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Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade

versión impresa ISSN 0104-7043versión On-line ISSN 2358-0194

Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade vol.30 no.61 Salvador ene./mar 2021  Epub 18-Oct-2021

https://doi.org/10.21879/faeeba2358-0194.2020.v30.n61.p160-177 

EDUCAÇÃO DO CAMPO

EDUCAÇÃO DO CAMPO E FORMAÇÃO DE EDUCADORAS(ES): EXPERIÊNCIAS NAS CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS

COUNTRYSIDE EDUCATION AND TRAINING OF EDUCATORS: EXPERIENCES IN HUMANITIES AND SOCIAL SCIENCES

EDUCACIÓN DEL CAMPO Y FORMACIÓN DE EDUCADORAS (ES): EXPERIENCIAS EN CIENCIAS HUMANAS Y SOCIALES

Alessandro da Silva Guimarães*  (UFES)
http://orcid.org/0000-0002-0477-0120

Miriã Lúcia Luiz**  (UFES)
http://orcid.org/0000-0001-6825-1541

Janinha Gerke**  (UFES)
http://orcid.org/0000-0002-6903-8125

*Doutor em Educação pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Professor do Centro de Educação da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). E-mail: alessandro2210@gmail.com

**Doutora em Educação pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Professora do Centro de Educação da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). E-mail: mirialuiz@gmail.com

***Doutora em Educação pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Professora do Centro de Educação, Licenciatura em Educação do Campo, da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). E-mail: janegerke@yahoo.com.br


RESUMO

O texto analisa experiências produzidas entre os saberes das Ciências Humanas e Sociais com duas turmas do curso de Licenciatura em Educação do Campo da Universidade Federal do Espírito Santo, buscando refletir sobre os processos formativos docentes-discentes. O corpus documental, composto pelo projeto pedagógico de curso, registros e narrativas dos estudantes, é interrogado visando problematizar os desafios de um diálogo da História com diferentes saberes das Ciências Humanas e Sociais. As interlocuções teóricas são produzidas com autores âncoras do Movimento Nacional da Educação do Campo. Os resultados apontam que o trabalho, inicialmente proposto a partir da História em diálogo com saberes das Ciências Humanas e Sociais, favorece o movimento de busca pela formação por área, permitindo a compreensão da totalidade das questões históricas, políticas, culturais e sociais, de modo a produzir epistemologias que amalgamam os sujeitos, suas realidades e os diferentes saberes.

Palavras-chave: Alternância; Educação do Campo; Ciências humanas e sociais; Formação de educadoras

ABSTRACT

The text analyzes experiences produced between the knowledge of human and social sciences with two classes of the Undergraduate Course in Field Education of the Federal University of Espírito Santo, seeking to reflect on the formative processes of teachers and students. The documentary corpus, composed of the pedagogical project of the course, records and narratives of the students, is questioned in order to problematize the challenges of a dialogue of History with different knowledge of the Human and Social Sciences. The theoretical dialogues are produced with anchor authors of the national movement of Countryside Education. The results indicate that the work, initially proposed from History in dialogue with knowledge of human and social sciences, favors the movement of search for formation by area, allowing the understanding of all historical, political, cultural and social issues, in order to produce epistemologies that combine the subjects, their realities and different knowledge.

Keywords: Alternation; Countryside education; Humanities and social sciences; Training of educators

RESUMEN

El artículo analiza las experiencias dadas entre los saberes de las Ciencias Humanas y Sociales en dos grupos de la Licenciatura en Educación del Campo de la Universidade Federal de Espírito Santo, buscando reflexionar sobre los procesos de formación docente-estudiante. El corpus documental está formado por el proyecto pedagógico de la licenciatura, además de los registros y narrativas de los estudiantes, siendo abordados con el fin de problematizar los desafíos y el diálogo de la Historia con diferentes saberes de las Ciencias Humanas y Sociales. Se generan interlocuciones teóricas con los principales autores del movimiento nacional de Educación del Campo. Como resultado se evidencia que el trabajo propuesto inicialmente desde la Historia en relación con los saberes de las Ciencias Humanas y Sociales favorece la formación por áreas; permitiendo la comprensión de temas históricos, políticos, culturales y sociales, de modo que se generen epistemologías que reúnan a los sujetos, sus realidades y los diferentes saberes.

Palabras-clave: Alternancia; Educación del campo; Ciencias humanas y sociales; Formación de educadoras

Introdução

Este artigo analisa processos formativos de educadoras(es)1 do campo no Espírito Santo a partir de experiências de duas turmas2 do Curso de Licenciatura em Educação do Campo (LEDOC) da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES),3 com habilitação em Ciências Humanas e Sociais, transcorrido entre os anos de 2014 e 2018 (primeira turma) e 2015 e 2019 (segunda turma).

As análises deste estudo estão concentradas na disciplina de História e na intersecção desta com outros saberes da área de Ciências Humanas e Sociais. Compõem o corpus documental: o projeto pedagógico de curso (UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO, 2012, 2019); a matriz curricular; as ementas e programas das disciplinas de História, Ensino de Geografia na Educação Básica e Cultura Popular do Campo; além dos registros e narrativas de nove estudantes egressos do curso sobre as percepções deles a respeito das disciplinas da área de História. As narrativas foram recebidas por e-mail, mensagens de texto e áudio, durante os meses de março e abril de 2019.

Os teóricos Bloch (2001) e Ginzburg (2002, 2007), referências na pesquisa historiográfica, subsidiaram a análise dos dados a fim de orientar a metodologia de interpelação de documentos de outras fontes históricas. Na perspectiva desses autores, na operação de interrogar as fontes, as narrativas são produzidas e apoiadas em provas e em vestígios dos sujeitos - neste caso, educadoras(es) e estudantes. Para Bloch (2001), a história precisa ser reconstituída e narrada por meio do diálogo entre as ciências. Esse entendimento nos auxilia a problematizar os modos como a LEDOC/UFES articula os diferentes campos disciplinares. Já Ginzburg (2002, 2007) postula que os documentos só falam quando interrogados. Nessa perspectiva, ao analisarmos as fontes do presente estudo, encontramos pistas a respeito da interlocução da disciplina de História com outros saberes das Ciências Humanas e Sociais na graduação em questão.

Isso posto, tematizamos os processos formativos docentes-discentes no âmbito da LEDOC/UFES. Para tanto, analisamos o currículo, pois se trata de um elemento que “[...] se expressa numa prática e ganha significado dentro de uma prática de algum modo prévio e que não é função apenas do currículo, mas de outros determinantes. É o contexto da prática, ao mesmo tempo que é contextualizado por ela” (SACRISTAN, 2000, p. 15-16).

Considerando a centralidade do currículo nas licenciaturas, entendido, portanto, como contexto da prática, recorremos a Arroyo (2019) para discutir sobre os currículos dos cursos de formação dos educadores do campo. Esse autor destaca o movimento necessário à proposição de paradigmas da educação voltados para os sujeitos historicamente excluídos dos processos de escolarização e, especialmente, dos programas curriculares das escolas. Nas palavras de Arroyo (2019, p. 135), “[...] os currículos avançam reforçando o Outro paradigma pedagógico que, com Paulo Freire, reconhece os povos dos campos, os oprimidos como sujeitos de resistências, de movimentos de libertação, humanização”. Trata-se, portanto, de “sujeitos de Outras Pedagogias de Formação. Tensões de paradigmas pedagógicos que a Educação do Campo leva ao paradigma pedagógico dos currículos hegemônicos de pedagogia e licenciatura” (ARROYO, 2019, p. 135). Desse modo, em meio à materialização do projeto pedagógico de curso (UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO, 2012, 2019), especialmente nas duas primeiras turmas, refletimos a respeito da potencialidade do diálogo entre os saberes no âmbito das Ciências Humanas e Sociais.

