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Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade

versión impresa ISSN 0104-7043versión On-line ISSN 2358-0194

Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade vol.29 no.60 Salvador oct./dic 2020  Epub 24-Ago-2021

https://doi.org/10.21879/faeeba2358-0194.2020.v29.n60.p227-245 

DOSSIÊ TEMÁTICO

O IDEAL DA EXCELÊNCIA ESCOLAR E OS CONFLITOS VIVIDOS PELO ALUNO DE CLASSES POPULARES1

THE IDEAL OF THE SCHOOL EXCELLENCE AND THE CONFLICTS LIVED BY THE POPULAR CLASS STUDENT

LO IDEAL DE EXCELENCIA ESCOLAR Y LOS CONFLICTOS VIVIDOS POR EL ESTUDIANTE DE CLASE POPULAR

*Doutoranda em Educação pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Psicopedagoga no Instituto Superior de Educação (ProSaber) e pedagoga da rede municipal de Educação de Niterói. E-mail: lucinedu@gmail.com


RESUMO

Este artigo procura compreender o ideal da excelência escolar e a relação entre esse ideal e a história singular do estudante. Considera alguns conceitos da Psicanálise, sobretudo eu ideal, ideal do eu e supereu, para analisar os conflitos vividos pelos alunos diante das demandas idealizadas presentes em escolas de alto rendimento. Neste sentido, entre os esforços de adaptação ou a resistência aos modelos impostos, interessa-nos questionar a naturalização e o “peso” do ideal de excelência para a formação subjetiva do estudante de classes populares. Priorizamos a vivência daqueles que podem estar em posição inferiorizada, devido a um suposto distanciamento entre o capital cultural herdado da família e a cultura escolar. A partir da metodologia de levantamento bibliográfico, refletimos em torno da polissemia e da não consensualidade acerca do conceito de excelência escolar, de modo a ponderar como esse ideal contribui para promover uma espécie de vigilância social na escola. Por fim, consideramos a plasticidade da influência desses ideais, bem como acreditamos nos diferentes destinos subjetivos que podem ser dados à idealização escolar.

Palavras-chave: Ideal da excelência escolar; Instâncias ideais; Idealização; Alunos de classes populares; Escolas de alto padrão acadêmico

ABSTRACT

This article seeks to understand the ideal of school excellence and the relationship between that ideal and the student's unique history. It considers some concepts of Psychoanalysis, above all, the ideal self, the ideal of the self and the superego, to analyze the conflicts experienced by students in face of the idealized demands present in high-performance schools. In this sense, among the adaptation efforts or the resistance to the imposed models, we are interested in questioning the naturalization and the “weight” of the ideal of excellence for the subjective formation of the student from popular class. We prioritize the experience of those who may be in an inferior position, due to a supposed distance between the cultural capital inherited from the family and the school culture. Based on the bibliographic survey methodology, we reflect on the polysemy and the lack of consensus on the concept of school excellence, in order to consider how this ideal contributes to promoting a kind of social surveillance at school. Finally, we consider the plasticity of the influence of these ideals, as well as we believe in the different subjective destinations that can be given to school idealization.

Keywords: Ideal of school excellence; Ideal instances; Idealization; Students from popular classes; High academic standard schools

RESUMEN

Este artículo busca comprender el ideal de excelencia escolar y la relación entre ese ideal y la historia única del estudiante. Considera algunos conceptos del psicoanálisis, sobre todo, el yo ideal, el ideal del yo y el superego, para analizar los conflictos experimentados por los estudiantes frente a las demandas idealizadas presentes en las escuelas de alto rendimiento. En este sentido, entre los esfuerzos de adaptación o la resistencia a los modelos impuestos, estamos interesados ​​en cuestionar la naturalización y el "peso" del ideal de excelencia para la formación subjetiva del alumno de clase popular. Priorizamos la experiencia de aquellos que pueden estar en una posición inferior, debido a una supuesta distancia entre el capital cultural heredado de la familia y la cultura escolar. Con base en la metodología de la encuesta bibliográfica, reflexionamos sobre la polisemia y la falta de consenso sobre el concepto de excelencia escolar, para considerar cómo este ideal contribuye a promover un tipo de vigilancia social en la escuela. Finalmente, consideramos la plasticidad de la influencia de estos ideales, así como creemos en los diferentes destinos subjetivos que se pueden dar a la idealización escolar.

Palabras clave: Ideal de excelencia escolar; Instancias ideales; Idealización; Estudiantes de clases populares; Escuelas académicas altas

Introdução

A passagem pela escola pode nos levar a refletir acerca da excelência escolar, sobretudo quanto às consequências que esta narrativa provoca e, portanto, como um ideário a ser problematizado, ante a existência de mecanismos que reforçam as desigualdades sociais no conjunto da própria escola. No contexto das demandas pela democratização da educação básica, não há como não ponderar as implicações que a prerrogativa da excelência escolar pode exercer sobre a trajetória educacional de muitos estudantes.

Diante disso, este artigo pretende problematizar o ideal da excelência escolar e a relação entre esse ideal e a história singular do estudante. Considera alguns conceitos da Psicanálise, tais como eu ideal, ideal do eu e supereu, para analisar os conflitos vividos pelos alunos diante das demandas idealizadas presentes em escolas de alto rendimento.

Na tentativa de adaptação à escola, o sujeito pode encontrar mais dificuldade ou mais facilidade em assumir os padrões referentes ao ideal de excelência educacional. Entretanto, cabe questionar: quais são os estudantes que mais sofrem no contexto escolar, devido às exigências desse espaço? Pode-se inferir que a dificuldade em incorporar determinados padrões escolares também passa por questões socioeconômicas, ou seja, os alunos pobres encontrariam mais obstáculos para essa adaptação? E o que isso pode trazer como consequências para a aprendizagem? Principalmente, o que isso pode trazer como consequências para a subjetividade do estudante de classes populares quando busca pelo ideal da excelência escolar? E assim, em que medida os sujeitos que não dialogam com determinados ideais vêm sendo silenciados, principalmente no interior de escolas de alto rendimento?

Diante dessas inquietações, faz-se interessante a problematização do ideário em torno da excelência. Esse posicionamento poderia seguir vieses de cunho mais geral, considerando as implicações históricas da dualidade na educação: entre ricos e pobres, como a excelência escolar foi se definindo? Entretanto, essa escrita se desenha sob a pretensão de se situar no olhar para a singularidade da posição do sujeito desfavorecido nos espaços destinados ao alto rendimento estudantil. Neste sentido, entre os esforços de adaptação à escola ou a resistência aos modelos impostos, interessa-nos ponderar, antes, por que as “coisas são como são” e o “peso” desse ideal para a formação subjetiva do aluno. Assim, além da problematização da excelência escolar, é importante questionar a crença numa homogeneidade das classes populares em relação à educação. Deste modo, quando se refere a estudantes pobres, de forma alguma é coerente considerar que suas famílias de origem são homogêneas, do ponto de vista do tratamento em relação à escolarização dos filhos. Mesmo que haja similaridades quanto ao aspecto econômico, o modo como cada família trata a cultura escolar e oferece suporte à trajetória educacional do filho vai depender das disposições em cada configuração familiar. Ainda que haja, no geral, distanciamento entre os dois mundos (escolar e familiar), há indicadores em cada família, como controle e acompanhamento do trabalho escolar, apoio afetivo, moral e simbólico (LAHIRE, 1997), organização do cotidiano da criança ou do adolescente em relação ao tempo dispendido com lazer e tecnologias, definição de ordem e regularidade na rotina de tarefas, que podem levar ao sucesso ou ao fracasso escolar. O que se pode considerar é que, ainda que faça parte de um mesmo meio social, a maneira como cada família lida com a escola depende de uma série de recursos que vão compor as configurações familiares de forma muito singular, colocando o capital cultural familiar em condições de ser transmitido ou não. Portanto: “É por essa razão que, com capital cultural equivalente, dois contextos familiares podem produzir situações escolares muito diferentes na medida em que o rendimento escolar desses capitais culturais depende muito das configurações familiares de conjunto.” (LAHIRE, 1997, p. 338).

