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Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade

versión impresa ISSN 0104-7043versión On-line ISSN 2358-0194

Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade vol.29 no.60 Salvador oct./dic 2020  Epub 24-Ago-2021

https://doi.org/10.21879/faeeba2358-0194.2020.v29.n60.p268-286 

ESTUDOS

PERSPECTIVAS INTERDISCIPLINARES NA EDUCAÇÃO A PARTIR DE HABERMAS, FREIRE E SANTOS

INTERDISCIPLINARY PERSPECTIVES ON EDUCATION FROM HABERMAS, FREIRE AND SANTOS

PERSPECTIVAS INTERDISCIPLINARIAS SOBRE EDUCACIÓN DE HABERMAS, FREIRE Y SANTOS

Lúcio Jorge Hammes*  (UNIPAMPA)
http://orcid.org/0000-0003-0658-4628

Jaime José Zitkoski**  (UFRGS)
http://orcid.org/0000-0003-1266-2039

Itamar Luís Hammes***  (IFSUIL)
http://orcid.org/0000-0002-3532-5011

*Doutor em Educação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Professor da Universidade Federal do Pampa (Unipampa), campus Jaguarão. Líder do grupo de pesquisa Cultura Escolar, Práticas Pedagógicas e Formação de Professores (CNPq). E-mail: luciojh@gmail.com

**Doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professor do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGEDU/UFRGS. Vice-líder do Grupo de Estudos sobre Universidade - Inovação e Pesquisa (GEU-Ipesq/UFRGS). E-mail: jaime.jose@ufrgs.br

***Doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS). Professor do Ensino Básico Técnico e Tecnológico (EBTT) no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Sul-riograndense (IFSUIL) - Campus Lajeado e do Mestrado do Programa de Pós-graduação em Educação Profissional e Tecnológica (ProfEPT) em Charqueadas. E-mail: itamarh57@gmail.com


RESUMO

O artigo tem o objetivo de discutir os problemas centrais que a educação contemporânea enfrenta em relação aos processos formativos, tais como: o perfil dos egressos dos cursos em relação às necessidades e demandas da sociedade, a urgência de um conhecimento interdisciplinar e a responsabilidade ética e cidadã. A metodologia consiste num estudo bibliográfico, via hermenêutica de textos. Os conceitos centrais que servem de aporte teórico para este estudo compreendem as temáticas da Interdisciplinaridade, da Crise de paradigmas e as Alternativas para o futuro em sociedade. Habermas, Freire e Santos são os três autores que servem de horizonte na reflexão crítica sobre o tema e nos inspiram na busca dos fundamentos para uma educação do futuro. O desafio apontado é o de construir um novo modelo de formação cultural, que supere os problemas mais profundos do mundo atual, tais como: a alienação, a exclusão social, a banalização da violência e a crise ética da atualidade.

Palavras-chave: Crise ético-ambiental; Interdisciplinaridade; Educação; Novos paradigmas

ABSTRACT

The article aims to discuss the central problems that contemporary education faces in relation to the formative processes, such as: the profile of the graduates of the courses in relation to the needs and demands of society, the urgency of an interdisciplinary knowledge and the ethical and social responsibility. The methodology consists of a bibliographical study through the hermeneutics of texts. The core concepts that help theoretical support for this study, include the themes of Interdisciplinarity, the Crisis of paradigms and the Alternatives for the future in society. Habermas, Freire and Santos are the three authors who base the horizon on the critical reflection on the theme and inspire us in the search for the foundations for a future education. The aim is to build a new model of cultural formation that overcomes the deepest problems in the world today, such as alienation, social exclusion, the trivialization of violence and the current ethical crisis.

Keywords: Ethical-environmental crisis; Interdisciplinarity; Education; New paradigms

RESUMEN

El artículo tiene como objetivo discutir los problemas centrales que enfrenta la educación contemporánea en relación con los procesos formativos, tales como: el perfil de los graduados de los cursos en relación con las necesidades y demandas de la sociedad, la urgencia de un conocimiento interdisciplinario y la responsabilidad ética y social. La metodología consiste en un estudio bibliográfico, a través de textos hermenéuticos. Los conceptos centrales que sirven de soporte teórico para este estudio incluyen los temas de interdisciplinariedad, la crisis de paradigmas y las alternativas para el futuro en la sociedad. Habermas, Freire y Santos son los tres autores que sirven de horizonte en la reflexión crítica sobre el tema y nos inspiran en la búsqueda de los fundamentos para una educación del futuro. El objetivo es construir un nuevo modelo de formación cultural que supere los problemas más profundos del mundo actual, como la alienación, la exclusión social, la trivialización de la violencia y la actual crisis ética.

Palabras clave: Crisis ético-ambiental; Interdisciplinariedad; Educación; Nuevos paradigmas

Introdução1

O contexto em que vivemos hoje é paradoxal, pois estamos em um momento histórico profundamente desafiador em relação ao futuro da humanidade. As questões sociais e ambientais estão cada vez mais urgentes para que a sociedade como um todo assuma compromisso com soluções eficientes numa direção de reverter os graves problemas de destruição do planeta e de inviabilidade de uma vida digna para os bilhões de humanos que hoje coexistem nessa casa comum - o planeta Terra.

E, além da crise ambiental, vivemos na atualidade uma profunda crise ética e de incertezas em relação ao processo civilizatório mundial. A cada dia aumenta a banalização da violência contra os humanos e contra a natureza, na mesma proporção que se ampliam os impactos cada vez mais violentos sobre o modo de vida dos humanos na sociedade. A crise ética pode se constituir em outro modo de vida em curto prazo, mas, qual o futuro da sociedade sem o cuidado e a vida prática, pautada na ética? Esse modo de vida seria sustentável?

Inspirados em Habermas, Freire e Santos, buscaremos discutir alternativas para a superação da crise ética, que hoje demanda novos paradigmas para a formação humana. E a educação é uma esfera importante para a superação da crise ética em que nos encontramos nos dias atuais. Através da educação é possível modificar as maneiras de pensar e agir.

Nesse horizonte, para enfrentar os desafios na construção de alternativas ao imediatismo que hoje impera nas diferentes esferas da sociedade, torna-se fundamental o cultivo da esperança na humanidade. E, nessa perspectiva, precisamos repensar com profundidade sobre o sentido e as razões de toda e qualquer ação prática no mundo. Pois, ao escolher algo no quotidiano, mesmo que simples, a rigor estamos escolhendo e decidindo sobre o futuro da humanidade.

A sociedade contemporânea hoje se encontra numa grande encruzilhada. O ritmo de destruição do planeta é cada vez mais acelerado e as consequências estão cada vez mais visíveis a todos: aquecimento global, catástrofes climáticas, incêndios gigantescos, secas ou enchentes cada vez mais frequentes. Além disso, com o grande crescimento do consumismo e as demandas por matérias-primas finitas, nosso planeta não suporta por mais um século que seja a destruição ambiental, o desequilíbrio que leva ao caos e compromete os fundamentos do sistema ecológico da Terra.

Diante desse contexto, estamos diante de uma bomba relógio. O que fazer frente à crise ambiental e social que avança rapidamente? Qual o futuro que deixaremos para as próximas gerações? Qual nosso compromisso hoje diante desse quadro? O que a educação pode fazer em médio e longo prazos para contribuir com uma nova atitude do ser humano em relação às questões ambientais e sociais?

Nessa perspectiva, buscaremos apontar alternativas que possam contribuir com a elaboração de projetos viáveis na perspectiva da educação contemporânea, principalmente sobre os seguintes desafios: a interdisciplinaridade na formação humana e profissional; a coerência entre teoria e prática nos processos formativos da educação básica e na educação superior e, igualmente, o desafio de construirmos alternativas à lógica do consumismo desenfreado a partir da filosofia de vida do Bem Viver inspirado no ethos do cuidado, hoje necessário e urgente para ser cultivado por todos os povos e culturas. As questões que ousamos responder nessa reflexão são: Qual a contribuição do processo educacional para a formação de uma cidadania mais comprometida com os desafios futuros da vida em sociedade? E que perfil de cidadão é necessário formar na atualidade?

