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Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade

versión impresa ISSN 0104-7043versión On-line ISSN 2358-0194

Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade vol.29 no.60 Salvador oct./dic 2020  Epub 24-Ago-2021

https://doi.org/10.21879/faeeba2358-0194.2020.v29.n60.p42-53 

DOSSIÊ TEMÁTICO

REFLEXÕES SOBRE A “EPIDEMIA” DE DEPRESSÃO EM ADOLESCENTES E JOVENS ADULTOS À LUZ DA RELAÇÃO ENTRE A PSICANÁLISE E A POLÍTICA

REFLECTIONS ON THE “EPIDEMIC” OF DEPRESSION IN ADOLESCENTS AND YOUNG ADULTS FROM THE PERSPECTIVE OF THE RELATIONSHIP BETWEEN PSYCHOANALYSIS AND POLITICS

REFLEXIONES SOBRE LA "EPIDEMIA” DE DEPRESIÓN EN ADOLESCENTES Y JÓVENES ADULTOS A LA LUZ DE LA RELACIÓN ENTRE EL PSICOANÁLISIS Y LA POLÍTICA

Viviane Neves Legnani*  (UnB)
http://orcid.org/0000-0001-6362-1443

Sandra Francesca Conte de Almeida**  (UnB)
http://orcid.org/0000-0003-0789-7095

*Doutora em Psicologia pela Universidade de Brasília (UnB). Professora Associada da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília (UnB). E-mail: vivilegnani@gmail.com

**Doutora em Ciências da Educação pela Université René Descartes - Sorbonne - Paris. Professora aposentada do Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília (UnB). E-mail: sandrafcalmeida@gmail.com


RESUMO

O artigo tem por objetivo refletir sobre os impactos de um dos eixos da neurocultura, que é a medicalização de adolescentes e jovens adultos. Discute criticamente o diagnóstico médico de Transtorno Depressivo, à luz da relação entre a psicanálise e a política, e discorre sobre a problemática da depressão no contemporâneo como um sintoma social. Apresenta uma vinheta clínica para ilustrar essa discussão e conclui destacando a importância de um reposicionamento discursivo da escola por meio de processos de subjetivação política em face da lógica adaptativa neoliberal, amplamente arraigada nessas instituições.

Palavras-chave: Transtorno depressivo; Psicanálise; Política; Subjetivação política

ABSTRACT

The article aims to reflect on the impacts of one of the axes of neuroculture, which is the medicalization of adolescents and young adults. It critically discusses the medical diagnosis of Depressive Disorder through a discussion between psychoanalysis and politics and discusses the problem of depression in the contemporary as a social symptom. It presents a clinical vignette to illustrate this discussion and concludes by highlighting the importance of a discursive repositioning of the school through processes of political subjectivation in the face of the neoliberal adaptive logic, widely rooted in these institutions.

Keywords: Depressive disorder; Psychoanalysis; Politics; Political subjectification

RESUMEN

El artículo tiene como objetivo reflexionar sobre los impactos de uno de los ejes de la neurocultura, que es la medicalización de adolescentes y jóvenes. Discute críticamente el diagnóstico médico del Trastorno Depresivo, desde la perspectiva de la relación entre psicoanálisis y política, y discute el problema de la depresión en lo contemporáneo como síntoma social. Presenta una viñeta clínica para ilustrar esta discusión y concluye resaltando la importancia de un reposicionamiento discursivo de la escuela a través de procesos de subjetivación política frente a la lógica adaptativa neoliberal, ampliamente arraigada en estas instituciones.

Palabras clave: Trastorno depresivo; Psicoanálisis; Política; Subjetivación política

Este artigo tem por objetivo tecer algumas reflexões sobre a “epidemia” de depressão que estaria acometendo adolescentes e jovens adultos na atualidade. Segundo dados da Organização Mundial de Saúde (2017), mais de 300 milhões de pessoas sofrem de Transtornos Depressivos no mundo. Tais quadros relacionam-se com o aumento de casos de suicídio, sendo essa problemática considerada um desafio significativo para a saúde pública do nosso país, por ser a segunda causa de morte evitável de adolescentes e jovens adultos na faixa etária entre 15 e 24 anos (BRASIL, 2019).

Por meio da articulação entre psicanálise e política, apresentaremos algumas considerações sobre as queixas de sofrimento psíquico relativas à depressão na cultura de uma sociedade excessivamente medicalizada. Ortega (2009) destaca a materialização do fenômeno da neurocultura em nosso contexto social pelo progresso das tecnologias neurocientíficas, as quais, invadindo o senso comum, atrelaram supostas disfunções e funções da atividade cerebral a quase todos os aspectos da vida das pessoas, sendo crescente a percepção do cérebro como “autor” das ações do sujeito no mundo. Com forte impacto nas mídias, reverbera hoje em todos os campos da sociedade, ocupando espaço significativo inclusive nas políticas públicas de saúde e educação.

