identificar por meio de suas diferenças, mas somente por meio de uma racionalidade que de meio se converteu em fim, a identificação resultante é a negação da própria identificação” (CROCHÍK, 2011, p. 29).

Ao relacionar essa negação do indivíduo com a educação, abstraímos do texto de 1927, O porvir de uma ilusão (FREUD, 1981d), a preocupação freudiana em relação ao problema da educação e, desse modo, o texto é como um testamento pedagógico. A pressão que a sociedade exerce sobre o indivíduo desde sua infância, a partir da educação, faz com que a criança se conforme a uma realidade, que é, de regra, a de dissimular sua investigação e seu conhecimento de tudo o que possa se relacionar à sexualidade. A finalidade da educação é a instauração do princípio de realidade, ou seja, é permitir ao indivíduo, submetido ao princípio do prazer, a passagem de pura satisfação das pulsões para um universo simbólico, que faz referência a uma lei, a lei da castração, que se associa ao processo de adaptação e impedimento da subjetividade humana. A entrada no universo simbólico se dá pela linguagem. É pela mediação da palavra, à qual, desde sempre a criança encontra-se submetida, que é possível a simbolização das relações afetivas (ARMANDO, 1974).

É essa condição de ser submetido à linguagem que diferencia o homem dos outros animais, caracterizando-o em sua especificidade, ao mesmo tempo em que permite a constituição de sua subjetividade. A psicanálise, ao colocar a linguagem como marca do humano, possibilita uma aproximação com as questões da educação, principalmente no que diz respeito à importância que o professor deve atribuir àquilo que a criança diz e pensa, bem como ao que é dito a ela. Em Arendt (2013), a criança, desde seu início, deve ser apresentada ao mundo e estimulada a mudá-lo pelo processo de educação e emancipação que Adorno (1995) tão claramente defende.

Outra importante contribuição da psicanálise para a educação é encontrada em autores que foram influenciados também pela releitura lacaniana da obra de Freud. Mannoni (1973) observa que, na relação professor-aluno, é criada uma barreira entre o um professor “que sabe tudo” e um aluno “que não sabe nada”, que garante e contém um conjunto de proteções e resistências. A pedagogia funciona como um drama que repete muitas vezes situações da família. Na escola, o desejo de saber do aluno se confronta com o desejo do professor, que está ligado a um ideal pedagógico colocado por ele mesmo, desde o início, e que se interdita ao mesmo tempo em que se mostra ao aluno. O professor espera do aluno um saber que lhe falta, e o aluno, por sua vez, se defende com medo de se ver frustrado no produto do seu trabalho. O aluno se encontra numa relação de poder, sujeito a um desejo inconsciente do professor, que pode chegar a ser bloqueador ou proporcionador do pensar e agir suprimidos. Crochík (2011) afirma que a subjetividade não se desenvolve mais a partir da interiorização da cultura como outrora, porque a experiencia, no limite, foi suprimida.

Assim,

A existência de um eu presente em cada reflexão que permite a continuidade; e, portanto, a história individual é substituída pela mudança contínua do indivíduo que deve se adaptar a cada nova situação, abandonando o que sabia anteriormente. É mais adaptável o que não tem princípios e convicções, o que percebe as regras existentes em cada situação e as utiliza a seu favor para atingir seus objetivos, nem sempre racionais. (CROCHÍK, 2011, p. 18).

Para Mauco (1979), o professor age sobre a criança muito mais no nível do inconsciente do que do consciente. Ele não age apenas pelo que diz ou pelo que faz, mas sim pelo que é. As relações afetivas acontecem de formas variadas. Cada um procura satisfazer seus desejos inconscientes. Todavia, a criança, por ser frágil psiquicamente, com um eu que deve se construir à imagem dos adultos em sua volta, é particularmente atingida pelos desejos inconscientes de seus educadores. Crochík (2011, p. 18-19) nos direciona para o olhar as práticas docentes que se amoldam e se expressam ao menos de duas maneiras:

[...] na ingenuidade e no oportunismo. Assim, o ingênuo se adapta sem pensar, julgando que sua atitude não tem consequências importantes para os outros e para sim mesmo; o oportunista justifica essa mesma atitude definindo que os ‘homens são assim mesmo’, ‘todos têm de se virar’ e, assim, deve-se, com certeza, ludibriar os outros para se obter o que deseja.