A formação em perspectiva multidisciplinar pretendida pelo curso constitui-se em um desafio, pois o currículo é praticado por meio de disciplinas específicas. O ponto de partida para uma aproximação entre elas é o compartilhamento das informações (DOMINGUES, 2012), que tem ocorrido por meio de um movimento interdisciplinar que, embora se constitua em um conceito amplo e complexo, pode ser pensado como um movimento de cooperação entre as disciplinas, visando à mútua integração de conceitos, terminologias, métodos e dados em conjuntos mais vastos, o que repercute na organização do ensino e da pesquisa (DOMINGUES, 2012).

Sob essa ótica, é provocativo pensar em uma formação cuja organização dos espaços curriculares articule componentes tradicionalmente disciplinares, ao mesmo tempo em que busque uma abordagem ampliada de conhecimentos científicos que dialogam entre si, tendo como base problemas concretos da realidade. Para isso, faz-se necessária a compreensão da totalidade dos processos sociais e da própria educação como prática social instituída e instituinte, compreendendo as tensões e contradições presentes no campo brasileiro de modo amplo e, em particular, nas comunidades rurais nas quais as escolas estão inseridas (MOLINA, 2019).

Com base no exposto, este texto inicialmente reflete sobre a especificidade formativa das(os) educadoras(es) como conquista dos movimentos sociais. Em um primeiro momento, o artigo contextualiza a Licenciatura em Educação do Campo no estado do Espírito Santo e explana o trabalho por área de conhecimento como pressuposto formativo das(os) educadoras(es) do campo. Em seguida, o texto apresenta experiências ensejadas no curso, a partir de articulações entre disciplinas da área de Ciências Humanas e Sociais, por meio de registros e narrativas dos sujeitos e os diálogos produzidos, tomando como horizonte a formação por área.

A Formação de Educadoras(es) na Licenciatura em Educação do Campo da UFES

A Licenciatura em Educação do Campo da Universidade Federal do Espírito Santo compõe o bojo das conquistas dos povos campesinos na luta pela especificidade formativa de educadoras(es). Traduz a união de esforços pelo reconhecimento das demandas formativas dos coletivos sociais, reafirmando que a luta pela especificidade formativa das(os) educadoras(es) do campo está pautada na agenda do Movimento Nacional da Educação do Campo. O curso foi criado em 2014 a partir de proposta apresentada pelos movimento sociais e da Universidade Federal do Espírito Santo em resposta ao Edital nº 02, de 31 de agosto de 2012, em consonância com o Ministério da Educação (MEC), Secretaria de Educação Superior (Sesu), Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica (Setec), Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (Secadi) e, ainda, na relação com outras entidades que se empenharam na implementação de uma política nacional de Educação do Campo (UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO, 2012). Tem como um dos pressupostos a compreensão de que a escola da classe trabalhadora camponesa requer um projeto educativo comprometido com racionalidades políticas e epistemológicas de um outro projeto de sociedade (MOLINA; MARTINS, 2019), contrário às lógicas do capital. Trata-se, como afirmam Antunes-Rocha e Molina (2014, p. 222), de “[...] constituir a formação de educadores como política pública que garanta a construção de uma escola vinculada à luta das populações do campo, pelo direito de produzir e reproduzir suas vidas a partir do território onde vivem e trabalham”.

Nesse sentido, a busca por uma formação na especificidade campesina caminha na contramão de ações pontuais ou projetos episódicos de capacitação docente. Ela está erguida como bandeira por uma política pública e, como tal, vem se materializando no território brasileiro pelo pensar e agir dos movimentos sociais organizados que, no enfrentamento político, constroem a Educação do Campo.

Especificamente no Espírito Santo, os processos formativos de educadoras(es) do campo ocorrem desde a organização da escola do primeiro assentamento, em 1984 (PIZETTA, 1999; ZEN, 2006), e das experiências das Escolas Famílias Agrícolas (EFAs) que trabalham com a Pedagogia da Alternância, por meio da criação do Centro de Formação e Reflexão do Movimento de Educação Promocional do Espírito Santo (Mepes), em 1971 (GERKE, 2011). Ambos confirmam o reconhecimento de uma trajetória construída pelos coletivos no tensionamento de uma formação generalizada e na sua superação a partir de uma formação específica consoante ao projeto educativo construído na dinâmica da luta pela terra, pela escola do campo e por outras lógicas educativas.

Nesse sentido, a formação das(os) educadoras(es) está na raiz da luta pela organização e gestão da escola do campo, protagonizada pelos seus sujeitos e vinculada organicamente à luta pela reforma agrária (MOLINA; HAGE, 2016; PIZETTA, 1999) e pela agricultura camponesa com base na agroecologia (CALDART, 2009; FRIGOTTO; MOLINA, 2019). Em meio a esse processo, muitos foram os encontros, sujeitos e experiências que, reunidos, conquistaram importantes políticas públicas, entre elas o Programa de Apoio à Formação Superior em Licenciatura em Educação do Campo (Procampo) e, posteriormente, o Programa Nacional de Educação do Campo (Pronacampo). Esses programas consubstanciaram a formação inicial e continuada de educadoras(es). Cabe registrar que, anterior ao Procampo, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) conquistou o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera), legitimando que as conquistas são frutos de perseverantes caminhadas.

Tanto o PRONERA quanto as Licenciaturas em Educação do Campo têm em sua gênese a compreensão dos intelectuais orgânicos dos movimentos sociais do campo de que a luta pela terra, bem comum da humanidade, na sociedade de maior concentração fundiária do mundo tinha que ser, ao mesmo tempo, uma luta cultural e educacional. (FRIGOTTO; MOLINA, 2019, p. 22).

Nesse contexto, as licenciaturas em Educação do Campo, desde 2007, com as experiências piloto das universidades de Minas Gerais, Brasília, Bahia e Sergipe, somadas à ampliação da oferta a partir do edital SESU/SETEC/SECADI/MEC nº 12/2012, que contemplou 42 universidades (MOLINA; MARTINS, 2019), têm alcançado profícuas transformações no âmbito político e pedagógico da formação docente do campo. Suas práxis têm desconstruído verdades petrificadas e instituído outros modos organizativos dos espaços e tempos da formação, tensionando as perspectivas teórico-metodológicas e protagonizando sujeitos historicamente expropriados do direito à formação superior.

Por outro lado, somos provocados por Molina e Hage (2016, 2019) a analisar os itinerários produzidos com essa ampliação e a problematizar os possíveis descaminhos concebidos como “riscos”, bem como as possibilidades que se descortinam com a experiência em curso.4 Fica, a partir desse estudo, o alerta em torno de tais questões e a imprescindível necessidade de garantir: o protagonismo dos movimentos sociais do campo e o seu vínculo com as lutas e com as escolas; a realização da formação por meio da alternância pedagógica; e a formação do trabalho docente interdisciplinar a partir das áreas de conhecimento (MANCEBO, 2019; MOLINA, HAGE, 2016).

