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Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade

versión impresa ISSN 0104-7043versión On-line ISSN 2358-0194

Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade vol.30 no.61 Salvador ene./mar 2021  Epub 18-Oct-2021

https://doi.org/10.21879/faeeba2358-0194.2020.v30.n61.p123-137 

EDUCAÇÃO DO CAMPO

PEDAGOGIA DA RESISTÊNCIA E O DISCURSO SOCIOAMBIENTAL: OUTRO PROTAGONISMO DA EDUCAÇÃO CAMPO

PEDAGOGY OF RESISTANCE AND SOCIO-ENVIRONMENTAL DISCOURSE: ANOTHER LEADING ROLE OF COUNTRY EDUCATION

PEDAGOGÍA DE LA RESISTENCIA Y EL DISCURSO SOCIOAMBIENAL: OTRO PAPEL PROTAGONISTA DE LA EDUCACIÓN EN EL PAÍS

Maria das Graças da Silva*  (UEPA)
http://orcid.org/0000-0002-2932-8435

*Pós-doutorado no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. Doutora em Planejamento Urbano e Regional pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professora da Universidade do Estado do Pará (UEPA). E-mail: magrass@gmail.com


RESUMO

Analisa-se formatos educativos e práticas pedagógicas que foram se constituindo no contexto das lutas e resistências empreendidas pelo movimento dos atingidos pela Hidrelétrica de Tucuruí - UHE Tucuruí, dando sentido ao campo da educação e a sua dimensão socioambiental no contexto de uma luta política do campo. Analisa-se ainda a politização de experiências de educação que foram se efetivando como práxis político-pedagógica em territorialidades do Baixo Tocantins, na Amazônia Paraense. De abordagem qualitativa, recorre-se a uma pesquisa documental, que inclui a transcrição de fitas K7 com entrevistas originais com lideranças locais e outros documentos que trazem narrativas e registros que integram memórias históricas dessas lutas, focando particularmente na dimensão educativa que os documentos revelam. Os resultados indicam a ambientalização das lutas e a politização dos processos educativos pautados na materialidade de experiências de trabalho, práticas culturais e de outras alternativas referentes à produção da existência. Contribui para um projeto de Educação do Campo.

Palavras-chave: Movimento dos atingidos; Educação; Campo socioambiental; Práxis político-pedagógica

ABSTRACT

This work analyzes educational formats and pedagogical practices that were constituted in the context of resistance and conflict utilized by the movement of the affected ones from the Tucuruí Hydroelectric Power Plant - UHE Tucurui, giving meaning to the education field and its socio-environmental dimension in a political struggle setting. The politicization of educational experiences that became effective as political-pedagogical praxis in the territorialities of Baixo Tocantins, in the Amazon of Pará. With a qualitative approach, a documentary research is used, which includes the transcription of K7 tapes with original interviews with local leaders and other documents that bring narratives and records that integrate historical memories of these struggles, focusing particularly on the educational dimension that the documents reveal. The results indicate the environmental normalization of struggles and the politicization of educational procedures based on the materiality of work experiences, cultural practices and other alternatives related to the production of existence. It contributes to a rural education project.

Keywords: Movement of the affected ones; Education; Socio-environmental field; Political-pedagogical praxis

RESUMEN

Se analizan los formatos educativos y prácticas pedagógicas que se constituyeron en el contexto de las luchas y resistencias emprendidas por el movimiento de afectados por la Central Hidroeléctrica Tucuruí - UHE Tucuruí, dando sentido al campo de la educación y su dimensión socioambiental en el contexto de una lucha política del campo. La politización de experiencias educativas que se hicieron efectivas como praxis político-pedagógica en las territorialidades del Baixo Tocantins, en la Amazonía de Pará. Con un enfoque cualitativo, se utiliza la investigación documental, que incluye la transcripción de cintas K7 con entrevistas originales a líderes locales y otros documentos que traen narrativas y registros que integran memorias históricas de estas luchas, enfocándose particularmente en la dimensión educativa que los documentos revelar. Los resultados indican la ambientalización de las luchas y la politización de los procesos educativos a partir de la materialidad de las experiencias laborales, prácticas culturales y otras alternativas relacionadas con la producción de la existencia. Contribuye a un proyecto de educación rural.

Palabras clave: Movimiento de los afectados; Educación; Ámbito socioambiental; Praxis político-pedagógica

Introdução

Ao participar do Projeto de Pesquisa As lutas dos atingidos pela Usina Hidrelétrica de Tucuruí - das primeiras mobilizações em contexto autoritário às condições de mobilização subsequentes à redemocratização do País (ACSERALD, 2019), realizado no período entre março de 2017 e fevereiro de 2019, aprovado no Programa Multi-institucional “Memórias Brasileiras: Conflitos Sociais”, Edital n.12/2015, financiado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), sob a coordenação geral do Prof. Dr. Henri Acserald, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, e com a participação de pesquisadores de outras Universidades situadas na Amazônia, como da Universidade do Estado do Pará (UEPA), Universidade Federal do Pará (UFPA) e Universidade Federal do Oeste e Sudeste do Pará (UNIFASSP), tive a oportunidade de revisitar um acervo documental (textos, vídeos, entrevistas gravadas, recortes de jornal, registros fotográficos...) que havia acumulado durante anos de pesquisas realizadas com os sujeitos “expropriados” pela construção da UHE Tucuruí e, consequentemente, o barramento do rio Tocantins.

Parte dos documentos foi levantado ou produzido entre períodos de 1994 e 1997, com a realização de uma pesquisa sobre conflitos socioambientais e a constituição de sujeitos políticos, que deu origem a minha Dissertação de Mestrado (SILVA, 1997), defendida junto Instituto de Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IIPUR/UFRJ) em 1997. Posteriormente, com o evento da construção da segunda etapa da Barragem e a minha inserção no curso de doutoramento, meus esforços de pesquisa voltaram-se para a área de jusante da UHE Tucuruí, mais especificamente para o município de Cametá, na região do Baixo Tocantins, no período de 1998 a 2002, ano da defesa, focando no discurso educativo.

