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Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade

versión impresa ISSN 0104-7043versión On-line ISSN 2358-0194

Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade vol.29 no.60 Salvador oct./dic 2020  Epub 24-Ago-2021

https://doi.org/10.21879/faeeba2358-0194.2020.v29.n60.p158-175 

DOSSIÊ TEMÁTICO

TRAJETÓRIAS SUBJETIVAS NA EXPERIÊNCIA DE FORMAÇÃO1

SUBJECTIVE TRAJECTORIES IN THE TRAINING EXPERIENCE

TRAYECTORIAS SUBJETIVAS EN LA EXPERIENCIA DE FORMACIÓN

Carla Nunes Vieira Tavares*  (UFU)
http://orcid.org/0000-0002-5156-0150

*Doutora em Linguística Aplicada pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e em Ciências da Linguagem pela Université de Franche-Comté, FR. Professora Associada do Instituto de Letras e Linguística, Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). E-mail: carlatav@ufu.br


RESUMO

Abordando a formação docente por meio da divisão subjetiva, que impede a integralização de conhecimentos ou a totalização de toda e qualquer prática educativa, este artigo discute os resultados de uma pesquisa-intervenção de orientação psicanalítica com professores pré-serviço e em serviço, apoiando-se na articulação entre relação com o saber, experiência e transmissão, conforme concebidas no campo da Psicanálise e Educação. Por meio da oferta da palavra aos participantes em diferentes formatos, a pesquisa propiciou momentos de suspensão de certezas subjetivas por meio de intervenções e pontuações, objetivando permitir aos professores uma (re)apropriação da posição docente. A análise do corpus contemplou os movimentos subjetivos nessa direção, por meio do que denominei relatos de experiência. Por meio da narrativização das intervenções e de seus efeitos sobre os participantes, os relatos cartografaram os pontos em torno dos quais indiciou-se a construção de um saber particular sobre a docência e a inscrição no sujeito de algo da ordem de uma transmissão. Configurou-se, assim, a relação entre espaços de fala-escuta e a instauração da experiência como desencadeadores de trajetórias formativas marcadas pelo investimento subjetivo e, portanto, marcadas por uma significativa relação com o saber.

Palavras-chave: Experiência formativa; Relação com o saber; Transmissão; Formação de professores; Psicanálise

ABSTRACT

Approaching teacher training focusing the subjective division, which prevents the integration of knowledge or the totalization of any educational practices, this article discusses the results of a psychoanalytic-oriented research that intervened in pre-service and in-service teachers. The theoretic premises are supported by the articulation between the relation to knowledge, experience and transmission, as conceived in the field of Psychoanalysis and Education. By opening the speech to participants in different formats, the research provided moments of suspension of subjective certainties through interventions and remarks, aiming to allow teachers to (re)appropriate the teaching position. The analysis of the corpus has contemplated the subjective movements in this direction, through what has been named experience reports. Through the narrativization of the interventions and their effects on the participants, the reports have mapped the points around which the construction of a particular knowledge about teaching and the inscription in the subject of something of the order of a transmission was indicated. Thus, the relationship between spaces of speech-listening and the establishment of experience were configured as triggers of formative trajectories marked by subjective investment and, therefore, marked by a significant relation to knowledge.

Keywords: Formative experience; Relation to knowledge; Transmission; Teaching education; Psychoanalysis

RESUMEN

Al acercarse a la formación del profesorado a través de la división subjetiva, que impide la integración del conocimiento o la totalización de las prácticas educativas, este artículo analiza los resultados de una intervención de investigación orientada a la psicoanálisis con docentes pre servicio y en servicio. Las premisas teóricas son guiadas por la articulación entre la relación con el saber, la experiencia y la transmisión, tal como se concibe en el campo del psicoanálisis y la educación. Al ofrecer la palabra a los participantes en diferentes formatos, la investigación proporcionó momentos de suspensión de certezas subjetivas a través de intervenciones, con el objetivo de permitir a los maestros (re)apropiarse de la posición de enseñanza. El análisis del corpus contempló los movimientos subjetivos en esta dirección, a través de lo que llamé informes de experiencia. A través de la narrativización de las intervenciones y sus efectos en los participantes, los informes mapearon los puntos alrededor de los cuales se indicó la construcción de un conocimiento particular sobre la enseñanza y la inscripción en el tema de algo del orden de una transmisión. Así, la relación entre los espacios de escucha oral y el establecimiento de la experiencia se configuraron como desencadenantes de trayectorias formativas marcadas por la inversión subjetiva y, por lo tanto, marcadas por una relación significativa con el saber.

Palabras clave: Experiencia formativa; Relación con el saber; Transmisión; Formación del profesorado; Psicoanálisis

Introdução

Este artigo se propõe a explorar a falha e o que rateia na formação docente, de modo a mobilizar os efeitos do real e da divisão subjetiva resultante da entrada do sujeito na linguagem, que insistem em se inscrever nas práticas pedagógicas, a formação docente aí incluída. O enfoque, portanto, recai sobre a subjetividade na formação. O olhar se volta para o sujeito, considerando-o indissociado dos fenômenos históricos, sociais e políticos, mas focando a singularidade do exercício da subjetividade na prática linguageira. Sujeito e linguagem, portanto, são entendidos submetidos ao social e atravessados pela falha, pelo equívoco, pelo real.

Assim, recorrendo ao campo que articula Psicanálise e Educação e as Ciências da Educação, este artigo objetiva discutir as trajetórias subjetivas de professores em formação (pré-serviço e em serviço), de modo a trilhar os pontos indiciadores do atravessamento da subjetividade na experiência de formação e na relação com o saber (BEILLEROT; BLANCHARD-LAVILLE; MOSCONI, 1996). Para tanto, recorro ao que denominei “relato de experiência”, um instrumento de análise desenvolvido em uma pesquisa-intervenção2 de base psicanalítica sobre a formação pré-serviço e continuada de professores de língua inglesa. Levada a efeito nos anos de 2019 e 2020, com uma turma do terceiro e quarto períodos de dois componentes curriculares práticos de um curso de Letras (Inglês e Literaturas de Língua Inglesa), em uma universidade federal, a pesquisa objetivou analisar os efeitos de intervenções de orientação clínica sob a perspectiva da psicanálise durante a formação docente. Durante um ano, os professores em formação observaram aulas de língua inglesa do Ensino Fundamental 2 de um professor em serviço em uma escola municipal, elaboraram propostas pedagógicas de intervenção e as implementaram em parceria com o professor regente. A pesquisa foi desencadeada pelo meu incômodo como professora dos alunos da licenciatura diante da fragilidade de sua relação com o saber e da prevalência de um imaginário ideal de docência e de formação. Dos dezoito alunos, sete participaram efetivamente desta pesquisa, além do professor regente.

Assim, propus a abertura de espaços de franquia da palavra para os professores participantes da pesquisa (em formação e em serviço), nos quais ela circulava o mais livremente possível, entremeada por pontuações minhas, como mediadora, mas, também, dos participantes. Os espaços de palavra, conforme foram nomeados, eram abertos logo após observações e atuações dos professores em formação nas classes do professor em serviço. Seguindo uma orientação clínica, os espaços de palavra produziram material que constituiu o corpus da pesquisa, analisado por meio de relatos de experiência.

O corpus da pesquisa foi constituído por notas no diário de campo das observações3 e dos espaços de palavra, relatórios de observação, propostas pedagógicas de intervenção, relatórios finais e trocas de mensagens por grupo no WhatsApp. Um caminho para dar um tratamento analítico interpretativo ao material coletado foi considerar a formação docente como experiência complexa e multifacetada (BONDÍA, 2002; LARROSA, 2011). Em especial, o processo formativo compreendido pela pesquisa dava indícios da apropriação da posição docente como resultado de um (não) saber, flagrando rastros das trajetórias subjetivas traçadas pelos professores. Delineava-se no corpus uma articulação entre experiência subjetiva e transmissão, que me convocava a discutir os modos particulares de apr(e)ender o saber naquele processo de formação. Nascia, nesta articulação, a possibilidade de analisar recortes desse processo de formação em forma de relatos de experiência.

