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Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade

versión impresa ISSN 0104-7043versión On-line ISSN 2358-0194

Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade vol.30 no.61 Salvador ene./mar 2021  Epub 18-Oct-2021

https://doi.org/10.21879/faeeba2358-0194.2020.v30.n61.p85-102 

EDUCAÇÃO DO CAMPO

ESTADO E MOVIMENTOS SOCIAIS: UM OLHAR SOBRE O PRONERA

STATE AND SOCIAL MOVEMENTS: A LOOK AT PRONERA

ESTADO Y MOVIMIENTOS SOCIALES: UNA MIRADA A PRONERA

Jullyane Santana*  (UFPI)

Marli Gonçalves**  (UFPI)
http://orcid.org/0000-0002-9802-9535

Rosana Cruz***  (UFPI)
http://orcid.org/0000-0002-8341-0835

*Doutoranda em Educação pela Universidade de São Paulo (USP) - Campus Ribeirão Preto. Mestre em Educação pela Universidade Federal do Piauí (UFPI). Teresina, Piauí, Brasil. E-mail: jullyanefrazao@gmail.com

**Doutora em Educação pela Universidade Federal do Piauí (UFPI). Coordenadora Adjunta do Núcleo de Estudos, Pesquisa e Extensão em Educação do Campo (NUPECAMPO/UFPI) e do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Políticas e Gestão da Educação (NUPPEGE/UFPI). Universidade Federal do Piauí (UFPI). Teresina, Piauí, Brasil. E-mail: marliclementino@yahoo.com.br

***Doutora em Educação pela Universidade de São Paulo (USP). Docente do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFPI - Teresina/PI. Teresina, Piauí, Brasil. Membro do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Políticas e Gestão da Educação (NUPPEGE). E-mail: rosanacruz@ufpi.edu.br


RESUMO

O presente artigo se propõe a problematizar a relação entre o Estado e os movimentos sociais, evidenciando suas contradições, limites e possibilidades no que se refere aos processos de gestão do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera) entre 1998 e 2016, por meio do estudo comparativo dos manuais de operacionalização publicados no período. O estudo, bibliográfico e documental, dialogou com autores como Poulantzas (2000) e Hofling (2001), para problematizar as contradições das políticas públicas no Estado capitalista; e Molina (2011), Medeiros (2010), Dias (2015) e Caldart (2009), para analisar a trajetória do Pronera e as contradições inerentes ao seu processo de implementação no que se refere à participação dos movimentos sociais e sindicais na sua gestão. O estudo revelou que ocorreu o afastamento dos movimentos sociais e sindicais das esferas decisórias do Estado, com a consequente restrição de sua participação nos processos de operacionalização da política.

Palavras-chave: Educação do Campo; Pronera; Movimentos sociais e sindicais do campo

ABSTRACT

This article aims to problematize the relationship between the State and social movements, highlighting their contradictions, limits and possibilities with regard to the management processes of the National Education Program on Agrarian Reform - Pronera - between 1998 to 2016, through the comparative study of the operational manuals published in the period. The study, bibliographic and documentary, dialogued with authors such as Poulantzas (2000) and Hofling (2001), to discuss the contradictions of public policies in the capitalist state; and Molina (2011), Medeiros (2010), Dias (2015) and Caldart (2009), to analyze Pronera’s trajectory and the inherent contradictions in its implementation process with regard to the participation of social and union movements in its management. The study revealed that social and union movements have moved away from the State's decision-making spheres, with the consequent restriction of their participation in the processes of operationalizing politics.

Keywords: Rural Education; Pronera; Social and union movements in the countryside

RESUMEN

Este artículo tiene como objetivo discutir la relación entre las Estado y movimientos sociales, mostrando sus contradicciones, límites y posibilidades con respecto a los procesos de gestión de Pronera, de 1998 a 2016, a través del estudio comparativo de los manuales operativos publicados en el período. El estúdio, bibliográfico y documental. Para emprender la construcción del texto se dialoga con autores como Poulantzas (2000) y Hofling (2001), para discutir las contradicciones de las políticas públicas en el Estado capitalista, y Molina (2011), Medeiros (2010), Dias (2015) y Caldart (2009) para analizar la trayectoria de Pronera y las contradicciones inherentes a su proceso de implementación en cuanto a la participación de los movimientos sociales y sindicales en su gestión. El estudio reveló que los movimientos sociales y sindicales se han alejado de los ámbitos de decisión del Estado, con la consiguiente restricción de su participación en los procesos de operacionalización de la política.

Palabras clave: Educación rural; Pronera; Movimientos sociales y sindicales rurales

Introdução

O Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera), institucionalizado pelo Ministério Extraordinário de Política Fundiária (MEPF) por meio da Portaria n°10/98 (BRASIL, 1998a), nasceu da reivindicação dos movimentos populares e sindicais em defesa da escolarização de jovens e adultos residentes em áreas de assentamento e/ou acampamento, tendo como objetivo elevar a qualidade de vida no meio rural, por meio de uma educação desvinculada dos modelos urbanocêntricos e com vistas à sustentabilidade.