Ao revisitar o acervo, que foi catalogado, digitalizado - e as gravações em fitas K7 transcritas, graças aos recursos financeiros da pesquisa - e disponibilizado para toda a equipe, constatei que vários materiais, ainda que datados, guardavam originalidade pelo fato de não terem sido sistematizados e analisados nas outras pesquisas. Trata-se de uma quantidade significativa de material referente à memória das mobilizações, resistência e lutas dos sujeitos expropriados.

Outra motivação guarda relação com um incentivo a pesquisadores que têm problematizado e refletido sobre as lutas dos movimentos sociais, particularmente àqueles relacionados à luta em defesa de um projeto de educação, que encontrei em um livro publicado alguns anos atrás. Naquela oportunidade, a leitura do livro tinha outra finalidade, buscava compreender os fundamentos e pressupostos epistemológicos que orientam o projeto da Educação do Campo. Ao buscar sistematizar e analisar parte dessa memória histórica que dispunha, focando desta feita na educação, lembrei do livro e fui reler, e já na sua apresentação algumas frases chegavam como o incentivo e apoio político e intelectual que eu estava precisando naquele momento, para trabalhar com as fontes do acervo. Na primeira delas, os organizadores do livro informavam que “os textos que compõem este livro podem ser vistos como testemunhas desta história, que é sobretudo a história da construção de um direito: o direito do povo brasileira que vive e trabalha no campo à educação” (ARROYO; CALDART; MOLINA, 2009, p. 7). Como que reafirmando o incentivo, um pouco mais à frente, ainda no texto de apresentação, outra frase me encorajava ainda mais a meter a mão na massa, quando os organizadores justificam a publicação de textos datados naquela oportunidade:

A razão de publicar neste momento este conjunto de textos datados é a de socializar a memória deste processo político e pedagógico tão rico, convidando outras pessoas e outros sujeitos coletivos a participar da construção do projeto da educação do campo [...] (ARROYO; CALDART; MOLINA, 2009, p. 16).

Por tudo isso pareceu oportuno publicar parte dessas memórias que informam um processo de luta que se configura como um contexto sem precedentes na história dos movimentos sociais na Amazônia brasileira. Desta feita, em face da minha inserção profissional no campo educacional, o foco das análises busca contribuir para uma compreensão mais alargada dessas lutas, inserindo-as nos processos de luta em defesa de um projeto de educação, do qual Educação do Campo e educação socioambiental conformam sua materialidade.

A partir de uma concepção ampliada de educação, considera-se que o acervo referente à memória dos movimentos dos atingidos pela barragem da UHE Tucuruí - denominação original, pois só mais tarde, em 1991, passou a integrar o Movimento dos Atingidos por Barragem, de abrangência Nacional - comporta lições e registros pedagógicos importantes das lutas, que podem ser incorporados ao debate político e epistemológico que tratam do movimento de construção de um projeto de Educação do Campo de dimensão ampliada, que além do campo educacional escolar, comporta a educação ambiental e a educação sindical, e que informam e conformam uma pedagogia da resistência e um contradiscurso à lógica hegemônica.

Ao revisitar as memórias de resistência e luta dos sujeitos atingidos por um projeto danoso à região amazônica, os quais durante muito tempo foram negligenciados pelos governantes e pelos meios de comunicação, socializa registros e achados, que ao passarem por outra leitura e análise, com foco no campo da educação, acredita-se tratar-se de uma contribuição efetiva para o debate político-pedagógico da atuação dos movimentos sociais em prol da defesa de seus direitos e de um projeto de sociedade, de desenvolvimento e de educação que defendem.

A luta dos atingidos da UHE Tucuruí: o protagonismo pedagógico

O foco de análise, portanto, deste artigo são os aspectos que informam o movimento de resistência empreendido por homens, mulheres e jovens, por meio de suas respectivas formas organizativas no contexto temporal da Segunda Etapa de construção da UHE Tucuruí, na segunda metade da década de 1990. Trata-se de um contexto de luta que, ao contrário daquele relacionado à construção da Primeira Etapa e do Barramento do rio Tocantins e formação do lago reservatório, nos anos de 1980, cujo processo de mobilização e organização se fez somente a partir do momento em que os processos de desestruturação socioecológicos já se faziam sentir em grande extensão e consequência. No caso da segunda etapa, já a partir do anúncio os processos de mobilizações foram retomados, e de forma ampliada.

Na segunda etapa, o então “movimento dos expropriados”, termo usado nas primeiras mobilizações no pós-formação do lago reservatório e os impactos socioambientais, já se autodenominava de “movimento dos atingidos” e construíam aproximações políticas com o então Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) de abrangência nacional. Embora o movimento dos atingidos pela UHE Tucuruí especificasse sua territorialidade, buscava por meio de diversas formas de participação associar-se a um emergente e amplo movimento social do campo, cujas mobilizações colocavam em debate as consequências para as populações locais de um modelo de desenvolvimento que tinha sido pensado e planejado para a Amazônia brasileira, de fora para dentro, pautado no uso intensivo e extensivo dos recursos naturais, cuja finitude já havia sido constatada. A Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (ECO-92) foi um dos marcos na ampliação do debate sobre a insustentabilidade dos modelos de desenvolvimento hegemônicos pautados na lógica capitalista.

Frente aos grandes impactos e desestruturações socioecológicas decorrentes da implantação de grandes projetos nos territórios amazônicos, dentre eles aqueles ocasionados pela construção da UHE Tucuruí, o debate sobre questões socioambientais passou a integrar as agendas de lutas e reivindicações, nas quais eram focalizadas várias questões que diziam respeitos a esses processos relacionados à implantação dos chamados grandes projetos, incluindo, além da UHE Tucuruí, o Projeto Grande Carajás.

Diante do anúncio de construção da segunda etapa da UHE Tucuruí, o movimento dos atingidos que integrava um processo mais amplo de mobilização e articulação dos sujeitos do campo, interno e externo à Amazônia, como o grito do campo, o movimento de educadores e educadoras do campo pelo direito à educação, o movimento atingido por barragens nacional (MAB), as Comunidades Eclesiais de Base, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), entre outros, buscou ampliar suas mobilizações e pautas de luta.