Proposições de uma formação interdisciplinar segundo Habermas

Habermas é considerado herdeiro de Teoria Social Crítica, destacando-se como um dos grandes pensadores da contemporaneidade, buscando refletir sobre a crise da civilização e apontando caminhos alternativos para a construção de uma nova sociedade, mais justa, humana e emancipada. Seu pensamento emerge da tradição filosófica que tem suas raízes em Hegel e Marx e alcança sua expressão mais elaborada na Escola de Frankfurt. Com esta perspectiva, Habermas busca revisar a tradição marxista à luz do contexto das sociedades contemporâneas que se caracterizam pela complexidade e dinamismo histórico (ZITKOSKI, 2003). A seguir, abordaremos alguns pilares do pensamento habermasiano.

a) Diagnóstico habermasiano da crise das sociedades contemporâneas

Um dos problemas básicos abordados por Habermas, por sua análise crítica das sociedades contemporâneas, é a temática da alienação humana, que pode ocorrer através do déficit de comunicação, decorrente do tipo de racionalidade que impera nos sistemas de controle social, tais como o mercado, o sistema político e a indústria cultural. Diante dessa situação social, alienante e alienadora da vida humana, a proposta alternativa que Habermas elabora está expressa em sua Teoria da Ação Comunicativa, enquanto atualização da Teoria Crítica da Sociedade.

Pela análise que Habermas realiza das sociedades modernas, o fenômeno da burocratização aparece como aspecto fundamental para entender estas sociedades. O controle burocrático reduz o espaço para a ação comunicativa, causando a sobreposição do sistema econômico, político e de organização estrutural da sociedade sobre o Mundo da Vida.

Com esta constatação, a proposta de Habermas converge para o esforço teórico de reabilitar o Mundo da Vida, tendo o propósito de superar a alienação humana, traduzida no grande déficit de comunicação. Nesse sentido, a teoria da ação comunicativa é a expressão mais elaborada de Habermas e seu objetivo central é mostrar que a racionalidade humana é mais ampla que a razão moderna e pode ser reconstruída através de um processo de aprendizagem coletivo pelo processo da linguagem e da argumentação produtora de consensos.

Se há na contemporaneidade o império de uma razão sistêmica, técnica e instrumental que atrofia o potencial comunicativo, então o caminho de superação deve priorizar a construção de uma nova racionalidade. Os sujeitos sociais têm a capacidade de aprendizagem a partir da qual é possível liberar esse potencial comunicativo, hoje atrofiado, e construir novas redes de relações interpessoais capazes de constituir uma cultura emancipada dos vínculos que atrofiam e oprimem a vida humana em sociedade (HABERMAS, 1990).

Nessa perspectiva, a proposta de Habermas, por uma teoria de sociedade mais elaborada e consistente, poderá oferecer complementos enriquecedores às análises teóricas que Freire lança a partir do cenário sociopolítico dos anos 1990.

A desumanização resultante da dramática exclusão social hoje em curso exige uma resposta condizente, através de processos socioculturais fecundos, para que o projeto social emancipatório consiga produzir concretamente o empoderamento dos setores sociais mais oprimidos, que se caracterizam pela alienação da vida humana controlada pelo mundo dos sistemas (com mais força hoje do mercado global) - através do processo de controle via Razão Instrumental.

b) A complexidade da crise social na atualidade

Habermas (1994) procura, em um primeiro momento, analisar as crises das sociedades do capitalismo avançado, buscando entender a deterioração do Estado de Bem Estar vigente no continente europeu e em outros países desenvolvidos. Os primeiros escritos de Habermas permanecem ainda presos ao alcance da Teoria Crítica clássica elaborada pelos filósofos frankfurtianos e reproduzem a concepção ortodoxa da crítica das ideologias, que tem por base o paradigma da consciência transcendental. No entanto, ao introduzir em suas análises o problema da comunicação social e suas repercussões frente à alienação dos sujeitos sociais e dos processos de déficit de participação democrática da sociedade civil, Habermas impulsiona sua proposta em direção à reconstrução do materialismo histórico (TORRES, 1997). Neste sentido, busca fundamentar uma teoria da ação social em princípios universais (Ética do Discurso) e reorganiza os problemas da práxis humana a partir da teoria da ação comunicativa. Tal guinada de Habermas, rumo à refundamentação da filosofia a partir da linguagem (Ética do Discurso e Razão Comunicativa), tem proximidade com a Dialogicidade de Paulo Freire, bem como com as propostas de reconstruir o projeto social emancipatório via reabilitação da práxis transformadora.

O movimento de superação, inaugurado por Habermas frente à herança marxista, recebido através do plano de trabalho da Escola de Frankfurt e das teses da Teoria Social Crítica, o credencia como um dos destacados intelectuais da atualidade no que se trata da revisão do marxismo. A potencialidade de sua proposta está no fato de que, ao assumir as críticas que seus colegas frankfurtianos lançaram à filosofia iluminista (que desembocou no cultivo de uma racionalidade restrita, meramente técnico-instrumental), não apenas busca elucidar as causas da crise que afeta a civilização atual, mas aponta saídas concretas de superação desta crise a partir da construção de uma nova racionalidade - a Razão Comunicativa.

O problema da razão é a temática central da reflexão filosófica de Habermas. Assim, ao manter-se em sintonia com o programa do marxismo através da problematização de seus aspectos fortes, tais como a alienação, a emancipação, a crítica ao capitalismo, dentre outros, Habermas avança pelo seu esforço em mostrar as consequências causadas pelo modelo de racionalidade burocrática e técnica, que está no alicerce dos sistemas modernos de organização social. Dessa forma, a crítica ao marxismo clássico atinge os próprios fundamentos racionais deste, revelando suas teses que se inspiram na razão instrumental (funcionalista).

Dessa forma, para Habermas (1998), o marxismo incorre em uma contradição ao defender, por um lado, um projeto emancipatório da transformação social - que revolucione as bases do capitalismo e supere a alienação social, resultante da mercantilização da vida humana - e, por outro lado, reproduz a mesma racionalidade que fundamenta o próprio sistema capitalista. Assim, o superdimensionamento dos aspectos econômicos, a cosmovisão de um progresso histórico linear, baseado na evolução da ciência e da técnica, e o desprezo pela vida subjetiva em suas relações interpessoais são formas ilustrativas da lógica intrínseca do marxismo que, em última instância, reproduz a racionalidade hegemônica da modernidade.

Segundo Habermas (1992b), os limites básicos do marxismo, desde a sua origem, decorrem de seu contexto social, a partir do qual a teorização ficou presa à lógica do industrialismo precoce e, consequentemente, à razão técnico-econômica. Por estas razões, as teses marxistas (tanto do próprio Marx, quanto de seus seguidores mais próximos) caracterizam-se por limitações, dentre as quais destacamos:

  • a) As análises marxistas de sociedade estão presas ao paradigma de sociedade fundada no trabalho. Essa análise prioriza o trabalho fabril como o maior potencial de transformação social através da contradição capital-trabalho e a consequente organização dos operários. Há, portanto, em Marx uma suposição de que a concentração da força de trabalho nas fábricas oportunizaria a criação e fortalecimento da solidariedade entre os operários, a conscientização e, consequentemente, a ação revolucionária. Segundo Habermas, “Un punto de partida tan productivista excluye la consideración tanto de los ambivalencias del cresciente dominio sobre la naturaleza como del potencial de integración social dentro y fuera de la esfera del trabajo social”. (HABERMAS, 1992b, p. 23).