Segundo o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), entre os anos de 1998 e 2018, o Programa ofertou 499 cursos, em parceria com 94 instituições educacionais, atendendo 186.734 beneficiários em todas as modalidades de ensino, desde a educação de jovens e adultos até programas de pós-graduação (BRASIL, 2018). Os dados demostram que o Programa contribuiu para o alargamento das possibilidades formativas dos povos do campo, sendo que as experiências acumuladas no âmbito de sua execução impulsionaram um processo de territorialização da Educação do Campo na esfera do Estado (DIAS, 2015). O Pronera não nasceu da simples vontade política do Estado, mas da síntese de múltiplas determinações que contribuíram para levar para dentro do aparelho estatal as experiências educacionais que vinham sendo acumuladas pelos movimentos sociais do campo, representando, dentre outros aspectos, um salto qualitativo em relação às políticas e programas desenvolvidos até meados do século XX.

A mudança de caráter qualitativo, representada pelo Pronera, perpassa o processo de construção e a concepção impressa nos aspectos político-pedagógicos, teórico-metodológicos e operacionais do Programa. No contexto de sua institucionalização, em 1998, a sociedade civil, representada pelos movimentos campesinos, não só participou ativamente dos processos de construção e discussão dos marcos normativos, como também teve assento nas instâncias de caráter deliberativo, conferindo um aspecto participativo e democrático à gestão do Programa, em que pese sua execução ocorrer no âmbito de um Estado que representa, hegemonicamente, os interesses da classe dominantes com vistas à manutenção do sistema capitalista.

Partindo do entendimento de que o Pronera é resultante da correlação de forças entre os movimentos sociais e o Estado, cujos contextos expressam dinâmicas de avanços e retrocessos na participação da sociedade civil na gestão do Programa, o presente artigo se propõe a problematizar a relação entre o Estado e os movimentos sociais, evidenciando suas contradições, limites e possibilidades no que se refere aos processos de gestão do Pronera, de 1998 a 2016, por meio do estudo comparativo dos manuais de operacionalização publicados no período.

A pesquisa científica, enquanto um ato de compreensão das materialidades objetivas, tem sentido quando compreendemos que a realidade “pode ser conhecida e modificada” uma vez que a dialética “reconhece que essa materialidade se movimenta e, se ela se movimenta, ela é histórica”, constituindo-se de um emaranhado de contradições (FREITAS, 2007, p. 54-55). Nesta perspectiva, o presente trabalho, que consiste em pesquisa bibliográfica e documental, insere-se no conjunto de estudos que objetivam contribuir com a análise do percurso da Educação do Campo a partir da “compreensão das tendências de futuro para poder atuar sobre elas” (CALDART, 2009, p. 36).

Para empreender a construção do texto, além do estudo documental, dialogou-se com Poulantzas (2000) e Hofling (2001), para problematizar as contradições das políticas públicas no Estado capitalista; e Molina (2011), Medeiros (2010), Dias (2015) e Caldart (2009), para analisar a trajetória do Pronera e as contradições inerentes ao seu processo de implementação no que se refere à participação dos movimentos sociais e sindicais na sua gestão.

O artigo é composto por cinco seções, sendo que a primeira compreende a presente introdução. Na segunda, são empreendidas reflexões sobre a relação do Estado e dos movimentos sociais, situando a luta por uma Educação do Campo no contexto da sociedade capitalista. Na terceira seção apresenta-se uma discussão dos aspectos teóricos, políticos e metodológicos que orientam os cursos do Pronera. Na quarta, problematizam-se, nos Manuais de Operações do Programa, publicados entre 1998 e 2016, questões referentes à gestão e à participação dos movimentos sociais e sindicais. Por fim, na quinta e última seção, são apresentadas as considerações finais do artigo.

Estado e movimentos sociais: contradições, limites e possibilidades

As lutas populares estão inscritas na ossatura do próprio Estado (POULANTZAS, 2000), sendo ao mesmo tempo resultado e causa de tensionamentos na relação entre a burguesia e o proletariado. Para Poulantzas (2000, p. 42), “o Estado concentra não apenas a relação de forças entre frações do bloco no poder, mas também a relação de forças entre estas e as classes dominadas”. Nesse sentido, destaca-se que a formulação e a execução de uma política social são processos contraditórios e complexos que se relacionam diretamente com um jogo de poder e intencionalidades econômicas, norteados pela ideologia do bloco dominante, que se utiliza de instrumentos legais e burocráticos para o favorecimento do capital e contenção das massas. Em contraponto, ocorre a luta dos movimentos sociais pela conquista e garantia de direitos sociais.

O supracitado teórico coloca que o papel do Estado diante das classes dominadas e do bloco no poder

Não deriva de sua racionalidade intrínseca como entidade ‘exterior’ às classes dominadas. Ele está igualmente inscrito na ossatura organizacional do Estado como condensação material de uma relação de forças entre as classes. O Estado concentra não apenas a relação de forças entre frações do bloco no poder, mas também a relação de forças entre estas e as classes dominadas. (POULANTZAS, 2000, p. 42, grifo do autor).

Nesse contexto, conforme Poulantzas (2000, p. 41), “os aparelhos de Estado consagram e reproduzem a hegemonia ao estabelecer um jogo (variável) de compromissos provisórios entre o bloco no poder e determinadas classes dominantes”. Entretanto, esta relação não se dá sem disputa, pois a classe dominada também exerce poder sobre o Estado. As políticas públicas não são resultado de fatores isolados ou da vontade de uma determinada classe, mas da condensação de um emaranhado de relações políticas, econômicas e sociais engendradas nas contradições do próprio Estado Capitalista. Por isso, entende-se que “são as relações de poder, de coerção e de ameaça, legal e politicamente sancionadas, bem como as oportunidades correspondentes da realização de interesses, que determinam o grau de justiça social que a política social tem condições de produzir” (OFFE, 1991 apud BOSCHETTI, 2009, p. 10). Nesse sentido, aponta-se para uma tensão entre os interesses da classe trabalhadora e os da classe dominante no que concerne à democratização dos direitos sociais e a manutenção da lógica do capital.