Emergia, assim, juntamente com os “atingidos”, um amplo movimento social que conformava múltiplas territorialidades do campo, cuja pedagogia de luta estava inscrita no protagonismo de sujeitos que lutavam por direitos e políticas públicas, entre eles a educação, a reforma agrária, compensações justas, mitigação dos prejuízos ambientais, entre outros. No contexto desses movimentos sociais populares, trabalhadores do campo se constituem em “sujeitos pedagógicos” (CALDART, 2004).

Dentre os sujeitos históricos e pedagógicos da luta e resistência à frente desses movimentos sociais na região do Baixo Tocantins, que se unificaram no Movimento e Defesa da Região Tocantina (MODERT), estavam as Colônias de Pescadores, os Sindicato dos Trabalhadores Rurais, Sindicato dos Professores, Comunidades Eclesiais de Base, Associação de Mulheres da qual fazem parte homens, mulheres e jovens de comunidades tradicionais, cuja reprodução da existência material e modo de vida estavam inscritos na relação que estabeleciam com a natureza, e que por meio de processos e práticas de trabalho a transformam e por ela são transformados (SAVIANNI, 2015).

Trata-se, portando, de memórias de um processo de organização e luta em que a politização de questões socioambientais inerentes aos processos de desestruturação socioecológicos decorrentes do barramento do rio Tocantins, na Amazônia Paraense, integrou o campo educativo. “Parto do pressuposto de já estarmos construindo a educação básica do campo exatamente porque há um movimento social acontecendo. Ele é educativo.”, alertava Arroyo (2009, p. 69). Nesse contexto, incluía-se a pluralidade de direitos negados em relação à promoção de políticas públicas, incluindo o campo educacional, e nele práticas educativas socioambientais, enquanto dimensão desse campo, sejam elas formais ou informais.

É possível situar político-pedagogicamente o movimento dos atingidos nas mobilizações em prol de um projeto de Educação do Campo a partir da perspectiva dos movimentos sociais e dos sujeitos históricos que fazem do campo seus territórios de vida. Por considerar que esse projeto de educação conforma interesses que estão para além da dimensão educacional escolar, em face das múltiplas territorialidades e dinâmicas locais, somando-se aos desafios que estão colocados por um modelo de desenvolvimento rural como, por exemplo, a presença do agronegócio e as cadeias alimentares pautadas na monocultura no campo.

A partir de uma concepção ampliada de educação (BRANDÃO, 2019; BRASIL, 1996), toma-se como referência de reflexão contextos pedagógicos de formação e/ou aprendizagens produzidos em espaços de práticas sociais, muitas delas realizadas de forma conectada com a dinâmica da natureza, ou seja, desenvolvidas de forma articulada com a cosmologia do Universo. Esses espaços têm o protagonismo pedagógico de homens, mulheres e até mesmo de jovens, diferentes sujeitos que estão envolvidos com processos de formação humana, cuja aprendizagem se efetiva em ambientes não escolares informais, com base em atos de convivências colaborativas de formação por meio da observação e/ou atenção e também de recursos discursivos da oralidade. Neste sentido, foca-se no campo da educação e não da escolarização.

Portanto, foca-se nos processos educativos que estão relacionados à dinâmica vivencial dos sujeitos e suas práticas culturais, que se configuram como sujeitos formadores e, ao mesmo tempo, como sujeitos de sua formação humana e aprendizagens, tendo como ambientes as bases materiais de suas práticas culturais e de trabalho.

Ambientalização e territorialização da educação - o contexto do campo

A politização e ambientalização do campo educativo se fez em meio aos processos organizativos de lutas e resistência protagonizados por homens e mulheres que integram comunidades tradicionais do Baixo Tocantins, que já tinham percebido e constatado que as promessas de progresso e acesso coletivo à energia elétrica boa e barata e geração de empregos não se efetivara, e eram apenas um discurso de despolitização das mobilizações. Reconhecendo-se portadores de direitos, se constituíram na luta como sujeitos de direitos às compensações, incorporando, dessa forma, uma atuação crítica e contra-hegemônica, ao conectar as suas demandas aos processos de desestruturação socioecológicos que se materializaram no território que sedia a UHE Tucuruí, a partir da década de 1980, e que ainda assume um status de atualidade. Nesse contexto, o discurso socioeducativo ambiental foi incorporado como representação de defesa dos interesses de continuar a dispor dos seus recursos territorializados.

Um dos eventos decisivos para a ampliação dos processos de lutas e que passou a considerar a especificidade territorial da área do Baixo Tocantins, a jusante do barramento do rio Tocantins, foi a participação de lideranças dos atingidos pela UHE Tucuruí no III Congresso Nacional do Movimento dos Atingidos por Barragem (MAB) nacional, em Brasília, DF, no ano de 1996. Uma das deliberações desse Congresso foi a que o MAB, “passaria a lutar também por um modelo energético com ênfase nas questões sociais e ambientais e pela participação popular na gestão desse setor” (MOVIMENTO DOS ATINGIDOS POR BARRAGEM, 2005, p. 9). É nesse contexto, em que o debate socioambiental assume relevância político-pedagógica nos processos de luta e resistência, que buscamos situar nossas reflexões e análises.

Diversas são as possibilidades para estudar e analisar os problemas e as lutas simbólicas que se travaram e ainda se travam ocasionalmente em torno das questões ditas socioambientais, na área da UHE Tucuruí. No entanto, optamos por tratar das práticas educativas socioambientais, temática que diz respeito a uma das dimensões da educação. A educação ambiental formulada enquanto campo de forças configurou-se como uma estratégia na luta dos movimentos sociais do campo, no caso dos movimentos dos atingidos, em resistência à apropriação e uso de bens da natureza, que sustentam seus territórios de trabalho, de reprodução da existência material e cultural. Logo, também, territórios de práticas de educação, no seu sentido ampliado, pois “o ser humano se utiliza dos bens da natureza pelo trabalho e, assim, produz meios de sobrevivência e conhecimento” (FRIGOTTO; CIAVATTA, 2012, p. 748).

A perspectiva não é de avaliar a racionalidade das práticas ditas educativas, estudar os seus objetivos e/ou a sua materialização, mas de compreender, no contexto do movimento social dos atingidos pela UHE Tucuruí, a inserção dessa prática na área empírica do estudo, como se constroem no plano das enunciações discursivas dos sujeitos coletivos e evidencia a politização das propostas educativas no campo socioambiental. Caracterizar, no interior das disputas, a ambientalização do campo das lutas que assume um sentido crítico e contra-hegemônico, dado o modo como os diversos sujeitos inscrevem suas propostas ou práticas de educação ambiental.