  • b) O marxismo subestimou a capacidade de reciclagem do capitalismo que, apesar de suas crises profundas, é capaz de renovar-se em seus métodos e regras de funcionamento mantendo intacta sua lógica da mais valia. A análise econômico-social do marxismo previa que a acumulação de capital era uma ilusão do capitalismo, pois, se fossem adotadas regras de controle nacional da economia, se extinguiriam as formas objetivas da lógica capitalista (HABERMAS, 1992b). No entanto, a história mostrou que o planejamento administrativo não conseguiu, até o presente momento das estruturações sociais, substituir por completo as regras do mercado.

  • c) Outra limitação do marxismo se expressa no modo reducionista de analisar a sociedade e a economia a partir da dogmatização do conceito de luta de classes. As sociedades complexas do mundo contemporâneo transcendem em sua concretude a explicação simplista de que todos os problemas sociais seriam resolvidos pelo viés econômico através de um processo planejado que colocasse fim às crises cíclicas da economia capitalista. A vida em sociedade, no contexto atual, requer uma análise que amplie os horizontes sobre os diferentes aspectos da produção e reprodução sociocultural das sociedades atuais.

  • d) O marxismo reduz sua análise política sobre a Democracia Constitucional, ou sobre o Estado moderno. Por conceber a república democrática como representação do Estado burguês, Marx defendia que a verdadeira democracia somente seria possível na sociedade comunista e, portanto, o Estado de Direito moderno consistia apenas em uma “democracia vulgar”. Portanto, somente após a revolução radical dos sistemas sociais a humanidade poderia vivenciar a democracia. Essa visão esquece, contudo, que a “democracia é uma conquista e, dessa forma, deve ser construída pela cidadania com a organização da sociedade civil” (HABERMAS, 1992b, p. 24). Portanto, a verdadeira democracia sempre será apenas uma ideia-fim, que pode nortear os processos históricos de construção das sociedades democráticas.

  • e) Há um grande atrelamento das teses marxistas ao esquema da teoria hegeliana, ao conceber a infalibilidade do conhecimento e acreditar que certas leis da história garantiriam a evolução, o progresso e a certeza da humanização dos povos. Contudo, as consequências dessa forma de estruturar as análises conserva pressupostos da tradição mesmo que não confessados explicitamente. “Los presupuestos secretamente normativos de las teorías de la história se naturalizam en las concepciones evolucionistas del progreso. Esto tiene conscuencias desafortunadas no sólo para los fundamentos [...] de la teoría.” (HABERMAS, 1992b, p. 25).

Diante das críticas que Habermas endereça ao marxismo, surgem, igualmente, de seu esforço em propor alternativas para a reestruturação do projeto emancipatório de sociedade, propostas concretas que retomam o potencial crítico e revolucionário da teoria marxista frente aos contextos concretos da opressão e alienação nas sociedades atuais.

Por isso, Habermas (1998) propõe a revisão das propostas marxistas a partir da problemática da comunicação. O déficit de comunicação, que acontece nas sociedades atuais, devido à manipulação da mídia e dos processos de formação de uma cultura puramente instrumental, tecnicista e pragmatista, deve ser o ponto de partida da teoria crítica contemporânea. Assim, esse autor concebe que o projeto de emancipação e/ou transformação social do mundo contemporâneo requer uma nova racionalidade radicalmente democrática, comunicativa e crítica para que todos os cidadãos tenham oportunidade de debater sobre a situação social em que vivem, a fim de chegar ao entendimento sobre os problemas e soluções que dizem respeito a um mundo partilhado intersubjetivamente.

Conforme Habermas (1992b), somente com grandes processos de comunicação social seria possível superar a alienação cultural, resultante dos processos de racionalização burocrática da vida existentes nas sociedades contemporâneas. Através da reabilitação da Razão Comunicativa, ancorada no Mundo da vida, poderemos recuperar o tecido autêntico da vida social, promovendo a verdadeira soberania popular pela qual a sociedade civil, de modo organizado, passa a controlar os órgãos públicos, que representam o poder do Estado, a política e os sistemas burocráticos. A emancipação política, cultural e social poderá ser uma realidade no futuro se as sociedades reabilitarem as estruturas solidárias e intersubjetivas do Mundo da Vida. Somente a partir dessas condições é que Habermas vê a possibilidade de superar a alienação e promover a emancipação: “las sociedades complejas podrán ser algún día recubiertas por la membrana de la soberania popular” (HABERMAS, 1992b, p. 33).

Dessa forma, Habermas apresenta, em suas propostas de revisão do marxismo, novos elementos que podem servir de complemento às críticas de Freire. A problematização dos modelos de racionalidade que sustentam as formas de organização social, a análise de sociedade a partir da teoria social crítica e a proposta de reabilitação do projeto social emancipatório a partir da razão crítica-comunicativa.

c) Os desafios na construção de uma nova racionalidade

A proposta de Habermas também converge para o desafio de construir uma nova racionalidade, como caminho de superação da atual crise sociocultural que nos atinge. Segundo Habermas (1990), a principal causa dessa crise é o déficit de comunicação produzido por um modelo de racionalidade que burocratiza a existência humana pelo controle dos sistemas sobrepostos à vida em sociedade. A saída para a crise deve partir de uma nova racionalidade, essencialmente crítica e emancipatória, frente à herança sociocultural e os desafios de transformação da realidade social. Tal racionalidade deverá cultivar o debate, a comunicação e a produção do entendimento como fundamento primeiro da vida humana em sociedade.

O diagnóstico habermasiano da atual crise sociocultural explicita que os próprios fundamentos da civilização ocidental foram abalados. Desse modo, a crise atingiu a própria ciência e a técnica como setores mais expressivos da cultura moderna. Os conhecimentos técnico-científicos multiplicam-se em um curto período de tempo e seguem acelerando cada vez mais o ritmo de inovações. Entretanto, por outro lado, tais saberes constroem-se em bases cada vez mais relativas e fragmentadas, implicando uma crise e/ou indefinição dos próprios rumos de sua autoprodução. Nesse sentido, a manifestação da crise não reside no aspecto da quantidade de produção, ou no poder de domínio do mundo que essa produção detém em si, mas, ao contrário, nos fins racionais intrínsecos ao produto científico ou técnico (HABERMAS, 1990).

Então, de acordo com o diagnóstico de Habermas, a raiz última da crise é a fragmentação da própria racionalidade fundante da cultura contemporânea. Ou seja, na base de nossa atual cultura reside uma manifestação mais restrita da racionalidade humana, que reduz e atrofia o potencial racional da humanidade. Esse déficit de racionalidade produz uma grande deficiência nos processos de comunicação entre os sujeitos sociais, que ficam à mercê dos controles burocratizantes da razão instrumental, representada pela visão técnica dos especialistas e burocratas com interesses e fins pragmáticos, para obtenção de resultados previamente planejados por eles.

A racionalidade instrumental, segundo Habermas (1992a), penetra nos poros da vida humana e controla a existência concreta das pessoas a partir das regras do sistema social (economia, política, leis etc.), forjando uma lógica de controle social que aliena, despersonaliza e desumaniza. Por esta lógica, o ser humano é visto apenas como número, peça, ou objeto de manobra. No entanto, o desdobramento prático da razão instrumental é o controle da vida em sociedade e não a emancipação ou libertação das pessoas, que sofrem as consequências negativas das contradições e problemas dos sistemas estruturados. O controle ocorre pela organização do mundo do trabalho, da política, legislação, educação, produção cultural, mídia, ciência, técnica, entre outros mecanismos de reprodução do poder da razão instrumental. O poder que a mídia exerce hoje no mundo ameaça a adequada comunicação humana que, por seu próprio dinamismo, deve se realizar livre de qualquer coação externa. No entanto, ao contrário do sentido emancipatório, a força da mídia, articulada com a grande imprensa internacionalizada, faz com que as pessoas não se comuniquem, mas apenas recebam comunicados, informações ou visões previamente controladas segundo os interesses de quem detém esse poder: “Los medios eletrónicos, que representam una substituición de lo escrito por la imagen y el sonido [...], se presentam como un aparato que penetra y se aduena por entero del linguagen comunicativo cotidiano.” (HABERMAS, 1992a, p. 198.).