Com essas reflexões, procura-se priorizar a vivência dos estudantes que podem estar em posição inferiorizada, devido a um distanciamento entre o capital cultural herdado da família e a cultura escolar (LAHIRE, 1997). A posição inferiorizada aqui considerada tem mais a ver com o pouco diálogo entre o universo da família de classe popular e o da escola do que propriamente com uma postura que se espera do aluno, por ele ser oriundo de meios populares. O sentimento de inferioridade ou de superioridade em relação à escolarização depende dos dispositivos que foram mobilizados na configuração familiar e, também, da história escolar dos pais, além do modo como o sujeito se apropria desses elementos (LAHIRE, 1997). Pode ocorrer a repetição da inferioridade, com que os próprios pais lidaram com a escola, nos filhos, mas também pode haver a tentativa de superação por meio da escolarização da prole. É nesse sentido que não se pode afirmar que a condição de classe popular traz ao aluno um sentimento fatalmente de inferioridade no que tange aos demais estudantes, mesmo quando se trata de escolas de alto rendimento acadêmico.

Dessa forma, é cabível ponderar que, diante das “coisas como são” - e o sofrimento psíquico que essas exigências podem gerar àqueles que mais se veem afastados dos ideais almejados por todos -, como elas poderiam ser transformadas em tentativas de reinvenção?

Para tanto, por meio de uma metodologia de cunho teórico, consideramos a contribuição que a Psicanálise pode trazer para pensar o fazer educativo, na medida em que auxilia a ampliar a perspectiva acerca do lócus escolar como um ambiente não apenas de elaboração e transmissão de saberes, mas, sobretudo, de criação de subjetividades. Nesse sentido, o campo psicanalítico ajuda a compreender de forma aprofundada os processos de idealização subjetiva do aluno quando ele está diante de determinadas demandas, como é o caso das imposições suscitadas pelo ideal da excelência escolar. Para tanto, o presente trabalho busca compreender as bases narcísicas dos estudantes - no nível do “eu ideal”, do “ideal do eu” e do “supereu” - em relação a esse ideal.

O ideal da excelência escolar e a dimensão subjetiva do processo educativo

A palavra excelência tem origem no latim excellentĭa, “por via semierudita”, o que significa “grandeza, elevação, excelência, superioridade”. Desta forma, o substantivo (nome) excelência quer dizer: “qualidade do que é excelente; qualidade muito superior”, podendo ser ainda “tratamento que se confere a pessoas das camadas mais altas da hierarquia social” (MARINHEIRO, 2009).

Portanto, a excelência de algo ou de alguém remete a uma ideia de superioridade em relação aos demais, o que conferiria certo destaque ao que ou a quem carrega a excelência. Enquanto uma marca de distinção, a excelência pode, ainda, resultar em diferença de tratamento para com os portadores da excelência, ou seja, os excelentes. Neste sentido, o excelente, cuja etimologia advém do latim excellente, seria “o que está no alto, o que se destaca”, “o que se eleva”, por extensão “o que é muito bom”. A gênese da palavra vem do excellere, “subir, ser colocado no alto”, constituído por ex-, “fora, sobre” e cellere, “subir”. A origem indo-europeia reporta ao radical kel-, “elevar” (NASCENTES, 1955; ORIGEM DA PALAVRA, 2005).

Já a palavra ideal tem origem no latim ideale, o que significa “por via erudita” (NASCENTES, 1966, p. 270). No âmbito filosófico, o termo ideal assume ambiguidade e “designa tanto o não material como o perfeito. Exemplos: os números são objetos ideais; o conhecimento ideal seria perfeito; a conduta ideal seria inatacável” (BUNGE, 2002, p. 51). Nesta perspectiva, o ideal também

[...] se refere a uma ideia e não a uma realidade empírica. Ex.: o ponto geométrico é uma entidade ideal. Possui o sentido de uma aspiração ou de um limite, acessível ou não: o estado ideal, tendo por vezes uma conotação negativa, no sentido de algo irrealizável: uma solução ideal. (JAPIASSÚ; MARCONDES, 2006, p. 102).

A definição de ideal pode levar a diversas conotações, dentre as quais:

1) como uma projeção de uma ideia; 2) como o modelo, jamais atingido, de uma realidade; 3) como o perfeito no seu gênero; 4) como uma exigência moral; 5) como uma exigência da razão pura; 6) como a forma de ser de umas certas entidades. Aqui trataremos especialmente dos dois últimos sentidos. (MORA, 1978, p. 158).

Como demanda da razão pura, o ideal ou idealismo não ocorre, de acordo com Kant (2001), na seara da experiência. Os ideais têm um fundamento padronizador, ao servirem de regras para a ação e o juízo, guiando e encaminhando a razão. Já como modo de ser de determinadas entidades, o termo ideal é usado para qualificar certo objeto, os denominados “objetos ideais”, dentre os quais as entidades matemáticas e as lógicas (MORA, 1978).

Contudo, o desenvolvimento deste artigo permite recorrer à acepção de ideal que se refere a uma exigência de perfeição. Assim, para nós, o ideal da excelência escolar portaria a premissa de uma experiência escolar perfeita, com base nas solicitações da escola e da sociedade em geral, que seriam incorporadas pelo aluno, por sua vez, o excelente, como um modelo superior a ser alcançado, ainda que não necessariamente seja atingido.

Considerando que a questão da excelência escolar dialoga não somente com fatores intraescolares mas também extraescolares, ela se relaciona ao contexto das discussões em torno da qualidade da educação. O horizonte teórico-conceitual do tema da qualidade aponta para uma amplitude de significados e possibilidades, a depender das demandas sociais. Desta maneira, Dourado e Oliveira (2009) tratam da qualidade considerando que, apesar da multiplicidade de definições acerca da temática, qualquer noção do que seria uma escola de qualidade deve ser socialmente referenciada. Para esses autores:

Compreende-se então a qualidade com base em uma perspectiva polissêmica, em que a concepção de mundo, de sociedade e de educação evidencia e define os elementos para qualificar, avaliar e precisar a natureza, as propriedades e os atributos desejáveis de um processo educativo de qualidade social. (DOURADO; OLIVEIRA, 2009, p. 202).

Assim, se a percepção de mundo e o contexto social contribuem para definir o que seria ou não uma escola de qualidade, isso diz respeito às especificidades e necessidades suscitadas em cada sociedade e de acordo com cada período histórico. Portanto, não se pode acreditar que haveria um único ideal de qualidade, que atravessaria o tempo e as diferentes conjunturas sociais, e que este seria consoante com os supostos anseios da maioria no que se refere à busca pela escolarização. Cabe pensar, diante da polissemia sobre o que seria uma escola de qualidade e, para além disso, sobre a não neutralidade desse processo, em quais são os fatores (intra e extraescolares) componentes da qualidade que mais reforçariam as desigualdades sociais. A partir disso, então, pode-se interpretar os elementos que estariam mais a favor da elaboração de uma educação de qualidade para todos, convergentes com intentos em torno da diversidade em comparação àqueles ideais traumáticos e incapacitantes. É este horizonte (da diversidade social) que também vai sustentar a reflexão acerca da problemática da excelência escolar.

Além da extensão do contexto educacional brasileiro e da pluralidade organizacional dos sistemas de ensino, há a questão da desigualdade regional em combinação com as desigualdades educativas, o que leva a certa dificuldade na definição de referências de qualidade e no atendimento mais justo e igualitário para a população. No âmbito das políticas educacionais, o que se pôde constatar, ao longo do tempo, foi certa tentativa de ampliação de ofertas educacionais, através da implementação de níveis e modalidades educativas, sem se efetivar, entretanto, o paradigma da qualidade requerida. Diante deste panorama, debates que tratem dos fatores que deveriam constituir a qualidade, bem como da multiplicidade de compreensão em torno da excelência escolar, podem contribuir para qualificar o perfil de educação a ser oferecido, e não somente para ampliar as oportunidades sem um cunho qualitativo sobre o tipo de escolarização que se busca garantir e o tipo de sujeito que se pretende “formar”.

