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Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade

versión impresa ISSN 0104-7043versión On-line ISSN 2358-0194

Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade vol.30 no.61 Salvador ene./mar 2021  Epub 18-Oct-2021

https://doi.org/10.21879/faeeba2358-0194.2020.v30.n61.p233-252 

EDUCAÇÃO DO CAMPO

EDUCAÇÃO DO CAMPO, TERRITÓRIO E A ESCOLA DA/NA ILHA NO LITORAL DO PARANÁ

FIELD EDUCATION, TERRITORY AND THE SCHOOL OF/ON THE ISLAND ON THE COAST OF THE PARANA STATE

EDUCACIÓN DEL CAMPO, TERRITORIO Y LA ESCUELA DE LA/EN LA ISLA EN EL LITORAL DE PARANÁ

Adalberto Penha de Paula*  (UFPR)
http://orcid.org/0000-0002-9906-3989

Leilah Santiago Bufrem**  (UFPR - UFPE)
http://orcid.org/0000-0002-3620-0632

*Doutor em Educação pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Professor na Licenciatura em Educação do Campo - Ciências da Natureza da Universidade Federal do Paraná (UFPR) - Setor Litoral - Matinhos - Paraná. E-mail: adalbertoppenha@gmail.com

**Doutora em Ciência da Informação pela Universidade de São Paulo (USP). Professora na Universidade Federal do Paraná (UFPR) e na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). E-mail: santiagobufrem@gmail.com


RESUMO

Este artigo discute as relações entre a Educação do Campo, o Território e a escola do campo da/na ilha, tendo como objetivo apresentar a trajetória, os resultados e as discussões de uma pesquisa realizada no contexto da Educação do Campo, a partir de uma comunidade tradicional do município de Guaraqueçaba, no litoral paranaense. O percurso teórico-metodológico da pesquisa assume a concepção dialética do conhecimento e utiliza técnicas e procedimentos pertinentes ao enfoque metodológico de pesquisa do tipo etnográfica, por meio da observação participante, registro no caderno de campo, fotografias, questionários, entrevistas e estudo documental para produzir os dados, e busca, na análise de conjuntura, os aportes necessários para o desvelamento da realidade. Os principais resultados desta pesquisa apontam que: as contribuições das produções acadêmicas sobre Educação do Campo se ampliaram; é preciso avançar com os processos realizados pela escola dentro das comunidades; embora práticas educativas já busquem articular cultura, trabalho, enquanto modo de vida, e o território, ainda há espaço para intensificar e aprofundar estas questões, consideradas essenciais na luta pela escola do campo da/na ilha. A pesquisa permite concluir pela necessidade de que os sujeitos envolvidos na relação escola, comunidade e território busquem estratégias de aproximação e rompimento das fronteiras da alteridade, a fim de avançar com um projeto educativo emancipador.

Palavras-chave: Educação no território; Escola do campo da/na ilha; Litoral paranaense

ABSTRACT

This paper discusses the relationship between Field Education, Territory and the school of/on the island, aiming to present the trajectory, discussions and results of a study carried out in the context of Field Education, inside a traditional community in the municipality of Guaraqueçaba on the Parana coast. The theoretical methodological development of the research is based on the knowledge dialectics and uses techniques and procedures included in the methodological focus of the ethnographic research, through participant observation, recording in a field diary, photography, questionnaires, interviews and a documental study to produce data and seek, in the situation analysis, the necessary input to unveil the reality. The research main results pointed out that the contributions of the academic production on Field Education are widespread and it is necessary to advance with the processes developed by the school within the communities. Although education practices already seek to articulate culture, work as a way of life and the territory, there is still some room to intensify and deepen these issues, which are considered essential in the struggle for the field school of/on the island. The research led us to conclude that it is vital that the subjects involved in the relationship school, community and territory seek strategies of approximation and rupture of the otherness borders, with the purpose of advancing as an emancipatory education project.