Um dos ancoramentos mais expressivos da neurocultura é a psiquiatria biológica, que ganhou destaque nas últimas décadas pelo prestígio social alcançado com as drogas psicofarmacológicas. Nessa concepção de psiquiatria, o Transtorno Depressivo seria uma doença crônica, com etiologia genética e refratária ao encorajamento da vontade e do pensamento do sujeito. Este ficaria assolado por algo que estaria além da sua capacidade de reação, cabendo-lhe, então, manter a rotina de visitas aos consultórios médicos para ajustes das doses de psicofármacos (COPPEDÊ, 2016).

Para Lacan (1985a), o sujeito se orienta perante o discurso universal em que está inscrito, pois se encontra na linha “da dança desse discurso” e, nesse sentido, ele mesmo é esse discurso. Sob essa ótica, pode-se afirmar que os humanos modificam suas concepções sobre si mesmos em virtude do conhecimento que sobre eles é adquirido pelo campo científico e ao qual eles têm acesso. À medida que esse conhecimento invade o campo das práticas sociais, surgem não somente novos objetos de investigação e novos conceitos, como também nascem formas diferenciadas de produções discursivas para descrever o sujeito e seu sofrimento psíquico.

Assim, cria-se uma forma de expressar o adoecimento que pode vir a ser considerado como um “distúrbio médico verdadeiro” e não um logro ou uma produção psíquica do sujeito. Este, ao falar, tenta produzir no outro, a quem apela por ajuda, a convicção de que ele, o sujeito, também é merecedor de atenção, ou seja, o sofrimento psíquico se inscreve sempre em uma gramática de reconhecimento (DUNKER, 2015). Surge, então, uma espiral na qual os sujeitos se informam sobre as doenças nas mídias e passam a expressar sua angústia por meio dos amplamente divulgados indicativos psicopatológicos. Por outro lado, os meios de comunicação apregoam os tratamentos “inovadores” e supostamente eficazes, bem como a incidência (alarmante) de tal doença, legitimando ainda mais a queixa artificialmente criada.

Historicamente, as mudanças no sofrimento psíquico da histeria, por exemplo, constituíram-se como uma prova de que as queixas dos sujeitos são formuladas a partir dos significantes que circulam no campo cultural, embora seja importante sublinhar que na estrutura discursiva desse quadro há também um constante questionamento do saber médico ou de qualquer outro que ocupe o lugar de poder, de autoridade. Por isso, essa forma discursiva de funcionamento psíquico costuma operar uma transgressão dos limites do discurso convencionalmente instituído para transcender os referenciais de conduta e pensamentos socialmente aceitos. Assim “a histeria do fim do século1 fez estremecer o corpo das europeias, sintoma de uma rebelião sexual que serviu de motor para uma emancipação política” (ROUDINESCO; PLON, 1998, p. 338).

Sem tal força contestatória, mas pelo elevado alcance de contágio social, o que denominamos hoje de “epidemia depressiva” pode também nos sinalizar para uma resposta subjetiva do arranjo contemporâneo das relações culturais, políticas e sociais, cujo mal-estar, que não cessa de não se escrever (LACAN, 1985b), produz uma queixa generalizada tal como aconteceu com a histeria no final do século XIX e começo do século XX.

Eles cresceram e se constituíram na neurocultura

A Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (ANDIFES) levantou, em 2018, o perfil socioeconômico dos universitários, incluindo nesse levantamento questões sobre saúde mental dos estudantes. Os resultados mostraram que oito em cada dez estudantes de graduação relataram problemas como tristeza, ansiedade e sensação de desesperança; mais de 6% apontaram ideias de morte e cerca de 4% já tiveram pensamento suicida (ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS DIRIGENTES DAS INSTITUIÇÕES FEDERAIS DE ENSINO SUPERIOR, 2019).

Tratar-se-ia, portanto, de um quadro que assume em nosso contexto social um caráter epidêmico, mas cuja leitura merece ser realizada criticamente ao consideramos a indústria de psicofármacos como coprodutora dessa “epidemia” (MACHADO; FERREIRA, 2014).

Os denominados Transtornos Depressivos, na versão do Manual de Diagnóstico Estatístico de Transtornos Mentais: DSM 5 (AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION, 2013), comparecem subdivididos em inumeráveis subcategorias diagnósticas. Torna-se quase impossível que qualquer sentimento de tristeza, padecimento ou de luto vis-à-vis a experiência de perda não receba um código numérico diagnóstico e uma prescrição medicamentosa.

Obviamente, não cabe aqui entrar no mérito da eficácia da terapia medicamentosa para alguns casos pontuais e particulares, cujos riscos e danos para a prescrição de fármacos devem ser avaliados eticamente. Todavia, podemos interrogar se o sofrimento psíquico de adolescentes e jovens universitários, que na nossa concepção se articula com o mal-estar social, ao ser traduzido e nomeado pela psiquiatria como Transtorno Depressivo e tendo como resposta a terapêutica medicamentosa, não provocaria um silenciamento subjetivo e uma cronificação do quadro. O sofrimento e as demandas do sujeito, coconstruídos sob a influência da neurocultura em torno do alívio da dor de existir, impediriam que se ele se autorizasse a outras formas de expressão de seu malêtre psíquico e social (KAËS, 2012), contrárias à posição que lhes é destinada nas atuais coordenadas sociais, políticas e econômicas da hipermodernidade.