Portanto, o presente estudo produz interfaces com essa totalidade e está circunscrito à LEDOC/UFES, campus Goiabeiras, Vitória (ES), com foco nos seguintes aspectos: a) o trabalho dialógico entre disciplinas de uma mesma área do conhecimento, buscando garantir uma formação multidisciplinar com vistas a superar a fragmentação provocada pelo ensino por disciplinas, ponderado por Molina e Hage (2016, 2019) como um dos “riscos” da formação; b) a visibilização de possibilidades integrativas dos saberes e fazeres, identificando rupturas ainda a serem perseguidas. Trata-se de um fazer que se produz na contradição de um currículo com formação de egressos para atuação por área, contudo oficialmente efetivado por disciplinas. Nesse sentido, nos limites e nas potencialidades, o trabalho revela o esforço de romper com a lógica disciplinar, produzindo na auto-organização docente do curso o que é preconizado como horizonte da formação das(os) educadoras(es) do campo, tal como afirmado no Projeto Pedagógico de Curso (PPC):

Formar educadoras(es) para atuação profissional docente multidisciplinar junto às populações que trabalham e vivem no e do campo, no âmbito do Ensino Fundamental, Educação de Jovens e Adultos e Ensino Médio da Educação Básica, com sólida produção teórico-prática e com condições de promover uma educação como processo emancipatório e permanente, produzindo ações pedagógicas que colaborem para a garantia do direito à educação como propulsora do desenvolvimento integral dos sujeitos campesinos. (UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO, 2019, p. 10).

Destarte, somos desafiados a romper distâncias entre o que é proclamado nos documentos oficiais e o que é efetivado no cotidiano da formação. Para além, somos instigados a rescindir paradigmas organizativos da própria universidade, empreendendo movimentos de resistência e reinvenções norteadas na formação por área, preconizados nas discussões e nas matrizes que deram origem às licenciaturas em Educação do Campo.

Nessa perspectiva, formar educadoras(es) por área do conhecimento torna-se importante para uma compreensão relacional dos saberes, como também representa uma alternativa, no âmbito do trabalho nas escolas do campo, que “[...] possibilita mais intensamente o exercício da práxis e a aproximação da educação do campo com a realidade camponesa” (MOLINA; ANTUNES-ROCHA; MARTINS, 2019, p. 19). Ademais, torna-se imperativo entender que um dos desafios da formação por área do conhecimento reside “[...] na ruptura das tradicionais visões fragmentadas do processo de produção de conhecimento, com a disciplinarização da complexa realidade socioeconômica do meio rural na atualidade” (MOLINA; SÁ, 2013, p. 469). À luz dessa discussão, pautar o trabalho formativo das(os) educadoras(es) do campo na organização por área se dá na ruptura das fronteiras demarcadas pelos campos disciplinares, pois:

Trata-se da organização de novos espaços curriculares que articulam componentes tradicionalmente disciplinares por meio de uma abordagem ampliada de conhecimentos científicos que dialogam entre si a partir de recortes complementares da realidade. Busca-se, desse modo, superar a fragmentação tradicional que dá centralidade à forma disciplinar e mudar o modo de produção do conhecimento na universidade e na escola do campo, tendo em vista a compreensão da totalidade e da complexidade dos processos encontrados na realidade. (MOLINA; SÁ, 2013, p. 471).

Outrossim, ir ao encontro dessa perspectiva tem provocado inquietações que inspiram a busca por possibilidades de trabalho que possam confluir com o exposto; é nessa busca que situamos esta experiência, compreendendo-a como um esforço dos sujeitos docentes e discentes da LEDOC/UFES pela articulação dialógica do conhecimento.

Os conhecimentos históricos e as interlocuções e intervenções nas comunidades

Como início de discussões acerca dos conhecimentos históricos produzidos e das interlocuções com as comunidades a partir do trabalho dialógico entre disciplinas, cumpre registrar como foram estruturadas as matrizes curriculares do curso e onde se situa este estudo.

Criado em 2014, o Curso de Licenciatura em Educação do Campo teve seu Projeto Pedagógico aprovado em 2012 (UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO, 2012), com a matriz curricular organizada a partir de dois eixos por áreas de conhecimento: Núcleo de Estudos Básicos (NEB) e Núcleo de Estudos Específicos (NEE). O primeiro estimava 1.230 horas-aula distribuídas em 20 disciplinas, além de um conjunto de quatro componentes curriculares que compunham a Gestão de Processos Educativos Escolas e nas Comunidades. O segundo previa a docência por área de conhecimento, com 660 horas-aula para a habilitação em Linguagens e a mesma carga horária para Ciências Humanas e Sociais. No que se refere à habilitação em Ciências Humanas e Sociais, foco desta discussão, o NEE, em 1.095 horas-aula, compreendia as seguintes disciplinas: História Agrária do Brasil (60h - 4ª etapa); História da Cultura Brasileira (60h - 5ª etapa); História do Espírito Santo (60h - 7ª etapa) e Ensino de História na Educação do Campo (60h - 8ª etapa). Somadas a essas disciplinas, incluímos na análise práticas ensejadas em diálogo com outros componentes da área de Ciências Humanas e Sociais: Ensino de Geografia na Educação Básica (60h - 7ª etapa) e Cultura Popular do Campo (60h - 5ª etapa).

Desde 2018, o curso passa por reformulações com base em avaliações realizadas pelos sujeitos em formação, bem como pelas exigências legais da Resolução CNE/CP nº 02, de julho de 2015 (BRASIL, 2015). Em conformidade com o PPC de 2019 (UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO, 2019), a matriz curricular foi organizada em três núcleos: Núcleo de estudos de formação geral e áreas específicas/interdisciplinares, com 1.455 horas-aula; Núcleo de aprofundamento e diversificação de estudos das áreas de atuação profissional, com 780 horas-aula; e Núcleo de estudos integradores, com 605 horas-aula. Contudo, este estudo foi desenvolvido no âmbito das primeiras matrizes curriculares, sobre as quais estão desenvolvidas as discussões das seções subsequentes deste artigo.

Em relação aos saberes históricos construídos na interface com conhecimentos oriundos de outras disciplinas das Ciências Humanas e Sociais na/pela primeira turma da LEDOC/UFES, buscamos depreender: o que foi trabalhado nas aulas de História na relação com outros componentes da área de Ciências Humanas e Sociais? Quais saberes foram contemplados nas ementas e programas da área? O que as narrativas dos estudantes revelam sobre os conhecimentos produzidos no curso? Para essas análises, examinamos ementas, programas, planos de estudos, respostas aos questionários aplicados a estudantes da educação básica e narrativas de dois estudantes egressos do curso.

Os egressos revelaram suas percepções sobre a composição disciplinar no currículo, especificamente a respeito da disciplina de História. Por exemplo, o estudante EA5 expressou que: “[...] mesmo que a quantidade de disciplinas da área de História seja insuficiente pela gama de conteúdos que precisamos dominar, penso que saímos preparados para sermos professores/pesquisadores [...]” (EA, 2019); enquanto o estudante EB ponderou: “[...] Achei que tivemos poucas disciplinas de História no curso, porque essa área é bem ampla e vimos somente o básico. Porém, teve uma contribuição muito boa na nossa formação. Tivemos aulas que nunca vimos antes, principalmente sobre o Espírito Santo” (EB, 2019).

Notamos que a busca pelo curso, em alguns casos, foi despertada nos discentes justamente devido ao interesse pela formação em História, como é o caso do estudante A:

Escolhi a habilitação em Ciências Humanas e Sociais pelo fato de eu já ter me graduado em História e Geografia e querer me aprofundar um pouco mais no estudo dessas disciplinas [...]. No caso da História, a minha expectativa era ainda maior, pois sentia que tinha certa ‘defasagem’ com relação à disciplina. (EA, 2019, grifo nosso).