A princípio é importante marcar que, da mesma forma como ocorre com a qualidade da educação, não há um consenso sobre o que seria a excelência escolar. Depende de cada contexto histórico, de cada sociedade e das finalidades para a escolarização postas em jogo pelos alunos e suas famílias. Assim, parte-se do pressuposto de que, de acordo com o ponto de vista e as exigências sociais, variados atributos podem estar envolvidos na formação da excelência escolar. Contudo é certo considerar que há um enfoque para os conteúdos disciplinares, como revelam as provas padronizadas que produzem dados em torno da “qualidade” das escolas - Prova Brasil, para o ensino fundamental, e o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM). Tais avaliações costumam centrar-se em mensurar os conteúdos ensinados e que foram adquiridos pelos estudantes.

Diante desse desenho inicial, o enfoque para a questão da excelência escolar segue, primeiramente, pelo campo da Sociologia da Educação em busca de algumas referências de “base”, que abriram caminho para debates mais recentes. Para os teóricos da reprodução (BOURDIEU; PASSERON, 2011; LAHIRE, 1997), as escolas direcionariam grande parte dos privilégios aos alunos das camadas superiores e aos grupos raciais e étnicos de maior prestígio na sociedade. Desta forma, as instituições educativas se inclinam a repetir o esquema de estratificação social. Segundo Bourdieu e Passeron (2011), dentre todas as iniciativas para a manutenção do poder e dos privilégios, a mais disfarçada e, por isso, mais harmonizada com sociedades que costumam negar os modos de propagação hereditária de poder e privilégios foi a resposta encontrada pela educação. Para esses autores, o sistema educacional contribui para a reprodução da estrutura de relações de classe, dissimulando esse papel por ele exercido por meio da aparência de neutralidade.

Nessa perspectiva, as escolas conseguem coadunar com a reprodução das desigualdades sociais pela via da variedade na qualidade do seu atendimento. No caso brasileiro, existem distinções qualitativas de oportunidades no que tange às zonas geográficas, ao financiamento educacional com base em impostos municipais, na distribuição dos aparelhos culturais e dos recursos educacionais. Além disso, a desigualdade quanto à qualidade das escolas não se resume a questões estruturais, mas, dependendo da situação de desfavorecimento da localidade em que a escola está situada, os próprios alunos vivem em conjunturas desfavoráveis em relação à escolarização: extrema pobreza, violência, problemas disciplinares (BRYM et al., 2006) e, por vezes, já com interrupções no percurso escolar (repetências). Somando-se a isso, os professores convivem com a desvalorização da profissão docente, o que resulta em parcos salários e pouco incentivo à formação continuada, contribuindo para a baixa qualidade no ensino.

Além dessa tríade que incide sobre a qualidade da educação - recursos educacionais, perfil do alunado e formação docente -, Bourdieu (2007) aponta para outro elemento que afetaria o sucesso escolar: o capital cultural. De acordo com esse autor, o espaço social emerge em consonância com a distribuição dos agentes ou grupos com base em sua posição, segundo alguns fatores de distinção, com destaque para o capital econômico e o capital cultural (BOURDIEU, 2007). O capital econômico se refere aos meios materiais, enquanto o capital cultural diz respeito a alguns traços distintivos que adornam um grupo em detrimento dos demais. Assim:

A noção de capital cultural impôs-se, primeiramente, como uma hipótese indispensável para dar conta da desigualdade de desempenho escolar de crianças provenientes das diferentes classes sociais, relacionando o ‘sucesso escolar’, ou seja, os benefícios específicos que as crianças das diferentes classes e frações de classe podem obter no mercado escolar, à distribuição do capital cultural entre as classes e frações de classe. Este ponto de partida implica em uma ruptura com os pressupostos inerentes, tanto à visão comum que considera o sucesso ou o fracasso escolar como efeito das ‘aptidões’ naturais, quanto às teorias do ‘capital humano’. (BOURDIEU, 2007, p. 73).

A ideia do capital cultural faz com que determinados grupos passem a gozar de certo status devido a suas preferências, consideradas como refinadas em diferentes áreas da cultura (literatura, artes em geral, tipos de lazer, vestimentas etc.). Esse capital é transmitido de geração em geração. Contudo, a transmissão, que passa pela lógica do privilégio, reforça as desigualdades entre os diferentes grupos que integram a sociedade.

Dessa forma, para Bourdieu (2007), a escola seria cúmplice da reprodução social na medida em que valoriza a cultura das classes dominantes. Ainda que ela aparente utilizar os mesmos parâmetros de excelência para avaliar a todos quanto àquilo que pode parecer resultante de esforço individual e mérito, já haveria vantagens para os alunos que carregam em suas bagagens prévias maior nível de capital cultural. Estes estudantes portariam saberes e habilidades, como parte da herança familiar, que os fariam transitar com mais facilidade em meio às demandas escolares.

No contexto dessa perspectiva, a cumplicidade da educação na manutenção das desigualdades sociais corresponde a uma lógica muito estreita. Primeiro, o sujeito deve tomar para si a herança cultural que lhe cabe por pertencer a uma família de posição proeminente (BOURDIEU; PASSERON, 2011). Com isso, mediante o ingresso na escola, o sucesso escolar se apresenta quase como uma garantia. Assim sendo, aumenta-se a chance de conquistar boas colocações no mercado de trabalho. Por sua vez, um bom emprego pode auxiliar o sujeito a manter o capital econômico da família, ou, ainda, a elevá-lo.

Sem dúvida, Bourdieu é de suma importância para as teorias da educação. Ele iluminou muitas questões sobre as relações existentes entre o sistema de ensino e a ordem social, ou seja, a estrutura das relações entre as classes. Entretanto, esse autor recebeu algumas críticas, principalmente no que se refere à carga extrema conferida à herança cultural familiar para o processo de escolarização. Por um lado, a subjetividade é uma dimensão que também precisa ser considerada na relação com a educação, o que pode fazer com que o aluno invista o seu processo educativo de tamanho valor, aproximando-o do sucesso escolar. Por outro lado, é uma questão muito atual e até urgente acreditar numa espécie de “valor agregado” da escola, aquilo que essa instituição traz como saberes ao apresentar um “novo mundo” (a cultura escolar) ao estudante neófito. E, nesse sentido, poder-se-ia estabelecer uma relação dialógica entre esse aluno e a escola. Do contrário, tudo seria repetição. Repetição dos mesmos privilégios para os mesmos alunos. Reverberação da herança cultural familiar na seara da cultura dominante valorizada na escola. Entretanto, ainda que a escola possa contribuir para a reprodução das desigualdades sociais, pelos mecanismos que citamos aqui (qualidade da formação dos professores, tipo do alunado, distribuição dos recursos educacionais), pode haver casos em que a instância escolar implique em inovação, muito mais do que em repetição. Pode haver situações em que a escola faça diferença na vida de alguns alunos que, sem uma herança familiar valorizada socialmente, captem o “valor agregado” da escola e o transformem em uma espécie de herança escolar, com a qual aumentam o seu leque de possibilidades, tanto na continuidade da escolarização quanto no mercado de trabalho.

Nesse sentido, Lahire (1997) dá continuidade à teoria de Bourdieu, contribuindo para se pensar no papel da escola. Para esse autor, as estruturas mentais sociais somente são internalizadas ou construídas por meio de persistentes interações sociais. Para tanto, o processo de transmissão das disposições culturais requer tempo de socialização para uma aquisição adequada e consistente “[...] das maneiras de pensar, de sentir e de agir” (LAHIRE, 1997, p. 105). A constância nas interações sociais ocorre através da permanência dos sujeitos por certo período de tempo cotidiano e pela organicidade de determinada proposta, como é o caso das escolas, por exemplo. Por isso, talvez possa-se considerar que se a herança cultural não foi transmitida com “sucesso” no seio da configuração familiar, a escola pode exercer um papel sucedâneo na elaboração de uma herança com a qual o sujeito poderia contar em sua trajetória educacional e profissional.