Na tese de doutorado intitulada Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDA/H): uma leitura psicanalítica2 (LEGNANI, 2003) trabalhou-se o campo conceitual da psicanálise articulando-o a questionamentos acerca das produções discursivas da área médica em torno da descrição diagnóstica do TDA/H.

À época da pesquisa já se detectava que não poucos pesquisadores eram defensores do discurso médico e destacavam a terapia medicamentosa na infância e na adolescência com o metilfenidato (ritalina) como prevenção de futuros comportamentos desviantes do que entendiam como o campo da normalidade. Percebeu-se que a lógica adaptativa da neurocultura era amplamente acatada pelas instituições escolares. Mostrou-se que os diagnósticos que retornavam à escola, quase sempre desprovidos do devido cuidado ético com a posição subjetiva da criança, ratificavam, muitas vezes, os mecanismos excludentes e de isenção da responsabilidade educativa que imperavam (e imperam ainda hoje) no sistema escolar.

A contraposição discutida na tese a essa concepção supostamente preventiva e biologizante foi que ela não somente escamotearia nas escolas os conflitos socioeconômicos, principalmente os que apareciam veladamente na relação intersubjetiva de professores com os alunos das camadas empobrecidas da população, como também poderia operar nas crianças e adolescentes, e em suas famílias, um descompromisso subjetivo. De forma mágica, poderiam acreditar que as terapêuticas medicamentosas eliminariam todo tipo de sinais sintomáticos como fobias, timidez, obsessões, ansiedade etc., por se tratarem meramente de desordens da química do cérebro.

Tais crenças oportunizam a tendência de se evitar novas posturas de reflexão e de ações voltadas para efetivas mudanças na gestão do próprio sofrimento e mal-estar social. Sublinhamos que o preço a ser pago pela evitação da responsabilidade subjetiva seria a adequação aos intransigentes parâmetros de normalidade externos ao sujeito, apoiados em uma concepção biológica da mente humana, a qual não deixaria opções para se criar estratégias que implicassem na participação ativa do próprio sujeito na reversão de seus sintomas, angústia e problemas existenciais.

Ortega (2009) destaca que a popularização das práticas de neuroascese, isto é, de discursos e práticas de como operar sobre o cérebro para aumentar a performance do sujeito, acarreta formas de subjetivação em que os sujeitos passam a ter relações consigo e com os outros enquanto sujeitos cerebrais inseridos em um contexto de governamentalidade neoliberal, na qual cada um deve administrar e controlar sua vida, saúde e bem-estar. Trata-se de uma forma de rígido controle social que demanda sujeitos aptos a se autocontrolarem, em constantes tentativas de aprimoramento para se adaptarem às demandas de um mercado cada vez mais competitivo e restrito em termos de empregabilidade. Segundo esse autor, já existem, inclusive, práticas neuroeducativas visando ao aperfeiçoamento cognitivo, a fim de que os estudantes possam ser empreendedores de si mesmos e conquistem melhores posições nos rankings das escolas e de postos no mundo do trabalho.

Podemos acrescentar a essa visão outros ditames e enquadramentos advindos de um psicologismo depauperado, que apregoa ser a autoestima um quesito básico e essencial para não se enredar nos processos depressivos. Autoestima que se conquistaria por meio de um estado de ânimo individual capaz de dar respostas à altura a todos os imperativos que circulam na cultura: beleza mercadológica, juventude e felicidade permanentes e acesso ininterrupto aos bens de consumo, sempre reinventados pela publicidade. Rinaldi (2002) discute os efeitos ético-políticos desses discursos e o caráter ideológico que os perpassa. Assim, poder-se-ia situar os discursos oriundos de tais campos de conhecimento, que subordinam a produção científica contemporânea acerca dos transtornos psicopatológicos aos interesses econômicos e de consumo, próximos do que Lacan (1992) nomeou discurso do capitalista. Nessa lógica, o sofrimento psíquico deve ser rapidamente eliminado para que o sujeito não escape da engrenagem da produtividade capitalista neoliberal.

O empobrecimento do que seria o sujeito da neuroascese, supostamente completo em sua autoestima imaginária, não é sem consequências na esfera sociocultural e nos processos de subjetivação. Podemos nos perguntar se a alta incidência dos estados depressivos não apontaria exatamente para a denúncia de tais mandatos idealizados e inalcançáveis e de novos modos de controle social.