Enquanto um gênero textual acadêmico, o relato de experiência refere-se a um texto descritivo de uma prática ou experimento empíricos, cuja ênfase recai nos procedimentos da pesquisa e seus resultados. Nas ciências humanas, especificamente na Linguística Aplicada e na Educação, campos aos quais me filio como pesquisadora e professora, esse gênero é muito comum em pesquisas etnográficas e narrativas. A diferença entre o relato de experiência tal como é discutido neste trabalho e aquele encontrado nessas pesquisas é a consideração da divisão subjetiva e a tentativa de bordejar o real por meio da imbricação do simbólico e do imaginário em sua escrita, que materializa gestos de interpretação. Por sua vez, esses gestos também delineiam trajetórias e cartografias que mapeiam e/ou indicam o entrecruzamento da subjetividade na pesquisa.

Considerando a formação de professores como um processo que pode engendrar a experiência implicada subjetivamente com o saber, sustentada no não-saber inconsciente, a análise cartografada nos relatos de experiência enfocou o trabalho subjetivo em jogo sobre o conhecimento formalizado sobre a docência. Neles trilhei os movimentos para a construção de um saber particular e a inscrição no sujeito de algo da ordem de uma transmissão. Por isso, neste artigo, abordo, inicialmente, a formação de professores sob a perspectiva da Psicanálise e Educação e da Ciência da Educação, enfocando a articulação entre experiência, relação com o saber e transmissão. Em seguida, discorro sobre as bases teóricas sobre as quais o relato de experiência tal como proponho se constitui. Por fim, apresento um relato de experiência, resultado de meus gestos de interpretação sobre o corpus, no qual a narrativização da experiência delineia as trajetórias subjetivas na construção dessa relação com o saber, diante das intervenções. Elas permitiram desalojar algumas certezas, instaurando um espaço de reflexão que ensejou a emergência de um outro saber sobre o sujeito e sobre os modos de apropriação da posição de professor.

1 Experiência, transmissão e relação com o saber

Em uma conhecida proposição, Larrosa (2011, p. 5, grifo do autor) afirma que a experiência é “isso que me passa”.4 Essa formulação interessou à pesquisa, porque a formação docente desencadeia processos de ensino-aprendizagem nos quais seja instaurada uma relação do sujeito com o saber, marcada pela incompletude, pelo laço com o outro e pela imprevisibilidade. Esses três fatores me parecem referidos na grafia do pronome demonstrativo “isso”, aludindo tanto a algo indeterminável e, portanto, impossível de ser totalizado; como ao substantivo Isso (Id, em alemão), em uma clara remissão ao inconsciente e como ele é referido na psicanálise freudo-lacaniana. De fato, Bondía (2002) e Larrosa (2011) propõem que a relação com o saber necessariamente demanda algo de uma experiência do sujeito com o objeto de saber, pois é ela que possibilita ao sujeito dar sentido “ao acontecer que nos acontece” (BONDÍA, 2002, p. 27).

A noção de relação com o saber advém do trabalho dos pesquisadores ligados ao Centre de Recherche Éducation et Formation (CREF) (BEILLEROT; BLANCHARD-LAVILLE; MOSCONI, 1996) e vem sendo desenvolvida no Brasil no campo da Psicanálise e Educação. A relação com o saber é um processo dinâmico e complexo pelo qual, com base no saber legitimado socialmente, o sujeito, no exercício de sua singularidade, recusa uma parcela de gozo para investir subjetivamente em um objeto de saber. Como resultado, saberes particulares são (re)construídos a partir do conhecimento, possibilitando ao sujeito agir sobre o mundo, apre(e)ndê-lo,5 conferir-lhe sentido e mediar sua relação com o Outro e consigo mesmo. Tal construção se dá na relação do humano com o mundo, mediada pelo simbólico em sua articulação com o imaginário, afetada pelo real. Trata-se, portanto, de uma construção de saber sustentada no não-saber, pois é ele que suporta os movimentos do sujeito na elaboração particular resultante do conhecimento. Essa rede de saber que rodeia um ser que vem ao mundo é que será, pouco a pouco, investida pela criança para que ela construa ali um modo próprio de inserção (HATCHUEL, 2005). Como o saber é claudicante, a relação com ele volta a operar a cada momento da história de um sujeito em que for necessário encontrar respostas ao seu enigma subjetivo e ele se voltar para o campo da cultura, do social, da ciência e de si mesmo. Experiência e saber, portanto, estão intrinsicamente relacionados.

Larrosa (2011) problematiza a experiência a partir de uma dupla articulação entre algo da exterioridade que afeta o sujeito e da percepção subjetiva desse processo. Logo, a experiência, de alguma forma, assume uma figuração do isso e de seus efeitos sobre o sujeito, remetendo-se à negatividade, ao indiscernível e ao irredutível que a compõe. O princípio de alteridade inerente à experiência pressupõe um encontro-confronto com uma objetividade. A radicalidade desse evento tem o potencial de provocar uma fratura na rede de significantes do sujeito, com caráter desestabilizador. Esse encontro-confronto assume, assim, valor de acontecimento, desencadeador de alterações na constituição subjetiva

Importante não confundir acontecimento, nessa perspectiva teórica, com um fato, situação ou evento. O acontecimento, nas palavras de Figueiredo (1994, p. 152, grifo do autor) é “de início, uma ruptura na trama das representações e das rotinas; [...] uma quebra dos dispositivos de construção e manutenção do tecido da realidade; [...] é também a transição para um novo sistema representacional”. Refiro-me ao conjunto de ancoragens subjetivas e identitárias como cadeia significante, essa rede que provê uma ilusória e necessária unidade e homogeneidade ao sujeito. A experiência, desse modo, é desencadeada por meio de um acontecimento que presentifica a exterioridade para o sujeito, afetando-o por seu caráter altero, e o convoca a construir outros e novos significantes para mediar sua relação consigo mesmo e com o mundo, por meio de uma elaboração subjetiva complexa e multifacetada.

Por meio do estranhamento diante do acontecimento, a experiência possui uma potência criativa e transformadora do sujeito, incidindo no campo social, constituindo e constituindo-se (n)o universo simbólico por meio do exercício da palavra. Assim, o não-saber resultante do atravessamento do real no campo subjetivo e constitutivo da experiência resulta na produção de um saber. Não se trata de um saber pleno ou da ordem da verdade, mas de uma certa elaboração simbólica não fechada, marcada pela negatividade e incompletude, que permite ao sujeito lidar com isso que o atravessa e permanentemente demanda significação.

De acordo com Larrosa (2011), a afetação do sujeito pela experiência e, consequentemente, os efeitos do saber dela resultantes, acontece na dependência da instauração de três princípios, a saber o de subjetividade, reflexividade e transformação.6 Nesse sentido, em relação ao primeiro e segundo princípios, o encontro-confronto com o isso do acontecimento se passa no sujeito, mas não se reduz a ele. A experiência demanda do sujeito uma desancoragem de si mesmo no encontro-confronto com o acontecimento, mas, simultaneamente, desencadeia efeitos subjetivantes, ganhando o efeito reflexivo potencializador de processos de responsabilização subjetiva pelas escolhas e suas consequências, pelo desejo, pelos modos de gozo, pelo sofrimento. A responsabilização subjetiva refere-se a uma alteração do sujeito em relação à sua posição subjetiva, com base na ética do desejo. A reflexividade aqui não pressupõe uma aplicabilidade ou correspondência. Ao contrário, a experiência, nessa perspectiva, não admite generalização, totalização ou integralização, pois sempre será única, singular e própria, por depender da linguagem para ser mediada, dar-se no sujeito e, portanto, estar atravessada pelo real (LARROSA, 2011). Apenas traços conseguem passar para o nível de uma elaboração subjetiva e, de algum modo, tocar o sujeito, consistindo no terceiro princípio da experiência, o da transformação. Por isso, a experiência não pressupõe um resultado a priori. Antes, é no a posteriori que seus efeitos no sujeito podem se dar a conhecer.