Keywords: Education on Territory; Field school of/on the island; Parana state coast

RESUMEN

Este artículo discute las relaciones entre la Educación del Campo, el Territorio y la escuela de la/en la isla, teniendo como objetivo presentar la trayectoria, los resultados y las discusiones de una investigación realizada en el contexto de la Educación del Campo, a partir de una comunidad tradicional del municipio de Guaraqueçaba en el litoral paranaense. El recurrido teórico metodológico de la investigación asume la concepción dialéctica del conocimiento y utiliza técnicas y procedimientos pertinentes al enfoque metodológico de investigación del tipo etnográfica, por medio de la observación participante, registro en el cuaderno de campo, fotografías, cuestionarios, entrevistas y estudio documental para producir los datos y busca, en el análisis de coyuntura, los aportes necesarios para el desvelamiento de la realidad. Los principales resultados de esta investigación apuntan que las contribuciones de las producciones académicas sobre Educación del Campo se ampliaron; es preciso avanzar con los procesos realizados por la escuela dentro de las comunidades; aunque prácticas educativas ya busquen articular cultura, trabajo mientras modo de vida y el territorio, todavía hay espacio para intensificar y profundizar estas cuestiones, consideradas esenciales en la lucha por la escuela del campo de la/en la isla. La investigación permite concluir por la necesidad de que los sujetos involucrados en la relación escuela, comunidad y territorio busquen estrategias de acercamiento y rompimiento de las fronteras da alteridad, en el sentido de avanzar con un proyecto educativo emancipador.

Palabras clave: Educación el en territorio; Escuela de campo de la/en la isla; Litoral paranaense

Introdução

Ao iniciarmos a pesquisa1 apresentada neste artigo, afirmamos não conhecer a realidade das ilhas. Para tal, evocamos as sábias palavras de Saramago (1998, p. 7) em prol da consciência das mutações: “[...] não ignoro que todas as ilhas, mesmo as conhecidas, são desconhecidas enquanto não desembarcarmos nelas.”. Neste sentido, ainda não podemos concluir que as conhecemos na sua totalidade, contudo sabemos que, desde que desembarcamos neste território, a conhecemos um pouco mais.

Com o intuito de superar negações históricas de acesso aos direitos educacionais e sociais, a Educação do Campo (EdoC) vem rompendo diferentes “cercas”, tanto da institucionalidade educacional, representada por escolas e universidades, quanto do desconhecimento presente nas comunidades do campo, das águas e das florestas, onde ela se materializa.

A EdoC se produz pelos sujeitos que a constituem, articula-se para além da luta pela educação, assume o trabalho, a cultura, o território e o modo de vida da comunidade. Elabora sua pedagogia a partir do concreto, das demandas da vida cotidiana, da prática social que se expressa nas contradições. Configura-se como uma categoria de análise da própria experiência que a produz (CALDART, 2012).

Nesse contexto, há que se pensar a Educação do Campo como um processo de construção coletiva, de afirmação e ampliação da noção de campo, este como “[...] lugar de vida, onde as pessoas podem morar, trabalhar, estudar com dignidade de quem tem o seu lugar, a sua identidade cultural.” (FERNANDES; CERIOLI; CALDART, 2004, p. 137). A Educação do Campo está para além da educação aos camponeses(as), dos movimentos de luta por terra, pois os diversos sujeitos, dos territórios do campo, das águas e das florestas, devem reivindicar e produzir a Educação do Campo que atenda às suas demandas. A construção da escola do campo deve ser “[...] um lugar onde especialmente as crianças e os jovens possam sentir orgulho desta origem [...]; não porque enganados sobre os problemas que existem no campo, mas porque dispostos e preparados para enfrentá-los, coletivamente.” (CALDART, 2012, p. 24). É uma escola que se articula com a vida, como deveriam ser todas as escolas, independentemente das especificidades dos sujeitos.

Outro elemento importante na EdoC é a produção do seu território, o qual sendo material e imaterial, se constitui também nas relações sociais, nas teorias, ideologias, de modo que ambos são indissociáveis (FERNANDES, 2008).