Discute-se uma das principais experiências político-educativas e históricas que se materializam no espaço territorial do Baixo Tocantins. Considera-se que, por meio da análise dessas experiências, o discurso educativo que se constitui na “pedagogia do movimento” (CALDART, 2000) põe face a face dois tipos de agentes sociais com diferentes e conflitantes orientações ideológicas e posições no campo das lutas sociais, em face da força que a estrutura de capital se manifesta neste campo: o setor elétrico e os grupos locais direta ou indiretamente impactados e seus aliados políticos.

O Setor Elétrico, enquanto representação do Estado que responde pelas políticas territoriais de produção e distribuição de energia elétrica, ao buscar o licenciamento para a construção da segunda etapa da UHE Tucuruí, se viu diante de uma das exigências da legislação ambiental já em vigor: apresentar um Programa de Educação Ambiental voltado para a área de abrangência da Hidrelétrica.

Em relação aos grupos sociais que integram as comunidades tradicionais (ribeirinhos, quilombolas, pequenos produtores familiares, indígenas), que já haviam se constituído na luta como novos sujeitos coletivos, e demandavam reconhecimento de seus direitos sociais, territoriais e ambientais, analisa-se as experiências de lutas sociais e práticas educativas dos pescadores e extrativistas do município de Cametá, no Baixo Tocantins. Esses grupos locais e seus aliados políticos, lideranças sindicais, de colônia de pescadores e de outras entidades representativas, passaram a incorporar o discurso socioambiental como estratégia de luta, atribuindo-lhe, neste caso, sentido e especificidade educativa.

Considera-se que essas experiências, por se configurarem no campo político-educativo, refletem a tensa e complexa relação entre o setor elétrico (Estado) e as populações “atingidas”, direta ou indiretamente, com a construção da UHE Tucuruí, por isso tomadas como referências de problematização e reflexões. Sua incorporação como objeto de análise fundamenta-se na ideia de que se trata de um processo de politização do campo socioambiental, associada à problemática da apropriação e uso de recursos ambientais que assumem significados distintos entre os agentes do setor elétrico e os sujeitos locais de comunidades tradicionais.

Outros princípios e relações pedagógicas que orientam ações educativas inscritas nas memórias de lutas dos atingidos

Numa perspectiva distinta dos esquemas de percepção dos agentes do projeto hegemônico, os grupos de atingidos, por meio de suas entidades organizativas, buscavam lutar por seus direitos tomando as desestruturações socioambientais e as condições de existência que se encontravam como objeto de denúncias e geração de conflitos no contexto das suas relações sociais. Enquanto recurso alternativo à dominação, construíram alianças, inventaram discursos por meio de experiências compartilhadas e ressignificaram configurações territoriais.

As práticas educativas no campo socioambiental integraram as estratégias de luta social dos grupos sociais de atingidos. A educação ambiental foi inserida numa luta diferenciada que incluía formas não capitalistas de apropriação e uso dos bens naturais territorializados, a valorização da cultura do campo e uma diversidade de experiências que foram se constituindo como espaços educativos e conformavam um novo status para as entidades organizativas que integravam o movimento social do Baixo Tocantins, e já inserida na dinâmica político-educativa do MAB a condição de sujeitos educativos (MOVIMENTO DOS ATINGIDOS POR BARRAGEM, 2005), o que amplia a atuação do movimento dos atingidos pela UHE Tucuruí em relação a outras formas de luta por direitos.

O protagonismo dos sujeitos coletivos e educativos possibilitou que eles elaborassem sistemas de percepção alternativos ao discurso oficial e hegemônico. Nessa perspectiva, o campo educativo foi construído na resistência à dominação e desestruturação de modos de vida pautados no uso coletivo dos bens naturais, e como um recurso ao fortalecimento da organização social na luta pela democratização do acesso ao mundo material, e articulado com a diversidade social e a preservação cultural de modos de vida locais.

A inscrição de práticas educativas em experiências de trabalho cotidiano de comunidades locais foi orientada pelas entidades que integram o movimento dos atingidos no contexto territorial do Baixo Tocantins, que buscavam construir vínculos entre desestruturação socioambiental, processos educativos e a responsabilização por sua “preservação” ou “degradação”, no contexto dos quais as práticas educativas no campo socioambiental buscou fortalecer o projeto de resistência do movimento à despolitização de trabalhadores e trabalhadoras do campo que integravam comunidades tradicionais. O que indica a importância dessas práticas como estratégias pedagógicas na luta.

Nesse contexto, lições da educação popular, que “em sua origem, indica a necessidade de reconhecer o movimento do povo em busca de direito formador” (PALUDO, 2012, p. 284), foram tomadas como referências à construção de alternativas pedagógicas que eram produzidas fora da escola e com ela dialogando, no contexto das quais ficou evidente a importância da experiência desses grupos sociais no contexto dos processos educativos. Os aprendizados construídos nessas experiências vão transformando seus fazeres e, consequentemente, os saberes locais.

O item a seguir trata de experiências de práticas pedagógicas que foram sendo construídas na dinamização do trabalho que as lideranças políticas e comunidades locais desenvolviam na terra e nas águas, no contexto das quais eram tecidos vínculos entre natureza e cultura e educação e cultura, conformando, por meio dessas práticas, identidades territoriais desses grupos sociais, que identitariamente passam a se autodenominar e serem reconhecidos como povos dos rios e das florestas, frente aos desafios dos tempos difíceis que vivenciavam diante das desestruturações e falta de compromisso do agente desestruturador.

Práticas educativas socioambientais de comunidades cametaenses

Lideranças do movimento sindical e popular reconheciam, no final dos anos de 1990, que, no bojo de algumas conquistas, duas questões ainda politizavam os debates: a questão da forma desigual da distribuição de energia e a questão socioambiental. E se mostravam surpresos ao saber que a Eletronorte tinha um Programa de Educação Ambiental, cujos destinatários eram as comunidades locais. Identifica-se um paradoxo em que o degradador quer educar suas próprias vítimas na fala de Epifânio, liderança sindical de Cametá:

Depois de ter cometido um crime ecológico, como esse que ocorreu na nossa região com o fechamento do rio, inundando milhares de hectares de terra, sem dar a minha informação para que as populações pudessem se precaver dos perigos que ainda estão ocorrendo com a construção da barragem. (SILVA, 2002, p. 147).