As considerações a respeito da noção de experiência em Larrosa (2011) permitem aproximá-la da formação docente. O radical forma deriva do latim formatio e refere-se ao ordenamento de elementos de um todo, à constituição ou a um conjunto de valores ou princípios morais desenvolvidos como resultado da educação (FERREIRA, 2010). A educação perfaz um dos elementos dessa alteridade que interpela o sujeito a conformar-se a um conjunto de valores, conhecimentos, teorias. Para ganhar lugar entre seus pares, o sujeito deverá submeter ao processo educativo uma parcela de suas pulsões. Por sua vez, o acréscimo do sufixo -ação (-ione) agrega movimento processual à formação. Como não é estática nem tampouco passiva e na medida em que pode presentificar rupturas na rede significante do sujeito pela irrupção do acontecimento, a formação é suscetível de causar uma trans-formação, ou seja, um movimento de travessia, reconstituição e (re)ordenamento.

De fato, Larrosa (2006, p. 64) se vale da metáfora da viagem para relacionar a experiência à formação:

[...] a ideia de experiência formativa, essa ideia que implica um se voltar para si mesmo, uma relação interior com a matéria de estudo, contém, em alemão, a ideia de viagem. Experiência (Erfahrung) é, justamente, o que se passa numa viagem (Fahren), o que acontece numa viagem. E a experiência formativa seria, então, o que acontece numa viagem e que tem a suficiente força como para que alguém se volte para si mesmo, para que a viagem seja uma viagem interior.

Na trajetória da experiência de formação que pode se dar em um contexto formalizado, como é o caso de um curso de licenciatura em Letras, campo desta pesquisa, a experiência formativa pode aportar ao sujeito novos contornos. Ninguém passa incólume por uma formação, ainda que seus efeitos não sejam aqueles delineados pelos objetivos e metas formalizados pelo Projeto Pedagógico, planos de ensino de seus componentes curriculares ou ainda no fio do dizer dos licenciandos.7 O fim da formação e suas consequências para o sujeito, porém, permanecem uma incógnita e dependerão do engajamento subjetivo dos envolvidos, como aponta Larrosa (2006, p. 65):

A formação é uma viagem aberta, uma viagem que não pode estar antecipada, e uma viagem interior, uma viagem na qual alguém se deixa influenciar a si próprio, se deixa seduzir e solicitar por quem vai ao seu encontro, e na qual a questão é esse próprio alguém, a constituição desse próprio alguém, e a prova e desestabilização e eventual transformação desse próprio alguém.

A irrupção de momentos nos quais seja possível experienciar traços da formação, portanto, reside na condição de que, na relação entre sujeitos, o lugar do saber não seja todo, que não se pretenda tudo dizer ou ensinar, que se instaurem interrogações com o potencial de estranhar e mover o sujeito a (re)pensar. A experiência de linguagem, neste percurso, efetiva uma certa potência de falar resultante do estranhamento diante do novo e, nesse processo, pode produzir (res)significações do sujeito e do mundo.

Na medida em que a formação de professores pode ensejar uma experiência subjetiva capaz de promover uma nova relação com o saber atravessada por um não-saber, há possibilidades de que ela promova uma transmissão.

A visada explorada neste trabalho quanto à transmissão a compreende na dependência de uma elaboração subjetiva do saber que pode se dar na experiência da formação. Aprender, como já afirmado, é apropriar-se do saber do campo do Outro de maneira particular, apre(e)nder, tomar e ser tomado. Reside aí uma diferença fundamental entre ensinar e transmitir. O ensino se relaciona a um conjunto de conhecimentos a serem “passados” adiante, para valer-me de um verbo muito usado no ambiente escolar (“O professor passou tal matéria”) e que, ao menos no nível das expectativas, seriam aprendidos. A transmissão, porém, conforme aqui entendida, implica considerar modos singulares de investir o objeto de saber e de sua apreensão, bem como a impossibilidade de garantir sua integralidade ou de prever como ela se dará, tal como assinalam Stolzmann e Rickes (1999, p. 42):

[A transmissão] não está simplesmente do lado das informações ou dos conteúdos, mas sim de uma operação que permite ao sujeito, em contato com algumas ideias, tomá-las por meio de um árduo trabalho e reconstruí-las, imputando-lhes seu estilo, agregando-as ao que já havia constituído, e produzindo, como resultado, algo que reconhece como próprio.

A transmissão de saber na formação docente, portanto, requer que a experiência da formação passe o sujeito. Por meio do investimento subjetivo, o sujeito pode se apropriar de uma parcela do conhecimento legitimado, reconstruindo-o, fazendo-o passar pelo corpo, depurando-o, a fim de produzir um saber particular e, a partir dele, se autorizar de certo modo na posição docente. Isso marcaria uma apropriação particular da docência, remetendo aos efeitos da experiência de formação no sujeito. A transmissão na formação implica, ainda, que o saber jamais será todo, pois sua relação com a verdade faz com que ele seja sempre pontual, demande constantes reelaborações e que a claudicância desse saber seja produtiva, uma vez que a relação com ele depende da falta para ser instaurada.

Eis, portanto, a articulação entre experiência, transmissão e relação com o saber. A experiência enseja uma relação do sujeito com o saber que, para acontecer, depende de um ritmo particular e do tempo lógico do sujeito, conforme assinalam Lima e outros (2015, p. 53): “O saber requer um lapso de tempo, um intervalo entre o que se transmite e o que se apreende, tempo de assimilação subjetiva.” Ocorre que o saber está no campo do Outro: “O estatuto do saber implica, como tal, que já há saber e no Outro, e que ele é a prender, a ser tomado. É por isso que ele é feito de aprender. [...] para tê-lo, é preciso empenhar a própria pele.” (LACAN, 1985, p. 130, grifo do autor). Assim, a relação com o saber requer investimento subjetivo. Onde há sujeito, a falta opera impedindo uma relação termo a termo. Logo, o que se ensina não corresponde jamais ao que se aprende, resultando que o saber mediado na transmissão guarda algo de uma imprevisibilidade.

A possibilidade de que uma transmissão tal como concebida aqui marque a formação docente invoca, ainda, o desejo como o motor das investidas do professor, tanto formador como em formação, na relação com o saber. O desejo em ação é indiciado por meio de invenções singulares, no nível simbólico e objetal, capazes de mediar o confronto do sujeito com seu desamparo e de sustentar uma verdade subjetiva. Trata-se, portanto, de que, na formação, seja possível que, pela via do desejo, um laço se instaure entre sujeitos e/ou entre sujeito e objeto de saber. Esse laço depende da efetivação de uma demanda de saber, a suposição de um saber no Outro e, assim, pela via da transferência, se estabeleça algum tipo de relação com o saber. A esse respeito, Lima e outros (2016, p. 49), com base em Lacan (1992), ressaltam: “[...] a transferência é o motor do acesso ao saber.”

2 O relato de experiência

Ora, para escutar algo dessa experiência, o pesquisador, orientado pela psicanálise, aposta no inconsciente e em sua própria posição subjetiva enquanto sujeito dividido. Uma primeira consequência dessa premissa é que a subjetividade do(a) pesquisador(a) se deixa flagrar nas perguntas elaboradas, na decisão dos instrumentos de pesquisa, em suas notas, na constituição do corpus, nos gestos de interpretação que empreende.