Os direitos sociais são materializados por meio da implantação de políticas sociais. De acordo com Hofling (2001, p. 31-32, grifo do autor), as políticas sociais “são formas de interferência do Estado, visando a manutenção das relações sociais de determinada formação social. Portanto, assumem ‘feições’ diferentes em diferentes sociedades e diferentes concepções de Estado”. Tendo em vista o exposto, ressalta-se que as políticas sociais se desdobram no interior do Estado Capitalista, sendo determinadas pela lógica de reprodução e acumulação do capital.

No que diz respeito à luta pela garantia de uma política pública, destaca-se a publicação do Decreto n° 7.352/2010 (BRASIL, 2010), que dispõe sobre a Política de Educação do Campo e o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera) como parte integrante da Política.

A publicação desse Decreto constituiu um marco importante na luta pela Educação do Campo, tendo em vista que confere o status de política pública às ações desenvolvidas tanto em seu âmbito como no Pronera, contribuindo diretamente para o seu fortalecimento. Dentre outros condicionantes, o Decreto é resultante de um processo acumulado de lutas e tensionamentos que tem como protagonistas primeiros os movimentos sociais e sindicais do campo. A luta destes Movimentos por uma Educação do Campo considera que a “complexidade das condições socioeconômicas e educacionais das populações rurais exige a elaboração de políticas públicas que busquem suprir as enormes desigualdades no direito ao acesso e à permanência à escola” (MOLINA, 2011, p. 116).

Tendo em vista o exposto, julga-se que a luta por políticas públicas e garantias constitucionais são essenciais para garantir o acesso das classes trabalhadoras a níveis cada vez mais altos de escolarização. Contudo, chama-se a atenção para a importância do horizonte da Educação do Campo, dado que nem o acesso à escola e nem às políticas públicas tem um fim neles mesmos, sendo, contudo, fundamentais os meios para “fazer avançar a luta maior e acumular forças para transformações estruturais” (MOLINA, 2011, p. 120). Nesse sentido, pontua-se que o horizonte supracitado não pode ser perdido nas armadilhas do Estado, que, ao passo que garante a institucionalização de leis ou de políticas públicas, nega as condições para a sua execução, relacionadas aos processos de gestão e financiamento das mesmas.

O Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera)

O Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária é uma política pública de Educação do Campo construída na década de 1990, na contramão da implementação de políticas compensatórias baseadas em um modelo urbanocêntrico, constituindo “para os movimentos sociais, uma forma de territorialização das suas lutas para dentro dos espaços do Estado” (DIAS, 2015, p. 70). Esta territorialização deveu-se ao fato de o Pronera ter sido construído em um contexto de luta e resistência.

O Programa nasceu vinculado à política de Reforma Agrária como uma estratégia de fortalecimento da mesma. Isto posto, importa pontuar que, em comparação com outros programas educacionais voltados para o meio rural, cuja ligação com o Ministério da Agricultura guardava estreitas relações com a modernização do campo e o fortalecimento das técnicas agrícolas estadunidenses (CALAZANS, 1993; RIBEIRO, 2013, 2015), o Pronera representa um avanço qualitativo no processo de valorização tanto dos povos rurais quanto da agricultura familiar.

Na Portaria n° 10 (BRASIL, 1998a), que instituiu o Pronera, em 1998, a caracterização foi de uma política de inclusão social que tem como objetivo atender a demanda por educação nos assentamentos rurais. A proposta, apresentada no referido documento, vinculava o Programa à política de Reforma Agrária desenvolvida pelo Governo Federal e visava

[...] Atender à demanda educacional dos assentamentos rurais, dentro de um contexto de Reforma Agrária prioritário do Governo Federal, de assentar um trabalhador rural em um lote de terra, provendo-lhe as condições necessárias ao seu desenvolvimento econômico e sustentável. (BRASIL, 1998a).

Na esteira do supracitado marco legal, o primeiro Manual de Operações do Pronera, aponta como objetivo geral do Programa: “fortalecer a educação nos assentamentos de Reforma Agrária, utilizando metodologias específicas para o campo, que contribuam para o desenvolvimento rural sustentável no Brasil” (BRASIL, 1998b, p. 10), vinculando a educação a um determinado projeto de desenvolvimento do campo brasileiro, o que favorecia a manutenção da lógica do Programa enquanto uma política de resistência e fortalecimento das áreas de Reforma Agrária.

Em 2010, doze anos após a institucionalização do Pronera enquanto Programa de governo, o Poder Executivo publica o Decreto nº 7.352, de 4 de novembro de 2010 (BRASIL, 2010), que dispõe sobre a Política de Educação do Campo, sendo o Pronera parte integrante da referida política. Este Decreto dispõe sobre as normas de funcionamento, execução e gestão do Programa, constituindo-se, a partir da data de sua publicação, base normativa para a elaboração dos Manuais de Operações.