Dessa forma, Lahire (1997) “avança” ao defender que, a herança familiar não seria apenas formada pelo capital cultural, mas é

[...] também uma questão de sentimentos (de segurança ou de insegurança, de dúvida de si ou de confiança em si, de indignidade ou de orgulho, de modéstia ou de arrogância, de privação ou de domínio...), e a influência, na escolaridade das crianças, da ‘transmissão dos sentimentos’ é importante, uma vez que sabemos que as relações sociais, pelas múltiplas injunções preditivas que engendram, são produtoras de efeitos de crenças individuais bem reais. (LAHIRE, 1997, p. 172).

Com isso, pode-se depreender que, mesmo que os pais tenham vivido uma escolarização precária, ao reviverem a experiência escolar por meio dos filhos, podem transformar a relação pessoal humilde com a cultura escolar em sentimento de superação. Uma vez que isso seja comunicado à criança, pode ser incorporado por ela como um sentimento de superioridade que, por sua vez, passa a ser sua crença singular em sua capacidade, com a qual pode angariar resultados objetivos mais favoráveis.

Contudo, “[...] o ‘sucesso escolar’ como uma necessidade interna, pessoal, um motor interior” (LAHIRE, 1997, p. 285) pode resultar de um conjunto de apropriações, de dispositivos materiais e simbólicos por parte do sujeito acerca do valor da escolarização. Em alguns casos, o sucesso escolar pode ser improvável, mas não impossível.

Diante disso, pode-se refletir que outros fatores influenciam a relação do aluno com a educação que dão conta não apenas do sucesso escolar como resultado do esforço individual ou do fracasso como resultado da falta de talento e desse esforço. Portanto, não se deve ignorar que, para alguns, pode haver um empenho especial com que tratam o próprio processo de escolarização, por vezes a despeito de origens econômicas, étnicas, raciais, culturais e/ou religiosas. Esse empenho pode ter a ver com a dimensão singular do sujeito, que precisa ser ponderada juntamente às outras vertentes que atravessam o processo educativo. Assim, há que se reconhecer que a dimensão subjetiva influencia de modo contundente o ato educativo. Se não se pode ignorar a seara contextual na qual a escolarização se desenvolve, bem como as origens do sujeito, também não se pode desmerecer a vertente da singularidade, ou seja, o modo como o aluno tece escolhas, desenha estratégias e investe no processo educativo. Como já dito, a condição de classe popular não necessariamente traz ao aluno uma posição forçosamente inferiorizada em relação aos demais, mesmo quando se trata de escolas de alto rendimento acadêmico.

O ideal da excelência escolar e seus efeitos na trajetória singular do estudante

Entre propriedades singulares e papéis preestabelecidos (FOUCAULT, 2013, p. 37) para os integrantes da comunidade escolar, a narrativa da excelência porta uma carga de seletividade, no sentido de sobre quem se fala e para quem fala. É por meio de alguns mecanismos de seleção (exames de admissão, técnicas de inibição dos reprovados, jubilamentos2) utilizados por escolas de alto padrão acadêmico que o ideal da excelência vai se delineando e passa a sustentar o status das elites escolares, como algo de difícil alcance, o que justificaria que somente uma minoria poderia atingi-lo, fazendo com que ele fique tão envolvido por uma carga simbólica e de distinção (PERRENOUD, 2010). E, a partir disso, ao mesmo tempo em que os estudantes podem se sentir impulsionados a alcançar a excelência escolar, moldando toda a sua trajetória educacional em prol desse fim, na medida em que alguns não se veem representados em tais discursos, percebendo no contexto da própria escola os mecanismos de exclusão, pode haver, entre outras questões, incidências na sua relação com a aprendizagem.

Diante desse cenário, preocupam as consequências perversas que a desigualdade social mais geral vem exercendo ao reverberar na seara escolar e, mais especificamente, na vida desse aluno. Isto se torna ainda mais flagrante quando este é oriundo de classes populares e vivencia a escolaridade em escolas de prestígio. Estas instâncias que, a princípio, não foram desenhadas para estes estudantes e parecem ter mudado muito pouco no sentido de garantir a permanência deles em seu interior, colocando-os em condição de vilipêndio, quando eles percebem que tais estabelecimentos não os têm como público-alvo. Portanto, nesses espaços estariam em posição subordinada, ou seja, não seriam cúmplices dos ideais regulatórios de uma instituição de prestígio, por não se sentirem identificados com o conhecimento que ali circula e com as práticas pedagógicas que lhe são próprias. Estas são padronizadas e massificantes (ARREGUY, 2011), fazendo com que esses alunos transitem nas brechas e permaneçam nas fronteiras escolares como “outros”, aqueles com os quais a escola não consegue lidar.

A questão da fronteira cultural foi elucidada por Bhabha (1998) como uma situação de hibridismo cultural vivida intensamente pelo sujeito em certa conjuntura nos moldes de uma espécie de entrelugar, fenda a partir da qual as diferenças se manifestariam no reconhecimento das colisões culturais. No contexto aqui tratado, a escola, considera-se como fronteira cultural a experiência que o aluno vive por fazer parte de dois “universos” mais do que distintos, distantes. O aluno pode advir de uma configuração familiar cujas experiências culturais não correspondem e não dialogam com as formas de aprendizagem encontradas na escola, tampouco preparam-no para a vivência escolar. Neste sentido, Lahire (1997) fala em conflito cultural e como este pode ser vivido em dois aspectos pela criança:

Enquanto ser socializado pelo grupo familiar, ela transporta para o universo escolar esquemas comportamentais e mentais heterônimos que acabam por impedir a compreensão e criar uma série de mal entendidos: esse é o primeiro conflito. Mas, vivendo novas formas de relações sociais na escola, a criança, qualquer que seja seu grau de resistência para com a socialização escolar, interioriza novos esquemas culturais que leva para o universo familiar e que podem, mais ou menos conforme a configuração familiar, deixá-la hesitante em relação a seu universo de origem: esse é o segundo conflito. (LAHIRE, 1997, p. 171).

Essa situação nos remete ao “entrelugar” de Bhabha (1998) que pode ser vivido pelo estudante, como o fato de não se sentir pertencente a um determinado lugar onde é requerida a sua presença (a escola), mas também viver uma espécie de desapropriação do seu contexto de origem (o meio familiar). O aluno pode vivenciar a sensação de estar situado em um cenário do “nem cá, nem lá”.

Essa experiência pode ser interessante, dependendo da fase da vida e das demandas que podem levar a trocas culturais (trabalho, continuidade dos estudos, lazer), considerando que vivemos um contexto já favorável aos hibridismos culturais, especialmente devido ao intenso contato com as tecnologias da informação e da comunicação e, com isso, com diferentes realidades e culturas. Todavia, em etapas mais remotas do desenvolvimento, o sujeito pode lidar de uma maneira mais complicada com conjunturas de fronteira cultural. Principalmente quando o entrelugar se forma na intersecção entre duas redes sociais de interdependência, de intervenção durável e mais frequente para a criança, como são os casos da família e da escola. Estas são configurações quase inescapáveis ao sujeito, e lidar com uma experiência de não pertencimento de um lado (na escola) e desapropriação de outro (da cultura familiar de origem) pode ser um tanto prejudicial para a trajetória escolar.

Com isso, pode-se perceber o quanto a escola vem ignorando os conflitos vividos pelos alunos de classes populares, cujas raízes podem ser muito profundas e, igualmente, muito traumáticas. Por um lado, podemos pensar que a estagnação deste cenário e as poucas reflexões em torno do tema tem a ver com o fato de a camada dominante não se empenhar na mutação histórica da escola, uma vez que se dedica à manutenção de seu status social, investindo em instrumentos de adaptação que escapem às mudanças. Por isso mesmo, priorizar a posição dos dominados pode ser profícuo para pensar nas possibilidades de outra escola, que surja da articulação com a realidade e com os anseios dos dominados. E, ainda, considerar o prisma dos excluídos também pode ser um caminho para se repensar e desnaturalizar o ideal da excelência escolar, levando-se em consideração os conflitos experimentados pelos alunos diante dos processos de idealização subjetiva formados na escola. Esse é o pano de fundo a partir do qual este trabalho passa a enfocar em como a busca pelo ideal da excelência recai sobre o processo de subjetividade dos alunos de classes populares.