O território imaterial está presente em todas as ordens de territórios. O território imaterial está relacionado com o controle, o domínio sobre o processo de construção do conhecimento e suas interpretações. Portanto, inclui teoria, conceito, método, metodologia, ideologia etc. O processo de construção do conhecimento é, também, uma disputa territorial que acontece no desenvolvimento dos paradigmas ou correntes teóricas. (FERNANDES, 2015, p. 208-209).

O território configura-se, assim, como espaço de disputa e resistência para os povos do campo, das águas e das florestas, e, neste entendimento, a escola do campo tem papel fundante na formação destes sujeitos. Aproximando o território à dinâmica da escola, enquanto produto de uma cultura, situada em determinado tempo histórico, pressupomos que os modos de ser e viver de uma comunidade serão afetados por este novo elemento agregador de experiências da vida social que é o território usado. “[...] O território usado é o chão mais a identidade. A identidade é o sentimento de pertencer àquilo que nos pertence. O território é o fundamento do trabalho, o lugar da residência, das trocas materiais e espirituais e do exercício da vida.” (SANTOS, 1999, p. 7).

Assim, queremos afirmar a importância de ampliar o acesso à escola, através da produção de uma escola que esteja geograficamente na comunidade, e político-pedagogicamente articulada com a cultura e as identidades que se expressam no cotidiano do território. Defendemos um território onde a escola esteja organicamente vinculada com as demandas e necessidades, porém que não se perca um dos seus principais objetivos, que é a socialização do conhecimento e a formação humana crítica, capaz de desvelar a realidade e vislumbrar uma comunidade, uma sociedade, um mundo melhor.

Pensar a EdoC a partir da questão territorial é também querer/lutar por uma escola da/na ilha é desejar a garantia de um direito fundamental a todo povo brasileiro. É produzir uma escola que respeite quem vive no lugar, um lugar de relações sociais bem singulares, constituindo os povos e comunidades tradicionais, o seu modo de vida, os seus costumes, para que possam formar sujeitos das suas histórias. A Educação do Campo das/nas ilhas é uma educação “dos” e não “para” os pescadores(as) artesanais e caiçaras.

É no bojo dessas reflexões sobre a Educação do Campo e no intuito de avançar na compreensão desta educação e escola do campo, permeada de contradições, que se dá a importância do conhecimento produzido a partir dos interesses da classe trabalhadora. Investigações acadêmicas engajadas e comprometidas com as causas legítimas do povo, neste caso, da Educação do Campo, podem superar lacunas em determinada área de estudo, contribuindo com conhecimentos que possam colaborar com um projeto societário emancipador, fortalecendo o projeto histórico de superação de uma sociedade onde a menor parte, ou seja, a classe dominante, hegemônica, preza em dominar e controlar a maior parte da humanidade, isto é, os trabalhadores e trabalhadoras, negando-lhes o direito de produzir seus meios de vida (FRIGOTTO, 2014).

A pesquisa (PAULA, 2019) que realizamos buscou investigar, a partir de um olhar particular, isto é, da educação e escola localizada nas ilhas do litoral paranaense, como uma comunidade tradicional compreende a educação e a escola no seu território. Neste sentido, a questão central motivadora e orientadora da pesquisa é expressa da seguinte forma: “Considerando a relação entre território e educação, quais os significados da escola do campo das/nas ilhas para as comunidades tradicionais do litoral paranaense?”.

Procuramos, portanto, enquanto objetivo geral da nossa pesquisa mais ampla, compreender o significado que a educação e a escola do campo da/na ilha têm para as comunidades do litoral paranaense na relação com o território; mais especificamente, procuramos: distinguir as características constituintes da identidade do sujeito do campo das ilhas do litoral paranaense; analisar as concepções e princípios que fundamentam a proposta pedagógica se suas escolas; caracterizar as relações entre a comunidade e a escola localizada na ilha; identificar os significados que a escola tem para a comunidade em uma ilha situada em Guaraqueçaba, no estado do Paraná; e discutir as relações entre os conhecimentos tradicionais (da comunidade) e o conhecimento científico/escolar (da escola). O campo empírico da pesquisa ocorreu em uma comunidade localizada em um território tradicional, ou seja, em uma ilha do município de Guaraqueçaba, no litoral do Paraná.