Referenciado nos saberes e lógicas locais, a liderança, mesmo não conhecendo o conteúdo do programa do setor elétrico, desqualifica-o por considerar que a nomeação de um programa por um agente do Estado que se omitiu diante da desestabilização dos sistemas socioecológicos que provocou a destruição de formas sociais simbólicas e as condições materiais de existência de grupos sociais que ocupavam e/ou ocupam territórios que foram historicamente construídos na relação com a natureza, e desarticulados pelo Estado interventor, é o mesmo que divulgar uma “ilusão”.

As lideranças locais consideravam que com esse programa que anuncia a preocupação com a preservação do meio ambiente, o Estado, pressionado pelo debate ambiental então emergente de forma globalizada, buscava “vender” uma imagem para o exterior e manter a captação de recursos junto às agências bilaterais. Contudo, na prática, quem paga por isso são os pequenos produtores, que, às vezes, são impedidos de derrubar pequenas porções de mata para fazer o seu roçado, em nome de uma especialização funcional do espaço, a preservação. Em nome desses disfarces, as grandes empresas devastam a floresta, poluem os rios, como, por exemplo, as empresas que fazem pesca de arrastão, e isso não é fiscalizado, denuncia uma liderança local.

O presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais (STR) de Cametá, em entrevista realizada em 1999, identifica espaços educativos e sujeitos pedagógicos fora do espaço escolar, ao ressaltar que

[...] a questão educativa vem sendo trabalhada como um processo contínuo pelas diversas organizações associativas dos trabalhadores rurais. Está incorporada nas suas motivações sociais, nos debates e reuniões promovidos pelo STR, Colônia de Pescadores, pela Prelazia. Estas atividades se constituem em espaços educativos, nos quais lideranças mostram a importância de lutarem para assegurar direitos de usar o meio ambiente de forma comum, como alternativa as outras formas que sustentam o modelo dominante. (SILVA, 2002, p. 147-148).

Para essa liderança sindical, trata-se de um processo que é trabalhado no dia a dia, dada a certeza do quanto a preservação ambiental é fundamental para as condições materiais dos grupos territorialmente referenciados.

Essas lideranças, quase unanimemente, consideram que a questão da preservação do meio ambiente já era de certa forma incorporada à prática de pescadores, agricultores e da comunidade em geral, porque associa a natureza às condições de existência social, da produção dos grupos locais. Referenciadas por esses pressupostos, entidades organizativas, com apoio principalmente da Igreja Católica, davam continuidade ao trabalho pedagógico iniciado com as mobilizações, não sem dificuldades, em várias comunidades locais.

Nessa perspectiva, o então presidente da Colônia dos Pescadores de Cametá, Sr. Juvenal Quaresma (SILVA, 2002), informou que já existiam, aproximadamente, 10 comunidades rurais que trabalhavam concretamente com práticas de educação ambiental, voltadas para a preservação do meio ambiente, pois diante dos processos de desestruturação das formas sociais precedentes à construção da barragem, grupos locais procuraram reelaborar o aprendido tradicionalmente, reinventando outros meios e modos de vida. Por meio de várias estratégias e práticas educativas, no contexto das quais o ensinar não prescindia do ato de aprender, as comunidades passaram a discutir desde o uso de determinados utensílios de pesca, até os períodos próprios ou não para a captura de determinadas espécies, o tamanho do peixe que pode ser pescado. Uma liderança do STR em Cametá reconhece, no entanto, que, neste caso,

O mérito deste trabalho é da Colônia de Pescadores de Cametá, que tem trabalhado na conscientização da população de determinadas áreas do município para a necessidade de preservar o meio ambiente. Existe uma comunidade que trabalha com determinadas espécies de peixes que estavam quase desaparecendo aqui na região. Hoje eles já colhem os resultados, começa a aumentar a quantidade daqueles peixes. (SILVA, 2002, p. 148).

Convivendo com um processo de diminuição acentuada do estoque pesqueiro, em face do barramento do rio Tocantins, no final dos anos de 1990 e início 2000, dirigentes da Colônia de Pesca de Cametá, a Z-16 criticavam a ação do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), cuja fiscalização da pesca era bastante acirrada. Na avaliação daquelas lideranças, era contraditório esse órgão estatal fiscalizar ou estabelecer regras disciplinares para a pesca se a população não tinha outras alternativas para promover a produção da existência, que era uma das bandeiras de luta dos atingidos, no contexto do Baixo Tocantins.

Durante a nossa permanência no trabalho de campo, fui alertada do papel relevante que as mulheres tinham naquele processo. As lideranças masculinas atribuíam um papel destacado à mulher no processo de preservação. Reconheciam que elas conhecem bem de perto a situação de uma família quando falta o peixe, o camarão, o açaí etc. Os depoimentos destacam o significado que a consciência feminina assume na vida da família, no processo de luta social, ao ressaltarem que elas estavam tomando a frente desse processo educativo, citando como exemplo as mulheres da comunidade de Guajará, no município de Cametá.

Lideranças consideraram que foi necessário trabalhar pedagogicamente novas regras coletivas em relação ao acesso e uso dos recursos disponíveis e necessários à subsistência de grupos sociais, por terem surgido divergências de interesses entre moradores de comunidades, cujas deliberações coletivas não eram respeitadas. Lideranças do movimento reconheceram que “a educação e a consciência é uma coisa que se vai trabalhando aos poucos” (SILVA, 2002, p. 149).

Os “educadores” buscavam trabalhar pedagogicamente essa resistência, “mostrando que é preciso preservar agora para não faltar mais tarde, e com isso aos poucos estamos tentando reverter esse quadro”, como disse Irácio, liderança de pescadores em Cametá, em entrevista realizada em 2001 (SILVA, 2002, p. 149).