As instâncias ideais e o ideal da excelência escolar

Tratar da excelência escolar como um ideal que atravessa as atividades normativas massificantes que configuram a rede escolar (ARREGUY, 2011) faz-nos conceber o quanto a escola contribui com certas tentativas de padronização. Com isso, a aproximação entre a Psicanálise e a Educação se centra nas contribuições do campo psicanalítico para refletir os processos de idealização subjetiva envolvidos na produção da subjetividade do aluno pobre no contexto de escolas de alto rendimento. Sobretudo a interação entre Psicanálise e Educação, ao considerar a posição do sujeito, vislumbra que

[...] o encontro do jovem com a escola e com a Educação envolve bem mais do que a aquisição do conhecimento, possibilitando o estabelecimento de redes sociais e afetivas, bem como a ampliação dos horizontes culturais e humanos que constituem a subjetividade consciente e inconsciente. (COUTINHO, 2011, p. 6).

Por outro lado, o questionamento do ideal em torno da excelência escolar à luz da subversão das práticas pedagógicas normativas (ARREGUY, 2011), mas, paradoxalmente, desiguais na escola, leva a refletir sobre como foi conduzido o fazer educativo durante um longo tempo. Isso é relevante para se repensar o que fora requerido sistematicamente ao sujeito que aprende. Segundo uma perspectiva centrada prioritariamente na racionalidade, inaugurada na Modernidade (COUTINHO, 2011), a aprendizagem escolar ocorria principalmente pela escuta de uma aula expositiva. Esperava-se que o estudante, visto como passivo em sua própria atividade de aprender, recebesse informações “de fora para dentro”, sem mobilizar as experiências advindas de sua cultura de origem. O ensino se completava nos exercícios de demonstração a partir dos conteúdos trabalhados, correspondendo a uma cisão entre a racionalidade e a subjetivação dos alunos (AMARAL, 2007). A memória era reduzida a treinos de repetição. Com isso, as vivências e interesses do aluno não tinham lugar. Segundo Vasconcellos (1992, p. 2):

Do ponto de vista político, o grande problema da metodologia expositiva é a formação do homem passivo, não crítico, bem como o papel que desempenha como fator de seleção social, já que apenas determinados segmentos sociais se beneficiam com seu uso pela escola (notadamente a classe dominante, acostumada ao tipo de discurso levado pela escola, assim como ao pensamento mais abstrato).

No contexto da metodologia expositiva, própria da vertente tradicional do ensino, as dimensões afetivas e relacionais eram, de certo modo, excluídas do processo de construção do conhecimento escolar. Desta forma, como atributos da educação tradicional, destacavam-se a neutralidade e a objetividade das práticas pedagógicas, sob o intento de se abarcar o maior número possível de sujeitos. Entretanto, a escola, por meio dessas metodologias, ao desconsiderar as particularidades numa tentativa de abranger o todo e ao não incentivar o desenvolvimento da criticidade, contribuiu para a exclusão de muitos.

Assim, para a problematização da escola e do ideal de excelência escolar, como já dito, o campo psicanalítico passa a ser cotejado, sobretudo a partir dos conceitos de eu ideal, ideal do eu e supereu, para se analisar os conflitos vividos pelos alunos de classes populares diante das demandas idealizadas presentes em escolas de alto rendimento. Considera-se que a Psicanálise tem a contribuir para um olhar significativo para a posição do sujeito, e talvez esse possa ser um caminho para algumas mudanças.

Quando, em 1914, Freud (2014) tratou das questões em torno do narcisismo e do autoerotismo em Sobre o narcisismo: uma introdução, considerou que o ego é uma unidade que precisa ser desenvolvida, na medida em que este não se encontra formado desde o nascimento. Para esse autor, o recalcamento se origina do ego; ele advém do amor próprio do ego. Então, o que pode significar desejos e impulsos para um sujeito, pode não ter a mesma conotação para outro, na medida em que a constituição do eu está estreitamente ligada à produção de um ideal em si mesmo. É a constituição desse ideal que vai operar como medida ao ego, uma vez que o ideal seria a entidade para a qual se destinaria o amor por si próprio vivenciado pelo eu real da infância. Desta forma, o eu ideal emerge em lugar do eu infantil, buscando reviver a plenitude do narcisismo perdido. Com isso:

A esse ideal do Eu dirige-se então o amor a si mesmo, que o Eu real desfrutou na infância. O narcisismo aparece deslocado para esse novo Eu ideal, que como o infantil se acha de posse de toda preciosa perfeição. Aqui, como sempre no âmbito da libido, o indivíduo se revelou incapaz de renunciar à satisfação que uma vez foi desfrutada. Ele não quer se privar da perfeição narcísica de sua infância, e se não pôde mantê-la, perturbado por admoestações durante seu desenvolvimento e tendo seu juízo despertado, procura readquiri-la na forma nova do ideal do Eu. O que ele projeta diante de si como seu ideal é o substituto para o narcisismo perdido da infância, na qual ele era seu próprio ideal. (FREUD, 2014, p. 27).

Em seguimento, o ideal do eu se constitui através dos primeiros interditos vivenciados pelo sujeito diante da observância crítica dos pais, junto aos quais, posteriormente, atuam outros personagens (educadores, guias, autoridades) e o julgamento coletivo. A consciência passa a agir como um tipo de vigia, capaz de descortinar e de censurar não somente nossas ações, mas também nossas intenções. Deste modo:

A instituição da consciência moral foi, no fundo, uma corporificação inicialmente da crítica dos pais, depois da crítica da sociedade, processo que é repetido quando nasce uma tendência à repressão [recalque] a partir de uma proibição ou um obstáculo primeiramente externos. (FREUD, 2014, p. 29).

Em 1921, Freud (1969a) também trata do ideal do eu como uma das subdivisões do eu, aquela que atua como vigilante da outra parte. Essa instância ideal se refere à consciência, um operador crítico no interior do eu. Sendo capaz de se segregar do restante do eu, por vezes essa instância é conflitante em relação ao eu, que se configura por aspectos conscientes e inconscientes. Assim, um dos papéis do ideal do eu condiz com “[...] a auto-observação, a consciência moral, a censura dos sonhos e a principal influência na repressão” (FREUD, 1969a, p. 19).

Freud (1969a) considera que essa instância ideal tem por gênese o narcisismo primário, no qual o eu infantil gozava de uma satisfação sem igual. Nesse processo, a constituição do eu ocorreria na medida em que houvesse um distanciamento do narcisismo original, o que abre brechas a intensos esforços de regeneração desse estado. Entretanto, aos poucos, o eu vai se abrindo para as sugestões do entorno e às imposições que este lhe suscita. Haja vista que nem sempre o eu consegue atender a tais exigências, o indivíduo, não satisfeito, pode ainda descobrir alguma compensação no ideal do ego que se destacou do ego. Ou seja, o afastamento do narcisismo infantil é gerado pelo movimento da libido no sentido de um ideal do ego trazido de fora, agora sendo a satisfação resultante do atendimento a esse ideal. Assim, para Freud (2014, p. 33):

Ao mesmo tempo, o ego emite os investimentos objetais libidinais. Torna-se empobrecido em benefício desses investimentos, do mesmo modo que o faz em benefício do ideal do ego, e se enriquece mais uma vez a partir de suas satisfações no tocante ao objeto, do mesmo modo que o faz, realizando seu ideal.

Com isso, podemos considerar que os ideais não somente exercem uma função de enquadramento em torno do que seria requerido socialmente, contribuindo para uma aproximação do sujeito aos regramentos culturais, mas também são fundamentais no próprio processo de constituição do eu. De certa forma, como é muito difícil recuperar o estado do narcisismo primário, com a sua vivência de plenitude, uma vez formado, o eu encaminha o sujeito para outras formas de satisfação no que corresponde a determinados objetos e aos investimentos libidinais que estes demandam.

Como já dito, a princípio, o ideal do ego havia sido elucidado como distanciamento do narcisismo primário (FREUD, 2014). Posteriormente, no desenvolvimento de sua obra, Freud buscou relacionar essa instância ideal, desdobrada na formulação do conceito de supereu (Überich) com a superação do complexo de Édipo (FREUD, 1969b). Por meio dessa superação, a satisfação do sujeito se daria em investimentos não sexuais na relação com os demais membros de um grupo (FREUD, 1969a). Desta forma, os vínculos ocorreriam e os grupos poderiam ser formados.