O percurso teórico metodológico teve como base os pressupostos do materialismo histórico-dialético, cuja proposta “[...] consiste em considerar as coisas e fenômenos como processos. Ensina a ver as coisas em relação à atividade humana. Nestas condições, a prática não é só uma aplicação da teoria, mas um elemento da realidade na qual se unificam conhecimentos e atividade” (SUCHODOLSKI, 1976, p. 101). Utilizamos técnicas e procedimentos pertinentes ao enfoque metodológico da abordagem de pesquisa do tipo etnográfica. Inspiramo-nos numa etnografia latino-americana, pela qual os processos de compreensão se diferenciam de outras correntes de investigação (ROCKWELL, 2001). Enfoque que se caracteriza como um modo singular de produzir conhecimento, neste caso, especificamente na Educação do Campo.

Expostos os elementos constituidores da pesquisa, realizada no Programa de Pós-Graduação em Educação, do Setor de Educação da Universidade Federal do Paraná (UFPR), na linha de pesquisa Cultura, Escola e Processos Formativos em Educação, pretendemos a seguir apresentar a sua trajetória, seus principais resultados, discussões e conclusões. Deste modo, este texto, além da Introdução, se organiza da seguinte forma: “Educação do Campo: processo inacabado de um percurso em movimento”; “Construindo possibilidades da pesquisa em educação a partir da abordagem etnográfica”; “Contribuições dos sujeitos participantes da pesquisa: análise e resultados dos achados da pesquisa” e “Há que se continuar caminhando: considerações finais”, seção em que retomamos as principais discussões aqui expressas, ou seja, os elementos constituintes da tese juntamente com as nossas principais conclusões. Por fim, defendemos a necessidade histórica de ampliação das pesquisas acadêmicas sobre/com a Educação do Campo, das Águas e das Florestas e das ações de fortalecimento dos territórios, comunidades e escolas em diálogo e articulação entre os povos da terra e do mar, bem como das periferias das cidades, ou seja, as trabalhadoras e trabalhadores que estão à margem. Também entendemos que com a socialização deste trabalho contribuímos para o fortalecimento da Educação do Campo e, principalmente, das escolas do campo da/nas ilhas e dos sujeitos que as constituem.

Educação do Campo: processo inacabado de um percurso em movimento

A Educação do Campo (EdoC), em constante movimento, tem sua gênese junto às camponesas e camponeses, principalmente aqueles e aquelas vinculadas(os) aos movimentos sociais de luta por terra. Mais especificamente, tem-se enquanto precursor deste processo o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), o qual sempre estendeu como uma das suas bandeiras de luta, a luta pela educação dos sujeitos Sem Terra. Neste contexto, é evidente que a Educação do Campo tem sua origem junto aos povos do campo vinculados à terra, aos povos que objetivam ocupá-la para produzir, no sentido de construir caminhos de um novo projeto societário, processo no qual a educação tem lugar basilar.

Contudo, ao passar do tempo com as experiências de luta, o entendimento de campo se amplia, incluindo assim diversos sujeitos que vivem e trabalham no campo, nas águas e nas florestas. Este movimento constante de conquista dos territórios ocupados pela Educação do Campo no Brasil tem se ampliado, o que imprime um processo de diálogos com as outras especificidades dentro da própria EdoC. Ou seja, são diálogos entre terra e mar, diálogos urgentes frente à conjuntura atual, bem como necessários para compartilhar experiências e formas de produção de uma educação que atenda cada contexto dentro da sua singularidade, de modo que não fragmente a luta na sua totalidade, mas sim tenha um olhar comprometido com as culturas e identidades dos povos do campo, das águas e das florestas.