Passamos a apurar como as disciplinas de História estavam previstas para serem ensinadas e também a buscar pistas de como isso se efetivou no cotidiano das aulas, ao longo dos anos de 2016 e 2017. Por exemplo, a ementa da disciplina História Agrária do Brasil constava de:

Decadência da economia açucareira e a expansão da cafeicultura. Divisão regional do trabalho e expansão da fronteira agrícola. Produção agrícola e mão de obra. Capitalismo e economia cafeeira. A produção da estrutura fundiária. Reestruturação e diversificação da produção agrícola após os anos de 1960. A política agrária nacional. A agroindústria no contexto econômico brasileiro. (UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO, 2012, p. 44).

As discussões propostas por essa disciplina são de fato fundamentais para uma licenciatura direcionada à formação de educadoras(es) para atuação no contexto campesino. Em nossa perspectiva, essas incursões contribuíram para que os estudantes à época, hoje egressos, compreendam a constituição histórica do espaço rural brasileiro, favorecendo mudanças na estrutura fundiária brasileira, por meio do diálogo com as realidades campesinas locais. Essa experiência sinaliza um movimento em direção à formação no sentido freiriano de práxis, entendida em sua “[...] estreita relação que se estabelece entre um modo de interpretar a realidade e a vida e a consequente prática que decorre desta compreensão levando a uma ação transformadora” (ROSSATO, 2010, p. 686). Assim, ao situar e envolver os estudantes em/com suas realidades e trajetórias singulares e plurais, as experiências didáticas da História podem favorecer a formação da consciência do papel de cada um no mundo. A transformação se torna inevitável e gera, portanto, uma ação para atingir tal fim (ROSSATO, 2010).

Para o trabalho nessa disciplina, propusemos uma análise de fontes, neste caso, compostas por documentos relacionados à questão agrária nas comunidades onde os estudantes residiam: escrituras, recibos, levantamento topográfico, carta de aptidão, Imposto sobre propriedade Territorial Rural (ITR), Certificado de Cadastro de Imóvel Rural (CCIR), termo de doação, inventário e quaisquer outros documentos sobre a questão fundiária no estado, de modo mais específico, das comunidades em que viviam. Da análise dessas fontes, elaboramos coletivamente um texto que contemplasse as leituras discutidas ao longo dessa disciplina. Segue um fragmento dessa produção coletiva:

Uma escrita da História Agrária do Brasil suscita uma análise sobre a constituição histórica da nação brasileira; para tanto, embasados em Holanda (1995), entendemos que o Brasil teve suas raízes rurais; essa situação perdurou até a abolição da escravatura (1888), quando o país começa a adquirir feições de urbanização e industrialização, muito embora ainda convivemos com heranças patriarcais advindas do modelo colonial. Nesse esforço, consideramos necessário direcionarmos nosso olhar para a história local. (TURMA DO 4º PERÍODO DA LEDOC, 2016, p. 1).

Em seguida, sugerimos um roteiro para o trabalho com as fontes: a) Identificação; b) Interpretação dos documentos: exploração e contextualização do conteúdo; e c) Análise: crítica dos documentos (LUIZ, 2016). Para a realização do item c, elaboramos questões relativas aos registros, pois, de acordo com Bloch (2001), os documentos só falam quando são interrogados. Então, chegamos às seguintes questões sobre os documentos: Quem os produziu? Para quais finalidades? O que esses documentos revelam sobre a concentração fundiária da região? Como a terra em questão virou mercadoria? Como são demarcadas as fronteiras das propriedades? O que e como se produz nas propriedades? (LUIZ, 2016).

Pelo curto tempo destinado à disciplina (30 horas-aula de Tempo-Universidade e 30 horas-aula de Tempo-Comunidade),6 esse trabalho de análise ficou inconcluso, pois alguns registros extensos e complexos demandariam uma articulação com outras tipologias de fontes. Contudo, foram oportunizados exercícios de análise de fontes que contribuíram para a formação do historiador/professor. Um dos estudantes manifestou que: “Essa proposta foi muito bacana! Eu levei a escritura do meu terreno e descobri muitas informações nela. Até o momento, eu não tinha parado para analisá-la” (EA, 2019). Ele sugeriu, ainda, as possibilidades de realização dessa proposta com os estudantes da Educação Básica: “Essa proposta é viável para ser adaptada e aplicada numa escola do campo no Ensino Médio, pois parte da realidade do estudante e possibilita conhecer e explorar a história agrária local - residência e até mesmo comunidade” (EA, 2019).

Ao propor o estudo do percurso conceitual das expressões históricas e construções culturais, da construção da identidade nacional, das manifestações culturais no Brasil e das manifestações da cultura negra no Brasil (UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO, 2012), a disciplina de História da Cultura Brasileira privilegiou abordagens que perspectivaram a relação entre Tempo-Comunidade e Tempo-Universidade.

As propostas de trabalho dessa temática foram organizadas em dois eixos fundamentais: História e Cultura Africana e Afro-brasileira e História e Cultura Indígena. Para essa discussão, buscamos pesquisadores capixabas que tratam dessas abordagens e realizamos aulas de campo em espaços histórico-culturais da Grande Vitória. Uma estudante avaliou que essas visitas contribuíram para sua formação: “Eu mesma não sabia a história do Museu da Serra, por exemplo. Eu nunca tinha ido a nenhum daqueles lugares que fomos e as histórias foram contadas com outros olhares. Foi maravilhoso de estudar!” (EB, 2019).

O conjunto de referências e ações mobilizadas na disciplina dialoga com a proposição de Bosi (1992), à luz de Simone Weil, na defesa pelo respeito e valorização das raízes culturais dos sujeitos do campo, sobretudo acerca de sua participação na formação da sociedade brasileira, pois o enraizamento é um direito humano esquecido: todo homem tem uma raiz pela participação numa coletividade que conserva vivos alguns tesouros do passado e certos pressentimentos do futuro.

A terceira disciplina da área de História do curso, História do Espírito Santo, expõe em seu ementário:

Objetivos e ideologia do descobrimento. Matrizes étnico-raciais e composição da sociedade capixaba. Atividades econômicas do ES: século XVI ao XIX. Religiosidades e igrejas no ES. Desenvolvimento da vida política no ES até 1930. A Era Vargas no ES. A elite capixaba e os novos rumos do ES. Período de democratização no ES: 1945 a 1964. Ditadura militar no ES. Contemporaneidade capixaba pós 1964. (UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO, 2012, p. 66).

No caso específico dessa proposta, há lacunas e fragilidades, como o uso do vocábulo “descobrimento” para se referir ao início da colonização do Espírito Santo, desconsiderando a historiografia mais recente que problematiza a abordagem desse termo. Além disso, a descrição do ementário, numa perspectiva da história tradicional, privilegia fatos políticos e administrativos.

Para além do proposto na ementa, organizamos a disciplina de forma a articular a História do Espírito Santo à disciplina de Ensino de Geografia na Educação do Campo. Nos objetivos da proposta, registramos:

Proporcionar um espaço para a apropriação e reflexão sobre a Historiografia e história e geografia geral e do Espírito Santo, a partir de leituras, vídeos/documentários, oficinas, visitas a museus e espaços de cultura capixaba e produção de material didático-pedagógico a ser utilizado no planejamento e execução de aulas nas escolas do campo. (LÚCIA; RUFINO, 2017, p. 1).