Neste caso, a definição de supereu surge nos escritos de Freud quase que simultaneamente à de ideal do eu. Reforça-se a hipótese, ensaiada em 1921, de que o ideal do eu e o supereu seriam gradações no eu, uma espécie de diferenciação dentro dele (FREUD, 1969b). Segundo Freud (1969b), o surgimento do ideal do eu tem por fundamento a primeira e mais significativa identificação de alguém, que ainda não se referiria ao fruto de uma escolha objetal. Condiz com

[...] uma identificação direta e imediata, e se efetua mais primitivamente do que qualquer investimento no objeto. Mas as escolhas objetais pertencentes ao primeiro período sexual e relacionadas ao pai e à mãe parecem normalmente encontrar seu desfecho numa identificação desse tipo, que assim reforçaria a primária. (FREUD, 1969b, p. 18).

Posteriormente, com a dissolução do complexo de Édipo (FREUD, 1969c), o supereu vai ser composto pelas oposições às escolhas objetais do Isso, de onde advém seu aspecto repressor. Assim, pode-se considerar que o ideal do eu se desdobra em uma dupla característica, tendo sua gênese tanto nos impulsos do isso, quanto na finalidade de superar o complexo de Édipo. Não sendo uma atividade de simples operação, no âmbito do complexo de Édipo a criança passou a conceber os pais como barreira para a concretização dos anseios edipianos. Quando o eu infantil internaliza esse obstáculo em si mesmo para conseguir operar esse recalque, ele acaba por se fortalecer. Para efetivar esse aspecto, o ego recorre à força do pai, internalizando, assim, a personalidade deste. Neste sentido, pode-se dizer que a relação é diretamente proporcional, ou seja, quanto mais dominante for o complexo de Édipo e mais intenso for o recalcamento sofrido pelo ego para a superação deste complexo, “[...] mais severa será posteriormente a dominação do superego sobre o ego, sob a forma de consciência (conscience) ou, talvez, de um sentimento inconsciente de culpa” (FREUD, 1969b, p. 20). Ante esse processo, pode-se considerar que

O ideal do ego, portanto, é o herdeiro do complexo de Édipo, e, assim, constitui também a expressão dos mais poderosos impulsos e das mais importantes vicissitudes libidinais do id. Erigindo esse ideal do ego, o ego dominou o complexo de Édipo e, ao mesmo tempo, colocou-se em sujeição ao id. Enquanto o ego é essencialmente o representante do mundo externo, da realidade, o superego coloca-se, em contraste com ele, como representante do mundo interno, do id. Os conflitos entre o ego e o ideal, como agora estamos preparados para descobrir, em última análise refletirão o contraste entre o que é real e o que é psíquico, entre o mundo externo e o mundo interno. (FREUD, 1969b, p. 21).

O Ideal do eu é associado ao Supereu em algumas passagens da obra freudiana, denotando os papéis tanto de ideal quanto de autovigilância e consciência moral. Entretanto, em O mal-estar na civilização, de 1930, Freud (1996) se centra na questão da formação deste último, quando este emerge especificamente como consciência, domínio não somente da auto-observação, mas também da crítica e punição, parecendo se apartar da instância ideal.

Nessa obra, Freud (1996) revisita a questão da formação da consciência, tecendo sua relação com o sentimento de culpa. Neste sentido, se questiona se “[...] sob a influência de premências culturais, algumas civilizações, ou algumas épocas da civilização - possivelmente a totalidade da humanidade - se tornaram ‘neuróticas’”? (FREUD, 1996, p. 149). Assim, ele trata do supereu da civilização em relação ao supereu do indivíduo. Enquanto o supereu advém da criação de um grupo unificado a partir de muitos indivíduos, cuja premência é altruísta, no sentido da união entre os membros, por outro lado, a integração de um indivíduo isolado em um grupo humano tem uma premência de cunho egoísta, devido ao enfoque maior na busca por satisfações pessoais. Neste sentido, é possível pensar o quanto o ambiente escolar é um espaço que pode produzir neuroses (FREUD, 1996) no estudante, na medida em que a premência cultural no desenvolvimento do grupo escolar traz exigências e formula ideais que podem se superpor à satisfação da felicidade individual.

Nesse processo pode-se buscar um enquadramento, uma adaptação ao coletivo que direciona a libido narcísica à comunidade escolar (libido objetal), significando o recalcamento das pulsões sexuais inibidas em sua finalidade, de origem individual. A passagem de um tipo de libido (narcísica) para outro (objetal) não é concretizada sem conflitos. Além disso, as pulsões sexuais foram apenas recalcadas, mas não eliminadas. As premências, individuais ou culturais, podem pelejar entre si em cada aluno.

No que se refere à excelência escolar, essa pode ser erigida como um ideal diante de todos, na medida em que o estudante a busca, talvez, a despeito de outras possibilidades de viver a escola. Seria correto dizer que essa trilha da excelência definiria a criação de uma comunidade escolar de prestígio, de forma a vincular a todos, fazendo o coletivo escolar se reconhecer enquanto um grupo em torno de um objeto de desejo? De antemão, o que se pode considerar é que a conciliação entre a felicidade individual e as solicitações grupais pode se dar na medida em que o indivíduo assume para si os ideais coletivos como um objetivo próprio. Entretanto, assumir um ideal coletivo como sendo a própria fonte individual de felicidade não é algo que se abranda facilmente no eu. Além disso, se esse ideal resguarda um tanto de exigências e vigilância, a aproximação dele pode significar um afastamento do Isso, implicando em agressividade do superego devido ao abafamento desses impulsos, o que pode coadunar num forte julgamento e ainda em penalidade do sujeito para consigo mesmo, quando não alcança tais demandas. Por isso, não há como não refletir sobre o quanto a tentativa de aproximação ao ideal da excelência escolar produz neuroses e, nas tentativas de desvios de tais demandas subjetivas em favor do ideal coletivo, sobre o quanto o sentimento de culpa pode se tornar imperativo, na medida em que esse ideal não é atingido.

Processos identificatórios com o ideal da excelência escolar

A partir dessas considerações sobre o eu ideal, o ideal do eu e o supereu, chega-se à conclusão de que talvez seja mais apropriado falar em identificação com o ideal de excelência escolar do que, propriamente, em idealização da excelência escolar.

Segundo Rocha (2007), a idealização do objeto suscitada pelas demandas do eu ideal se embasa na ilusão de que o investimento em um objeto restauraria a vivência de plenitude primária, específica do narcisismo infantil,3 cuja repetição ao longo da história do sujeito é tão desejada. Diante dessa abordagem sobre a idealização, esse processo estaria mais próximo de uma relação estreita com o objeto a partir de uma tentativa de retorno à completude da infância proporcionada pela experiência narcísica neste período. Assim posta, a idealização se configura no vínculo com o objeto em sua totalidade, investindo-se neste como um substituto do narcisismo primário.

De outro lado, quando a relação com o objeto é ordenada por meio do ideal do eu, renuncia-se às pretensões onipotentes embasadas pelas ilusões narcísicas, uma vez que o ideal do eu é aquele que revela traços mais amenos da experiência narcísica, além da superação da experiência edípica (ROCHA, 2007). As identificações, por sua vez, emergem como principal aparato na relação com o objeto. Essa forma de aproximação ao objeto não nega o pano de fundo que configura a realidade, com seus conflitos, frustrações e com a própria condição de desamparo. Isto abre o caminho para a superação das ilusões narcísicas primárias e a sua tentativa de plenitude. E é aí que o ideal do eu conduz o sujeito à vivência da alteridade (MARTINS, 2016). Todavia, é importante salientar que ainda que associemos o ideal da excelência escolar a um processo identificatório, isso não implica num abandono das ilusões. A busca por esse ideal não finaliza outras buscas do eu no contexto escolar, diante do reconhecimento da falta que nos constitui. Mesmo que, mais adiante, a relação com o ideal da excelência escolar possa se desdobrar em uma série de identificações, antes, é necessário o motor do desejo para que a busca por esse e outros ideais aconteça. E o desejo pode ser sustentado pelas ilusões. Neste sentido, “[...] para viver em sociedade, o ser humano necessita de regras e interdições, mas também, mais do que isso, necessita de ilusões que sustentem a incomensurabilidade do desejo” (COSTA; ARREGUY, 2017, p. 156).