O percurso da pesquisa, então, indicia as questões subjetivas do pesquisador e como ele é afetado pelo campo teórico-metodológico no qual se inscreve. Outra decorrência é o caráter intervencionista de orientação clínica que esta pesquisa guardou, pois a intervenção incide sobre as realidades subjetivas de modo a afetá-las (PEREIRA, 2016), aí incluindo o/a pesquisador(a) e os participantes. Um terceiro ponto a destacar é que o pesquisador se oferta como objeto de transferência, “para escutar os efeitos advindos desses momentos nos quais o inconsciente comunica alguma verdade parcial do sujeito falante através de seus gestos, falas e discursos” (PEREIRA, 2016, p. 76, grifo do autor).

Pensando nas consequências da aposta no inconsciente no que concerne aos participantes da pesquisa, o exercício da palavra é o objeto primordial de análise. Por exercício da palavra refiro-me não só à linearidade do dito, à opacidade do dizer e às regularidades discursivas, mas, também, à enunciação, suas condições de produção, à incidência do corpo nesse exercício, ao silêncio, às hesitações do sujeito, àquilo que é esquecido e retorna sob (ou sobre) outros significantes. Como já mencionado, os espaços de palavra eram os momentos nos quais o dizer podia circular livremente. Neles exerci a função de mediadora, calcada grandemente em animar o grupo por meio da sustentação do exercício da associação livre. Os espaços de palavra se diferenciaram do dispositivo de conversação, metodologia já consolidada em pesquisas na interface Psicanálise e Educação, discutida em vários trabalhos (LACADÉE; MONIER, 2000; MILLER, 1998; MIRANDA; VASCONCELOS; SANTIAGO, 2006; VIOLA; LIMA; NOBRE, 2020). Em alguns momentos, minhas intervenções como mediadora se apoiaram na lógica do discurso do analista e, em outros, alternavam-se entre o discurso da universidade e do mestre. Refiro-me à teoria dos discursos de Lacan (1992). A posição de agente do discurso do analista é caracterizada pela recusa da assunção de saber sobre o sujeito e sobre o que lhe causa, ao mesmo tempo em que sustenta o semblante de saber disso, possibilitando uma posição de suposto saber. Intervenções calcadas nessa lógica se valem do não sentido e potencialmente inscrevem um furo nas certezas subjetivas. Por sua vez, os discursos do Mestre e da Universidade são caracterizados pela oferta de significantes aos quais o sujeito se assujeita para se subjetivar. Essa oscilação constituiu um impasse para a construção dos espaços de palavra, pois eu me endereçava aos professores tanto do lugar de pesquisadora, como de professora formadora. O exercício da palavra nesta pesquisa desenrolou-se, ainda, nas minhas notas de campo, nas produções escritas dos professores em formação, nas minhas intervenções sobre elas. Nessas instâncias, produziram-se mo(vi)mentos de construção do saber, por meio de um trabalho do sujeito enredado em sua relação com o saber, muitas vezes resultante de intervenções. Seus efeitos foram analisados nos relatos de experiência.

Os relatos de experiência propiciaram uma escrita que reflete meus gestos de interpretação sobre o corpus da pesquisa e estava intrinsicamente afetada pela minha própria divisão subjetiva. Seguiram, portanto, uma orientação clínica psicanalítica e o recorte sobre o objeto da pesquisa, a circulação da palavra e seus efeitos sobre o sujeito foi dado a partir de uma escuta analítica e de meus gestos interpretativos. Entretanto, embora fortemente influenciados pela indicação freudiana sobre a escrita de casos clínicos (FREUD, 1996), os relatos de experiência não constituem relatos de caso, tais como concebidos pela psicanálise, pois não se construíram em torno de um enigma subjetivo e não se circunscreveram à teoria psicanalítica como foco.8 Eles discutem os efeitos das intervenções realizadas durante o período de formação docente compreendido pela pesquisa, dando ênfase ao percurso subjetivo dos professores na relação com o saber. Trilham, ainda, os pontos em torno dos quais foi possível configurar-se a experiência formativa dos professores e os indícios de transmissão. Persegui, então, questões que emergiram nos espaços de palavra acerca dos sujeitos e sua relação com o saber, em torno das quais fosse possível tecer não só articulações com a teoria psicanalítica, mas, também, convocar a Educação e a Linguística Aplicada para, assim, trilhar a experiência formativa dos professores.

Recupero, então, algumas questões da noção de experiência mobilizada neste trabalho. A primeira refere-se ao seu caráter não integralizável. Algo da experiência resiste à significação, permanecendo perdido. É justamente essa parcela indiscernível da experiência que provê as condições de sua transmissibilidade, visto que abre ao sujeito uma via para elaborá-la. Minha escrita dos relatos perscrutou essa via faltosa, porém perceptível, focando dois vértices. O primeiro buscou as regularidades discursivas produzidas por meio do que era recorrente no material de análise e analisou o campo do dizer produzido na pesquisa, a fim de problematizar os modos pelos quais o sujeito se posiciona em relação a elas. O segundo vértice privilegiou o equívoco, o não-dito, o riso, o espanto, o estranhamento, enfim, marcas do não-saber na experiência de formação. A narrativização foi a via que permitiu articular essas marcas do material de análise, indiciadoras da experiência na formação, pois, como afirma Reis (2015, p. 23), com base nos trabalhos lacanianos:

[...] narrar é um modo de se aproximar dela [da experiência], de recriá-la ou de criar algo novo a partir do reconhecimento de sua perda. ‘O real é o limite de nossa experiência’ (LACAN, 1957, p. 52); e, assim, toda fronteira, toda demarcação entre dois espaços, toda relação do sujeito com o outro, com os objetos, ao longo da vida, estará sempre afetada por essa dificuldade, por esse inefável da noção de experiência, postulando ‘a incoerência como condição da experiência’. (LACAN, 1936/1998, p. 85).

A segunda questão a ser retomada quanto à experiência formativa concerne aos modos como a relação com o saber podem afetar o sujeito, transformando-lhe, fornecendo-lhe outros contornos, (re)acomodando traços não simbolizados, ensejando, assim, a transmissibilidade de algo da experiência. Contudo, nesse processo, o sujeito pode experimentar a perda, como assinala Reis (2015, p. 18, grifo do autor):

É importante destacar que o caráter transformador da experiência surge como signo também de uma perda. Algo deixa de ser como era e passa a existir, modificado e alterado. Portanto, a perda é signo da transformação assim como a transformação é signo da experiência.

Os fios narrativos do relato de experiência se tecem, também, em torno da elaboração dessa perda desencadeadora da transformação. O sujeito agarra-se à rede significante, indiciada pelas recorrências discursivas presentes no dizer, apontando para as identificações nas quais o eu se ancora. Entretanto, na experiência de formação, é possível que algo do acontecimento esburaque essa rede e o sujeito se sinta interpelado a posicionar-se diferentemente. A trans-formação se dá como resultante da produção de um saber: saber de si, do outro, do mundo e inclusive o não-saber, irredutível à própria experiência e às tentativas de significá-la.

Nesse sentido, a transmissibilidade de algo da experiência se articula ao seu potencial de transformação. Logo, a escrita opera seus efeitos tanto em quem escreve quanto em quem se deixa levar pela experiência de leitura, conforme uma bela proposição de Foucault (2001, p. 865): “A relação com a experiência deve, no livro, permitir uma transformação, uma metamorfose, que não seja simplesmente a minha, mas que possa ter um certo valor, um certo caráter acessível para os autores, que essa experiência possa ser feita pelos outros”. Neste sentido, a experiência formativa relatada pode ressoar em outro(s) sujeito(s), configurando traços de transmissão.