Assim, considerando o encontro entre os diferentes sujeitos, apresentamos de forma sintética um breve panorama de acontecimentos históricos da luta pela constituição da Educação do Campo no Brasil após 1997, ano do primeiro Encontro de Educadoras e Educadores da Reforma Agrária no Brasil (ENERA).

O projeto de Educação do Campo, postulado com e pelos povos do campo, se constitui como um momento de análise e crítica à chamada educação rural. Este processo de uma educação oposta aos princípios da educação rural é organizado por diferentes sujeitos da sociedade civil, preocupados em pensar e construir um projeto societário contra-hegemônico, conforme aconteceu no “I Encontro de Educadoras e Educadores da Reforma Agrária, promovido pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, em julho de 1997, em Brasília.” (KOLLING; NERY; MOLINA, 1999, p. 13).

Com o objetivo de proporcionar condições para que os sujeitos se organizem, realizou-se, em 1998, a I Conferência Nacional por uma Educação Básica do Campo, em Luziânia. Goiás, fortalecendo a mobilização por uma educação que oportunize acesso, permanência e qualidade a todos educandos e educandas do campo. E dando continuidade ao processo de organização das diferentes frentes de luta pela Educação do Campo, cria-se a Articulação Nacional por uma Educação do Campo, referendada em 1999, no Seminário da Articulação Nacional por um Educação do Campo em Cajamar, São Paulo (MORAES, 2018). Essa Articulação busca integrar diferentes grupos em um coletivo nacional, ampliado com maior força e representatividade de alcance em todo território nacional. Para atender as demandas deste tempo histórico, em 2010, a Articulação Nacional por uma Educação do Campo, enquanto instância reconhecida nacionalmente pelos sujeitos sociais coletivos do campo, tem outra configuração e passa a ser denominada de Fórum Nacional da Educação do Campo (FONEC).

Conforme seu documento de criação, o FONEC assume na sua constituição o “exercício da análise crítica e constante, severa e independente acerca das políticas de Educação do Campo; [...] ação política com vistas à implantação, à consolidação e, mesmo, à elaboração de proposições de políticas públicas” (FÓRUM NACIONAL DA EDUCAÇÃO DO CAMPO, 2010).

Já no ano de 2002, foram apresentadas à sociedade as Diretrizes Operacionais da Educação do Campo em nível nacional, com ações e programas governamentais que buscam atender melhor as demandas educacionais do campo. Em 2008 são estabelecidas as diretrizes complementares para o desenvolvimento de políticas de atendimento à educação básica do campo, através da Resolução CNE/CEB nº 2, de abril de 2008 (BRASIL, 2008); em 2010, o Decreto nº 7.352 (BRASIL, 2010), que dispõe sobre a política de educação do campo e o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (PRONERA); e através da Portaria MEC nº 86, 01 de fevereiro de 2013 (BRASIL, 2013), o Ministério da Educação (MEC) institui o Programa Nacional de Educação do Campo (PRONACAMPO).

Depois de quase 20 anos do primeiro encontro de educadoras(es), no ano de 2015, foi realizado o II Encontro das Educadoras e Educadores da Reforma Agrária (ENERA), com a proposta de refletir, trocar experiências e posicionar a Educação do Campo em relação à conjuntura educacional brasileira. E em caráter celebrativo, reflexivo e de unificação das forças populares vinculadas ao campo, é realizado em Brasília, em 2018, o Encontro Nacional dos 20 anos da Educação do Campo e PRONERA, o qual reconhece as contribuições dos diferentes sujeitos do campo na luta pela educação pública brasileira e encaminha novas ações de fortalecimento da Educação do Campo, das Águas e das Florestas, que podem ser expressas pelo lema “Educação é Direito. Não é Mercadoria!”.