Frente a esse contexto em que nos encontramos, Habermas propõe novos caminhos para a construção histórica da humanidade e fundamenta o conceito de Razão Comunicativa, a partir de elementos antropológicos inovadores e autocríticos.

Dessa forma, a Razão Comunicativa busca fundamentar-se a partir da linguagem enquanto expressão de nossas ações sociais, coletivas, intersubjetivas. Assim, Habermas concebe que o ser humano não se constitui a si mesmo, como professa o paradigma egológico (da consciência fechada em si mesma). Ao contrário, desde o início de nossa existência, nos encontramos sempre em processo de formação a partir de práticas intersubjetivas perpassadas pela linguagem.

Por isso, a proposta de Habermas reforça a mudança de paradigma da filosofia da consciência para o paradigma da comunicação e/ou da linguagem, que já teve início na virada linguistica dos filosófos da linguagem, tais como Austin, Witgnesttein e Serle, entre outros.

A passagem do paradigma da filosofia da consciência para o paradigma da filosofia da linguagem constitui um corte de profundidade. As relações entre linguagem e mundo [...] substituem as relações sujeito-objeto. O trabalho de constituição do mundo deixa de ser uma tarefa da subjetividade transcendental para se transformar em estruturas gramaticais. (HABERMAS, 1990, p. 15).

Com a análise da linguagem, enquanto única realidade capaz de autoexplicar-se porque é autorreferencial, Habermas (1990) concebe que há uma Razão intrínseca ao processo efetivo da linguagem. O sentido original e/ou a razão de ser da linguagem é, então, estabelecer o entendimento entre as pessoas. Esse fato traduz a racionalidade implícita à linguagem humana, pois quando alguém usa sentenças no intuito de comunicar-se, busca, então, alcançar um entendimento.

A perspectiva da educação interdisciplinar em Paulo Freire

Outro pensador que ajuda a entender e buscar alternativas para a educação contemporânea é Paulo Reglus Neves Freire (1921-1997). Natural do Nordeste brasileiro, Paulo Freire influenciou a formação das pessoas com uma obra marcada pela autenticidade da pedagogia do oprimido, um legado que inspira movimentos populares, pesquisadores e educadores. A sua proposta educativa também é conhecida como educação popular, referência importante no livro Pedagogia do Oprimido, destinado “aos esfarrapados do mundo e aos que neles se descobrem e, assim descobrindo-se, com eles sofrem, mas, sobretudo, com eles lutam” (FREIRE, 1989, p. 17).

Freire (1989, p. 66) propôs uma educação libertadora que parte da alfabetização2 e constrói bases para a libertação que “implique na superação da contradição educador-educandos, de tal maneira que se façam ambos, simultaneamente, educadores e educandos”. Esta educação traz para a cena categorias que ajudam na libertação integral das pessoas, tais como alfabetização, Pedagogia da indignação, Conscientização e Pedagogia da esperança. Podemos sintetizar a pedagogia freireana em três grandes eixos articulados entre si.

a) Denúncia da crise da sociedade opressora e desafios da libertação

A obra de Paulo Freire revela seu compromisso como intelectual aberto às transformações do tempo. Um estudioso que buscou interpretar a situação das pessoas e as suas capacidades de emancipação. Constatou que muitas pessoas estavam submetidas à desumanização, mas, também, que estas situações não são dadas para sempre.

Freire (1989) percebeu a “consciência opressora” presente em muitas pessoas e denuncia a sua intencionalidade, seus propósitos enquanto ideologia dominante que pode ser transmitida através da “educação bancária”, caracterizada por um modelo de educação em que se transmitem conhecimentos, evitando espaço para a problematização do método e do conteúdo. Por isso propõe a educação libertadora para contribuir com a libertação das pessoas: “A educação como prática de liberdade, ao contrário daquela que é prática de dominação, implica na negação do homem abstrato, isolado, solto, desligado no mundo, assim também na negação do mundo como uma realidade ausente nos homens.” (FREIRE, 1989, p. 81).

Segundo Freire (1989, p. 28), a desumanização é verificada “não apenas como viabilidade ontológica, mas como realidade histórica”. Todavia, é a partir desta constatação que é possível perguntar sobre outra viabilidade: a de sua humanização, pois humanização e desumanização acontecem dentro da história, num contexto de possibilidades em que as pessoas se conhecem ou não como “seres inconclusos e conscientes de sua inconclusão” (FREIRE, 1989, p. 30).

O desafio é propor uma ação que possa contribuir para superar a situação da desumanização que, embora fato concreto na história, não é destino dado. Conforme, Freire (1989), a desumanização é o resultado da injustiça promovida pelos opressores, gerando situações de violência que, por sua vez, podem levar à luta pela humanização, pelo direito ao trabalho, à desalienação e à afirmação das pessoas.

A violência dos opressores que os faz também desumanizados, não instaura uma outra vocação - a do ser menos. Como distorção do ser mais, o ser menos leva os oprimidos, cedo ou tarde, a lutar contra quem os fez menos. E esta luta somente tem sentido quando os oprimidos, ao buscar recuperar sua humanidade, que é uma forma de criá-la, não se sentem idealistamente opressores, nem se tornam, de fato, opressores dos opressores, mas restauradores da humanidade em ambos. E aí está a grande tarefa humanista e histórica dos oprimidos - libertar-se a si e aos opressores. (FREIRE, 1989, p. 30).

Na sua proposta pedagógica afirma a responsabilidade social e política, caracterizadas pela coerência e autenticidade. Dessa forma, seria impossível “dar aulas de democracia e, ao mesmo tempo, considerarmos como ‘absurda e imoral’ a participação do povo no poder” (FREIRE, 1967, p. 93).

b) A formação interdisciplinar através do tema gerador

Tema gerador faz parte do processo de educação proposto por Paulo Freire e contribui para aprofundamentos, a partir do contexto e do próprio processo que é analisado. É concebido como “algo a que chegamos através, não só da própria experiência existencial, mas também de uma reflexão crítica sobre as relações homens-mundo e homens-homens” (FREIRE, 1989, p. 103).

Dessa forma, tema gerador se constitui meio importante para o desenvolvimento do trabalho interdisciplinar, buscando a totalidade semântica com a participação de todos, valorizando as contradições vivenciadas. Favorece a investigação que evidencia um “universo temático mínimo”, por meio de uma metodologia conscientizadora, que possibilita o conhecimento e a reflexão crítica de pensarem seu mundo (FREIRE, 1989).

Essa proposta da educação por Tema Gerador possibilita conceber o conhecimento e a formação humana que articula dialeticamente a experiência da vida prática com a sistematização rigorosa e crítica. Está comprometida com a troca de saberes num círculo, onde todos possam “dizer a sua palavra” e sejam valorizados os saberes que trazem e compartilham. Esta perspectiva intersubjetiva para a construção e reelaboração do conhecimento possibilita desdobramentos na pesquisa e nas discussões pedagógicas que visam refletir a formação levando em conta os desafios da reflexão e inserção crítica na realidade.

A interdisciplinaridade ajuda a superar a ideia de que o conhecimento é ato solipsista e se situa em um conjunto de conhecimentos e relações socioculturais, fundamentadas em um mundo partilhado intersubjetivamente. Esta proposta articula a dimensão epistemológica da existência humana com a totalidade da vida em sociedade - as dimensões política, ética, antropológica, entre outras. Andreola (2018, p. 333) afirma:

Freire não adota uma concepção intelectualista, ou racionalista do conhecimento. O conhecimento engloba a totalidade da experiência humana. O ponto de partida é a experiência concreta do indivíduo, em seu grupo ou sua comunidade. Esta experiência se expressa através do universo verbal e do universo temático do grupo. As palavras e os temas mais significativos deste universo são escolhidos como material para [...] a elaboração do novo conhecimento, partindo da problematização da realidade vivida.