Havia o reconhecimento de que só era possível desenvolver essas práticas educativas com apoio do trabalho de mobilização de várias organizações. É por meio do trabalho organizativo que tem sido possível apoiar a reelaboração dos processos sociais, a ressignificação dos espaços de coexistência das populações locais após o barramento do rio. Um trabalho educativo que a Colônia dos pescadores, o STR, a Prelazia de Cametá e as Associações de Pequenos Produtores, juntamente com categorias sociais de agricultores camponeses (pescadores, agricultores e extrativistas), assumiam como sujeitos educativos, construído politicamente e que responde pela construção de um projeto alternativo, democrático, porque voltado para o bem comum e a produção de saberes.

Uma das atividades desse projeto alternativo, que se efetivava como uma experiência concreta em termos de prática educativa, que estava contribuindo para a preservação era a da Associação de Mulheres da Comunidade de Pararú de Baixo, que estava trabalhando com a cultura de várzea e criando animais de pequeno porte, garantindo, desta forma, a sobrevivência do grupo familiar e ajudando os pescadores da comunidade a respeitar o período do defeso e garantir o repovoamento dos rios. Moradores dessa comunidade destacaram a importância da experiência e a contribuição desse trabalho educativo, formativo.

Grupos e/ou moradores de comunidades locais buscavam mostrar na prática que era possível associar preservação com reprodução, sem negar as suas preocupações com as necessidades mais imediatas da reprodução da existência material.

Outra pauta que as lideranças incorporaram no debate do campo socioeducativo foi a luta política pela democratização do financiamento do Fundo Constitucional do Norte Especial (FNO especial). Determinadas comunidades, como a de Cuxipiari de Baixo, tiveram acesso a determinados tipos de crédito e puderam desenvolver outras atividades diferentes daquelas tradicionais. Uma das lideranças locais avaliou que, até 1991, o administrador dos recursos do FNO Especial, o Banco da Amazônia (BASA), trabalhava com uma burocracia muito grande, impedindo que o pequeno produtor tivesse acesso aos recursos. A partir de então, diversas entidades de representação política e trabalhadores rurais empreenderam uma luta com apoio da Central Única dos Trabalhadores (CUT), da Federação dos Trabalhadores da Agricultura (Fetagri), e por meio da realização de várias ações conseguiram romper com essa burocracia. (SILVA, 2002).

Uma das primeiras conquistas no final dos anos 1990 e início dos anos 2000 foi o acesso que 250 famílias que tiveram ao crédito do FNO no “projeto do plantio e manejo do açaí e de outras culturas permanentes”, como a plantação do cupuaçu, da graviola, do caju e do coco, associado à experiência de criação de pequenos animais. Ainda que essas ações estivessem, por ocasião da pesquisa, em processo de experiência e restritas a um número reduzido de comunidades, eram tidas como uma conquista do movimento dos trabalhadores rurais, principalmente para aqueles que já estavam tendo o retorno de alguma produção.

A Associação dos Mini e Pequenos Produtores estava implementando um projeto de tratamento de água, um trabalho conjunto com o Projeto Pobreza e Meio Ambiente na Amazônia (POEMA), da Universidade Federal do Pará, na comunidade de Pacuí, cujos resultados, segundo o presidente da associação, já estavam bastante adiantados. Diante das dificuldades que enfrentaram e dos resultados que estavam obtendo com a experiência, uma das lideranças locais se arriscava a dizer que as organizações populares do município estavam desenvolvendo um trabalho educativo na perspectiva da preservação: “É um trabalho pedagógico que vem se efetivando, principalmente, com as comunidades que moram às margens do rio e dos igarapés, que viviam somente da pesca” (SILVA, 2002, p. 151-152).

Como afirmou, em 2001, o presidente da Colônia de Pescadores de Cametá, o processo educativo se faz no sentido de sensibilizar as comunidades para um trabalho de preservação, principalmente

[...] naqueles locais onde há uma maior concentração de pescado se faz um processo de educação para que elas não utilizem instrumentos que possam colocar em risco a continuidade das espécies, como é o caso do ‘puçá’, utilizado na pesca do mapará, mas que pega o peixe de todos os tamanhos, a malhadeira também em determinados períodos fica proibida. (SILVA, 2002, p. 151-152).

A Colônia, apoiada por outras entidades e lideranças, coloca placa nos locais onde é proibida a utilização destes instrumentos. As lideranças avaliam que dessa forma vêm tentando fazer um trabalho de educação ambiental, somando-se às suas lutas políticas.

Um fazer pedagógico que tem contribuído para fortalecer a consciência ambiental frente às necessidades da preservação. No contrafluxo do setor elétrico, agente antrópico, os pescadores artesanais que estabelecem uma relação direta com os rios e seus afluentes, pautando-se por uma lógica de conteúdo social, reconhecem a necessidade de o trabalho de preservação estar vinculado ao fortalecimento da luta por direitos conquistados, como é o caso do seguro-defeso. Vários pescadores já têm acesso anualmente a um salário-mínimo durante o período do defeso (novembro a fevereiro), via Colônia (Z-16), que faz os encaminhamentos daqueles que estão efetivamente participando (associados) à entidade, no mínimo por de 3 (três) anos.

Nessa perspectiva, o presidente da Colônia avaliou que a questão da educação ambiental não está só na vontade e entendimento das lideranças, já está incorporada nas práticas concretas das comunidades, que tem buscado alternativas de preservação, como é a prática do reflorestamento, já desenvolvida por alguns grupos locais. Contudo, reconhece que a grande dificuldade para sair do discurso é ter claro quais são as condições materiais de que as comunidades dispõem, caso contrário as atividades educativas voltadas para a preservação não serão efetivadas.

Nesse sentido, reconheceu que, para a preservação, o aspecto de maior importância que precisa ser priorizado é a vida, é o ser humano. Na avaliação de Juvenal Telles, presidente da Colônia de Pescadores de Camutá, em entrevista realizada em 1998:

O discurso oficial representa a preservação por meio de normas que impedem as ações de desmatamento, de caça, de pesca, mas sem dar outras alternativas para as pessoas que sobrevivem desses recursos da natureza. Essa nos parece ser a grande questão do ‘preservar’. Às vezes a pessoa até tem consciência da necessidade de preservar, mas por uma necessidade de sobrevivência, de preservar a sua vida e da família acaba agredindo. (SILVA, 2002, p. 153).