No cenário nacional, a Educação do Campo vem se fortalecendo na luta pelos direitos historicamente negados aos povos do campo, das águas e das florestas, se articulando de diferentes formas na garantia e efetivação das políticas públicas, contra toda forma de violência e opressão. Em relação ao estado do Paraná, percebemos uma forte atuação na construção da Educação do Campo no Brasil. Como marcos deste processo temos, em 1998, no município de Curitiba, o Encontro Estadual preparatório da I Conferência Nacional por uma Educação Básica do Campo. Este momento histórico para a Educação do Campo no Paraná é visto como pioneiro da formação da Articulação Paranaense por uma Educação do Campo (APEC), criada em 2000. De acordo com Souza (2014, p. 4), “[...] constata‐se que a APEC teve suas primeiras reflexões em 1998, no contexto das conferências realizadas nos estados brasileiros, com o intuito de preparar a Conferência Nacional Por uma Educação do Campo, [...] de 1998, em Luziânia/GO”.

A APEC, constituída por movimentos sociais do campo, sindicatos, organizações populares do campo e universidades, vem criando espaços coletivos de ações, práticas educativas que significativamente contribuem na materialidade da Educação do Campo. Contudo, a sua formação tem raízes no envolvimento desses sujeitos coletivos nos encontros, seminários, congressos estaduais e nacionais. O processo de consolidação da APEC deu-se, portanto, a partir de ações coletivas, das práticas específicas de cada organização e instituição envolvida no fortalecimento de processos educativos e da luta junto aos povos do campo. Outra característica a ser destacada tem sido sua capacidade de diálogo com o Estado, com os governos paranaenses. Como espaço político, a APEC relaciona-se com o Estado enquanto sociedade civil organizada, participando nos processos de elaboração de políticas e ações para a Educação do Campo no âmbito estadual (GEHRKE, 2014).

A partir do tensionamento e diálogo por parte das organizações e movimentos sociais populares do campo com o governo estadual, foi criada, em 2003, a Coordenação da Educação do Campo, vinculada à Secretaria de Estado da Educação do Paraná. Esse espaço ensejou fecundos diálogos com a sociedade civil na produção de políticas públicas educacionais para o campo, bem como na afirmação da Educação do Campo no âmbito estadual. As ações governamentais, somadas à atuação das organizações e movimentos sociais populares do campo, constituíram-se em fortes contribuições à Educação do Campo, devido à conjuntura política estadual e nacional favorável, com governos alinhados ao campo político mais progressista e popular, ou seja, sob a presidência de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010) e Dilma Vana Rousseff (2011-2016), e do governador Roberto Requião (2003-2010). Embora esses governos não tenham conseguido atender a totalidade das demandas e reivindicações da Educação do Campo, reconhece-se os avanços históricos significativos para os povos do Campo, das Águas e das Florestas no Brasil.

Contudo, após o ano de 2011, até o contexto atual, no estado do Paraná, com a entrada de um governo alinhado a uma política de direita, neoliberal, isto é, os governadores Carlos Alberto Richa (2011-2018) e Carlos Roberto Massa Júnior (2019-atual), a Educação do Campo tem passado por mudanças drásticas, reduzindo-se a projetos que não atendem as demandas das comunidades e territórios, com uma ação apequenada, esvaziada, um total abandono da educação dos povos do campo, das águas e das florestas. Tal posição é o reflexo de grupos políticos que assumiram o governo, no entendimento de que à classe trabalhadora, nitidamente, cabe servir e obedecer aos mandos das elites estaduais, nacionais e internacionais.

Outro campo importante na construção da EdoC, no estado do Paraná são os grupos de pesquisa apresentados no Quadro 1, resultante do levantamento realizado e desenvolvido a partir da plataforma de busca no diretório de grupos no CNPq, com o descritor “Educação do Campo”. Ressaltamos a possibilidade de não terem sido identificados outros grupos atuantes do estado do Paraná, que são referência histórica no processo de produção de conhecimentos a partir da educação e escola do campo, visto que definimos somente esse descritor.

Esses grupos, através das suas investigações, têm contribuído significativamente com a produção do conhecimento e com o fortalecimento da Educação do Campo. Além dos grupos de pesquisa, destacamos dois núcleos que historicamente realizam pesquisas relacionadas e/ou a partir da EdoC, a saber, o Núcleo de Pesquisa em Publicações Didáticas (NPPD), da Universidade Federal do Paraná, e o Núcleo de Pesquisa em Educação do Campo, Movimentos Sociais e Práticas Pedagógicas (NUPECAMP), da Universidade Tuiuti do Paraná.