Na metodologia da investigação a partir dos temas geradores proposta por Freire (1989, p. 134) há equipes interdisciplinares que trabalham em diálogo porque a “dialogicidade da educação, começa na investigação temática [...] e a sua última etapa se inicia quando os investigadores, terminadas as descodificações nos círculos, dão começo ao estudo sistemático e interdisciplinar de seus achados”.

A interdisciplinaridade faz parte da proposta educativa freireana. É preocupação desde sua experiência pedagógica em Angicos. E, segundo Gadotti (2000, p. 10), também na Secretária Municipal de São Paulo Paulo Freire deu uma reorientação curricular, chamada de projeto da interdisciplinaridade, e “a interdisciplinaridade não é apenas um método pedagógico ou uma atitude do professor. É uma exigência da própria natureza do ato pedagógico”.

c) Círculo dialógico enquanto prática interdisciplinar

A educação freireana tem sua base no círculo e desenvolveu o círculo de cultura como experiência fundante para a educação dialógica, colocando sua referência na pedagogia do oprimido. Este círculo é um lugar (debaixo de uma árvore, na sala de uma casa ou na escola) onde um grupo de pessoas se reúne para aprender mais, dialogando sobre seu trabalho, sobre a realidade local e nacional, sua vida familiar etc. Numa dinâmica em que todos aprendem a ler e escrever (o texto), ao mesmo tempo em que aprendem a ler (analisar e atuar) sua prática.

Nesses círculos não pode existir o professor “que tudo sabe”, nem o aluno “que nada sabe”. Tampouco podem existir as lições tradicionais que só exercitam a memória dos estudantes. A educação se desenvolve numa relação dialógica com procedimentos que favorecem a aquisição de conhecimentos com ações colaborativas tendo sua referência básica no diálogo, entendido como um elemento essencial no processo educativo, e respondem à exigência radical das pessoas que não podem se construir fora da comunicação. Conforme Ernani M. Fiori, no prefácio de Pedagogia do Oprimido, os círculos de cultura são espaços onde se aprende em “reciprocidade de consciências”, com “Um coordenador que tem por função dar as informações solicitadas pelos respectivos participantes e propiciar condições favoráveis à dinâmica de grupo, reduzindo ao mínimo sua intervenção direta ao curso do diálogo”. (FREIRE, 1989, p. 15).

Os círculos favorecem o diálogo e contribuem para o desenvolvimento de novas teorias e novas práticas em busca da autonomia:

Ninguém é sujeito da autonomia de ninguém. Por outro lado, ninguém amadurece de repente, aos 25 anos. A gente vai amadurecendo todo dia, ou não. A autonomia, enquanto amadurecimento todo dia, ou não A autonomia, enquanto amadurecimento do ser para si é processo, é vir a ser. Não ocorre em data marcada. É neste sentido que uma pedagogia da autonomia tem de estar centrada em experiências estimuladoras da decisão e da responsabilidade, vale dizer, em experiências respeitosas da liberdade. (FREIRE, 1989, p. 67)

Essas categorias ajudam a entender a perspectiva interdisciplinar da pesquisa e da educação freireana. Seu ensinamento chama a atenção para a ação interdisciplinar da equipe. Primeiro, busca conhecer a realidade, pesquisando a situação das pessoas e, com “o universo temático, recolhido na investigação, devolvê-lo, como problema, não como dissertação, aos homens de quem recebeu” (FREIRE, 1989, p. 120). Esta perspectiva leva à conscientização e ao trabalho colaborativo para transformar a situação injusta.

Essa capacidade de ler o mundo e a palavra permite conhecer melhor a realidade e encontrar alternativas que contribuam para pensar juntos, de forma crítica, o próprio mundo, compreendendo melhor a situação das pessoas para alcançar os resultados esperados. E é isso que a sociedade contemporânea requer: uma leitura atenta do contexto, mantendo a abertura ao diálogo e respondendo adequadamente às situações complexas que se apresentam.

A proposta de educação freireana parte do processo de conscientização em que a leitura da palavra e do próprio contexto, aprofundado em grupos, num processo metodológico em que a “leitura do mundo precede a leitura da palavra, daí que a posterior leitura desta não pode prescindir da continuidade da leitura daquela. Linguagem e realidade se prendem dinamicamente” (FREIRE, 1989, p. 9).

O problema de pesquisa surge com o conhecimento da realidade apreendida com as palavras dos educandos, destacando-se as situações de opressão, como base da problematização da realidade, superando a compreensão estreita dos problemas. Assim é possível reconhecer as preocupações da comunidade que revelam a temática a ser pesquisada e tratada de forma interdisciplinar, base do conteúdo programático para ser tematizado e vivido. Ou seja, buscar-se-á conhecer o discurso para reconhecer saberes necessário à prática educacional dialógica.

Desafios de uma ciência/formação interdisciplinar segundo Santos

Além de Habermas e Freire, outro autor que nos auxilia a pensar a interdisciplinaridade nas ciências é Boaventura de Sousa Santos. Nascido em Coimbra em 1940, publicou extensivamente nas áreas de sociologia do direito, sociologia política, epistemologia, estudos pós-coloniais, e sobre os temas dos movimentos sociais, globalização, democracia participativa, reforma do Estado, direitos humanos, com trabalho de campo realizado em Portugal, Brasil, Colômbia, Moçambique, Angola, Cabo Verde, Bolívia e Equador.

Esse autor defende que vivemos em um momento de transição entre o paradigma da ciência moderna e um novo paradigma emergente, o da ciência pós-moderna, a partir da constatação de que a modernidade não cumpriu as promessas que fez em relação aos grandes problemas da humanidade. Na pós-modernidade, a formação interdisciplinar é uma de suas características principais, na medida em que considera a diversidade, a multiplicidade e a heterogeneidade dos fatos, além dos sujeitos presentes nesta formação.

a) O paradigma dominante ou o modelo da Racionalidade que preside a ciência moderna

Para Santos (2018), o modelo de racionalidade que preside a ciência moderna constitui-se a partir da revolução científica do século XVI e foi desenvolvido nos séculos seguintes basicamente no domínio das ciências naturais. Esta nova racionalidade científica nega todas as formas de conhecimento que não se pautarem pelos seus princípios epistemológicos e pelas suas regras metodológicas. Distingue-se ostensivamente de duas formas de conhecimento não científico: “o senso comum e as chamadas humanidades ou estudos humanísticos” (SANTOS, 2018, p. 20). Um conhecimento que se fundamenta na distinção entre conhecimento científico e senso comum, por um lado, e natureza e pessoa humana, por outro.

Na ciência moderna a matemática ocupa um lugar central e fornece à ciência o instrumento privilegiado de análise. Desta centralidade da matemática derivam duas consequências: em primeiro lugar, “conhecer significa quantificar. O rigor científico afere-se pelo rigor das medições” (SANTOS, 2018, p. 27). O que não é quantificável é cientificamente irrelevante. Em segundo lugar, “o método científico assenta na redução da complexidade” (SANTOS, 2018, p. 28). Conhecer significa, neste sentido, dividir e classificar para depois poder determinar relações sistemáticas entre o que se separou.

Esse conhecimento científico moderno aspira à formulação de leis, à luz de regularidades observadas, com vista a prever o comportamento futuro dos fenômenos. A descoberta das leis da natureza assenta, por um lado, no isolamento das condições iniciais relevantes e, por outro, no pressuposto de que o resultado se produzirá independentemente do lugar e do tempo em que se realizarem as condições iniciais (SANTOS, 2018). As leis da ciência moderna são um tipo de causa formal que privilegia o como funciona das coisas em detrimento de qual o agente ou qual o fim das coisas. É por essa via que o conhecimento científico rompe com o conhecimento do senso comum.