Juvenal reconhecia que a agressão ao meio ambiente em Cametá era muito forte e que a atuação do IBAMA no município deixava a desejar, denunciava que apesar “do nome importante que tem ‘de proteção ao meio ambiente e outras coisas’, mas que isso não acontece porque o IBAMA, na realidade, tem se tornado um cabo eleitoral de político aqui no município, já falei isso para o gerente” (SILVA, 2002, p. 153).

Para o seu Juvenal, em entrevista realizada em 1998, uma das maiores dificuldades que as lideranças e entidades vêm encontrando para efetivar um trabalho educativo é de ordem cultural. Como antes essas comunidades viviam da abundância do extrativismo e da pesca, ninguém pensava em preservar nada. Entretanto, diante da necessidade de mudar as práticas produtivas “começamos a nos preocupar em efetivar uma educação ambiental” (SILVA, 2002, p. 154).

Moradores avaliam que os projetos de educação ambiental têm dado certo porque assumem como seus, pois, como afirmou, em 2001, uma moradora da Comunidade de Jutaí de Cima, em Cametá, “de que vale o IBAMA fiscalizar, multar, se o governo não dá condições, através de políticas, para as populações locais viverem com dignidade em suas áreas” (SILVA, 2002, p. 154). Essa foi a forma alternativa que a Colônia encontrou para efetivar o processo educativo com as comunidades locais, construindo com elas pequenos projetos, como, por exemplo, a produção de peixe em cativeiro, por meio da formação de pequenos lagos artificiais; a criação de aves e animais de pequeno porte; o manejo e reflorestamento do açaizal. Trata-se de outras práticas culturais que não faziam parte dos seus modos de vida. Como disse Juvenal em entrevista realizada em 1998: “[...] estamos produzindo alguns tanques de peixe. Infelizmente tivemos que começar a criar peixe em cativeiro, antes a mãe natureza criava tudo, mas hoje temos que formar lagos artificiais para poder criar o peixe e está dando certo” (SILVA, 2002, p. 155). Ressaltou ainda que “tudo isso sem recurso, na base da educação e do experimento. Estamos nós contrapondo aqueles que não querendo investir nessa área, dizem que não dá certo” (SILVA, 2002, p. 155).

Juvenal também se surpreendeu com a informação do Programa de Educação Ambiental (EA) da Eletronorte. Ele não acreditava que esse tal Programa existisse na prática, e que não passava de mais uma estratégia discursiva do setor elétrico. Considerou que as entidades locais, embora não tivessem uma proposta de educação ambiental esboçada no papel, tinham a preocupação com o futuro das comunidades, por isso perceberam a necessidade de fazer um trabalho de educação ambiental de modo a contribuir com o acesso das gerações futuras aos recursos naturais existentes. Esclarece que a “coisa” não nasceu do dia para noite. Foi a partir da percepção de que o “desastre ecológico” tinha mudado a flora e a fauna aquática e das necessidades e motivações dos moradores. A partir daí começaram a estudar a questão, apoiados no conhecimento e na riqueza que possuíam, e a debater nos seus encontros e eventos a questão da preservação do meio ambiente como uma forma de dar continuidade à vida dos trabalhadores (SILVA, 2002).

Juvenal reconheceu que as práticas educativas tinham críticas, que não estavam as mil maravilhas, por ser ainda um contingente pequeno que estava envolvido. Na sua percepção, a resistência se manifesta através da politicagem, porque o interesse que o sistema defende não é o dos trabalhadores. Assim, quanto mais gente pobre existir, mais fácil será a manipulação: “Acredito que se o nosso povo tivesse uma boa educação, ele jamais seria enganado. Mas a nossa educação é muito precária” (SILVA, 2002, p. 156).

Há, por parte de algumas lideranças locais, uma preocupação com o presente e com futuro das gerações, inscrita nas suas estratégias argumentativas que se contrapõem à lógica utilitária do uso dos recursos naturais promovida pela construção da UHE Tucuruí, bem diferente dos grupos sociais tradicionais. Mesmo mantendo o desencanto diante do “desastre ecológico”, o agir político e educativo de lideranças e representantes das populações locais era no sentido de garantir direitos e contrapor-se aos discursos hegemônicos.

O dirigente da Colônia de Pescadores, Sr. Juvenal Teles, considera que a educação ambiental está inserida no contexto de suas práticas sociais, nessas atividades e no trabalho de discussão sobre as problemáticas que enfrentavam nos diferentes campos da vida social (SILVA, 2002). Portanto, inscreve-se na diversidade social e nas contradições que informam seus processos de lutas e resistências.

Dessa forma, trabalha-se com o pressuposto de que a ação educativa dos grupos sociais e de seus mediadores no campo socioambiental está expressa, intrinsecamente, em práticas e processos informais condensados em problemas concretos ou experiências que dão materialidade ao seu cotidiano e (re)estruturação de meios e modos de vida, por meio de estratégias econômicas, manejo e uso de recursos territoriais, que vêm realizando já por algum tempo, notadamente a partir do final dos anos 1980, em decorrência das suas condições de reprodução.

A educação ambiental inscrita nas práticas sociais desses grupos locais não se constitui por meio de um plano formal, delimitado e conteudístico. As atividades que eram realizadas derivam de práticas e processos costumeiros, algumas consoantes com modelos alternativos de gestão ambiental e de sustentabilidade social. São atividades que se particularizam em cada realidade, porque praticadas em relação à dinâmica, às necessidades e à potencialidade de cada território e grupos locais.

Nessa direção é possível tomar essas práticas e processos como referências de um modelo de educação ambiental que não se reduz ao comportamentalismo, a concepções externas às realidades locais. Embora os movimentos locais tomem como fontes de informações as experiências ou alternativas desenvolvidas em outros territórios, trabalham a reciprocidade das ideias para orientar suas proposições como um referencial adequado e de consensualidade.