Segundo o art.12 do referido Decreto, são objetivos do Pronera:

I- Oferecer educação formal aos jovens e adultos beneficiários do Plano Nacional de crédito fundiário;

II- PNRA, em todos os níveis de ensino;

III- Melhorar as condições do acesso à educação do público do PNRA; e

IV- proporcionar melhorias no desenvolvimento dos assentamentos rurais por meio da qualificação do público do PNRA e dos profissionais que desenvolvem atividades educacionais e técnicas nos assentamentos. (BRASIL, 2010).

Tais objetivos fomentam a ideia expressa na Portaria que institucionalizou o Programa (BRASIL, 1998a), em 1998, de que a educação é fundamental no processo de desenvolvimento das áreas de assentamento. Segundo o Manual de Operações do Pronera, publicado em 2016 (BRASIL, 2016), os projetos apoiados pelo Programa devem estar orientados, inicialmente, pelos seguintes princípios político-pedagógicos: a democratização do acesso à educação, à inclusão, à participação, à interação, à multiplicação e à participação social. Dentre estes princípios, destaca-se que a interação, a participação e a multiplicação estão presentes nos Manuais de Operações do Programa, enquanto fundamentos básicos do Pronera, desde 1998.

No Manual de 1998, o caráter interativo e multiplicador do Programa relacionava-se com a ideia de continuidade, ampliação e dinamicidade dos processos educacionais (BRASIL, 1998b). O princípio da participação constituía-se um elo entre a educação e o desenvolvimento dos assentamentos, na medida em que trazia em seu escopo as questões relacionadas com a priorização de atividades que contemplassem as “necessidades” do assentamento, “identificadas pelo conjunto da comunidade beneficiária do Projeto”, sendo indispensável a participação desta comunidade na elaboração, execução e avaliação da proposta (BRASIL, 1998b, p. 12).

A participação da comunidade nos processos iniciais e finais de execução das propostas, conforme Fernandes (2006, p. 3), é condição para garantir o desenvolvimento do território camponês, contrapondo-se à lógica mercadológica, exigindo uma “política educacional que atenda a sua diversidade e amplitude, e entenda a população camponesa como protagonista propositiva de políticas, e não como beneficiários e/ou usuários”. Neste sentido, tendo em vista tanto a ideia de continuidade quanto a de participação, destaca-se que os princípios político-pedagógicos do Pronera podem ser entendidos como um dos marcos que diferencia o Programa de outras políticas ofertadas para o meio rural até então.

Os princípios e os pressupostos teórico-metodológicos do Programa, segundo o seu mais recente Manual de Operações, “devem ter por base a diversidade cultural, os processos de interação e transformação do campo, a gestão democrática, o acesso ao avanço científico e tecnológico voltados para o desenvolvimento das áreas de reforma agrária” (BRASIL, 2016, p. 16). Para tanto, faz-se necessário que as práticas educativas estejam orientadas pelos princípios sistematizados na Figura 1.

Fonte: Elaborada pelas autoras deste artigo com base no Manual de Operações do Pronera (BRASIL, 2016, p. 16).

Figura 1 Princípios orientadores das propostas metodológicas do Pronera 

Os princípios apresentados na Figura 1 se articulam na medida em que estabelecem uma relação direta entre o fazer e o porquê fazer, tendo em vista a estreita relação entre as formas de construção do conhecimento e suas finalidades. O diálogo e a transdisciplinaridade estão pautados na dinâmica de valorização dos conhecimentos do grupo e articulação dos diferentes conteúdos e saberes, o que deve contribuir para a construção de diferentes significados em torno do processo de ensino-aprendizagem e das questões estudadas. Na esteira desses dois princípios, tem-se o da práxis, fundamentado na lógica da reflexão aliada aos processos de transformação da realidade. E, por fim, o princípio da equidade, que sugere uma prática educativa orientada para a redução das desigualdades e para a inclusão social.

Quanto aos cursos ofertados pelo Pronera, o Manual de Operações publicado em 2016 dispõe que devem ser “desenvolvidos conforme a metodologia da alternância, caracterizada por dois momentos: tempo de estudo, realizado nos centros de formação (Tempo Escola), e o tempo de estudo na comunidade (Tempo Comunidade)” (BRASIL, 2016, p. 30). A alternância, regulamentada nos Arts. 23 e 28 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), é uma modalidade que possibilita o acesso à educação, mediante processos formativos viáveis às populações camponesas, instituídos em função dos tempos, espaços e saberes, na medida em que articula a realidade cultural, política, econômica e social das famílias camponesas (BRASIL, 1996).

De acordo com o Manual de Operações do Pronera (BRASIL, 2016, p. 9),

Seus beneficiários são jovens e adultos que, a partir de sua inserção no programa, reconhecem-se como sujeitos de direitos capazes de construir suas identidades de povo camponês e produzir, no cotidiano dos assentamentos e acampamentos da reforma agrária, alternativas de transformação e enfrentamento ao modelo agrícola dominante, que expulsa crescentemente os povos do campo do seu território. O PRONERA é um instrumento de resistência que, através da educação, da escolarização e da formação, constitui sujeitos coletivos conscientes de seu protagonismo histórico e social.