3 Uma experiência relatada

A narrativa deste primeiro relato foi tecida em torno da seguinte indagação, enunciada por uma das professoras em formação durante um dos espaços de palavra: “Será que sirvo pra isso mesmo?” Considerada como uma interrogação tanto no sentido da suspensão de uma certeza quanto como um certo mote recorrente durante os meses em que se deu a pesquisa, a questão emoldura as trajetórias subjetivas de alguns professores em formação. O “isso”, naquele instante da enunciação, parecia se referir a um imaginário9 compacto de professor, desfiado no decorrer deste relato. Contudo, ele me chamou a atenção por, na psicanálise, designar o inconsciente, o real, a falha no saber consciente, o inapreensível na e da experiência. Na medida em que o pronome demonstrativo assume função de dêitico nessa pergunta, permitindo que o referente permaneça indefinido, a exploração do que poderia estar contido nisso desencadeou um movimento metonímico levado a efeito nos espaços de palavra, na depuração da (res)significação da posição de professor e de seus modos de ocupação. Esse relato trilha as intervenções que ensejaram fraturas no imaginário cristalizado sobre o que é ser professor e ensinar-aprender uma língua, por meio do insólito confronto com a falta no Outro.

No primeiro semestre, cada dupla de professores em formação observou seis aulas de uma mesma turma do Fundamental 2. Após as aulas, tínhamos um espaço de palavra do qual todos os professores participavam. A circulação da palavra nessas oportunidades permitiu, dentre outras questões, flagrar o medo e a (in)segurança dos professores diante disso que causava incômodo, surpresa, angústia.

Os professores em formação rememoravam sua vivência como alunos. “Era tudo muito bagunçado”, Linda remarcava. “Eu não aprendi nada na escola”, “O professor só ensinava o verbo to be”, outros acrescentavam. Entretanto, comentários sobre as observações descreviam outro cenário. Era recorrente a surpresa dos professores em formação diante de como o professor em serviço conseguia ensinar e do “quanto que os alunos sabem de inglês”. “Eu fiquei de cara!”, confessou Bella logo após sua primeira observação.

Outro sentimento expresso nos primeiros espaços de palavra do segundo semestre, quando da implantação na sala de aula dos projetos de ensino-pesquisa, foi o medo. Os professores em formação eram bem jovens e nunca haviam lecionado em uma sala de aula. Eles queriam “conquistar os alunos”, “incluir a todos”, obtendo, assim, aprovação e, consequentemente, a seu ver, serem legitimados como professores. Sem dúvida uma mestria idealizada, um ideal utópico, potencial de muita angústia. Afinal, é justamente a falta da falta simbólica que a desencadeia (LACAN, 2005). Então, será que os professores em formação dariam conta de modalizar o ideal, ou seja, disso que dele destoa?

Essa interrogação silenciosa ficou no ar nos primeiros espaços de palavra e pode ter desencadeado um primeiro momento de suspensão da certeza quanto à imagem de professor. Remeto-me aos três tempos lógicos propostos por Lacan (1998a) que se referem a momentos temporais do sujeito: os instantes de ver, o tempo de compreender e o momento de concluir. Eles assinalam o papel fundamental da lógica coletiva para precipitar uma asserção subjetiva. Explico.

Antes das observações, ser professor remetia a uma imagem caracterizada pela desorganização, ineficácia e insucesso. O que se faz diante disso? Uma resposta possível é a paralisação impotente. Entretanto, o processo de experimentar a sala de aula de uma outra posição, a de observadores e professores em formação, possibilitou uma reconfiguração dessa imagem, entretecida na surpresa diante da prática do professor em serviço, seus resultados e na remissão aos fios discursivos da formação do Curso de Letras.

Erigia-se ali um ideal, referido à educação na modernidade, que apontava para o domínio, controle dos resultados e a produção de conhecimentos. Ainda que tanto a imagem do fracasso como a do sucesso remetessem para a polaridade do “ou tudo ou nada” - o super professor ou o professor de mentirinha,10 o ideário de educação da modernidade, da ordem do impossível (FREUD, 1996) -, não deixava de cumprir sua função, qual seja, propiciar um eixo identificatório em torno do qual os professores em formação pudessem investir. O professor em serviço foi colocado como uma referência imaginária e simbólica de mestria, em torno da qual os formandos puderam se capturar em um primeiro instante de verem-se professores de língua inglesa. Ou seja, nem tudo é o que parece. Não há professor herói, nem um fracasso total destituidor da escola.

Na circulação do dizer nos espaços de palavra, foi possível ver o deslocamento da posição de impotência dar lugar à dimensão da impossibilidade (LACAN, 2005). A improbabilidade de um ideal ou de uma imagem idealizada implica que algo de possível acontece em sala de aula. Essa constatação parece óbvia, mas não é, se considerado o quadro de desalento e de cessão do desejo que assola professores na educação pública (PEREIRA, 2016).

A partir desse primeiro instante, as intervenções dos professores e a decorrente conversa sobre esses momentos nos espaços de palavra proveram um furo nesse ideal de (im)perfeição. As trocas linguageiras provenientes de posições discursivas sujeito diferentes do sujeito - professor em formação e professor em serviço - instauravam contraditórias lentes sobre a imagem de professor e, consequentemente, presentificavam a falta no Outro. Nessa rica troca de perspectivas instituiu-se uma dialogicidade na qual a imagem de professor foi desestabilizada e uma interrogação instituída: Afinal, o que é isso: ser professor? O que é isso: ensinar uma língua estrangeira em uma escola pública? Essas foram questões que instauraram a condição para o tempo subjetivo de compreender a experiência de professor, segundo tempo lógico do sujeito (LACAN, 1998a). No exercício da docência compartilhado com o professor em serviço, os professores em formação empreenderam movimentos na direção de encontrar outros referenciais no campo do Outro aos quais eles se identificavam como professores.

No primeiro espaço de palavra, após a primeira aula que Linda11 e Alba, sua parceira de projeto, dirigiram em conjunto com o professor em serviço, elas diziam estar muito satisfeitas porque “tudo deu certinho, conforme a gente planejou!”. Ao que perguntei: “O que mostrou pra vocês que TUDO12 deu certo?” Em meio ao riso, Linda confessou: “Ah, que eu me senti bem.” E imediatamente corrigiu: “Não, que os alunos estavam participando, que eles entenderam.” Em outra ocasião, rindo, ela confessa: “Ah, quando a Carla e o X13 estão sorrindo é porque a gente tá fazendo certo.” Por fim, declarou: “Eu tenho um novo favorito!”: um aluno que nunca participava das aulas, cujo nome o professor em serviço teve dificuldade de lembrar. Bella e Claire, outra dupla de professoras em formação, também vibraram com o alcance da proposta pedagógica na primeira aula. Elas trabalhavam com tirinhas de histórias em quadrinhos (HQ) e Bella insistiu em falar em inglês o máximo possível, convidando e motivando os alunos a responderem, valendo-se do que sabiam da língua. Alguns conseguiram, os alunos “problemáticos” deram algumas tréguas na “indisciplina” e a aula cumpriu muito do planejado. Outro ponto significativo na implementação da proposta delas foi a mudança abrupta da dinâmica de regência. Havia sido combinado que os professores em formação dariam as aulas em parceria com o professor em serviço, pois o projeto não estava atrelado ao estágio supervisionado, impossibilitando-lhes legalmente assumir a regência. Entretanto, ao entrar na sala do 7º ano, Bella anunciou ao professor: “Pode deixar que a gente vai fazer tudo.”14 O engajamento dos alunos, nestes casos, teve o valor de uma aprovação, uma chancela da ocupação desses professores em formação na posição docente.