Para Santos (2018), um conhecimento baseado na formulação de leis tem como pressuposto a ideia de ordem e de estabilidade do mundo, a ideia de que o passado se repete no futuro. Uma ideia que remonta à mecânica newtoniana, na qual o mundo da matéria pode ser determinado pelas leis físicas e matemáticas, um mundo que o racionalismo cartesiano torna compreensível por meio da decomposição nos elementos que o constituem. “Esta ideia do mundo-máquina é de tal modo poderosa que se vai transformar na grande hipótese universal da época moderna, o mecanismo” (SANTOS, 2018, p. 31). Este determinismo mecanicista é o horizonte certo de uma forma de conhecimento que se pretende utilitário e funcional, reconhecido menos pela capacidade de compreender o real do que pela capacidade de domínio e transformação.

b) A crise do paradigma moderno de ciência

Na visão de Santos este modelo de racionalidade científica atravessa uma profunda crise que se atribui a uma pluralidade de condições, sejam sociais ou mesmo teóricas. Na realidade, o próprio “aprofundamento do conhecimento permitiu ver a fragilidade dos pilares em que se funda” (SANTOS, 2018, p. 43). A relatividade da simultaneidade de Einstein, a mecânica quântica de Heisenberg e Bohr, as investigações de Gödel e as pesquisas do físico-químico Ilya Prigogine constituíram um rombo no paradigma da ciência moderna. Especialmente os avanços do conhecimento nos domínios da microfísica nos últimos anos permitiram uma nova concepção da matéria e da natureza.

Em vez da eternidade, a história; em vez do determinismo, a imprevisibilidade; em vez do mecanismo, a interpenetração, a espontaneidade e a auto-organização; em vez da reversibilidade, a irreversibilidade e a evolução; em vez da ordem, a desordem; em vez da necessidade, a criatividade e o acidente. (SANTOS, 2018, p. 50).

Essa visão teórica faz parte de um movimento que atravessa as várias ciências da natureza e as ciências sociais, um movimento de vocação transdisciplinar que Santos percebe, entre outros, no conceito de auto-organização de Jantsch e no conceito de autopoieses de Maturana e Varela. Este movimento científico propiciou uma profunda reflexão epistemológica sobre o conhecimento científico oriunda dos próprios cientistas que adquiriram uma competência e um interesse filosóficos para problematizar a sua prática científica e análise das condições sociais, dos contextos culturais, dos modelos organizacionais da investigação científica.

Se, de um lado, a crise da ciência moderna se explica a partir das condições teóricas, acima elencados, por outro, as condições sociais são consequência da incapacidade de autorregulação. As ideias de autonomia da ciência e do desinteresse do conhecimento científico colapsaram frente ao fenômeno global da industrialização da ciência. A industrialização da ciência resultou no compromisso desta com os centros de poder econômico, social e político. Esta industrialização da ciência manifestou-se tanto ao nível das aplicações como ao nível da organização da investigação científica. Para Santos (2018, p. 61).

As bombas de Hiroshima e Nagasaki foram um sinal trágico, a princípio visto como acidental e fortuito, mas hoje, perante a catástrofe ecológica e o perigo do holocausto nuclear, cada vez mais visto como manifestação de um modo de produção da ciência inclinado a transformar acidentes em ocorrências sistemáticas.

c) A emergência de um novo paradigma, pós-moderno e interdisciplinar

Para Santos (2018), a revolução científica que atravessamos é estruturalmente diferente da que ocorreu no século XVI. É uma revolução científica que ocorre no interior de uma sociedade revolucionada pela ciência, um paradigma científico prudente num paradigma social de vida decente. Este paradigma emergente pode ser melhor explicado a partir de algumas teses.

Em primeiro lugar, “todo o conhecimento científico-natural é cientifico social”. O conhecimento não é dualista, nem se funda na superação das distinções entre “natureza/cultura, natural/artificial, vivo/inanimado, mente/matéria, observador/observado, subjetivo/objetivo, coletivo/individual, animal/pessoa” (SANTOS, 2018, p. 69). Como afirma Nunes (2004, p. 66), as mudanças climáticas globais, a biodiversidade humana, a primatologia, as ciências do ambiente ou as ciências cognitivas são exemplos de terrenos novos, cujos objetos são, ao mesmo tempo, naturais e sociais, que têm levado a novas articulações de saberes e a colaborações e aproximações entre investigadores de áreas tradicionalmente separadas pela grande separação das duas culturas.

Em segundo lugar, todo o conhecimento é local e total. Embora o conhecimento tenha como horizonte a universalidade, constitui-se ao redor de temas adotados por grupos sociais concretos como projetos de via locais,

sejam eles reconstruir a história de um lugar, manter um espaço verde, construir um computador adequado às necessidades locais, fazer baixar a taxa de mortalidade infantil, inventar um novo instrumento musical, erradicar uma doença etc. A fragmentação pós-moderna não é disciplinar e sim temática. Os temas são galerias por onde os conhecimentos progridem ao encontro uns dos outros. (SANTOS, 2018, p. 82).

Sobre essa perspectiva, o conhecimento é total porque reconstitui os projetos cognitivos locais realçando sua exemplaridade. Desta forma, incentiva os conceitos e as teorias desenvolvidas localmente a emigrarem para outros lugares cognitivos, de modo a poderem ser utilizados fora do seu contexto de origem. Desta forma, o conhecimento pós-moderno é um conhecimento sobre as condições de possibilidade da ação humana projetadas no mundo a partir de um espaço-temporal local. “Um conhecimento deste tipo é relativamente imetódico, constitui-se a partir de uma pluralidade metodológica” (SANTOS, 2018, p. 83). A ciência pós-moderna não segue um estilo unidimensional, mas uma configuração de estilos construída segundo o critério e a imaginação pessoal do cientista.

Em terceiro lugar, todo o conhecimento é autoconhecimento. A ciência, como diz Santos (2018), não descobre, cria, e o ato criativo protagonizado por cada cientista e pela comunidade científica no seu conjunto tem de se conhecer intimamente antes que conheça o que com ele se conheça do real. As nossas trajetórias de vida pessoais e coletivas e os valores e os prejuízos que transportam são a prova íntima do nosso conhecimento, sem o qual as nossas investigações laboratoriais ou de arquivo, os nossos cálculos ou os nossos trabalhos de campo constituiriam um emaranhado de diligências absurdas. No paradigma emergente, o caráter autobiográfico e autorreferenciável da ciência é plenamente assumido. Não nos separamos pessoalmente do que estudamos, mas nos aproximamos compreensivamente. A incerteza do conhecimento que a ciência moderna sempre viu como uma limitação técnica destinada a sucessivas superações transforma-se na chave do entendimento de um mundo que, mais do que controlado, tem que ser contemplado (SANTOS, 2018, p. 92).

Em quarto lugar, todo o conhecimento científico visa constituir-se em senso comum. A ciência pós-moderna tenta dialogar com outras formas de conhecimento deixando-se penetrar por elas. Sobretudo o conhecimento do senso comum, o conhecimento vulgar e prático que no quotidiano orienta as nossas ações e dá sentido à nossa vida. A ciência pós-moderna procura reabilitar o senso comum por reconhecer nesta forma de conhecimento virtualidades para enriquecer a nossa relação com o mundo. Embora o senso comum seja um conhecimento mistificado e conservador, tem, no entanto, uma dimensão utópica e libertadora, que pode ser ampliada através do diálogo com o conhecimento científico. Para Santos (2018, p. 98), a ciência moderna, ao “sensocomunizar-se, não despreza o conhecimento que produz tecnologia, mas entende que, tal como o conhecimento se deve traduzir em autoconhecimento, o desenvolvimento tecnológico deve traduzir-se em sabedoria de vida”.