A concepção educacional do Programa vincula-se às questões problematizadas e forjadas no âmbito do movimento de Educação Popular, iniciado em meados da década de 1950, tendo sido definido por Ribeiro (2011, p. 38) como um “conjunto de práticas que se realizam e se desenvolvem dentro do processo histórico no qual estão imersos os setores populares”. Partindo deste entendimento, corrobora-se com a ideia de que o Pronera não se resume à escolarização com um fim nela mesma, constituindo-se enquanto uma política de Educação do Campo que busca garantir o direito à educação como uma das pautas de luta da classe trabalhadora, com ênfase na formação crítica de seus sujeitos e no fortalecimento do campo enquanto um espaço de vida e resistência.

No entanto, não se pode deixar de considerar que o Programa está inserido em uma economia capitalista, desdobrando-se dentro de seus limites e possibilidades. Neste sentido, a materialização das propostas, de acordo com os pressupostos dispostos até o momento, depende, dentre outros fatores, da qualidade da oferta e da efetiva participação dos movimentos sociais e sindicais do campo, bem como de representantes das instituições de ensino e demais membros da sociedade civil interessados em fortalecer a luta da classe trabalhadora.

A gestão do Pronera no contexto dos seus Manuais de Operações

Os Manuais de Operações são documentos que trazem em sua composição uma apresentação da ossatura do Pronera, descrevendo o seu histórico, os princípios, os objetivos, as metodologias, as ações, a fundamentação legal que o normatiza, os resultados alcançados, o processo de operacionalização e as normas e roteiros para a elaboração de projetos do Programa. Além da estrutura orientadora, os manuais trazem o roteiro orçamentário, o plano de trabalho, entre outros (BRASIL, 2001, 2004, 2011, 2014 e 2016). Portanto, o Manual de Operações é um documento orientador e normatizador para a construção das propostas de cursos financiáveis pelo Pronera.

Fonte: Brasil (1998b).

Figura 2 Capa do primeiro Manual de Operações do Pronera 

A capa do primeiro Manual anuncia, em sua imagem, o formato do Programa em construção. A conjunção de diferentes sujeitos sociais, com distintas atribuições para a oferta de educação ao povo que vive no campo. Desde a sua primeira edição, em 1998, o Manual foi reeditado cinco vezes (BRASIL, 2001, 2004, 2011, 2014 e 2016), com o objetivo de contemplar as diretrizes para a elaboração de projetos em diferentes modalidades, a reformulação e a inclusão de normas jurídicas, elaboradas de acordo com as mudanças de governo e as reestruturações no desenho tanto do Incra quanto do Pronera.

A organização administrativa do Pronera deveria ser pautada em um modelo de gestão tripartite, comprendendo a participação dos membros dos movimentos sociais e sindicais do campo, das instituições de ensino superior e do governo federal em instâncias de caráter decisório e deliberativo. No entanto, importa salientar que, no período de 1998 a 2016, houve alterações significativas não só no desenho organizacional do Programa, mas na composição e no caráter das instâncias que compunham a sua ossatura administrativa.

Inicialmente, a gestão do Programa, sistematizada na Figura 3, estruturava-se nas seguintes instâncias: Conselho Deliberativo Nacional e Conselhos Deliberativos Estaduais, Coordenação Nacional, Coordenações Estaduais e Coordenações Locais.

Fonte: Elaborada pelas autoras deste artigo com base no Manual de Operações do Pronera (BRASIL, 1998b).

Figura 3 Organização administrativa do Pronera 

As informações dispostas no Manual de Operações do Pronera de 1998 (BRASIL, 1998b, p. 13) apontam que a Coordenação Nacional, composta por uma Comissão Executiva, uma pedagógica e uma administrativa, era “o órgão de direção executiva superior” do Programa, sendo responsável pela articulação de suas atividades. A Coordenação Nacional do Pronera tinha uma sede fixa em Brasília e era composta por membros permanentes, não especificados no Manual de Operações de 1998. É importante observar que as atribuições e as competências de tal coordenação diferiam das ações desenvolvidas pelas comissões que a compunham, sendo um espaço importante de decisões, monitoramento e avaliação do Pronera.

A Comissão Executiva, responsável pela execução e administração do Programa, era composta pelo gerente administrativo do Pronera, o assessor de Planejamento da Coordenação Nacional e um representante das seguintes instâncias: Gabinete do Ministro Extraordinário de Política Fundiária (MEPF), Incra, Conselho dos Reitores das Universidades Brasileiras (CRUB), Comissão Pedagógica Nacional, Confederação dos Trabalhadores da Agricultura (Contag) e Movimento do Sem Terra (MST). A Comissão Pedagógica era composta por um representante da Comissão Executiva, cinco representantes de universidades, um representante do MST e um da Contag. Os membros da Comissão Administrativa, responsável por organizar administrativa e financeiramente o Pronera, não foram especificados no Manual (BRASIL, 1998b).

As decisões tomadas no âmbito da Coordenação Nacional eram orientadas pelo Conselho Deliberativo Nacional, que contava com a seguinte composição:

1 membro do Gabinete do Ministro Extraordinário da Política Fundiária - MEPF; - 1 membro do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - INCRA; - 1 membro do Ministério da Educação e Cultura - MEC; - 1 membro do Ministério do Trabalho - MTB; 4 membros do Conselho de Reitores das Universidade Brasileras - CRUB; Membros da Coordenação Nacional do Pronera e gerente da Comisão Administrativa; - 1 membro do Movimento dos Sem Terra - MST; - 1 membro da Associação Brasileira das Organizações Não Governamentais - ABONG; -1 membro da Coordenação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura - CONTAG; -1 membro da Organização das Nações Unidas para Educação Ciência e Cultura - UNESCO; - 1 membro da União Nacional dos Estudantes - UNE; - 1 membro da Conferência Nacional de Bispos do Brasil - CNBB; - 1 membro do Fórum Nacional Contra a Violência no Campo - FNVC; - 1 membro do Fórum Nacional pela Reforma Agrária - FNRA; 1 membro da Comunidade Solidária. [...] (BRASIL, 1998b).