Pela articulação dos dois componentes curriculares - História e Geografia -, a proposta delimitou o espaço-tempo das comunidades dos estudantes. A partir dessa seleção, promovemos, em uma perspectiva interdisciplinar, a elaboração de conceitos históricos e geográficos, como tempo, espaço e cultura, e provocamos a reflexão sobre permanências e descontinuidades nas comunidades em que os estudantes residiam. Ademais, destacamos a ênfase na elaboração de material didático-pedagógico para o ensino de História e Geografia nas escolas do campo. Na ocasião, um dos estudantes que atuava como professor de geografia na educação básica criou um blog: “[...] o blog possibilitou um contato dos estudantes com a tecnologia [já que os estudantes participaram de enquetes e postaram os textos]. Penso que o blog serviu para despertar o interesse dos estudantes pela história e geografia de Alto Rio Novo” (EA, 2019). O estudante completou que “[...] a produção dos textos fomentou a pesquisa e também contribuiu no desenvolvimento da escrita dos estudantes, já que eles passavam por algumas correções [várias] antes da pesquisa” (EA, 2019).

É fato que, ao priorizarem os contextos nacional e estadual, essas disciplinas privam os estudantes do acesso à História Geral, o que pode limitar o entendimento de que a História se produz pelas relações entre as diferentes e complementares dimensões: micro e macro-história. Ginzburg (2007), ao referir-se a esse diálogo necessário à prática historiográfica, retoma os postulados de Bloch (1987), em A sociedade feudal. Para Ginzburg (2007, p. 269), trata-se de

[...] um contínuo vaivém entre micro e macro-história, entre close-ups e planos gerais [extreme long shots], a pôr continuamente em discussão a visão conjunta do processo histórico por meio de exceções aparentes e causas de breve período [...]. A realidade é fundamentalmente descontínua e heterogênea. Portanto, nenhuma conclusão alcançada a propósito de um determinado âmbito pode ser transferida automaticamente para um âmbito mais geral.

No âmbito da disciplina Ensino de História na Educação do Campo, conforme previsto na ementa, buscava-se garantir: “Fundamentação teórico-prática para aprofundamento de temas específicos da História. Elaborações conceituais e práticas para desenvolvimento do ensino da História na Educação do Campo. Pesquisas relativas ao ensino da História na Educação do Campo” (UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO, 2018, p. 1). Com esse fim, buscamos promover um movimento prospectivo, articulando os processos formativos já vivenciados ao longo do curso, de modo específico, nos estágios supervisionados, com as vivências do presente; perspectivamos a atuação futura em sala de aula, como educadoras(es), o que originou a primeira proposta de atividade: “Buscar nos relatórios de estágios já realizados no curso (Gestão; Ensino Fundamental II; Ensino Médio), como a disciplina de História aparece, dimensionando como as singularidades do Campo são articuladas aos conteúdos ensinados” (LUIZ, 2018, p. 1). Nesses registros, os estudantes deveriam destacar os objetivos, conteúdos, estratégias e recursos didáticos da História na relação com outras disciplinas das Ciências Humanas e Sociais e com as demais áreas que compõem o currículo.

Fonseca (2006) e Bittencourt (2004, 2008) contribuíram com as discussões sobre o ensino de História, assim como as produções teóricas acumuladas pelos estudantes ao longo do curso. Destacamos, com isso, o potencial interdisciplinar dessa prática, pois, para essas reflexões, os estudantes lançaram mão dos registros de suas experiências em diferentes disciplinas e, no caso específico dos estágios, alguns realizaram atividades de intervenção nas escolas em parceria com estudantes da turma de Linguagens, estabelecendo um diálogo com saberes de outras áreas para além daquela circunscrita na habilitação desses discentes. Isso ilustra o potencial formativo dessa experiência, considerando o desafio constante que é perspectivar uma atuação docente multidisciplinar por meio de um currículo praticado por disciplinas.

Na articulação desse processo formativo voltado para os saberes históricos em escolas do campo, cuja proposta de atuação se insere em uma perspectiva multidisciplinar, propomos, dentre outras abordagens, a aplicação de um questionário aos estudantes das escolas do campo. A princípio, as questões delimitaram-se à disciplina de História e cada estudante do curso poderia adaptar e reformular enfoques que julgasse necessários.

As respostas dos estudantes7 quanto à importância da História apontam para uma compreensão desta como um conjunto de conhecimentos cristalizados no passado: “A História é importante porque ela me dá o entendimento sobre os meus antepassados e antecedentes e tudo que aconteceu antes que eu nascesse” (ESTUDANTE DO 5º ANO DO ENSINO FUNDAMENTAL, 2018);8 “A importância é que, lá na disciplina de História, a gente aprende coisas do passado, que nunca poderíamos conhecer em outro lugar, somente na escola” (ESTUDANTE DO 8º ANO DO ENSINO FUNDAMENTAL, 2018); “É através dela [História] que podemos entender como os homens viviam no passado, como era a cultura, a sociedade, a política etc.” (ESTUDANTE DO 2º ANO DO ENSINO MÉDIO, 2018). Assim, para esses estudantes da educação básica, os saberes históricos parecem se distanciar sobremaneira de seus contextos de vida, o que nos provoca a pensar como esse ensino se efetiva nesses contextos e em que medida há propostas de articulação entre os saberes curriculares e entre os conhecimentos e realidades dos estudantes.

Por outro lado, algumas manifestações sinalizaram outros modos de pensar a História, como o deste estudante do 2º ano do Ensino Médio: “Acho interessante saber o que aconteceu no passado e como isso influencia o presente. A História é uma disciplina indispensável para o aluno” (ESTUDANTE DO 2º ANO DO ENSINO MÉDIO, 2018). Nessa mesma perspectiva, outra estudante do 2º ano do Ensino Médio Integrado ao curso técnico em Agropecuária declarou: “Eu estudo História na escola porque eu considero importante sabermos o que aconteceu há décadas para podermos ter como exemplo para mudar e melhorar nosso presente e o futuro das outras gerações também” (ESTUDANTE DO 2º ANO DO ENSINO MÉDIO INTEGRADO AO CURSO DE AGROPECUÁRIA, 2018).

Em resposta à questão “Para que você estuda História na escola?”, um estudante do 5º ano registrou: “Para saber sobre as coisas antepassadas, saber como todos nós chegamos aqui, onde estamos e sobre o nosso país, nosso mundo, né?” (ESTUDANTE DO 5º ANO DO ENSINO FUNDAMENTAL, 2018). Alguns elementos presentes nas respostas dos estudantes incitam reflexões a respeito do campo epistemológico e disciplinar da História, tais como: a) as noções de temporalidade histórica - interpretar e significar as ações humanas no tempo (BLOCH, 2001); b) a necessária compreensão da pluralidade da experiência histórica - trata-se da estrutura sincrônica e diacrônica do espaço da experiência histórica; c) a noção de pluriperspectividade - o entendimento de que a experiência histórica deve se apresentar a partir de várias perspectivas, ou seja, o mesmo fato pode ser percebido pelos afetados de forma diferente e, inclusive, contrária (RÜSEN, 2011). Aproximações podem ser feitas entre os registros dos estudantes da educação básica e essas noções fundamentais para as aprendizagens históricas, como a compreensão da História como ciência dos homens no tempo (BLOCH, 2001), e não apenas como um saber fixado no passado. Isso se evidenciou, por exemplo, na fala desta estudante do 2º ano do Ensino Médio/Profissionalizante:

O grande problema é que, por exemplo, as coisas que acontecem hoje em dia não são tão consideradas parte da História, mas os acontecimentos de hoje deveriam ser trabalhados em sala de aula e não é desse jeito. O que acontece hoje vai ser considerado História, vai ser trabalhado em sala de aula daqui a décadas ou até bem mais do que isso, o que não vai solucionar muito, resolver muito o que a gente está passando hoje em dia. (ESTUDANTE DO 2º ANO DO ENSINO MÉDIO INTEGRADO AO CURSO DE AGROPECUÁRIA, 2018).