A primeira vez diante de uma sala de aula presentifica um confronto com o inesperado, com o insólito desconhecido. “Como vai ser isso?”, se perguntava Claire. A aprovação e o engajamento dos alunos nas atividades parecem ter constituído uma evidência de captura do professor no campo do Outro, provendo-lhe, assim, um sentido e uma entrada na assunção da posição docente. A alienação, como uma das operações de constituição do sujeito, se desencadeia pela falta radical de identidade. Cada vez que o furo na linguagem se evidencia para o sujeito, confrontando-o com o real, pode instalar-se no sujeito um movimento de alienar-se no Outro em busca de sentidos que lhe provejam uma ancoragem. A rede de significantes resultante da alienação provê um campo imaginário com certa consistência que sustenta a constituição da instância egóica. No caso dessa pesquisa, ver-se capturado pela aprovação dos alunos e dos professores supervisores proveria uma primeira ancoragem para a constituição identitária de professor. A possibilidade de o sujeito constituir para si uma imagem se dá pelo olhar do Outro, pela invocação desse campo endereçada ao sujeito, provendo-lhe tanto uma imagem como um campo de significantes ao qual se alienar. As respostas de Linda parecem flagrar esse enlace do sujeito simultaneamente à imagem e ao significante do desejo do Outro, provendo-lhe uma possível entrada na posição de professora tanto pelo efeito que suas ações despertavam nos alunos, como por um afeto indizível perceptível em seu “sentir-se bem”. Entretanto, é preciso lembrar que na alienação à aprovação dos alunos reside o risco de ficar-se refém do Outro. Para sustentar-se na posição docente, o professor precisa autorizar-se nesse lugar, por meio de sua relação com o saber, sua inscrição nesse campo, pois sua prática também se constituirá de frustrações. Assim, no percurso de Linda, a separação precisaria incidir.

Outro elemento significativo no percurso subjetivo dos professores em formação e que parece ter surtido efeitos no momento de compreender algo da docência foi o planejamento das aulas. Ele aparecia como referenciador de um primeiro movimento de apropriação de algo dessa instância imaginária de professor. Os planos de aula resultantes desse momento da formação foram muito valorizados por alguns dos professores em formação, assumindo para eles a garantia de sucesso da aula. A valorização do planejamento resultou da percepção do trabalho árduo para executá-lo e de um possível engajamento compromissado com o saber para que fosse exequível e sustentasse, de algum modo, as ações dos professores em formação em sua atuação. Além disso, os planos de unidade e de aulas demonstravam seu esforço para efetivar propostas pedagógicas “prazerosas”. Consequentemente, quando as propostas não se efetivavam como esperado ou algumas aulas foram canceladas devido a atividades extraclasse promovidas pela escola, os professores em formação experimentavam a decepção, como expresso por Alba em seu memorial reflexivo:

Quando minhas aulas foram cortadas pela metade ou canceladas eu me senti muito frustrada, na minha cabeça era como se os planos de aula estivessem indo por água abaixo, que eu teria que mudar tudo (eu realmente mudei algumas coisas), que meu trabalho e esforço estavam sendo jogados fora.

Parece ter se configurado para Alba que o professor não é indispensável. A imagem idealizada de professor e de ensino impossibilitava que ela lidasse com os impasses e com o imprevisível, constitutivos da prática docente. Talvez aí possa ter se configurado uma primeira fissura na dependência de aprovação e na imagem idealizada de professor. Quando a palavra falha em instituir a falta, a contingência pode funcionar como intervenção e provocar um efeito subjetivante, como parece ter acontecido com Alba, registrado em outro trecho de seu memorial reflexivo:

Bom, agora eu percebo que foi inútil me sentir assim, não era uma situação que estava nas minhas mãos, um pouco de chateação é ok, mas não da forma como me senti. Acho que foi uma situação com a qual pude aprender muito. Vejo que não é um comportamento sustentável para quando eu finalmente for professora, estiver inserida na realidade escolar. Se todas as vezes que um imprevisto acontecer eu ficar chateada, minha carreira não vai durar muito, já que sempre vai ter algo na escola com o potencial de ‘atrapalhar’ meu planejamento. E essas atividades que ‘atrapalham’ são essenciais para os alunos também, a maioria delas tem algum potencial e propósito educativo; a escola é mais que só a sala de aula.

Para Alba, foi possível encontrar, ao menos nesse momento da formação, sentidos mais plausíveis para a docência que não se prestar a agradar o outro e depender dessa aprovação para sustentar sua posição, resultando na construção de um saber que considera uma falha estrutural em si mesmo.

Em um dos espaços de palavra, outros professores em formação também se mostraram descontentes por imprevistos nos planejamentos. Duas aulas, ministradas por Marcelo e a dupla de Claire e Bella, respectivamente, não “deram certo”, como eles avaliaram. Os alunos não conseguiram executar parte do que eles propuseram devido à complexidade das tarefas ou por decisões quanto à dinâmica de sala de aula que produziram uma desorganização inibidora da produção prevista. As aulas foram marcadas por disrupturas na sequência proposta nos planos. Ambas estavam baseadas em dinâmicas de trabalho em grupo. Todavia, na aula de Claire e Bella os alunos formaram grupos entre os amigos e houve muita conversa e dispersão. As professoras em formação tentaram motivá-los a se engajar na proposta, mas com pouco resultado. Essas são situações comuns no dia a dia do professor, mas causaram frustração nos professores em formação.

A indagação de abertura do espaço de palavra daquele dia partiu do professor em serviço, que, de cara, se dirigiu a Marcelo, Claire e Bella em tom polido, mas incisivo: “Vocês ficaram satisfeitas com a aula?” Marcelo ficou silencioso e cabisbaixo, inconformado com sua atuação e com a resposta dos alunos. Seu silêncio dizia, possivelmente, de uma decepção. Claire e Bella abanaram a cabeça. Diante da negativa, perguntei: “Por que não?” As justificativas eram superficiais, inicialmente: os alunos estavam muito dispersos, não houve tempo, demorou muito para formarem os grupos, dentre outras. A grande queixa de Bella era que ela não queria que suas aulas fossem chatas, por isso tentava implantar dinâmicas em grupo e outras estratégias que tornassem a aula mais “legal”. Insisti perguntando os por quês de cada um dos exemplos dados para a aula ter sido qualificada como “desorganizada”. O professor seguiu minha abordagem até que Claire admitiu: “Porque a falta de controle partiu da gente.” Esse me pareceu ser outro tempo de compreensão sobre o ser professor, resultante de efeitos subjetivantes das intervenções. Configurou-se ali uma possível desidealização do planejamento e uma implicação subjetiva, na assunção da responsabilidade pelas escolhas, decisões ou falta delas. Era preciso, porém, fornecer aos professores em formação subsídio para elaborarem as possíveis razões para a “falta de controle”, tanto da perspectiva pedagógica como subjetiva.

Dirigi-me a Marcelo e à dupla Claire e Bella, tecendo considerações sobre a necessidade de didatizar o conteúdo da língua, apontando para conhecimentos do campo da Linguística Aplicada (LA) sobre ensinar uma língua estrangeira. Minha posição de coordenadora do projeto e formadora falava mais alto do que a de mediadora do espaço de palavra e eu agenciava o discurso da universidade (LACAN, 1992). Nesta lógica discursiva, eu me posicionava como intermediária entre o saber legitimado sobre ensino-aprendizagem de língua inglesa e os professores ocupavam a posição de nenhum saber. A intervenção, nesse momento, agenciava o saber, intentando convidar os professores em formação a se apropriarem de algo desse campo que tornasse seus planos mais exequíveis, possibilitasse a eles uma inscrição subjetiva mais sustentada na lógica do saber legitimado. A autorização subjetiva derivada da apropriação de uma parcela do saber do campo da LA e seus efeitos poderiam embasar as ações dos professores. O agenciamento interpelava-os, também, quanto à legitimação que buscavam pela via da aprovação do outro, muito dependente do prazer que suas propostas despertavam nos alunos. Permanecendo nessa via, seu ensino alinhava-se à cultura do consumo, que associa a aprendizagem ao prazer, elide o esforço e a confrontação inerentes ao processo, foca no imediatismo e no gozo, bem como promete entregar o conhecimento como produto integralizável. Não há espaço para uma relação com o saber nessa posição. A intervenção visava, ainda, mostrar o engodo da fixação do sujeito na posição de objeto de aprovação do Outro, a importância de fazer avançar o percurso subjetivo na direção de apropriar-se de um modo particular da posição de professor calcado no saber legitimado sobre ela, ou seja, promover a separação do sujeito de sua alienação.