Sustentado na abertura para a alteridade, o ideal do eu se constitui na incorporação dos padrões e normas devido ao amor e medo de perda do amor advindo do objeto (FREUD, 1969c, 1996). É por isso que o desenvolvimento dessa instância ideal se faz fundamental para a constituição do sujeito, através da qual as relações ganham um cunho intersubjetivo (ROCHA, 2012), em que as trocas com o outro se tornam mais potentes, devido à superação das interações narcísicas da infância. Neste sentido, Rocha (2012) aponta distinções entre a idealização e a identificação. Como já dito, aquela surge como uma engrenagem protagonista na formação do eu ideal, por meio de relações de cunho mais totalitário com o objeto e com a tentativa de completude que essa relação pode conferir ao indivíduo. No que se refere ao ideal do eu, as identificações surgem, trazendo à tona a sublimação, uma vez que esta, para ocorrer, deriva de uma identificação com o objeto em lugar do anterior investimento libidinal maciço aos moldes do “eu ideal”. Assim, se as ilusões produzidas pelo eu ideal assumem um caráter defensivo em relação à realidade, as sublimações, vinculadas ao ideal do eu, podem indicar atuações criativas e novos caminhos, tais como aqueles que levariam à formação dos ideais culturais, que seriam desdobramentos mais refinados da civilização (ROCHA, 2007, 2012). Desta forma, quando as pretensões narcísicas do eu ideal predominam, parece haver o estabelecimento da idealização; ao contrário, quando é o ideal do eu que se sobreleva, abrem-se as brechas para as sublimações.

Assim, a idealização é um mecanismo que se refere ao investimento maciço no objeto. Através dela, esse objeto, sem qualquer mudança em sua condição, é enaltecido na mente do sujeito. Com isso, pode-se considerar que a idealização retrata algo que corresponde ao objeto, enquanto a sublimação elucida algo que diz respeito à pulsão de saber. Neste sentido, a sublimação “[...] é, não só, mas também um destino pulsional, um mecanismo de defesa, um objeto e/ou um ideal culturalmente valorizado, e, além de tudo, um parâmetro de cura” (CAMPOS, 2013, p. 466). Como destino pulsional, a sublimação se destacaria como um processo de transformação da pulsão, quando esta se distancia do seu objetivo sexual. Portanto, a sublimação pode aparecer tanto como uma defesa em relação às ameaças e impossibilidades ligadas à sexualidade direta, quanto, porventura, atrelada à formação de ideais e às alternativas de cura encontradas pelo sujeito.

Diante dessas considerações, é cabível afirmar que a relação que o sujeito estabelece com o ideal da excelência escolar não estaria isenta dos conflitos e frustrações fomentados pelo ideal do eu. Ao contrário, pode haver o reconhecimento da “aspereza” dessa relação, mas, ainda sim, o desejo por esse objeto idealizado. A excelência escolar, propriamente, seria um traço de perfeição dessa vivência escolar que o sujeito buscaria, não sob o intento da completude do narcisismo primário, mas como uma forma legítima de satisfação do ideal do eu no contexto escolar. Por isso é coerente falar em identificação com a excelência escolar, porque mesmo tão proeminente para o aluno e suas famílias, trata-se de um ideal cultural que fora construído e sustentado por meio de regras e normas sociais ao longo da história.

Como já mencionado, a partir da noção de alteridade, o eu pode se abrir para os ideais culturais. Nesse processo pode ocorrer que estes se tornem extremamente contundentes para o sujeito, como um super ideal, seja do lado narcísico ou do lado cultural, quando o supereu coletivo é extremamente severo. Além disso, a imposição desse ideal pode trazer consequências complicadas nos enfrentamentos cotidianos, que podem reverberar na sensação de realização ou no sentimento de culpa, aquele que “[...] também pode ser entendido como uma expressão da tensão entre o ego e o ideal do ego” (FREUD, 1969a, p. 28).

Contudo, entre o triunfo ou a culpa, a aproximação com o outro pode gerar a transformação do ego pela via da identificação com uma qualidade já estabelecida nesse outro e que se incorporou em si, ou alternativas de invenção, a partir do reconhecimento da falta como constituinte do eu. Essa concepção pode modificar a relação que temos com o saber, com o sujeito que aprende e, consequentemente, contribuir para ressignificar o ideal da excelência escolar. Assim, a possibilidade da criação de um saber que falta no eu através da convergência com o ponto de falta no saber do outro provoca o redimensionamento dos ideais subjetivos frente ao ideal coletivo massificante. O reconhecimento de uma falta em si e da importância do outro

[...] confere a abertura para que a aprendizagem possa não se exaurir em modelamento que diz de uma dimensão idealizante muito frequentemente encontrada no campo educacional e para que o sujeito possa se sentir causado a colocar algo de seu naquilo que recebe do Outro. (CORRÊA, 2011, p. 800).

Assim posto, se o ideal é aquilo que busca enquadrar o sujeito dentro dos moldes sociais, certa dose de idealização é fundamental para que o processo educativo ocorra. Entretanto tudo não pode se resumir a esse modelamento, na medida em que o sujeito precisa da falta e da liberdade para se constituir e criar caminhos singulares. É o reconhecimento da necessidade de algo que não está em si, mas se percebe no outro, que promove o encontro entre o eu e esse outro e faz a aprendizagem ocorrer, não como uma cópia de um ideal externo, mas como uma recriação a partir desse contato. Essa via, a da singularidade, acaba sendo importante para o desenvolvimento da criatividade e de perspectivas críticas. Diante das trilhas definidas do conhecimento já produzido pela humanidade, pode haver muito mais do que a reprodução copista em cada sujeito, mas a releitura e recriação do saber, quando o ego se deixa instigar a uma contribuição particular e sui generis naquilo que obtém do outro. Ora, Paulo Freire (1996), mesmo sem ser psicanalista, parecia vislumbrar essa questão ao criticar a educação conteudista.

Entretanto, é importante ressaltar que nem sempre esse contato com o outro ocorre sem conflitos. Em algumas situações e contextos, essa relação pode ser, inclusive, traumática. Neste sentido, não é incoerente pensar que, em alguns casos, a percepção da não disposição dialógica entre as fronteiras culturais na escola e da condição de ser outro pode gerar um recalcamento violento no indivíduo. Além disso, devido ao temor da castração, da perda do objeto e da posterior perda do amor, alguns sentimentos, como a angústia, podem ser sentidos intensivamente pelo eu, antecedendo e produzindo o processo de recalcamento secundário desencadeador de psicopatologias, diferentemente do recalcamento primário, cuja função é ser estruturante (GARCIA-ROZA, 1995). Assim, quando o estudante, por algum motivo, percebe a desvalorização de suas origens culturais por parte da escola, inconscientemente, fica submetido ao recrudescimento de recalques, levando, inclusive, à possibilidade de sintomas.

Considerações finais

O quanto esse modelo de excelência, uma vez introjetado na escola e na vida de cada um, influencia a consciência, em seus atos e intenções? O quanto esse ideal atravessa as escolhas do sujeito e, dentre outros fatores que estão presentes no cotidiano escolar (exames e avaliações, comparações e competições), contribui para promover uma espécie de vigilância social na escola? Como cada sujeito, em sua singularidade, escapa ou paralisa diante desses ideais? Neste sentido, numa espécie de consciência superegoica coletiva, diferencia-se os bons e os maus estudantes. E, como consciência individual alinhada a um modelo geral (o da excelência escolar), faz cada sujeito entender e incorporar o que condiz com os ideais do bom ou do mau aluno, e a partir disso situar seu “Eu ideal” de estudante? É com essa consciência, que vai se tornando cada vez mais clara por meio da rotina e dos rituais da escola, que o sujeito vive, ante ao risco da perda de amor do SuperEu e os seus castigos, ante a possibilidade de triunfo ou culpa.