Uma leitura da “epidemia” da depressão por meio da relação entre a psicanálise e a política

Para Dunker (2015, p. 124), “diagnosticar é dizer como uma forma de vida se mostra mais determinada ou mais indeterminada, como cria sua singularidade entre falta e excesso e como se relaciona com outras formas de vida por meio da troca e da produção”. Sublinha esse autor que o sintoma, em Freud e em Lacan, é um fragmento da verdade do sujeito que se repete em sua vida, ao mesmo tempo que lhe produz uma satisfação não reconhecida. Satisfação inconsciente que não consegue ser escutada pelo próprio sujeito, mas que o fragiliza por não ser passível de controle pelo eu. A queixa discursiva que melhor descreve esse estado subjetivo é: “Isso é mais forte do que eu”.

Se o sintoma comparece sob a forma de metáfora, o sofrimento, por sua vez, coloca-se como uma narrativa que busca o reconhecimento do outro, provocando neste o transitivismo, ou seja, o outro passa a sofrer junto com seu interlocutor ou, ao menos, é capaz de compreender e legitimar sua dor. Quando o sujeito que sofre não consegue a devida atenção do outro, passa a recorrer a um tipo de sofrimento psíquico codificado ou respaldado pelo discurso médico.

No que se refere ao mal-estar social, Dunker (2015) destaca que é a indeterminação do humano que o compõe. O sujeito, ao falar, se indetermina, pois está para sempre apartado do estado natural que supõe códigos certeiros e restritos para a sobrevivência. Assim, o sujeito desliza no discurso que o indetermina e que é, ao mesmo tempo, a fonte de sua liberdade, por exemplo, para se reinventar. Contudo, também é a indeterminação fonte de angústia pela falta de controle que traz em seu bojo e que remeteria o sujeito ao desamparo ou mesmo à falta de um telos que dê um sentido pleno à sua existência. É na contextura entre o mal-estar social e o sintoma que o sofrimento psíquico comparece; quando escamoteado e não escutado desencadeia arranjos sintomáticos cada vez mais cristalizados.

Do ponto de vista da psicanálise, o sentimento de impotência que perpassa o sujeito ao investir de forma desejante nos objetos privilegiados é o que arquiteta os estados depressivos. O sofrimento reside na impotência decorrente do cálculo da distância entre o eu e os ideais do eu. Não obstante, não se pode perder de vista, ao considerar a alta incidência dos estados depressivos, que, para Freud (1974a), o ideal é impossível de ser atingido, ninguém jamais tendo encarnado essa posição. Portanto, a impotência sentida pelo sujeito é, na verdade, da ordem da impossibilidade. Impossibilidade que pertence a todos, apesar desse “comum a todos”, inerente à condição humana, não poder ser discernido pelo sujeito, o que retroalimenta o próprio estado depressivo. O sujeito passa a se culpar, em processo constante de ruminação psíquica, às voltas com um supereu tirano por não dar provas para si e para o outro de uma autossuficiência idealizada. É como se estivesse apartado dos aspectos históricos, sociais e econômicos do contexto em que vive, fechando-se em um estado de sofrimento, de uma solidão narcísica, que impede o investimento em novos objetos, agravando, assim, o estado depressivo.

É interessante ressaltar que a submissão ao outro, em uma servidão voluntária, mostra-se como um contínuo do conceito de pulsão de morte (FORTES, 2007). Na dobra desse conceito, chega-se à ideia de excesso pulsional, que comparece como intensamente ameaçador para o sujeito por aludir à destrutividade e aos riscos à sua sobrevivência. Quanto maior o medo de aniquilamento, mais servilismo frente às injunções sociais, na expectativa de uma suposta proteção e ordenamento subjetivo. O sujeito paga, desse modo, um preço alto, que é o da imutabilidade na relação consigo próprio e com o outro. Incorporando o masoquismo moral (FREUD, 1974c), entrega-se à neurose de destino, sem se responsabilizar pelo seu desejo.

Nessa perspectiva, o estado depressivo, com o sujeito preso à crença de que deve atingir o ideal, pode ser pensado como um sintoma social. Os sinais sintomáticos acondicionados na tristeza, no desânimo e na inapetência vital são endereçados ao Outro, enquanto representante simbólico das coordenadas sociais, culturais, políticas e econômicas que insistem em convencer o sujeito de que sua posição impotente diante da vida é da ordem de um fracasso individual.

Assim, a depressão, na contemporaneidade, ao ser lida por meio da relação entre a psicanálise e a política, assemelha-se ao estado melancólico, pela questão moral que traz à tona. Safatle (2015) sustenta tal premissa argumentando que em nosso contexto é a melancolia que está na base dos laços sociais em virtude do medo do neurótico de enfrentar seu desamparo (hilflosigkeit), que é gerido pelos governantes por um estado contínuo de produção de insegurança social. É o afeto do medo que abriria as margens para a melancolização na pólis, nutrida também pelas esferas de poder, as quais jugulam no campo discursivo quaisquer linhas de fuga dessa lógica, classificando-as como ingênuas quimeras.