Sendo assim, ressaltamos que não basta a criança possuir uma inteligência e uma saúde física satisfatórias para se desenvolver e se afirmar na aprendizagem escolar. É necessário também que tenha uma educação afetiva que lhe permita desenvolver uma sensibilidade relacional com os outros, podendo se servir de suas capacidades físicas e intelectuais. A escola é um meio de grande importância para esse desenvolvimento das relações afetivas da criança com os adultos, assim como também com as outras crianças da mesma idade. É também na escola que a criança deve aprender a se relacionar com o outro em diálogo permanente, se constituindo em trocas com todos aqueles a sua volta (PEDROZA, 1993).

Não obstante, há que se considerar que a criança, ao chegar à escola, traz consigo uma experiência relacional vivida com a família, com um inconsciente com todas as suas frustrações e recalcamentos de seu drama interior, com seus desejos, sua história, se exprimindo pela sua simbolização, e esses pressupostos freudianos dialogam com Adorno (1995) ao elucidar que a essência do homem é a diferença. A pedagogia, portanto, poderia procurar se articular com essa expressão simbólica de cada educando em sua individualidade a partir das múltiplas situações oferecidas pelo coletivo educativo institucional e suas diferentes formas de propostas pedagógicas, principalmente no que tange ao oferecimento à criança da oportunidade de verbalizar suas tensões.

É dessa maneira que a psicanálise pode auxiliar o educador, possibilitando uma compreensão profunda e complexa do sujeito, no que ele tem de mais pessoal e de mais íntimo. Para tal, é necessário que a escola se distancie da relação submissa e passiva diante da “autoridade” que, muitas vezes, é refletida no autoritarismo docente. Sobre isso, Oliveira (2019, p. 79), ao tratar da educação e do papel de professores à luz dos fundamentos arendtianos, evidencia que a questão da autoridade legítima docente não deve residir na violência e ou na força, tampouco na persuasão, pois “persuadir implica que a relação se estabeleça numa esfera de igualdade, haja vista que a eficiência da ordem se dá pelo melhor argumento”. Desse modo, acrescenta essa autora que “uma relação mediada pela violência angaria obediência, mas uma obediência por medo, e não por respeito, não pode ser considerada como um projeto de autoridade e de educação” (OLIVEIRA, 2019, p. 79). Para tanto, a relação professor-aluno depende, em grande medida, da maturidade afetiva do professor. Se esta lhe permite resolver suas próprias dificuldades, ele poderá ajudar a criança a viver e a resolver as suas angústias subjetivas.

Mauco (1979, p. 167) ainda acrescenta que, ao reagir afetivamente, “eles me põem doida”, o adulto perde sua superioridade e a autoridade de sua função educativa, que exige, ao mesmo tempo, “muito apego para compreender a criança, e muito desapego para não reagir subjetivamente”. É numa relação de diálogo e de escuta que a educação será uma relação de respeito à pessoa da criança. Respeito e compreensão ao seu comportamento e às etapas de seu desenvolvimento psíquico e afetivo.

Para Bigeault e Terrier (1978), a contribuição da psicanálise para a educação é um fato, como também o é para outros campos, como a arte e a publicidade, por exemplo. Segundo esses autores, a psicanálise deu uma nova visão para os seguidores de Rousseau, os do movimento da Escola Nova, passando pela psicologia social. No entanto, ao mesmo tempo em que essas duas posições parecem se aproximar, há entre elas um abismo. O que falta nas pedagogias modernas é considerar questões de grande importância para a psicanálise, tais como a frustração, a agressividade, o conflito e o Édipo, como constituintes da estruturação da personalidade. Por outro lado, elas se aproximam, principalmente ao acentuar a importância da energia no interior do sujeito e sua relação com o mundo exterior.