A pluriperspectividade, que permite a compreensão dos fatos históricos numa dimensão sincrônica e diacrônica, pode ser identificada nas respostas do estudante do 2º ano do Ensino Médio, que embora tenha registrado que “na disciplina de história, a gente aprende coisas do passado”, ao ser questionado sobre os temas que gostaria de aprender nas aulas de História, ele demonstrou um interesse diferente: “Sobre a atual política no Brasil! Porque eu quase não assisto jornal, e lá na escola seria mais fácil entender também sobre o que acontece no nosso país!”

Considerando esses e outros registros relativos às práticas nas disciplinas de História em articulação a outros saberes das Ciências Humanas e Sociais, distanciamo-nos de qualquer tentativa de homogeneizar os modos de trabalhar e de construir os conhecimentos históricos. Isso porque interessam-nos, especialmente, as reflexões a respeito das possibilidades de uma formação de educadoras(es) voltada para uma educação vinculada aos contextos de vida dos estudantes, ou seja, que considere a escola como espaço/tempo capaz de promover uma totalidade formativa. Isso, segundo Caldart (2009, p. 102), “[...] exige que a escola se vincule a outros lugares e processos formativos (de luta, trabalho, cultura) presentes no seu entorno. Isso supõe uma ligação orgânica (às vezes tensa) entre escola e comunidade que permite construir dentro e fora da escola relações sociais educativas”.

Desses registros, buscamos tatear rastros menos visíveis, situados nas entrelinhas, nas dobras do texto (GINZBURG, 2007). Por isso, sabedores das fragilidades e das potencialidades das experiências, entendemos que os conteúdos das ementas e seus desdobramentos nas práticas apontam para a busca de uma formação de educadoras(es) pautada em saberes historicamente produzidos que promovam transformações nas atitudes dos sujeitos em face do objeto de conhecimento.

Com efeito, mesmo com uma organização curricular, as práticas apontam para alternativas que permitam uma visão da realidade nas perspectivas da unidade e da totalidade do real, como defendia Paulo Freire (ANDREOLA, 2010). Tendo como horizonte uma formação multidisciplinar, buscamos uma articulação precípua entre o saber acumulado historicamente e o conhecimento produzido a partir das experiências dos estudantes nas comunidades. Nessa perspectiva, Paulo Freire define o processo pedagógico pelo dialogismo ou método dialógico, que valoriza o conhecimento empírico, fornecendo-lhe outro status (BITTENCOURT, 2004).

Compreendemos, dessa forma, que uma Educação do Campo que permita aos sujeitos a emancipação, a inserção autônoma nos processos econômicos, políticos e sociais pode ser possibilitada por meio de práticas que incitem a reflexão e a conscientização dos educandos. Isso demanda uma intermediação que necessita tanto do momento da prática e das experiências efetivas, quanto da paciente e não tão imediata reflexão filosófica e científica da realidade (SANTOS, 2013).

Resistência e (re)existência dos povos do campo: diálogos entre História e cultura popular

Como discutir a história dos sujeitos do campo sem antes reconhecer nos movimentos da cultura popular os fios que, entrelaçados, tramam um tecido permeado de resistências e (re)existências vividas, (re)inventadas e ressignificadas por eles? No tecer artesanal, rastreamos sinais ou indícios (nossos fios), com base em experiências produzidas nos diálogos entre as disciplinas de História da Cultura Brasileira e Cultura Popular no Campo, de uma tapeçaria (GINZBURG, 2007) cuja trama pedagógica refletisse um pensar-viver-ressignificar a história a partir de seus indícios marginais. E, dessa forma, buscasse outras formas de tempo-espaço que (re)construíssem composições a partir das margens, das narrativas e práticas, por vezes tão invisibilizadas no que diz respeito à realidade dos diferentes sujeitos do campo.

À vista disso, as narrativas e os documentos dos sujeitos foram interpelados com uma postura de estranhamento (GINZBURG, 2002, 2007) e ressignificados a cada leitura. Esse conjunto de elementos nos permite pensar que as práticas pedagógicas de resistência são práticas de reinvenção, cujos elementos “marginais” nos desafiam a enveredar em uma história inacabada, perpassada por interrogações, reflexões e inflexões - por vezes aquilo que é especulado como um “descaminho” ou “desvio”, prenuncia outro trajeto. Concordando com Bosi (1992), valorizar as raízes sociais e culturais dos sujeitos do campo é de extrema relevância nessa empreitada e implica o exercício de repensarmos nossas práticas docentes.

Em um dos cenários dessa trama, estava a turma do 5º período da LEDOC/UFES, com habilitação em Ciências Humanas e Sociais. No semestre de 2017/2, no dialogismo entre as disciplinas de História da Cultura Brasileira e Cultura Popular no Campo, discentes e docentes conduziram o planejamento pedagógico das disciplinas no que diz respeito aos planos de ensino, às atividades de Tempo Comunidade e aos processos avaliativos. As aulas, inclusive, foram ministradas pelos dois educadores. Entretanto, então, que objetivos essas disciplinas teriam em comum? Os objetivos pautados pelos estudantes e educadoras(es) para essa proposta interdisciplinar assinalam algumas pistas. Por exemplo, o plano de atividades evidencia o entrelaçamento das disciplinas:

A partir do trabalho conjunto das disciplinas ‘História da cultura brasileira’ e ‘Cultura popular no campo’, proporcionar um espaço para a produção de pesquisas interdisciplinares acerca da história e da cultura popular a partir da realidade vivida nas regiões/comunidades nas quais residem os educandos do curso de licenciatura em educação do campo. (LUIZ; GUIMARÃES, 2017, p. 1).

Para viabilizar a interdisciplinaridade da proposta e os processos de interlocução e intervenção nas comunidades dos estudantes, os objetivos específicos incluíram:

  • - Produzir um movimento interdisciplinar na produção das pesquisas discentes no curso de licenciatura em educação do campo;

  • - Fomentar um espaço de produção, debate e valorização da história e da cultura popular das regiões atendidas pelo curso de licenciatura em educação do campo;

  • - Construir um espaço de discussão/articulação entre as grandes questões que atravessam a história e a cultura popular brasileira e as realidades locais;

  • - Discutir, a partir de autores clássicos da teoria social brasileira, os processos de formação da sociedade brasileira e as contradições aí produzidas. (LUIZ; GUIMARÃES, 2017, p. 1).