Do ponto de vista clínico, como sabemos desde Freud (1974b), a melancolia enoda as dificuldades do processo de luto ao fazer uma junção da perda constitutiva do objeto (experiência da perda da Coisa - das ding) com o luto relativo a outras perdas nos campos do trabalho e/ou amoroso. Desse processo resulta um derramamento libidinal sobre o eu, impedindo o investimento em novos objetos. Oriundo do narcisismo, funda-se, então, um “complexo de inferioridade” e o sujeito “portador da bílis negra” retira seu investimento do mundo por não se sentir à altura de estar no laço social. Os episódios maníacos seriam uma compensação estrutural para suportar tal posição subjetiva.

Sem os episódios de mania, mas de forma semelhante, o sujeito depressivo sente-se moralmente rebaixado por não conseguir estar a contento na engrenagem produtiva socioeconômica. A incorporação desse rebaixamento subjetivo, sem que o sujeito possa vislumbrar mudanças na realidade que lhe é apresentada pelo discurso social como pronta e acabada, e que passa a ser assim percebida, acentua as dificuldades do trabalho de luto em face das perdas.

Como aponta Coppedê (2016), um paradoxo aí se coloca: o julgamento moral que recebe um depressivo por não responder a contento as demandas de efetividade, rapidez e produção advindas do Outro é atenuado pelo discurso médico ao descrevê-lo como “portador” de uma doença tratável. O engodo é que a prescrição medicamentosa promete devolver ao sujeito justamente a capacidade de produzir e, por isso, medicar-se torna-se uma obrigação moral ainda mais intensa, reificando, assim, o discurso da neurocultura.

O sintoma é a política

É possível formular a hipótese clínica de que a manutenção do estado de tristeza atrelado ao gozo da dor de existir seria uma forma de resistência aos ditames sociais, políticos e contemporâneos? Pode-se pensar o estado depressivo entre alguns jovens e adolescentes como uma resistência ao modo de vida proposto pelo Outro no contexto neoliberal?

Leader (2009) pontua que numa sociedade em que o sujeito é visto como uma mera carga de energia para a produção, sustentar a perda da energia vital decorrente da depressão pode significar um trabalho subjetivo político, inconsciente ou não. Khel (2009) também assinala que a lentidão das ações do depressivo fica na contramão da urgência temporal da lógica capitalista. No entanto, resistir politicamente, adoecendo sob o signo da depressão, implica em nova captura, pois, segundo essa autora, uma das marcas do sujeito depressivo é a recusa do conflito, que impõe, em muitos casos, ceder do próprio desejo, o que acarretaria na manutenção do estado depressivo.

Coser (2003), por sua vez, relata por meio de sua longa experiência clínica junto a pacientes com depressão que a maioria deles continua numa busca sem trégua por novos tratamentos, medicamentos e procedimentos terapêuticos na tentativa de aliviar seu sofrimento. Isso que se repete nos leva à proposição lacaniana de que o inconsciente é a política (LACAN, 2005), pois há algo de ingovernável no psiquismo que também reside no sintoma. E, como bem enfatiza Izcovich (2018, p. 22), isso também quer dizer “que o inconsciente é uma questão de ligação com o Outro. Não há inconsciente se o discurso do Outro não advier ao sujeito. [...] o inconsciente é o discurso do Outro. Ele é o fato de existir um laço com o Outro”.

Haveria, assim, sempre um resto que coloca em xeque qualquer proposição terapêutica estandardizada de cura. Como destaca Ferretti (2011, p. 74), “a persistência do sintoma é a própria política”. Segundo essa autora, a clínica psicanalítica se depara com a impotência da interpretação do sintoma que visa circunscrevê-lo a um certo sentido. Há sempre a possibilidade de seu retorno, demonstrando o que há de real em sua formação, pois o sintoma escapa às tentativas de significação por se remeter a algo que não pode ser dito. A ética advinda da clínica psicanalítica sustenta o tensionamento em torno do sintoma como realização disfarçada de desejo, como aquilo que do real não pode ser decifrado e que nenhuma interpretação é capaz de erradicar. Trata-se de uma ética que reconhece a verdade do sujeito, que o sintoma porta, em si mesmo, embora não tenha a ver com a verdade objetiva da doença ou com o adoecimento do sujeito codificado pelo discurso médico, mas com o significante recalcado que pode ser lido e interpretado no sofrimento do sujeito.

A seguir, ilustraremos com uma vinheta clínica o caso de um adolescente atendido em uma sessão única no Coletivo Psicanálise na Rua, em Brasília, em 2019. Esse Coletivo, que surgiu em 2017 e reúne atualmente vários psicanalistas, inspirou-se em outros Coletivos de Psicanálise que funcionam em espaços públicos e abertos em alguns grandes centros urbanos brasileiros. A proposta é de oferecer uma escuta psicanalítica qualificada a qualquer um que queira ser escutado e falar sobre o seu sofrimento. A oferta de escuta se faz nas praças, nos aparatos públicos e nas ruas com grande movimento de trabalhadores, moradores de rua, estudantes e outros passantes.