Quadro 1 Grupos de pesquisa que investigam a Educação do Campo no estado do Paraná 

INSTITUIÇÃO DE ENSINO SUPERIOR GRUPO DE PESQUISA
Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO) Campo, Movimentos Sociais e Educação do Campo
Ensino, Docência e Identidade
Universidade Estadual de Londrina (UEL) Educação do Campo e Ensino de Geografia
Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG) Movimentos sociais, educação do campo e práticas pedagógicas
Trabalho, Educação, Escola Pública e Educação do Campo
Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE) Formação Humana, Educação e Movimentos Sociais Populares
Grupo de Pesquisa em Políticas Sociais
Representações, Espaços, Tempos e Linguagens em Experiências Educativas
Universidade Estadual de Maringá (UEM) Grupo de Estudo e Pesquisa em Políticas Educacionais e Gestão Escolar
Grupo de Estudo Multidisciplinar dos Processos de Ensino e Aprendizagem
Grupo de Estudos e Pesquisa em Educação Indígena no Paraná
Universidade Federal do Paraná (UFPR) Coletivo de Estudos sobre Conflitos pelo Território e pela Terra (ENCONTTRA)
Núcleo de Pesquisa em Educação: Campo, Trabalho, Práxis e Questão Agrária (NALUTA)
Grupo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas para o Desenvolvimento
Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR) Educação Matemática do Campo - Estudos e Pesquisas
Educação, Trabalho e Formação Profissional
Gênero, Juventude e Cartografias da Diferença
Representações, Ambiente e Sociedade
Instituto Federal do Paraná (IFPR) Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa em Educação a Distância (NIPEAD)
Universidade Tuiuti do Paraná (UTP) Práticas pedagógicas: elementos articuladores

Fonte: Paula (2019, p. 91).

Diante desse cenário de conquistas, resultado de organização, diálogo e enfrentamentos, a Educação do Campo vai se consolidado e ampliando seu espaço na sociedade brasileira. Ocupando diferentes territórios, as escolas do campo, das águas, das florestas e as universidades brasileiras, através das graduações e programas de pós-graduação, ou com cursos específicos de média ou curta duração proporcionam acesso ao conhecimento aos diferentes sujeitos do campo no sentido da garantia de direitos.

Construindo possibilidades da pesquisa em educação a partir da abordagem etnográfica

Processos educativos de natureza transformadora da realidade pressupõem diálogo com as diferentes formas de compreender e explicar o mundo, de viver a realidade na qual os sujeitos estão inseridos, em diálogo com as demandas do território. Deve-se ressaltar que a escola hoje atuante na ilha já é uma conquista, porém ainda não é a escola da/na ilha preconizada nas legislações, muito menos pelos seus sujeitos. Esta escola não se produz no sentido de separar-se da concepção de escola do campo, mas sim para fortalecer este movimento maior que é a Educação do Campo, na direção de construir o que estamos identificando como escola do campo das/nas ilhas ou mesmo de escola da/na ilha, pois independentemente das nomenclaturas, é o significado que a educação e a escola têm para as comunidades.

Para compreender essa realidade escolar, assumimos uma trajetória metodológica da pesquisa, discutindo a necessidade de estudos que avancem no desvelamento da realidade, articulados com a teoria social, cujas operações resultam numa representação mental do concreto, elaborada a partir da intuição e da percepção. O concreto seria, portanto, o que Marx (2011, p. 54) denomina de “a síntese de múltiplas determinações”, ou a unidade da diversidade. “Por essa razão, o concreto aparece no pensamento como processo de síntese”, ou seja, como ponto de partida do ato de pesquisar (MARX, 2011, p. 54).

Na sequência, trazemos elementos da abordagem etnográfica na educação, indicamos características de uma etnografia latino-americana e situamos o processo de delimitação do campo empírico e do levantamento de informações, que culminaram nas elaborações descritivas e reflexivas do trabalho de campo realizadas na pesquisa.