Tal como pode ser observado, o Conselho Deliberativo Nacional era composto por representantes de diferentes entidades, “possibilitando maiores parcerias e articulações em prol da Educação do Campo” (CRUZ, 2015, p. 130). Como explicitado no Manual de 1998 (BRASIL, 1998b), para a efetivação de uma gestão democrática e participativa nos estados, o Pronera contava com Colegiados Deliberativos Estaduais que se subdividiam em Coordenações Estaduais e Locais. O Colegiado Estadual deveria representar uma importante instituição decisória e avaliativa no âmbito dos Estados, sendo imprescindível que seus membros estivessem envolvidos diretamente com a operacionalização da política, representando, portanto, a parcela que mais detinha o conhecimento sobre os cursos e a realidade na qual se desdobravam.

Tendo em vista essas instâncias, e considerando que elas deveriam ser compostas por membros da universidade, dos movimentos sociais, do governo federal e dos demais parceiros envolvidos na luta por uma Educação do Campo, levanta-se a hipótese de que, naquela época, a estrutura administrativa do Pronera apresentava um caráter democrático e participativo. No ano de 2001, ainda no governo do presidente Fernando Henrique Cardoso, as atividades do Pronera foram vinculadas ao Incra, e sua estrutura administrativa foi redesenhada, tendo sido necessária uma atualização do seu Manual de Operações (BRASIL, 2001). Neste sentido, o Quadro 1 permite uma melhor visualização de como passou a ser estruturada a gestão do Pronera.

Fonte: Elaborada pelas autoras deste artigo com base no Manual de Operações do Pronera (BRASIL, 2001).

Quadro 1 Organização administrativa do Pronera 

Tal como pode ser observado no Quadro 1, em 2001, a gestão nacional do Pronera passou a ser conduzida por uma Direção Executiva, “responsável pela administração e gestão dos recursos do Programa” (BRASIL, 2001, p. 15), um Colegiado Executivo e uma Comissão Pedagógica. Em termos comparativos, destaca-se a extinção do Conselho Deliberativo Nacional e a consequente redução na participação de representantes de diversas esferas envolvidas com a luta por uma Educação do Campo, visto que os membros de tal Conselho não ganharam assento em outros espaços. As atividades que, até 2001, eram desempenhadas pela Coordenação Nacional, em sua maioria, não foram identificadas como parte das atribuições das demais instâncias. As Coordenações Estaduais e as Coordenações Locais que, em 1998, eram subordinadas aos Conselhos Deliberativos estaduais foram unificadas e a gestão estadual do Pronera passou a ser executada por uma única instância: o Colegiado Executivo Estadual.

No primeiro ano do governo Lula, em 2003, as ações do Pronera continuaram sendo orientadas pelo Manual de Operações de 2001 (BRASIL, 2001), tendo sido publicada uma reedição em abril de 2004 (BRASIL, 2004), com o objetivo de atender às diretrizes do atual governo. Nesta nova versão do Manual de Operações, a estrutura administrativa do Pronera perdeu o Colegiado Executivo, que garantia a participação, dentre outros membros, de representantes dos secretários estaduais de educação, dos movimentos sociais e do CRUB em atividades relacionadas com o processo de execução e administração do Programa. Mediante tal extinção, a gestão Nacional do Pronera passou a ser exercida por apenas duas instâncias: a Direção Executiva, que assumia as funções do Colegiado Executivo, e a Comissão Pedagógica.

No que concerne à composição das instâncias, Cruz (2015, p. 131-132) afirma que

A Direção executiva ficou a cargo apenas de representantes do Incra, retirando a presença da Secretaria de Agricultura Familiar e do MEC, cuja participação possibilitaria articulações com a agricultura familiar e com as demais discussões sobre educação do país. [...]. A Comissão Pedagógica Nacional foi a que mais recebeu alterações, pois garantiu a representação de instituições de ensino das regiões do país (Norte, Nordeste, Sudeste/Sul e Centro-Oeste) e incluiu a presença do MEC e do Ministério do Trabalho. Por outro lado, retirou a participação dos Secretários Estaduais de Educação e da Secretaria da Agricultura Familiar.

Tomando como base as discussões explicitadas até aqui, é possível afirmar que, no primeiro governo do PT (2003 a 2006), o processo de enxugamento da estrutura administrativa do Pronera - iniciado na primeira reformulação do Manual de Operações, em 2001, ainda no governo FHC - encontra lastro na extinção do Colegiado Executivo, na retirada de representantes da Secretaria de Agricultura Familiar da Comissão Pedagógica e na centralização da gestão no Incra, mediante a retirada dos demais membros da Direção Executiva.