O estado depressivo como uma forma silenciosa de resistência

Sales (nome fictício) é um adolescente que chegou à Praça Zumbi dos Palmares com uma mochila grafada com o logotipo Uber eats solicitando atendimento ao Coletivo. Sentou-se na cadeira de praia disponível em frente à analista e iniciou seu relato dizendo sofrer de ansiedade, pânico e depressão. Tais diagnósticos foram obtidos em consultas psiquiátricas desde os seus 15 anos de idade. À época desse encontro, Sales tinha acabado de completar 18 anos e, com uma voz baixa e pausada, contou não ter nenhuma perspectiva profissional e nenhum projeto de dar continuidade aos estudos em um curso superior. Filho único de pais professores, que há 5 anos estavam separados, residia com a mãe em uma cidade próxima ao centro de Brasília.

Relatou que suas crises de pânico começaram quando sentiu uma “espécie de cólica como se fosse no lugar do útero”. Tinha então 15 anos e, deitado no tapete do quarto com uma ex-namorada, começou a sentir-se mal com essa dor insuportável no baixo abdômen. Após o incômodo com a cólica, veio a taquicardia, a sudorese e a sensação de morte iminente. Assim, descontrolado e envergonhado, de acordo com suas palavras, trancou-se no banheiro e lá permaneceu até sua mãe chegar. Após esse episódio de angústia, foi levado a uma consulta psiquiátrica e passou a ser medicado desde aquele momento.

Atualmente, não frequenta consultas psiquiátricas por uma questão financeira. Contou que sua mãe também sofria de depressão há bastante tempo e que nas consultas regulares ao psiquiatra ela solicitava também para ele as receitas de psicofármacos. Sales, após a primeira crise de pânico, seguiu em tratamento psicológico por um ano, mas o abandonou por considerá-lo muito caro para os pais. Pouco tempo depois, em consulta a um outro psiquiatra da rede pública de saúde, recebeu o diagnóstico médico de Transtorno Depressivo.

A analista demanda a Sales, na ocasião, que relate uma lembrança da infância e ele lhe traz uma recordação de sua puberdade. Fala de seu sobrepeso à época e o quanto se sentia desajeitado. Por volta dos 12 anos ainda se sentia uma criança quando se apaixonou por uma colega com grande popularidade na escola. Acanhado e confuso, não comentou com os amigos sobre seu enamoramento, mas o “olhar apaixonado” o denunciou. Após essa “revelação”, foi alvo de bullying por parte dos colegas da turma e, principalmente, da colega por quem estava enamorado. Conta que esse episódio mudou sua vida: “perdi minha confiança, alguma coisa perdi ali”. Calou-se por alguns minutos após essa fala, olhando para os caminhantes na praça.

A analista pergunta sobre o trabalho como entregador do aplicativo Uber eats. Responde-lhe falando sobre sua solidão e sentimento de distanciamento do mundo. Conta que tinha se equivocado e trocado o dia da semana e a data de um encontro. Após um tempo, ao perceber a demora da então namorada no local combinado, começou a se angustiar e supôs que poderia ter uma crise de pânico. Conseguiu se acalmar “por estar tomando remédios”, embora com certa dificuldade e tendo ficado assustado com seu “desligamento do mundo”.

Relata que sempre foi bom aluno e que há um ano tinha concluído o ensino médio. Desde então passava os dias sozinho nas redes sociais; seu único anseio era o de “não dar despesa” à sua mãe. “Agora não sonho muito mais, já quis ser muita coisa, mas agora vivo com os pés no chão”. “Por medo de cair?”, pergunta-lhe a analista. Esboçou um sorriso, concordando com um gesto afirmativo da cabeça. Continuou sua fala afirmando não se sentir confiante em relação à interrupção das crises de pânico, o que lhe causava insegurança. Para ele, dizia, havia “uma espécie de nuvem negra sempre à espreita”, além de sentir muito sono e falta de energia. Sua família passava por problemas financeiros e o trabalho como entregador de aplicativo teria a função de lhe render “algum trocado” e não piorar a situação financeira familiar.

Sales diz que não via sentido em estudar por não valorizar as “cabeças escolarizadas”, como também não tinha interesse em trabalhar em qualquer outro emprego para, ao “fim do mês, gastar dinheiro comprando objetos desnecessários”. Sentia que não fazia parte deste mundo e não tinha ânimo para fazer muita coisa: “não tenho ambição como vejo nos amigos da época da escola.” Passava os dias sozinho em casa, lendo, navegando nas redes sociais ou jogando games na internet. Seus pais não lhe cobravam decisão sobre o futuro, preferindo que primeiro se tratasse com os psicofármacos receitados. Relata que sempre teve com os pais uma relação respeitosa, de confiança e sem maiores conflitos. Conta que ambos, por serem professores, o incentivaram, desde cedo, no hábito da leitura e a buscar uma profissão da qual pudesse realmente gostar: “meus pais nunca me cobraram nada e conseguem entender que preciso de um tempo.”