A premissa fundamental da psicanálise é a diferenciação do psíquico em consciente e inconsciente. E sua grande utilidade é, sem dúvida alguma, a tentativa de trazer o inconsciente até o consciente, levando as repressões e preenchendo as lacunas mnêmicas, pois, como Freud (1981c) afirmou, seu objetivo era de traduzir em teoria os resultados da observação, sem nenhuma obrigação de sua parte de alcançar, numa primeira tentativa, uma teoria completa que se referende por sua simplicidade. Para a psicanálise, toda e qualquer ligação do sujeito com o mundo significa investimento afetivo. Dessa maneira, são de grande importância para a educação os resultados das investigações psicanalíticas, que reivindicam para os processos afetivos a primazia na vida psíquica.

E, diante disso, inferimos que essa relação entre psicanálise e educação potencializa a autorreflexão crítica a partir da qual a desbarbarização seja possível, principalmente no que tange à desarticulação da escola com a vida da criança, adolescente e jovem na qual a conhecemos, vivenciamos e perpetuamos.

Considerações finais: a psicanálise e a condução da ética na educação

É hora de nos voltarmos para a essência desta civilização, cujo valor para a felicidade é posto em dúvida. (FREUD, 1981e, p. 32).

Ao retomar o objetivo geral deste texto, nossos desafios são postos para pensar o (im)possível de educar em tempos de crise. Quando esse pensar tem um misto de psicanálise e educação crítica, há um horizonte de possíveis mudanças no campo formativo escolar. Essa abertura possível para a mudança estaria interligada a uma ética na educação e na formação de professores, ou seja, um modo de ver e entender a prática educativa por meio da consideração do papel do desejo no aprender, incluindo a curiosidade, sua origem e as relações que têm com a curiosidade intelectual. Ainda, nesse modo ético de pensar a educação, há a importância da vida humana e o funcionamento da transferência na relação pedagógica. Contudo, é preciso lembrar que a Psicanálise não “é uma construção intelectual que resolve todos os problemas de nossa existência” e, sim, “a fonte de um pensamento sobre o homem e a condição humana” (CHILLAND, 1993, p. 19).

A obra Os condenados da terra, de Frantz Fanon (1968 apud FREIRE, 2014) é uma referência valiosa no que diz respeito à condição humana no mundo. Ao dar-se conta da grande contradição na condição humana (opressores e oprimidos), delineia uma perspectiva a partir dos “condenados da terra”, objetivando discutir e evidenciar os males sofridos pela humanidade, que é cotidianamente negligenciada, esquecida e roubada enquanto condição histórica e social. Deste olhar, a obra provoca uma necessidade de consciência crítica que, pode ser revelada na relação psicanálise e educação, principalmente no que tange à luta pela humanização, pela libertação da opressão de tantos que têm sua dignidade (desde criança) tolhida, numa morte (castração) em vida, uma existência apagada, esquecida e excluída na condição de demitidos da vida.

Ante a desumanização social e escolar, há a esperança de que, por meio da transformação ética, haja possibilidade de pensar a vida pelo processo de escuta sensível do outro e com o outro. Quando os adultos conseguem “escutar” a vontade de saber das crianças, é possível favorecer experiências prazerosas com o aprender. Como resultado temos: a pulsão de investigação se refere ao entendimento de perguntar ao outro e perguntar a si mesmo.