Assim, as narrativas e experiências de trabalho dos grupos sociais locais identificavam um conjunto de práticas denominadas de educativas, no espaço das quais eram articuladas práticas socioculturais e políticas, referenciadas nos seus respectivos problemas socioambientais e territoriais. As suas práticas de trabalho e experiências culturais associadas ao campo socioambiental somam-se aos processos de luta, e expressam marcas dessa conexão. Implícita ou explicitamente, as perspectivas político-educativas, incluindo o campo socioambiental, revelam o processo de ambientalização das lutas e a politização de práticas culturais e de trabalho em contexto de processos educativos, materializadas na construção de alianças, ou enfrentamentos que estabelecem para a construção de um novo protagonismo político: a resistência e a luta por direitos.

Considerações finais

O campo da educação enquanto dimensão de um projeto de resistência e lutas de sujeitos sociais do campo foi se constituindo paulatinamente no contexto mobilizador das lutas. Experiências e práticas sociais desestruturadas e/ou inviabilizadas pela construção da UHE Tucuruí vão se tornando referências nos processos de mobilizações, sustentando a construção de agendas de direitos, relações políticas e a materialidade de processos educativos. Tal como Savianni (2015) nos indica, diferente daquilo que preconiza a lógica positivista, as ações dos sujeitos locais não foram no sentido de se adaptarem às alterações da realidade natural desestruturada enormemente a partir do barramento do rio Tocantins para a formação do logo reservatório. Esses sujeitos, ao construírem formas alternativas da produção da existência, também se construíram em sujeitos políticos e educativos. Na sua relação com outros sujeitos políticos, reconfiguraram suas práticas e formas de relação com a natureza, seus processos de sociabilidade, incluindo experiências de realizações formativas.

Esses processos políticos e pedagógicos avançam no tempo e têm conformado contextos territoriais sociais e culturais de uma diversidade de sujeitos, incluindo o mundo acadêmico. Tem-se percebido a materialidade de um protagonismo de lutas e conquistas sob a liderança de uma diversidade de sujeitos políticos do Baixo Tocantins.

Assim, pode-se afirmar que a partir do comprometimento significativo do processo de produção da existência e modos de vida de comunidades tradicionais, a partir do barramento do rio Tocantins, e dos impactos iniciais que se fizeram de forma surpreendente e assustadora, lideranças camponesas (sindicatos, pescadores, extrativista), com o apoio da Igreja via Comunidades Eclesiais de Base, foram se constituindo como sujeitos coletivos, a ponto de reagirem de imediato ao anúncio da construção da Segunda Etapa da Barragem na segunda metade dos anos de 1990. Uma das contraposições do movimento foi em relação a um dos projetos necessários ao licenciamento ambiental, o Projeto de Educação Ambiental.

Esse processo de resistência estava sustentado no comprometimento de suas práticas de trabalho e na construção de outras experiências alternativas de produção da existência, que incluía outras formas de formação humana. Saviani (2015, p. 286) nos indica em suas reflexões que dizer “que a educação é um fenômeno próprio dos seres humanos significa afirmar que ela é, ao mesmo tempo, uma exigência de e para o processo de trabalho, bem como é, ela própria um processo de trabalho”.

Por essa perspectiva, é possível afirmar que os sujeitos do Baixo Tocantins, na luta e resistência que protagonizaram em relação o setor elétrico, foram se constituindo não somente em sujeitos políticos, mas também em sujeitos educativos. No atual contexto, o projeto de educação dinamizado no Baixo Tocantins tem forte presença das lideranças do município de Cametá.

Também é possível afirmar que essas sementes de mudanças políticas, culturais e educacionais foram plantadas há pelo menos duas décadas, graças ao agir político do movimento social dos atingidos, secção do Baixo Tocantins. Revela, de maneira concreta, que a incorporação na pauta de luta do campo da educação no seu sentido amplo e do debate de questões socioambientais orientou a construção de um novo protagonismo na luta dos sujeitos do Baixo Tocantins, incluindo enormemente a participação das comunidades tradicionais nos processos de luta.

Historicamente é possível afirmar que a inserção do Baixo Tocantins no Movimento dos Atingidos pela Construção da UHE Tucuruí, no final dos anos de 1980, territorializado localmente e depois fazendo a sua inserção no MAB nacional, na metade dos anos de 1990, possibilitou a reinvenção do fazer político, resistindo, denunciando e, ao mesmo tempo, buscando garantir seus direitos. E também a construção de novas possibilidades de trabalho, de educação e de relação com a natureza, incorporando nas suas agendas de mobilizações e lutas o debate em defesa do meio ambiente no qual estão inseridos, agindo e dinamizando ações concretas de modo a assegurar a produção da existência material e cultural das comunidades locais e de suas múltiplas territorialidades.

No final dos anos de 1990 e inicio dos anos de 2000, por meio de práticas educativas no campo socioambiental, o movimento do Baixo Tocantins buscava se alinhar com o fazer educativo previsto no Plano de Educação do MAB (MOVIMENTO DOS ATINGIDOS POR BARRAGEM, 2005), que se constituiu a partir de demandas locais e que passava a ser debatido nos encontros nacionais, que passaram a se realizar a partir de 1991, assim como a entrada em vigor da Leis e Diretrizes Básicas da Educação (BRASIL, 1996), da legislação ambiental, reputada como avançada crítica construída na esteira da ECO-92, que contou com ampla participação dos movimentos sociais, na contra-hegemonia dos discursos oficiais. E mais tarde, da política de inclusão e da Educação do Campo.

Trata-se, portanto, da memória que integra um contexto histórico em que movimentos sociais, classes trabalhadoras, grupos sociais locais (pescadores artesanais, extrativistas, seringueiros, quilombolas, comunidades indígenas etc.) foram construindo o protagonismo de sujeitos políticos e educativos, conformando processos educativos que foram utilizados como ferramentas pedagógicas estratégicas, qualificadoras nos enfrentamentos do projeto hegemônico e no fortalecimento de lideranças locais, que estavam à frente dos enfrentamentos e denúncias dos problemas socioambientais, econômicos e culturais, cujas raízes mais profundas estavam cravadas nos processos de desestruturação socioecológica e cultural decorrentes do barramento do rio Tocantins nos anos de 1980.

Assim, em meio às contradições do agente desestruturador, foi colocado em cena um projeto educativo no campo socioambiental, que em face do contexto em que se constitui, é possível associá-lo também ao projeto político-educativo do campo.

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Recebido: 14 de Novembro de 2020; Aceito: 04 de Fevereiro de 2021

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