Nesse excerto, estava o primeiro indício da materialização dessas proposições escondido entre “as dobras do texto” (GINZBURG, 2007). Não se tratava de um plano pronto no início do semestre, mas construído em um movimento coletivo, sendo pensado e (re)pensado ao longo do semestre. Entre excluir e (re)inserir, escrever e reescrever, escolher palavras e recompor objetivos, há pistas importantes para se repensar estratégias para o melhor entendimento de textos clássicos sobre a formação da sociedade brasileira: à medida que esses textos e autores dialogavam com a realidade dos estudantes e das comunidades, trilhamos juntos novos caminhos de compreensão, em um movimento semelhante ao pensado por Arroyo (2019), ao explicitar que novos sujeitos demandam outras e novas pedagogias. E essas novas pedagogias também podem produzir em nós outras experiências enquanto docentes da Educação do Campo: ao renegarmos o lugar do suposto saber que tradicionalmente nos é idealizado, reivindicamos pedagógica e politicamente o protagonismo dos movimentos sociais e dos sujeitos do campo (MANCEBO, 2019). Isso, entre outros aspectos, revela que uma opção didática é também uma opção política e, como tal, deve nos incitar a lapidar a todo momento nossos olhares e práticas.

Passamos, por exemplo, pela experiência de ministrarmos aulas em conjunto com outra disciplina e também isoladamente, trabalhando um mesmo texto sob perspectivas diferentes (ora enfatizando a reflexão histórica, ora a cultura popular). Disso, fomos provocados a interrogar: como pensar a história da sociedade brasileira e dos sujeitos do campo sem pensar a produção dos documentos, das fontes e dos próprios saberes que são diretamente oriundos da cultura popular, quando não se confundem com esta?

Em um olhar atento ao PPC (UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO, 2019) da LEDOC, identificamos prenúncios importantes sobre a materialização de aspectos políticos em escolhas didáticas, como no trecho dos objetivos políticos: “Desenvolver saberes e fazeres formativos nos diferentes espaços e tempos da organização das aprendizagens por Alternância, compreendendo que escola e comunidade constituem lócus de construção do conhecimento dos sujeitos campesinos” (UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO, 2019, p. 10). Esse fragmento aponta para a necessidade de uma tapeçaria composta por diferentes fios em múltiplos tempos e espaços. Quando buscamos indícios de como isso ocorreu nessa experiência conjunta, percebemos movimentos potentes de discussão sobre a história e a cultura popular a partir da realidade das comunidades dos estudantes. Por isso, propomos estudar a história e a cultura encarnada nesses sujeitos - enquanto movimentos de autoconhecimento, pertencimento e valorização dos saberes-fazeres de suas comunidades, valorizando seus territórios enquanto espaços de conhecimento e de produção de vida (ARROYO; CALDART; MOLINA, 2008).

Outra pista relevante nesse processo de descoberta e redescoberta (dos territórios, de suas histórias e de nossos próprios objetivos e práticas, enquanto docentes e discentes em constante aprendizado) está no próprio processo de feitura das pesquisas, realizadas em Tempo Comunidade, e discutidas, problematizadas e socializadas no período de Tempo Universidade. Esses debates levantaram uma temática de grande relevância para pensar a formação da sociedade brasileira e a realidade campesina: a questão étnico-racial. Os fragmentos ilustram a tônica dessas discussões:

Extirpado o elemento indígena da constituição étnico-racial de Cariacica, pelo seu extermínio ou pela expulsão para além daquelas bordas que hoje compõem as fronteiras do município, coube a portugueses e negros africanos compor a matriz étnica da região, profundamente alterada a partir dos anos 1970, com o advento dos grandes projetos industriais, quando a região recebeu as migrações do interior e estruturou-se como periferia do centro industrial que inicialmente instalou-se em Vitória e posteriormente também na região do Civit, em Serra. (EC, 2017).

Infelizmente, não encontramos em nenhum registro documentos que relatam esses fatos sobre a existência de outros/etnias na comunidade. No entanto, D. E. nos assegurou que, posteriormente, quando Sr. N. ficou viúvo, ele se casou com uma mulher ‘negra’ que ela não soube informar o nome, e teve com ela um filho que pôs o nome de A. Os irmãos, talvez pela cor da pele ser escura, não aceitavam a convivência com esta mulher e seus filhos [...]. (ED; EE; EF; EG, 2017, grifo do autor).

Esses fragmentos descortinam contradições e adversidades ligadas à questão ético-racial, um elemento central que se repetiu nas produções dos estudantes de vários municípios/regiões campesinas e que foi exaustivamente debatido. Os estudantes destacaram o quanto a violência, em suas diversas formas, atinge principalmente os povos de origem africana e indígena, além de deixar marcas nas comunidades campesinas nas quais, muitas vezes, as memórias desses sujeitos são invisibilizadas.

Mais do que isso, esses discursos nos despertam para o fato de que a luta por uma sociedade mais igualitária na cidade e no campo perpassa profundamente as contradições da violência étnico-racial num país de base escravagista, o que está ligado, inclusive, ao acesso à terra. Diante disso, como pensar a educação do campo dissociada da luta pela reforma agrária, como afirma Pizetta (1999)? Logo, esses registros dos estudantes, juntamente com as experiências dos debates, provocaram em aula momentos necessários de tensão, especialmente a partir de alguns discursos que naturalizavam a desigualdade.

Os debates mostraram que o conformismo com a violência e a barbárie ainda é presente em discursos reproduzidos por alguns estudantes. Por outro lado, a junção das disciplinas Cultura Popular do Campo e História da Cultura Brasileira potencializou a discussão por questionar como, estruturalmente, isso foi produzido e como isso entranhou no cotidiano das comunidades, o que permitiu aos estudantes perceberem aquilo que, outrora, parecia estar oculto. A produção de uma estudante que, inicialmente, dizia não estar sensível a essas questões em sua região permite-nos apurar algumas marcas desses debates em sua formação:

As questões sociais vividas pelas populações negras e indígenas são vistas como um grupo que busca uma identidade, porém, lutando para não ser esquecido. Quando uma raça luta para não ser esquecida, ela luta pelo resgate de sua história, seus costumes, suas origens. Logo, este grupo começa por identificar a sua identidade, mas, contudo, sofre retaliações, preconceitos, falta de políticas públicas e descaso na educação pelo reconhecimento de suas origens. (EH, 2017).

Essa temática ganhou amplitude ao longo das aulas e o registro dessa estudante constituiu parte da atividade final das disciplinas, o que mostra um importante impacto desse debate no modo de ela pensar as questões étnico-raciais tão presentes em seu município de origem e que, conforme ela mesma explicitou, não havia percebido antes nessa dimensão.

Outro aspecto que já era discutido e valorizado pelo curso, a cultura popular construída e reconstruída cotidianamente nas comunidades campesinas, foi evidenciado no discurso dos estudantes:

Encontramos, na comunidade, pessoas [com] capacidade para solucionar problemas que surgem nas lavouras, nas criações, e até mesmo nos seres humanos. Os chamados benzedores, uma mistura de crenças, misticismo, desespero e a necessidade de buscar solução para problemas de infestação de insetos, doenças que a ciência não tem resposta para solucionar tais problemas. (ED; EE; EF; EG, 2017).

Nesse excerto, há indícios de que o encontro dessas disciplinas promoveu um exercício enriquecedor, não apenas no que se refere aos estudantes valorizarem suas culturas, mas, sobretudo, no sentido de alargarem suas concepções a respeito destas. Eles apreciaram a própria cultura com atitude de estranhamento, de modo a se perceberem enquanto sujeitos que têm uma constituição subjetiva vinculada à comunidade, com a sabedoria popular presente em seus cotidianos, numa cultura dinâmica e plural. Nesse sentido, a cultura campesina produzida por essas comunidades também está em constante movimento dialético de mudança, como se verifica no registro a seguir:

O Sr. M. relatou que, nos últimos anos, a região tem passado por um processo de transformações, em especial a atividade agrícola. Com a facilidade de acesso à informação (TV, internet), os próprios agricultores têm buscado ‘inovar’ suas culturas, ampliando as variedades de espécies de cultivos desenvolvidos em suas propriedades. As informações, via telejornais, acabam por substituir o papel do técnico, o agricultor é incentivado pelas reportagens que trazem as matérias referentes às novidades e possibilidade de culturas em alta no mercado que despertam o interesse/curiosidade dos agricultores. Quando procuram a assistência técnica, já vem com uma ideia formada. (ED; EE; EF; EG, 2017, grifo do autor).