O aprender passa pela via do desejo, ou seja, o desejo recorta os campos do aprender. O que explica o sentido atribuído aos objetos do conhecimento são os desejos do sujeito da aprendizagem. Um inventário de tais desejos responde não só pelas escolhas, mas pela ênfase dada a parcelas deste objeto, bem como a transformação que sofre para atender a estes desejos. Menos do que interpretá-los, deve o profissional educacional considerá-los como partícipes decisivos das posições assumidas por quem aprende.

Para isso, o caminho formativo passa a ser esboçado como conquista desejosa da aprendizagem e não como imposição dela. Para tanto, é necessário que haja a tomada de consciência crítica e sensível sobre esta realidade marcada por uma consciência hospedeira da opressão que tem provocado a dispersão, a acomodação, o ajustamento do oprimido que normaliza a submissão num cenário social e afetivo de mutismo e de alienação.

É preciso dar-se conta da falta de algo para termos a necessidade da procura (curiosidade, desejo) e isso constitui o primeiro passo para o jogar, o brincar. Quanto maior a entrega, maior a possibilidade de criação, pois a falta se amplia a cada novo passo desde que se mantenha aberto o terreno da curiosidade. A interação abre espaço para perguntas, para conhecer o outro com quem se tem interesse e relacionamento, ao mesmo tempo em que cria condições de que o indivíduo se mostre com suas diversas facetas. Em ambiente de liberdade, que é uma conquista entre professores e alunos, promove-se uma permanente busca que só existe no ato responsável de quem a faz.

O caráter movente dos conflitos, das dúvidas, dos anseios na evolução psicossexual descrita por Freud reforça a importância dos conflitos para o desenvolvimento em geral e, em particular, para o desenvolvimento psíquico. Se o conflito move, do ponto de vista cognitivo, pondo em funcionamento e fazendo avançar toda uma série de hipóteses e teorias que não só visam satisfazer necessidades, mas são criadoras de necessidades, este mecanismo deve ser valorizado na perspectiva eticamente pedagógica. Esta valoração vem por meio do estímulo do professor pelos limiares da tolerância e do movimento de busca daqueles sujeitos (crianças, jovens e adultos) inconclusos.

Uma concessão especial deve ser feita à vida subjetiva das crianças e alunos, sendo que, segundo Crochík (2011, p. 30), “a educação deve ser voltada para a diferenciação”, que se dá pelas relações sociais e educativas, e, ainda, pela linguagem. Afirma esse autor que quanto mais rica a linguagem entre os sujeitos sociais, aqui, no caso, professores e crianças, mais experiências podem ser expressas e o indivíduo pode ser mais diferenciado. Cada palavra, portanto, implica a possibilidade da narração da experiência, que só se realiza na expressão e comunicação para os outros. Sua importância também é grande na atuação de quem ensina, pois na paixão de formar do professor estão envolvidas as subjetividades de formação, de criação e de deformação que mobilizam e sustentam sua posição pedagógica, e nas quais radicam parte do êxito da aprendizagem de seus alunos (SILVA, 2019).

Desse modo, inferimos que a sensibilidade e a ética na educação devem se voltar para diferenciar, entretanto, se elas buscam o sempre igual, então estão convertidas em frieza. Desse modo, a liberdade enquanto possibilidade de resistência à reificação da vida e das relações humanas deve ser exaltada onde se anunciar. Uma de suas formas de expressão e de possibilidade de educar em tempos de crise é a crítica que não se limita a aperfeiçoar o existente por meio de “moldes” educativos, mas se desperta para o papel dos sujeitos envolvidos pelo compromisso de transformação e com engajamentos formativos em prol de um mundo mais humanizado. Para isso, Benjamin (2016, p. 244) contribui ao se referir à preservação das as experiencias da vida ante o refreamento da experiencia autêntica, sendo possível “despertar no passado as centelhas da esperança” por meio da transformação social da cultura e da educação.

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Recebido: 24 de Julho de 2020; Revisado: 09 de Dezembro de 2020; Aceito: 11 de Dezembro de 2020

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