A concentração de poder decisório no Incra, tal e qual a negação dos pressupostos relacionados com o modelo de gestão tripartite, pautado na parceira entre os movimentos sociais, o governo federal e as instituições de ensino superior, inicia o seu processo de consolidação no final do segundo governo Lula, pelo artigo 16 do Decreto n° 7.352/2010 (BRASIL, 2010). De acordo com este, o Pronera deve ser gestado, em nível nacional, pelo Incra, conferindo ao Instituto as seguintes atribuições:

I - Coordenar e supervisionar os projetos executados no âmbito do Programa;

II - Definir procedimentos e produzir manuais técnicos para as atividades relacionadas ao Programa, aprovando-os em atos próprios no âmbito de sua competência ou propondo atos normativos da competência do Ministro de Estado do Desenvolvimento Agrário; e

III - Coordenar a Comissão Pedagógica Nacional de que trata o art.17. [...] (BRASIL, 2010).

A gestão nacional do Pronera é exercida no âmbito do Incra pela Coordenação Geral de Educação do Campo e Cidadania (DDE) e pela Divisão de Educação do Campo (DDE-1). Tais instâncias estão ligadas à Diretoria de Desenvolvimento de Projetos de Assentamento (DD), que, por sua vez, é subordinada à presidência do Instituto, como pode ser observado na Figura 4.

Fonte: Brasil (2019a).

Figura 4 Organograma do Incra 

Uma melhor visualização das funções, tanto da Coordenação-geral quanto da Divisão de Educação do Campo, é apresentada no Quadro 2.

Fonte: Elaborada pelas autoras deste artigo com base no Manual de Operações do Pronera (BRASIL, 2016).

Quadro 2 Principais funções da Coordenação-geral e da Divisão de Educação do Campo 

Tendo em vista a análise do exposto, ressalta-se que, a partir da publicação do Decreto n° 7.352/2010 (BRASIL, 2010), a Comissão Pedagógica Nacional (CPN), que até a reedição de 2004 assumia funções relacionadas diretamente com a gestão do Programa, sendo considerada parte integrante da Coordenação Nacional, passa a compreender as funções de “assessoria” e “consultoria” (BRASIL, 2016, p. 22). De acordo com o referido Decreto, tal comissão assumia as seguintes funções:

I - Orientar e definir as ações político-pedagógicas;

II - Emitir parecer técnico e pedagógico sobre propostas de trabalho e projetos; e

III - Acompanhar e avaliar os cursos implementados no âmbito do Pronera. (BRASIL, 2010).

As funções da CPN, na medida em que dependem das deliberações e/ou orientações da gestão nacional do Pronera, ficam restritas aos aspectos técnicos e operacionais da política. Ademais, o fato de tanto a composição quanto as atribuições da Comissão serem “disciplinadas pelo presidente do Incra” (BRASIL, 2010) reafirma que tal instância está subordinada aos ditames da autarquia. Deste modo, partindo do entendimento de que a CPN não é uma instância de caráter deliberativo, e que é a única, em contexto nacional, que admite a participação das instituições de ensino, dos movimentos sociais e sindicais, bem como de outros representantes do governo federal, compreende-se que, ao longo do tempo, houve um acirramento no processo de centralização da gestão administrativa do Pronera, descaracterizando o aspecto participativo e democrático que orientou o seu desenho inicial.

Em vista do exposto, considera-se atual a análise de Andrade e Di Pierro (2004, p. 53), ao considerarem que o Pronera funcionava “centralizadamente na definição de critérios político-pedagógicos e financeiro-operacionais, porém descentralizado na operacionalização”. Em vista da consolidação do processo de centralização da gestão do Programa, pondera-se a existência de uma contradição no fato de que os representantes da sociedade civil foram perdendo espaço nas instâncias de caráter deliberativo, quando, pela lógica do discurso que perpassou o governo do Partido dos Trabalhadores, deveriam ter conquistado.

Para uma melhor compreensão dessa questão, destaca-se a afirmação de Medeiros (2010, p. 216-217) acerca das parcerias na Educação do Campo, formulada no contexto de análise de duas experiências do Pronera no estado do Piauí:

O MST consegue uma presença hegemônica em parte do processo, especialmente no que se refere às questões pedagógicas; contudo, nos aspectos financeiros e operacionais de funcionamento da máquina, em que se processam as decisões para a realização da política educacional, ele praticamente desaparece da parceria e passa a atuar no espaço externo, não formal, pela pressão e mobilização. Neste não é reconhecido como parceiro do Estado, mas, ao contrário, como adversário e inimigo.

Nesse sentido, compreende-se que a participação da sociedade civil e dos movimentos sociais do campo foi sendo subsumida nas instâncias de caráter decisório no âmbito do aparelho do Estado, centralizando-se no processo de operacionalização da política em termos de oferta e execução dos cursos. Ademais, tomando como base as discussões feitas por Santana (2020), ao analisar o processo de implementação do Pronera no estado do Piauí, problematiza-se que a parceria no contexto do referido Programa, no que se refere, mais especificamente, à participação dos movimentos sociais e sindicais, relacionava-se com um processo de desresponsabilização do Estado para com a garantia do direito à educação para os povos do campo. Essa autora sustenta o argumento com o fato de que os militantes do movimento social e sindical desenvolviam um trabalho voluntário que demandava dos mesmos o dispêndio de tempo e recursos tanto físicos quanto financeiros para viabilizar a participação no Programa (SANTANA, 2020).