Por ter falado de seu mal-estar com o retraimento social, a analista pergunta-lhe se vislumbrava alguma possibilidade de saída. Contou, então, que se sentia melhor quando estagiava em um órgão do judiciário, no ensino médio, pelo convívio com outras pessoas. “Nada era fácil ali, diz, mas o dia se engatava e eu esquecia dos meus problemas porque me sobrava menos tempo.” Naquele momento, a analista faz o corte da sessão. Sales levantou-se, agradeceu pela escuta e disse que ao falar, ali na praça, percebeu a importância de retornar à sua antiga psicóloga. Apesar de reticente, pelo dinheiro que custaria à mãe, reconheceu que, ao falar e ser escutado pela analista, estava repensando a questão.

Breve discussão do caso

A narrativa de Sales aponta para um deslocamento dos modos de expressão da angústia, por meio de uma nova relação pulsão versus cultura, inferida na queixa de falta de ânimo para se realizar na vida, mas não sob a forma de submissão à lógica medicamentosa do mercado, para a qual adoecer/se medicar constitui condição sine qua non para retornar ou se inserir na produção/consumo, como acontece com muitos casos de depressão. Sales produz outra narrativa no contexto da neurocultura, que sinaliza para uma resistência silenciosa aos imperativos de gozo no contemporâneo ao não se inscrever nos meandros de produção/consumo de gadgets e não se submeter aos ditames do discurso do capitalista. Assim, enquanto na histeria o sujeito questiona o discurso do Mestre (do qual Lacan derivou o do capitalista), na depressão o sujeito resiste a ele e aos seus desdobramentos.

O sofrimento do jovem demarca uma questão clínica ainda não capturada pelo discurso de marketing que sustenta a propagação do uso de medicamentos. Como aponta Silva Júnior (2016), nessa articulação o sujeito - como responsável por si e por seus processos subjetivos - fica excluído, mas sua participação como consumidor de fármacos é cuidadosamente trabalhada pela publicidade especializada que, de tempos em tempos, altera, inclusive, os critérios de normalidade para criar e alastrar novos Transtornos, de forma a aumentar o número de consumidores/dependentes. Contudo, não há ainda uma estratégia publicitária, e tampouco será tarefa fácil inventá-la, que impeça, com uma solução medicamentosa, o advento de uma posição de resistência, inconsciente e silenciosa, marcada por uma inapetência vital em face das amarrações e contrassensos do Outro social/político e de suas exigências de submissão à lógica produtiva cada vez mais acelerada do capitalismo neoliberal e suas injunções.

Sales, ao falar e ser escutado, conseguiu se reposicionar subjetivamente em relação ao tipo de ajuda que necessitava para buscar novos investimentos pulsionais e se movimentar em torno de suas questões, uma vez que o seu sofrimento, ainda codificado e medicado, persistia. Como portador da verdade do sujeito e como aquilo que de mais real ele tem, o sintoma do jovem apontava para a atualização da vivência traumática de ter se percebido exposto em uma circunstância em que não pôde responder com o corpo sexuado, o que provocou contínuas crises de um excesso pulsional, sobretudo da dimensão do afeto, nomeadas pela psiquiatria como “crises de pânico”. O seu mal-estar de existir no mundo falava, também, da existência de uma realidade sociocultural sobre a qual se mostrava crítico, mas que era ainda percebida como fixa e imutável.

Se o inconsciente é a política e esta se escreve na circulação das palavras e nas trocas do sujeito com o mundo, é legítimo afirmar que a posição de “vítima de uma doença”, constituída nas redes da neurocultura, empobrece a narrativa, faz calar o desejo e enseja um modo particular de gozo. Talvez, ao vislumbrar a possibilidade de retorno ao tratamento com sua antiga psicóloga, e suportar dar despesas aos pais, novamente, Sales possa vir a ser cobrado por algo nessa troca. É possível que ao assumir uma nova posição subjetiva e levá-la a cabo, isso lhe traga alguns riscos por ter resolvido tirar “os pés do chão”. De qualquer forma, esse movimento desejante importa, pois é a condição para se implicar no próprio sofrimento e construir outras narrativas para a sua história.

Nossa proposição é a de que o campo da psicanálise, ao trazer para o cerne da escuta analítica o liame dos significantes discursivos do sujeito relativos ao enlace estrutural com o Outro, juntamente com os registros de alienação ou de resistência frente à demanda/desejo do Outro social/político, faz avançar a própria teoria, seu método e sua prática. Não se pode perder de vista que a ética da psicanálise, levada a efeito na clínica, pressupõe justamente o acesso, por parte dos analistas, à inconsistência dessas duas faces do Outro.