Enfim, não podemos deixar de pensar no aluno diante do ideal da excelência escolar. Quais seriam as consequências da tentativa por uma trajetória escolar perfeita, sem ranhuras, a partir da conformação de um ideal? Há uma exigência de que os alunos representem um padrão a ser seguido, o que pode incidir em uma posição subjetiva vinculada a um imperativo de substituição da realidade, segundo os moldes da neurose. Nos processos neuróticos ocorre que, “[...] uma porção da realidade pulsional é evitada, o que é evidenciado na fuga de parte daquilo que seria a vida real, ou seja, numa tentativa de negar essa porção da realidade” (COSTA; ARREGUY, 2017, p. 143). Nesse quesito, estaríamos submetidos a uma série de modelos normativos e conservadores, seja no contexto da casa, da escola, do trabalho e/ou das relações. Esses âmbitos, com suas demandas “normóticas” (COSTA; ARREGUY, 2017, p. 153), vão compondo a trama da vida ordinária e induzindo a uma gama de neuroses, que podem desembocar não apenas em uma seara da vida, mas em vários espaços, uma vez que as neuroses não apresentam “[...] conteúdo psíquico característico, específico e exclusivo” (FREUD, 1995, p. 99).

Entretanto, mesmo diante do recalque do Isso (neurose), pode haver uma impossibilidade de se lidar com o que configura a realidade escolar, enquanto parte da realidade compartilhada coletivamente, pois as designações escolares sobre os estudantes - de perfeição, de seguirem exemplos heroicos e de que devem fazer algo de extraordinário - podem vir a formular uma imposição superegoica sem limites, um ideal inalcançável. Deste modo, o que uma possível introjeção totalitária do modelo imposto pela escola pode provocar nos alunos é algo a se ponderar. Quanto mais próximo se está desse ideal, mais adequado se estaria do modelo idealizado de aluno requerido pelo contexto escolar. Mais perto se está, inclusive, dos moldes do aluno perfeito. Entretanto, há de se considerar que tanto a aceitação quanto a subversão dos padrões escolares geram sofrimento psíquico relacionado às demandas culturais (COSTA; ARREGUY, 2017).

Nesse sentido, faz-se mister refletir o quanto a escola tem contribuído para a repetição de determinados ideais e formas de vida, sem abrir espaço para outras possibilidades menos idealizadas. Diante do ideal inatingível do aluno perfeito, pode haver situações em que o aluno assuma para si o modelo idealizado da excelência, “colando” esse ideal à sua vivência escolar, como se sua vivência não pudesse ser outra coisa fora desse ideal. A tentativa de adequação ao ideal da excelência escolar e, consequentemente, ao eu idealizado configura uma condição social patologizante que pode ser chamada de “pedagogia da excelência” (COSTA; ARREGUY, 2017), configurada pelos “[...] imperativos de uma educação voltada para o sucesso absoluto, para a fama, o espetáculo, o lucro e o estilo de vida consumista exibicionista como principais valores da vida” (COSTA; ARREGUY, 2017, p. 142). Isso, por sua vez, pode se desdobrar na culpa pelo fracasso do ideal (FERENCZI, 2011), uma vez que nem a escola, nem qualquer outro espaço da vida sustentam tais imperativos com facilidade e de modo durável. Contudo, se podemos considerar a “plasticidade da subjetividade na relação intersubjetiva” (COSTA; ARREGUY, 2017, p. 151), também podemos considerar a plasticidade da influência dos ideais que nos cercam, dependendo das interações em que estamos envolvidos, e da crítica que se pode fazer a esse modelo idealizado de aluno, de escola e de sociedade. Deste modo, podemos ponderar a escola como um espaço de trocas intersubjetivas mais potentes em meio ao encontro de determinações simbólicas que levem ao reconhecimento da falta e das imperfeições. Se pudéssemos lidar conosco e com os ideais que nos cercam a partir desses “furos”, poderíamos reconhecer outras maneiras de relação com o ato educativo e a possibilidade de reinvenção da escola.

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1A elaboração do presente artigo se origina no contexto de pesquisa de doutorado em Educação, em estágio de desenvolvimento. O trabalho ora apresentado observa, por meio da realização de investigação de cunho bibliográfico, os procedimentos éticos de ineditismo e autoria.

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“Instituído pela Ditadura Militar para combater os chamados ‘alunos profissionais’, que ficavam na universidade para participar do movimento estudantil, o jubilamento é, ainda hoje, um tema controverso. O mecanismo deixou de ser previsto pela legislação nacional com o advento da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), de 1996, já que a nova legislação revogou expressamente a norma que trazia a obrigatoriedade do jubilamento.” (CABRAL, 2010). Não há mais um fundamento legal para se desvincular os estudantes, no caso da Educação Superior, com a justificativa de um prazo limite para o término do curso nos quais estariam matriculados. Entretanto, como um argumento para posicionamentos contrários ao jubilamento, defende-se que este teria a ver com a autonomia universitária e seria uma resposta ao cumprimento de uma função social: referente ao investimento da universidade no aluno e a formação que se espera desse, em retorno. Ou seja, segundo essa perspectiva, o jubilamento ainda pode ser uma regra constante no regulamento da instituição. Em consequência, essa também foi a motivação de muitos CAPs - Colégios de Aplicação vinculados às universidades. E aí a problemática se intensificou, uma vez que tais colégios representam instituições que gozam das mesmas características administrativas e regulamentares do ensino superior, mas têm a finalidade de atender à educação básica. Contudo, uma alusão que pode enfraquecer o argumento de cunho econômico em favor do jubilamento (que vê este como uma resposta aos gastos com o estudante, que se encontra em defasagem quanto ao tempo de conclusão do curso) tem relação com as diversas deliberações que concebem o jubilamento em si como desperdício dos fundos públicos. Trata-se de uma contra-argumentação pelo próprio viés econômico. Neste sentido, defende-se que, quando, após longo período de investimento do capital, interrompe-se a alternativa de encerramento do curso, isto não resulta em qualquer ganho social, mas somente obstáculo à formação do aluno. Por fim, pela vertente do combate às desigualdades sociais, no que compete aos fins da Educação Nacional, a Constituição de 88 prevê, em seu artigo 205, que o ensino é direito de todo cidadão visando o seu pleno desenvolvimento, o preparo para o exercício da cidadania e a qualificação para o trabalho (BRASIL, 1988). Em consonância a isto, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei nº 9.394/96 (BRASIL, 1996), deixou de presumir o jubilamento e estabeleceu, ao contrário, política de igualdade, tolerância e empenho na recuperação de alunos de menor rendimento escolar, ao dispor:

Art. 3º. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:

I - Igualdade de condições para o acesso e permanência na escola;

[...]

IV - respeito à liberdade e apreço à tolerância;

[...]

Art. 12. Os estabelecimentos de ensino, respeitadas as normas comuns e as do seu sistema de ensino, terão a incumbência de:

[...]

V - prover meios para a recuperação dos alunos de menor rendimento.

3Freud acreditava que, primeiramente, estabelece-se um investimento libidinal do ego, para então, secundariamente, este ser direcionado a objetos, ainda que o investimento narcísico (no ego) persista e não desapareça diante das posteriores investidas objetais (FREUD, 2014). Assim sendo, ele não considerava o narcisismo primário uma perversão, “mas o complemento libidinal do egoísmo do instinto de autopreservação, que, em certa medida, pode justificavelmente ser atribuído a toda criatura viva” (FREUD, 2014, p. 10). Neste sentido, pode-se ponderar que a libido do eu não desaparece ao longo da vida, ainda que possa se perceber uma oposição entre esta e a libido objetal. Quanto mais uma é solicitada, mais a outra se enfraquece. Há ainda os casos em que, mesmo que o investimento seja no objeto, este é visto como um substituto do que seria um investimento no eu, sendo capaz, portanto, de remontar à experiência de plenitude narcísica dos primeiros investimentos libidinais da infância.

Recebido: 28 de Julho de 2020; Revisado: 08 de Dezembro de 2020; Aceito: 10 de Dezembro de 2020

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