Discorrer sobre a cultura popular, especialmente numa concepção mais ampla, foi um movimento que gerou resistência por muitos estudantes, no sentido de perceberem que ela está aberta no tempo e no espaço. Conseguimos alguns avanços, mas deduzimos que esse debate deveria incluir o corpo docente do curso. É comum alguns discentes esboçarem uma noção de cultura como algo estático; e desconstruir esse estereótipo é um desafio importante para toda área de Ciências Humanas e Sociais, que fundamenta sobre o conceito de cultura importantes discussões da Educação do Campo.

Ao fim do trabalho com essas disciplinas, notamos avanços, lacunas e desafios. A atuação próxima entre professores de diferentes componentes curriculares enfrenta impedimentos estruturais, como o horário individual de trabalho de cada profissional em turmas diversas, afinal a própria universidade está constituída a partir da lógica disciplinar e isso está presente nos currículos, no cotidiano universitário e pessoal de cada professor.

Esse trabalho conjunto também desafia a prática docente desde o próprio planejamento das disciplinas, quando os professores trabalham com perspectivas teórico-ideológicas diferentes sobre um mesmo tema, o que torna a aproximação interdisciplinar mais conflituosa. Todavia, isso também nos provoca, enquanto educadoras(es) em constante situação de aprendizado, a vivenciar um ensino dialógico e dialético perpassado por tensões e conflitos.

Portanto, o enfoque multidisciplinar une as dimensões políticas, pedagógicas e epistemológicas, ao mesmo tempo em que incita educadoras(es) e universidade a repensarem constantemente suas metodologias, seus objetivos e, principalmente, aquilo que consideram como saber socialmente valorizado. Nesse viés, concordando com Caldart (2009, p. 9), a educação do campo “[...] nasceu como crítica à realidade da educação brasileira, particularmente à situação educacional do povo brasileiro que trabalha e vive no/do campo”.

Considerações finais

Este estudo, desenvolvido durante o fazer docente, tem nos permitido aprender desde o planejamento das ações relatadas até o momento desta escrita. Estamos cientes de que o rompimento de paradigmas no âmbito da formação docente não se faz distante dos conflitos, sobretudo quando estamos declaradamente no território contra-hegemônico.

Ao longo desse percurso, há o “risco” de uma formação disciplinar fragmentada quando nos afastamos da historicidade dos processos que impulsionaram e ainda impulsionam a Educação do Campo e a formação de suas/seus educadoras(es).

A busca pela desconstrução de racionalidades que tradicionalmente marcam a formação docente, pautadas excessivamente pelo ensino de técnicas didático-pedagógicas, pela dicotomia teoria e prática e por conteúdos enciclopédicos, tem sido desafio na LEDOC/UFES. As tentativas, tal como a que relatamos, constituem possibilidades de invenções que inauguram, no âmbito de nosso trabalho, fazeres solidários e cooperativos, buscando, assim, “[...] desencadear mudanças na lógica de utilização e de produção de conhecimento” (MOLINA; SÁ, 2013, p. 469).

Construir coletivamente fazeres e saberes que superem a formação meramente disciplinar nos provoca a pensar que a atuação por área de conhecimento é um exercício contínuo de questionamentos, reflexões e inflexões, cujos indícios e pistas podem se constituir em reinvenções. Diante disso, como pensar um processo formativo de Educação do Campo dissociado de um projeto político de mundo e de humanidade que assume os sujeitos do campo como seus protagonistas? E como pensar esse protagonismo sem compreender as estruturas históricas e sociais que excluem esses sujeitos? Como isso se reflete na própria constituição da universidade brasileira e nos fazeres docentes e discentes? E, ainda: como nos permitir construir, com os sujeitos, movimentos que encorajem a uma práxis de encontros com as diferentes realidades camponesas vividas no Brasil? (MOLINA; ANTUNES-ROCHA; MARTINS, 2019).

Ao reconhecermos que o conhecimento não é neutro, mas perpassado por nossos valores, projetos de vida e de educação que se inter-relacionam e que, partindo do princípio de que a formação por área do conhecimento nos faz questionar o próprio modo de produção e a função social/utilização desse conhecimento (MOLINA; SÁ, 2013), algumas perguntas fundamentais devem ser retomadas constantemente em nossa formação e atuação: O que é o conhecimento? Por que e para quê esse conhecimento, e não outro?

Esses questionamentos, produzidos ao escavarmos os meandros do texto, por meio da interpretação das faces fragmentárias e lacunares dos documentos e das narrativas (GINZBURG, 2007), apontam para um caminho a ser percorrido para a produção de um trabalho coletivo em detrimento do âmbito individual; com isso, vislumbramos uma possibilidade concreta de vivermos o espaço educativo enquanto pólis, ou seja, um espaço de fazer-com, pensar-com e ser-com o outro. Numa sociedade tão individualizada como a neoliberal, isso certamente é um desafio que encontra raízes profundas em nossa constituição histórica, cultural, social e intersubjetiva.

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1Optamos pelo uso do termo de educadoras(es) por uma questão de gênero predominante no curso.

2Os estudantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) que autoriza a divulgação dos depoimentos e narrativas recebidas por e-mail e mensagens de áudio.

3Doravante LEDOC/UFES.

4Como riscos, os autores alertam acerca de possível: a) descaracterização em relação à Alternância Pedagógica; b) distanciamento entre a universidade e os movimentos sociais do campo, bem como seu protagonismo no processo formativo; c) não realização de um trabalho formativo por área do conhecimento (MOLINA; HAGE, 2016).

5Ao longo do texto, adotamos as siglas formadas pelas letras “E”, referindo-nos aos estudantes, seguidas de letras do alfabeto para identificá-los, a fim de cumprir os princípios éticos da confidencialidade, anonimato e imparcialidade da pesquisa com seres humanos.

6O curso de Licenciatura em Educação do Campo organiza metodologicamente o currículo por alternância entre Tempo/Universidade e Tempo/Universidade, de modo a permitir a necessária dialética entre educação e experiência, oferecendo preparação específica para o trabalho pedagógico com as famílias e ou grupos sociais de origem dos estudantes, para liderança de equipes e para a implementação (técnica e organizativa) de projetos de desenvolvimento comunitário sustentável (UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO, 2012).

7Essas respostas foram produzidas por meio da aplicação dos questionários pelos 7 estudantes da turma de Ciências Humanas e Sociais. No total, 17 questionários foram respondidos por estudantes da educação básica, do 5º ano do Ensino Fundamental ao 3º ano do Ensino Médio. Nesse conjunto, houve respostas de um estudante da EJA e de outro do 4º ano profissionalizante.

8A identificação dos estudantes que responderam aos questionários, de forma distinta da dos graduandos da LEDOC/UFES, deve-se ao fato de explicitarmos o ano e o segmento que os estudantes cursavam à época, para dimensionar os modos como a História é pensada ao longo da educação básica.

Recebido: 15 de Novembro de 2020; Aceito: 20 de Fevereiro de 2021

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