O processo de afastamento dos movimentos sociais e sindicais das instâncias decisórias, discutido neste texto, bem como a transferência das responsabilidades do Estado para estes no campo da execução das políticas, demostra que as ações estratégicas e políticas do Estado capitalista se movem em favor das forças dominantes. O que indica que, no jogo de correlação de forças, as demandas dos movimentos sociais e sindicais, por exemplo, serão transformadas ou cooptadas pelos governantes de modo a garantir a manutenção das relações de dominação.

Tendo em vista o exposto, concorda-se com Duriguetto, Souza e Silva (2009, p. 19, grifo do autor), ao afirmarem que

O Estado passa a investir na participação da sociedade civil, mas não na direção do controle social na gestão e implementação das políticas sociais como demandado pelos movimentos sociais, mas na direção de transferir a ela o papel de agente do bem-estar social. Sociedade civil é aqui transformada em uma esfera supostamente situada para além do Estado e do mercado, cabendo a ela uma atuação na área social, sob o invólucro da solidariedade, da filantropia e do voluntariado. Ou seja, há, aqui, um esforço ideológico de despolitização da sociedade civil, concebendo-a como reino da ‘a-política’ e do ‘a-classismo’.

O processo de enxugamento da estrutura administrativa do Pronera, iniciado de forma sutil em 2001, consolidou-se com a publicação do Decreto n° 10.087, publicado em 2019 (BRASIL, 2019b). Este, dentre outras providências, revoga o artigo 17 do Decreto n° 7.252/2010 (BRASIL, 2010), extinguindo, assim, a Comissão Pedagógica Nacional. O que exclui totalmente a participação dos movimentos sociais e sindicais da gestão do Programa e concentra toda ela na figura do Incra.

Tal exclusão dificulta ainda mais o processo de incidência dos movimentos sociais e sindicais no que concerne à disputa pelo conteúdo e a forma da política (CALDART, 2009 - tarefa problematizada por Roseli Caldart (2009) como um dos aspectos de radicalidade da Educação do Campo, pois, mesmo considerando todos os riscos de estar inserido no âmbito do Estado burguês, incluindo o de cooptação, tal disputa carrega consigo “as possibilidades de alargamento de compreensão da luta de classes e do que ele exige de quem continua acreditando na transformação mais radical da sociedade, na superação do capitalismo” (CALDART, 2009 p. 53).

Em linhas gerais, aponta-se que o estreitamento da esfera do Estado, somado a outros ataques, tais quais os que se desdobram no campo orçamentário do Programa, é tanto um retrocesso quanto um ataque - não só no que tange à esfera educacional, mas ao modo de viver e trabalhar dos povos do campo -, dado que as políticas e programas ofertados para esse público tendem a se alinhar à lógica do agronegócio, retrocedendo o salto histórico dado no campo das políticas educacionais voltadas para atender tal população.

Considerações Finais

De acordo com o que foi apresentado e discutido neste estudo, compreende-se que o Pronera é resultado de um processo histórico de negação do direito à educação para os povos do campo, tendo avançado em termos tanto quantitativos quanto qualitativos no que se refere à oferta educacional para os povos do Campo.

No tocante ao aspecto qualitativo, o Programa apresenta características que o diferenciam de outras políticas voltadas à população que vive no meio rural, tendo envolvido movimentos sociais e sindicais, bem como membros de diferentes esferas da sociedade civil, no processo de construção e definição tanto do seu formato quanto dos seus princípios teóricos, políticos e metodológicos. Nesta perspectiva, o Pronera se configurou como uma política que tem sua formulação na relação estabelecida entre Estado e sociedade civil, mediante a luta do povo camponês pela garantia do direito à educação pública.

A gestão do Programa, inicialmente estruturada mediante canais de diálogo entre Estado, movimentos sociais do campo e universidades, com a descentralização de responsabilidades e tomada de decisões, se constituiu em uma dinâmica importante de construção da política, embora tenha ocorrido o esvaziamento desses espaços de negociação no processo de implementação do Pronera. Por isto, considera-se que, não obstante os efeitos importantes da configuração do Programa em sua construção inicial, limites no âmbito da relação entre o modo de atuação do Estado, que se diferenciava da forma de os movimentos sociais conduzirem a política, foram sendo observados a partir das mudanças nos manuais de operação, que claramente redefiniram os papéis dos agentes envolvidos.

Quanto à participação dos movimentos, no âmbito da esfera administrativa do Estado, a análise comparativa das reedições dos manuais de operacionalização evidenciou um processo de descentralização das responsabilidades e centralização da gestão no quadro de servidores do Incra, em detrimento da participação dos membros da sociedade civil. O que sugere que os aspectos relacionados com a gestão do Programa podem ser classificados como de caráter administrativo e operacional, no primeiro identificando-se uma centralização no Incra, ficando a atuação dos movimentos sociais e sindicais restrita ao segundo.

Por fim, evidencia-se a importância do Pronera no processo de territorialização da Educação do Campo e alargamento das possibilidades formativas da classe trabalhadora, o que justifica a importância da luta frente aos desmontes e ataques vivenciados pelo Programa. Em termos projetivos, e entendendo as limitações de sua execução no âmbito de uma economia capitalista, têm-se que o Pronera desempenha e deve continuar desempenhando um papel estratégico importante no sentido de materialização das tarefas imediatas, postas por Mészáros (2008), no que concerne à formação crítica como um aspecto importante na organização da classe trabalhadora com fins na superação da ordem vigente.

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Recebido: 30 de Novembro de 2020; Aceito: 04 de Fevereiro de 2021

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