Ao mesmo tempo, o professor em serviço insistia na necessidade de haver uma “rotina” na sala de aula que promovesse a aprendizagem. Entretanto, nesse momento, nossas vozes eram dissonantes, porque enquanto eu apontava para a impossibilidade de uma utópica aprovação total e para o risco de se ficar preso no narcisismo pela demanda de reconhecimento do outro na relação pedagógica, ele se referia à sua prática, como que justificando-a. Nesse entremear de falas, o que eu menos queria era fornecer um modelo de como ser professor. Então, perguntei: “Por que tem de ser bacana o tempo todo? Aprender não pode ser chato também?” Depois de um breve silêncio, Claire parece ter concluído: “É, pode ser o melhor professor do mundo! Vai chegar uma hora que vai ficar chato, os alunos vão ficar entediados.”

Claire, Bella, Alba e alguns outros professores em formação15 se reconheceram “professores” aceitando o enlace instituído na alienação à imagem idealizada de professor, em um primeiro momento. Esse parece ter representado um momento de ver-se professor, aderindo precipitadamente a um conjunto de significantes que idealmente definiriam o que é isso: um professor. Esse instante foi fundamental, pois provocou um efeito subjetivante nos professores em formação, ao prover uma entrada para a apropriação desse lugar. Contudo, à medida que decorriam as aulas nas quais assumiam a regência em parceria, presentificava-se a incompletude do ideal, o atravessamento da contingência da prática, a impossibilidade da correspondência termo a termo. Os espaços de palavra trabalharam esse desajuste entre o ideal e o contingente e instauraram um tempo de compreender. A reflexão sobre a impossibilidade de tudo ensinar, a invocação do conhecimento acadêmico sobre as metodologias de ensino de língua estrangeira e as teorias de ensino-aprendizagem, as incursões do professor em serviço sobre sua experiência docente estabeleceram outros modos de saber sobre o que é ser professor. Configuraram, portanto, pontos de transformação na compreensão do que seja ensinar e ser docente. Claire e Alba parecem ter flagrado esse furo no ideal, ajustando-se a uma atuação mais plausível. Nesse sentido, a atuação em sala de aula e a discursivização sobre ela foram decisivas para possibilitar uma desconstrução dessa imagem alienante, a abertura para diferentes formas de “ser professor” e, assim, a depuração do saber sobre essa posição.

A suspensão da imagem totalizante de professor instaura um não sentido potencializador da ressignificação da rede de significantes na qual o sujeito ancora sua imagem. Como resultado da impossibilidade de uma única significação, o sujeito se movimenta em busca de outros significantes que possam lhe conferir sentido, configurando a operação de separação, o que pode precipitar o tempo lógico de concluir, sempre pontual. Enquanto o sentido permanece fixo, não há espaço para o desejo e, consequentemente, para movimentos subjetivos.

Contudo, será que os professores dariam conta disso, ou seja, de abrir mão de uma imagem totalizante de professor e apropriar-se de um lugar próprio, sustentado pelo desejo e assim valer-se de sua divisão subjetiva? A experiência de Claire parece indicar que sim.

Em várias ocasiões da pesquisa, Claire parecia desconectada da proposta do curso dos componentes curriculares. Demorou até o último momento para esboçar a proposta de projeto de intervenção na escola, só o fez depois de uma pontuação minha, como sua professora, na qual discutimos algumas ideias. Uma delas a enlaçou e foi aperfeiçoada no decorrer das orientações e supervisões das aulas no Curso de Letras e nos espaços de palavra. Como o professor em serviço usava histórias infantis clássicas adaptadas, sua proposta foi que os alunos escrevessem suas próprias histórias. Embora a proposta tenha sofrido várias alterações para aproximá-la do que os alunos conseguiriam realizar, parece-me que aí já reside um ponto de implicação subjetiva na posição de professor: valer-se da referência ao professor em serviço para propor algo diferente, com potencial de convocar algo da subjetividade dos alunos. Outro ponto consistiu na paulatina confiança desenvolvida na experiência da prática docente em conjunto com a conversa sobre seus desafios e angústias nos espaços de palavra. Em vários momentos, ela expressou sua insegurança sobre o quanto poderia assumir a regência: ela podia chamar a atenção dos alunos, requerer mais disciplina e atenção, falar alto e fazer sua palavra valer? Querer assumir para si prerrogativas da docência relacionadas à disciplina e, consequentemente, à figuração da castração também indicia esse movimento de implicação subjetiva. Entretanto, uma possível precipitação do desejo de educar também se indiciou no último espaço de palavra e sua retomada no memorial reflexivo. Perguntei aos professores o que tinha sido mais importante nesse período em que eles haviam atuado na escola. Após alguns colegas terem assinalado o caráter de acolhimento e de escuta dos espaços de palavra, momentos nos quais “a gente tá junto, você tava com a gente, compartilhando”, Claire toma a palavra, tomada pela emoção: “Estava prestes a trancar o curso de Letras. Continuei só por causa do YY,16 porque isso aqui despertou alguma coisa, tipo que eu queria seguir isso.” “Despertou o que?”, indaguei. “Eu quero dar aula, isso!”

Considerações Finais

Se a experiência é isso que passa o sujeito (LARROSA, 2011, p. 5), atravessando-o desde seu êxtimo e marcando nele seus efeitos, perceptíveis na elaboração subjetiva que se dá em sua narrativização, a formação compreendida durante a pesquisa intervenção de orientação clínica em tela neste artigo pode ser encarada como tal.

Primeiramente, porque fragmentou o imaginário compactado de insucesso sobre ser professor e ensinar inglês na escola regular e pública, abrindo o leque de significantes para a produção de novas significações. As observações e atuações em sala de aula afetaram alguns dos participantes da pesquisa, constituindo, em si mesmas, intervenções produtoras de uma reorganização de sua realidade, desalojando certezas, modalizando idealizações, convidando à reflexão, que possibilitaram a emergência do novo. Nesse sentido, acredito que para alguns o encontro-confronto com a sala de aula na posição de professor e com a língua inglesa na posição de objeto a ser ensinado instituiu um instante de ver-se professor. Nesse primeiro momento de (re)conhecimento de uma imagem para si, ela se construiu na dependência da aprovação do Outro e da sedução pedagógica. Entretanto, para se sustentarem na posição de professor de inglês, esses professores em formação precisariam desvencilhar-se da dependência do gozo advindo da posição de objeto do Outro. Neste ponto, os espaços de palavra configuraram um acontecimento na experiência de formação de alguns professores, porque apresentaram-se como arenas nas quais as certezas sustentadas em ideais imaginários foram sacudidas. Significaram, ainda, momentos de compreensão de uma possível asserção subjetiva nesse tornar-se professor, emoldurada por uma questão com valor de enigma: o que e como seria isso - ser professor, ensinar, ensinar uma língua estrangeira naquele contexto?

Os espaços de palavra novamente foram fundamentais na instituição da experiência na formação, pois a sustentação do não saber, bem como a oferta de saberes já legitimados sobre a docência e sua prática, forneceram aos professores em formação a possibilidade de se interrogarem quanto ao saber, ensejando uma relação com ele.