Algumas considerações para não concluir

Os mecanismos de controle social postos pela medicalização fundamentam-se no individualismo e abrem uma espécie de continuum na vida dos sujeitos, naturalizando o silenciamento dos conflitos. Nessa linha contínua, vemos diagnósticos que vão do TDA/H, na infância, aos Transtornos Depressivos, na adolescência e no início da vida adulta. Percebe-se inicialmente em alguns sujeitos um certo alívio ao justificar sintomas e dificuldades de diversas ordens. No entanto, o que comparece num primeiro momento como atenuante do sofrimento psíquico, graças a uma intervenção externa medicamentosa, passa, aos poucos, a ser internalizado como um controle interno da angústia do sujeito, que não abre outros caminhos senão o de adaptação às engrenagens sociais ou o de uma inibição subjetiva como defesa e resistência à inserção na lógica do ideário neoliberal, conforme a leitura que fizemos da vinheta clínica apresentada.

Os tentáculos do neoliberalismo delineiam-se em torno de categorias abstratas (liberdade, moral, consciência, bem-estar, qualidade de vida, valores, meritocracia), desvinculadas das concretas realidades socioeconômicas, bem como da dimensão intrínseca do sujeito, isto é, a falta estrutural que o constitui. Sua eficácia simbólica advém das contínuas intimidações acerca de um suposto caos social e econômico sempre por vir e da gestão do medo, cujo manejo torna-se uma espécie de entretenimento entorpecedor que opera sobrepondo a dimensão econômica à dimensão política, no campo social, e esvaziando e invalidando qualquer movimento desejante, no campo da subjetividade, ao ofertar objetos que supostamente completarão a falta-a-ser do sujeito.

Em face do contexto sociopolítico que permitiu que o dispositivo da medicalização se instaurasse e se reproduzisse incessantemente nas instituições escolares, como uma suposta forma de cuidado do sujeito, Legnani e Almeida (2015) atribuem à educação formal um papel relevante nos processos de subjetivação política. Tal expressão, cunhada por Rancière (1992), elucida a relação entre liberdade e igualdade, dimensões fundamentais da política e cujo tensionamento constante atravessa e impacta o sujeito na relação com seus semelhantes e o Outro (social, da cultura, da linguagem).

Contudo, a maioria das instituições escolares parece abdicar de lidar com a ética do sujeito, isto é, com a ética do desejo e seus conflitos, contradições e tensões, na medida em que as escolas aderem ao discurso neoliberal educacional e a finalidade da educação se reduz a formar e a preparar os alunos para o futuro, isto é, para o mercado de trabalho. Quanto aos professores, muitos são reticentes, alguns mais resistentes, em estabelecer com crianças, adolescentes e jovens alunos uma relação interpessoal pautada nas negociações e mediações de conflitos, ancoradas na realidade político-social e econômica, pelo caráter de conflitualidade e de confronto que elas representam no imaginário do professor.

Nessa perspectiva, escolas e professores perdem a chance de desencadear processos de subjetivação política nos alunos, que poderiam produzir efeitos de uma leitura mais inventiva do mundo por meio de elaborações reflexivas e novos posicionamentos subjetivos frente ao ideário de que a realidade social é fixa e imutável e de que o êxito e a felicidade do sujeito dependem exclusivamente dos seus esforços e mérito. Nos espaços da escola, os alunos lidam diariamente com a diferença, a diversidade, a alteridade, consequentemente, com as questões afeitas à liberdade, à igualdade, ao desejo. Caso as escolas favoreçam o intercâmbio de ideias em torno desses conceitos, as tensões, conflitos, angústias, divergências e eventuais confrontos advindos dos embates serão veiculados pela palavra, cuja potência simbólica é transformadora.

Considerando a expansão da neurocultura e da neuroascese, talvez a mais significativa contribuição da psicanálise à educação seja a força política que dela pode ser extraída e transmitida: o discurso do Mestre tenta calar o ingovernável, e o discurso do capitalista (o mestre decadente), por sua vez, opera para tamponar a falta com a oferta de objetos, de gadgets. Já o discurso do mestre não-todo não ignora a força do retorno daquilo que foi escamoteado, recalcado. Por isso mesmo, como efeito da verdade da castração do mestre, ao ensinar o que sabe ele transmite o que não sabe, mas que é suposto saber - a impossibilidade de controlar o aluno (o Isso sempre resiste) e a transmissão da falta como condição para que aluno se aproprie do seu próprio estilo singular e não se deixe servilmente governar pelo Outro.

REFERÊNCIAS

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1Os autores fazem referência ao século XIX.

2Tese de Doutorado defendida em 2003 no Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília, de autoria de Viviane Legnani, sob a orientação de Sandra Francesca Conte de Almeida. Foi o primeiro estudo no Brasil que se debruçou sobre o campo teórico da psicanálise para sistematizar outros caminhos clínicos e educacionais com crianças e adolescentes com queixa escolar de dificuldades nos campos da atenção, impulsividade e hiperatividade (TDA/H).

Recebido: 13 de Agosto de 2020; Aceito: 06 de Dezembro de 2020

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