Sanín (2004), ao comentar o pensamento de Santos, afirma que a única maneira de encontrar os limites e os novos horizontes da ciência é estabelecer formas de diálogo entre diversas razões e construir processos sistemáticos de tradução entre várias lógicas diferentes. Para ele, “a ciência contemporânea está numa posição particularmente favorável para entabular esse diálogo, porque, pela própria natureza dos problemas e objetos de que se ocupa, está agudamente consciente dos seus próprios limites” (SANÍN, 2004, p. 421).

Desafios concretos da interdisciplinaridade na perspectiva desses autores

A partir da análise e problematização dos autores citados neste artigo, destacamos três desafios concretos para o desenvolvimento de uma formação interdisciplinar na busca de enfrentarmos os problemas atuais e a crise da humanidade: a superação da crise ética, a questão ambiental e a questão social.

Os dados mostram que é necessário buscar novas fundamentações para os problemas “já conhecidos”. Diversos autores têm se debruçado sobre a temática, que necessita agora de novas bases.

1º- Para a superação da crise ética: novos fundamentos na formação humana

A superação da crise ética se dá, na perspectiva de Habermas (1992), através do cultivo da racionalidade comunicativa, desde os espaços escolares e ampliando para o quotidiano da vida em sociedade. Ou seja, através da comunicação entre os sujeitos, visando ao entendimento, as pessoas podem construir gramaticalmente sentidos comungados intersubjetivamente a partir dos quais a comunidade busca agir no mundo.

Nesse processo de produção intersubjetiva, concebe-se a constituição de um conjunto de saberes como pano de fundo e/ou referência primeira para compreender a própria existência humana. Esses saberes originários constituem o Mundo da Vida, enquanto fonte principal de recriação e produção dos sentidos humanos para a vida em sociedade.

Eis, então, um conceito fecundo para recriar os atuais processos socioculturais alienantes, que as sociedades vivenciam. O Mundo da Vida está além do controle da razão instrumental. Dessa forma, Habermas (1992) mantém a firme convicção de que é possível recriar a cultura, superando os modelos de racionalidades alienantes, através de um processo de emersão de novos sentidos humanos existenciais por intermédio da Razão Comunicativa.

Para Santos (1989, p. 154), o conceito de Senso Comum se aproxima da concepção Mundo da Vida em Habermas. Contudo, afasta-se em dois aspectos principais: em primeiro lugar, o conceito de quotidianidade da nossa vida social em sociedades complexas é feito de muitas quotidianidades, como a doméstica, a do trabalho, a da cidadania e a da mundialidade. O segundo aspecto em que a concepção de Santos se afasta de Habermas é que para este o Mundo da Vida é o espaço e o tempo de consenso, da cooperação, da comunicação e da intersubjetividade.

Conforme Santos (1989), não há dúvida que essas são dimensões importantes do Mundo da vida em que nos produzimos e reproduzimos. Entretanto, é necessário que sejam compreendidas em tensão dialética com o conflito, a violência, o silenciamento e o estranhamento. Nas palavras desse autor:

A tensão latente ou manifesta que constitui a nossa quotidianidade ocorre de modo diferente em cada um dos contextos estruturais em função do mecanismo de poder específico que subjaz a cada um deles: o patriarcado, a exploração, a dominação e a troca desigual. (SANTOS, 1989, p. 155).

Para Santos (1989), o desafio utópico e emancipador no mundo moderno - saturado de demonstrações científicas e de necessidades técnicas, onde o conflito é normalmente vivido como consentimento relutante, reservado ou fatalista, a violência como repressão dos excessos, o silenciamento como comunicação desinteressante, irrelevante ou vazia, o estranhamento, como proximidade indiferente - é negociar sentidos, encenar presenças, dramatizar enredos, amortizar diferenças, deslocar limites e esquecer princípios e lembrar contingências.

Já a obra de Paulo Freire apresenta uma ética humanizante, baseada em uma visão de ser humano, de mundo e da história que se contrapõe à ética utilitarista e do lucro a qualquer custo do nosso tempo. Defende a dignidade da pessoa humana como responsabilidade ética e a educação como base de acesso à formação ética que não permite dicotomias:

A compreensão crítica da tecnologia, da qual a educação de que precisamos deve estar infundida, é a que vê nela uma intervenção crescentemente sofisticada no mundo a ser necessariamente submetida a crivo político e ético. Quanto maior vem sendo a importância da tecnologia hoje tanto mais se afirma a necessidade de rigorosa vigilância ética sobre ela. De uma ética a serviço das gentes, de sua vocação ontológica, a do ser mais e não de uma ética estreita e malvada, como a do lucro, a do mercado. (FREIRE, 2000, p. 46).

Dessa forma, o princípio ético freireano parte do contexto histórico-social e busca a autonomia democrática, sempre voltada aos oprimidos, mesmo diante das perplexidades e conformações do mundo atual. Freire (2001) percebe as incoerências e obstáculos ao processo emancipador e os mecanismos de dominação: “é bem verdade que a industrialização vem promovendo a sua transformação de espectador quase incomprometido em ‘participante’ ingênuo, em grandes áreas da vida nacional” (FREIRE, 2001, p. 31).

O compromisso ético de Freire pode contribuir para a elaboração do processo metodológico fundamentado no diálogo crítico, que requer o conhecimento dos condicionamentos históricos, sociológicos e ideológicos. A esperança nas pessoas e no poder de transformação da coletividade, expressando-se a “favor do sonho, da utopia, da liberdade, da democracia é o discurso de quem recusa a acomodação e não deixa morrer em si o gosto de ser gente, que o fatalismo deteriora” (FREIRE, 2001, p. 86).

Os novos fundamentos éticos apresentados por Freire (1997) mostram o valor da ética para a educação e para a vida das pessoas, evitando o puro treinamento técnico das pessoas: “Se se respeita a natureza do ser humano, o ensino dos conteúdos não pode dar-se alheio à formação moral do educando. Educar é substantivamente formar” (FREIRE, 1997, p. 37).

2º- Desafios na questão ambiental: uma formação interdisciplinar e o cuidado com o futuro do planeta

Segundo Habermas (1994), em questões ambientais, vivemos uma verdadeira “bomba relógio”. Ou seja, o Planeta não suportará o ritmo de destruição e violência contra a natureza, produzido pelo modelo econômico e tecnológico predominantes em curso. Isso por que consumimos atualmente mais do que os recursos naturais podem ser renovados. O desequilíbrio torna-se crescente e insustentável!

Além disso, Habermas (1994) aponta que, para desarmar essa “bomba relógio”, é necessária a transição do paradigma moderno (disciplinar) de formação humano para um novo paradigma, fundamentado na perspectiva interdisciplinar e ético-comunicativa. Ou seja, um novo perfil na forma de pensar e agir socialmente, em que todos se comprometem a discutir soluções coletivas, buscando o entendimento para a intervenção no mundo de forma responsável diante do futuro da humanidade, do planeta e da sociedade, para o maior equilíbrio social, político e ambiental.

Conforme Santos (2018), o enfrentamento dos problemas ambientais exige uma formação interdisciplinar. Por isso, alerta que todo conhecimento científico é científico-social. O conhecimento não é dualista, nem se funda na superação das distinções entre “natureza/cultura, natural/artificial, vivo/inanimado, mente/matéria, observador/observado, subjetivo/objetivo, coletivo/individual, animal/pessoa” (SANTOS, 2018, p. 69).

A emergência de novos domínios e objetos de investigação exige a unidade entre sociedade, natureza e tecnologia. Por isso, temas como as mudanças climáticas globais, a biodiversidade humana, as ciências do ambiente ou as ciências cognitivas são exemplos de terrenos novos, cujos objetos são, ao mesmo tempo, naturais e sociais e têm levado a novas articulações de saberes e a colaborações e aproximações entre investigadores de áreas tradicionalmente separadas pela grande separação das culturas.