A demoção dos ideais foi um primeiro efeito dos questionamentos levantados nos espaços de palavra e das constatações decorrentes de observações e das intervenções dos professores em formação em sala de aula. Procurando suspender os efeitos de sentido cristalizados nos significantes trazidos pelos professores para designar o que era ser professor e ensinar-aprender, as interrogações proporcionaram um desajuste entre a imagem que traziam e outra mais plausível. Essa brecha instituiu outras possibilidades identificatórias, ensejando aos professores (dis)cernir modos de se apropriarem de algo da docência, ainda que levemente marcados pelo desejo, como no caso de Claire e Alba. Mesmo que uma imagem ideal outra possa ter surgido no lugar da anterior de insucesso, parece-me ter ocorrido uma mudança no sistema representacional quanto ao que é ser professor e a possibilidade de ensinar a língua inglesa como fruto dessa experiência de formação.

A orientação da angústia de uma posição imobilizante para uma posição produtiva configurou-se um segundo efeito da experiência de formação. Os espaços de palavra proveram momentos para narrar as vivências dos professores, tê-las escutadas de outras perspectivas, permitindo que elas fossem ressignificadas e depuradas na experiência de formação. Contribuiu, também, como desencadeadores de um percurso de formação com forte investimento subjetivo e, portanto, marcado por uma relação com o saber. O investimento subjetivo está indiciado nas propostas de intervenção configuradas nos projetos de ensino-pesquisa e nos modos de sua implementação. Ambos convocaram os professores em formação a se embrenharem na pesquisa de técnicas e abordagens de ensino que não conheciam, a articularem o campo do conhecimento abordado no Curso de Letras na confecção de propostas que, aos poucos, foram ganhando a cara de cada um. Foi o caso de Bela, cuja identificação com a dramaturgia no ensino médio sustentou sua proposta de ensino; Alba e Linda, que propuseram um trabalho com gêneros textuais e, para tanto, investigaram e pesquisaram teorias de linguagem e propostas pedagógicas com as quais não tinham familiaridade; Marcelo, que levou uma proposta de teste para inventariar estilos de aprendizagem e teve que se familiarizar com noções da Psicolinguística; Renata, que comprou a ideia de convidar três estadunidenses17 para trocarem e-mails com os alunos e levou-os até a escola para conversarem com eles; e, por último, de Claire, que descobriu uma razão para continuar o curso de Letras na possibilidade de assumir a docência.

Percebo nesses movimentos indícios de transmissão, na medida em que esses professores em formação a-pre(e)nderam algo do saber do campo do Outro. Primeiro, alienando-se e identificando-se a ele, prendendo-se nele, referindo-me novamente a Lacan (1985, p. 130). Depois, investindo-o subjetivamente, para, por fim, apostar sua própria pele em suas propostas pedagógicas. Alba e Claire pareceram ter dado testemunho desse enlaçamento na relação com o saber, na descoberta de um modo desejante de docência. A experiência com a palavra, nos espaços de palavra, e seu valor na trajetória subjetiva de formação docente aparece materializada no dizer de Claire: “porque isso aqui despertou alguma coisa.” Mostra algo fundamental, (in)determinado, embora indizível, que mobiliza o sujeito a apre(e)nder uma posição e que se encontra numa esfera além do conhecimento formalizado e aquém de uma simples emoção.

Depreende-se daí que um dos frutos dessa experiência de formação foi a construção de um saber: saber de si, do outro, da escola, dos alunos, da sala de aula, espaços nos quais o professor precisará encontrar meios para mediar sua permanência, sua esfera de ação. Saber não idealizado, nem totalizante, mas em permanente reconstrução.

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1Agradeço a leitura detalhada e as sugestões da Profa. Dra. Nádia Laguárdia de Lima, supervisora do estágio de pós-doutoramento que resultou neste trabalho. Esta pesquisa foi aprovada no Comitê de Ética em Pesquisas com Seres Humanos (CEP) da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), em 2019.

2A psicanálise aplicada ou em extensão propõe-se a investigar e intervir com os fundamentos da psicanálise no mal-estar manifesto no campo social. O caráter intervencionista desta pesquisa direcionou-se tanto por um modo de compreensão e problematização de uma dada construção discursiva da realidade com vistas a indicar como o sujeito se posiciona em relação a ela, como pela instauração de brechas por onde a realidade subjetiva pudesse se (re)organizar (PEREIRA, 2016). Esclareço, ainda, que o relato de experiência aqui distingue-se do que é proposto, comumente, em pesquisas de base empírica, pois considera a noção de experiência, tal como proposto por Bondía (2002) e Larrosa (2011), ou seja, estruturante de sua escrita. Adiante, essa distinção é aprofundada.

3Durante a primeira parte da atuação na escola, os professores fizeram observações participativas nas aulas do professor em serviço. No segundo semestre, como pesquisadora, foi a minha vez de observar as aulas dos professores. Elas produziam material para uma sessão de feedback, filmada e enviada para os professores. Esses videocasts causaram significativa interação via WhatsApp.

4 Larrosa (2011) grafa o pronome demonstrativo indefinido “isso” em itálico para referenciar o real, registro do inapreensível e não representável pela linguagem, que retorna atravessando o sujeito e sua relação com o mundo.

5Valho-me da grafia proposta por Lajonquière (2013, p. 459), baseando-se nas proposições lacanianas quanto ao saber (LACAN, 1985), marca o duplo processo constitutivo da aprendizagem: o aprender como operação de aquisição de conhecimentos que demanda uma apreensão para si daquilo que diz é do campo do Outro. A resultante não é a reprodução ou integralização do conhecimento, mas uma elaboração particular de saber.

6Em um trabalho anterior (TAVARES; DRIGHETTI, 2018), esses três princípios foram mobilizados, a fim de discutir o embate constitutivo na relação teoria-prática e os modos de afetação dos professores de inglês pré-serviço, de modo a alterar sua constituição identitária.

7Ao início de cada semestre, uma das dinâmicas que costumam abrir um canal de interação entre professores e professores em formação é indagar-lhes quanto às suas expectativas em relação a determinada disciplina. A discursivização sobre elas é, normalmente, marcada pelo entrecruzamento do simbólico com o imaginário, evidenciando um dizer prenhe de discursividades do senso comum, com pouca incidência de marcas de implicação subjetiva.

8 Zanetti e Kupfer (2006) e Franke e Silva (2012) defendem que o relato de caso requer que sua escrita delineie um enigma do sujeito em foco, dele se valendo para fazer operar a teoria psicanalítica por meio de seus princípios norteadores.

9O imaginário aqui refere-se ao registro de matrizes de sentido que possibilita interpretar e mediar a construção da realidade, como propõe Vieira (2009, p. 2): “O imaginário, ao contrário, vai se definir como tudo aquilo que faz corpo, que faz um, que vejo um começo, meio e fim, que não é nebuloso, manchado ou confuso.”

10Sobre essa adjetivação do professor e os efeitos de sentido que ela produz na memória discursiva dos professores em formação, remeto a Tavares (2010).

11Todos os nomes são fictícios para proteger o anonimato dos participantes da pesquisa.

12A grafia em caixa alta indica uma ênfase na fala.

13“X” refere-se ao professor em serviço, parceiro do projeto e, também, participante da pesquisa.

14É preciso dizer que o professor em serviço acompanhou todas as aulas, colaborou e interviu sempre que necessário. Contudo, chama a atenção a ilusão de completude marcada pelo “tudo” na asserção de Bella.

15Por se tratar de um relato de experiência formativa comprometido com a subjetividade, não é possível generalizar que todos os professores em formação compartilharam essa trajetória, trilhada na narrativa dessas intervenções. Outros participantes da pesquisa e o próprio professor em serviço são contemplados em outros relatos, em elaboração no momento dessa escrita.

16Nome do componente curricular do curso de Letras que eles estavam cursando no quarto período.

17Os três eram English Teaching Assistants (ETA) que estavam na universidade sob minha supervisão em outro projeto, apoiado pela CAPES e pela Fulbright.

Recebido: 21 de Julho de 2020; Aceito: 11 de Dezembro de 2020

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