A pesquisa interdisciplinar, conforme Santos (2018, p. 22), ajuda a compreender a urgência de somar forças para cuidar do meio ambiente, pois “todo o conhecimento é local e total”. Nesta perspectiva de produção de conhecimento há convergência de disciplinas ou áreas do saber em projetos que procuram dar respostas aos problemas sociais, aos problemas de desenvolvimento de tecnologias apropriadas às formas de vida sustentáveis, aos problemas de saúde ou ambientais. No plano local, encontra hoje uma diversidade de experiências cuja riqueza está ainda em grande parte por inventariar.

Também Freire (1997, p. 67) contribui para desenvolver novas bases ao fundamentar uma nova relação com o meio ambiente e o cuidado do planeta com uma “educação ambiental capaz de induzir dinâmicas sociais que levam a mudanças individuais e coletivas, locais e globais que provocam uma abordagem colaborativa e crítica na busca da resolução dos problemas”.

A educação ambiental com uma abordagem colaborativa permite olhar para o planeta e responsabilizar-se com o cuidado do meio ambiente em que estamos inseridos. Este cuidado é necessário para nós e para as futuras gerações. Por isso, afirma: “Eu gostaria de ser lembrado como alguém que amou o mundo, as pessoas, os bichos, as árvores, a terra, a água, a vida!” (FREIRE, 2001, p. 25).

Dessa forma, Freire ajudou-nos a compreender que o ser humano se desenvolve ao aprender. E a educação ambiental pode encontrar na teoria freireana contribuições significativas para sua práxis libertadora, baseada em uma ética da responsabilidade para com os outros e com o Planeta.

3º A questão social contemporânea: migrações, exclusão, violência etc.

Ao afirmar que todo o conhecimento é autoconhecimento, no qual os conhecimentos científicos são também autobiográficos e autorreferenciáveis, em que a forma de visão do mundo e a cultura dos investigadores (valores, crenças, representações) tornam-se parte da explicação científica, Santos (2018) dá voz aos marginalizados ou ignorados. Estes podem hoje fazer novas interrogações e são vozes críticas que surgem de quadrantes diversos, como os movimentos indígenas, sem-terra e os ambientalistas, e defendem o direito aos recursos de biodiversidade e à valorização dos seus conhecimentos e experiências. Os movimentos ambientalistas produzem conhecimentos alternativos ou críticos das tecnociências dominantes e os movimentos feministas e multiculturais procuram influenciar a reorientação da investigação científica e tecnológica no sentido de uma maior responsabilidade social e ambiental.

Os movimentos sociais e populares eram temáticas constantes na perspectiva educacional de Paulo Freire. Ele parte do diálogo que permite a reflexão crítica em suas relações no mundo através da ação que possibilita a libertação e a transformação social: “É práxis, que implica na ação e na reflexão dos homens sobre o mundo para transformá-lo” (FREIRE, 1989, p. 67).

A realidade concreta dos sujeitos envolvidos nos movimentos sociais e processos educativos é tema de investigação. É um processo que parte da crítica, com um método rigoroso, humilde e persistente no qual a “sala de aula libertadora é exigente, e não permissiva. Exige que você pense sobre as questões, escreva sobre elas, discuta-as seriamente” (FREIRE; SHOR, 2008, p. 25). Tal metodologia freireana afirma que a educação esteja harmonizada com o fim que persegue: “permitir ao homem chegar a ser sujeito, construir-se como pessoa, transformar o mundo, estabelecer com os outros homens relações de reciprocidade, fazer a cultura e a história” (FREIRE; SHOR, 2008, p. 39).

Considerações finais

Considerando o paradigma ético-comunicativo e dialógico nesse processo de produzir novos entendimentos acerca da vida humana em sociedade, entendemos que é possível termos a esperança em construirmos no futuro amplos caminhos de reelaboração sociocultural a partir das responsabilidades intersubjetivamente assumidas frente aos desafios de transformação da realidade.

Através do processo educacional, ancorados no paradigma interdisciplinar, acreditamos ser possível superar a lógica objetivante e alienadora da formação humana coordenada pela razão técnica e construir um novo modelo de sociedade que supere os problemas mais profundos do mundo atual, tais como a alienação, a exclusão social e as diferentes formas de conflitos que hoje afloram na convivência social.

A razão proposta por Habermas supera a racionalidade egológica da subjetividade transcendental e, igualmente, a razão universal que governa a história concebida por Hegel. É uma racionalidade que vai se construindo no processo intersubjetivo da comunicação a partir do qual as múltiplas vozes dos participantes do diálogo produzem uma unidade de sentido através da busca de entendimento sobre algo no mundo. O telos da linguagem é alcançar o entendimento e produzir práticas de solidariedade e trocas de sentidos humanizadores da vida em sociedade.

Na mesma direção, Freire (2001) defende que a educação contemporânea precisa inovar e ousar novas possibilidades, coerentes com os desafios da sociedade em profundas transformações. Por isso, a pesquisa deve fazer parte do processo educativo, em que professores são convidados a revelar os fatos, despertando nos educandos a consciência crítica sobre o que lhes é transmitido para que possam superar a consciência ingênua com uma postura crítica. Através do diálogo que possibilite aos educadores e educandos a troca de ideias e conhecimentos, temos o desenvolvimento do próprio conhecimento.

Com Santos (2004) reafirmamos a necessidade de um conhecimento prudente para uma vida decente, com destaque para o diálogo entre os diferentes saberes. A ecologia de saberes torna-se cada vez mais uma necessidade nos tempos atuais, quando precisamos urgentemente dialogar com as diferentes experiências de vida e fazer emergir o potencial de inteligência e criatividade dos povos e culturas que foram historicamente invisibilizados, ou sufocados pelas lógicas dominantes.

Com Freire (2000, p. 67) “assumamos o dever de lutar pelos princípios éticos mais fundamentais como do respeito à vida dos seres humanos, à vida dos outros animais, à vida dos pássaros, à vida dos rios e florestas”. E a busca de humanização do mundo, que faz da natureza humana uma constante busca do ser mais, revela em nós seres em construção, uma existência radicalmente Ética, conforme afirma Freire (1997, p. 20): “Na verdade, falo da ética universal do ser humano da mesma forma como falo de sua vocação ontológica para o ser mais, como de sua natureza constituindo-se social e historicamente.”

Nessa perspectiva é que Freire (1989) concebe importância de uma ciência biófila, que cultive uma intencionalidade em defesa da vida, acima de tudo fundamentada numa epistemologia interdisciplinar. Esse autor defende que o verdadeiro conhecimento é interdisciplinar e deve articular dialeticamente a experiência da vida prática com a sistematização rigorosa e crítica.

E, além de interdisciplinar, toda educação e elaboração da ciência requer o compromisso com a vida em sua totalidade. Precisamos cada vez mais de uma educação e de uma ciência biófila, pois se a humanidade apenas produzir conhecimento para transformar em produtos tecnológicos voltados para o lucro, nós estaremos aumentando os graves problemas ambientais e sociais, tornando insustentável o futuro da humanidade.

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1Este é um estudo que trata de problemas da educação contemporânea, relacionada aos processos formativos, desenvolvidos por uma metodologia de estudo bibliográfica. Os autores buscaram cuidar das questões éticas relacionadas ao estudo da temática apresentado neste artigo.

2Em 1962, Paulo Freire coordenou em Angicos, Rio Grande do Norte (Brasil), um programa de alfabetização que ajudou 300 trabalhadores rurais a ler e escrever em 45 dias. Os resultados fizeram com que o Programa fosse aplicado em todo o território.

Recebido: 10 de Março de 2020; Aceito: 15 de Dezembro de 2020

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