Abordagem de natureza etnográfica na pesquisa em Educação do Campo2

Ao recorrer aos pressupostos da teoria social, a pesquisa em educação amplia sua compreensão da conjuntura e da estrutura social. Indicamos que os elementos da teoria social demarcam uma necessidade de apropriação das categorias e conceitos-chave para a compreensão da realidade. Explicar e compreender a vida social é, proporcionalmente, o mesmo para a vida nas escolas, nos territórios onde as comunidades resistem aos golpes do capital. Assim, coerentes com o entendimento da pesquisa articulada à teoria social, concordamos que, “[...] as práticas de pesquisa são determinadas tanto pelo contexto social e histórico quanto pelas referências teóricas que orientam conceitos e pressupostos científicos. Isso porque, como produtos da vida social, as ciências seguem a evolução dessa vida em constante renovação.” (BUFREM, 2013).

A pesquisa exige ao pesquisador(a) ter a realidade concreta como ponto de partida, a demanda e olhares deveriam ser a partir dos anseios - no caso da Educação do Campo, necessidade dos povos do campo, das águas e das florestas -, um tipo de pesquisa que tenha a práxis e o engajamento social como princípios em todo processo. Neste sentido, também há que se observar a questão ética da pesquisa, “[...] ela tem a ver não somente com a postura em relação aos direitos autorais e anonimato dos sujeitos observados ou entrevistados [...]. [...] nos remete à exigência do estado de vigilância epistemológica, tensão entre o saber e o não saber, uma atitude de constante repensar.” (BUFREM, 2013). Essa dimensão é essencial em todo processo de pesquisa, e em trabalhos realizados nas comunidades que apresentam características sociais, culturais e econômicas específicas, com seus costumes e tradições. Assim, a ética deve ser um princípio permanente, conforme orienta a Organização Internacional do Trabalho (OIT), que trata da Convenção nº 169 sobre povos indígenas e tribais, e Resolução referente à ação da OIT (ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO, 2011). Deste modo, a atenção e o respeito ao território e à comunidade, ou seja, ao “outro”, é um princípio de trabalho.

Buscando o diálogo com o “outro”, antes da inserção no campo empírico nos aproximamos da comunidade, participando de reuniões com a associação de moradores para apresentarmos os objetivos da nossa pesquisa, tirarmos eventuais dúvidas e nos colocarmos à disposição para o diálogo em todo processo. Também, em determinada reunião da associação, solicitamos a discussão em relação à autorização da nossa inserção na comunidade; a questão foi debatida e aprovada pelos presentes, e a fim de documentar a liberação, pela comunidade, da realização da pesquisa, pedimos que os presentes na reunião assinassem uma carta de aceite coletiva.

Nesse sentido, para entendermos o significado da educação e da escola para a comunidade diante de um território específico, o enfoque etnográfico oferece elementos teóricos e metodológicos importantes, visto as suas possibilidades de inserção e desvelamento do cotidiano. A etnografia como abordagem de pesquisa científica tem suas raízes no campo das Ciências Sociais, mais especificamente na Antropologia. A escrita etnográfica tem como precursores Bronislaw Malinowski e Franz Boas, dentre outros importantes autores, como Clifford Geertz, James Clifford, Paul Rabinow (ROCHA; ECKERT, 2008).

Ao optarmos pela realização de uma investigação no campo educacional, a partir de uma abordagem de pesquisa de natureza etnográfica, também nos apoiamos em Garcia (2011), sobre a importância do diálogo entre História, Sociologia e Antropologia, principalmente para as pesquisas educacionais que trabalham com os conceitos de cultura e cotidiano, as relações com a vida social.

Muitas pesquisas do campo educacional, cuja contribuição para o processo de conhecimento significou uma superação do que nos pareceu aparente, foram produzidas a partir das análises que se utilizaram do modo de produzir conhecimento a partir da abordagem etnográfica, as quais, de modo geral, nos seus procedimentos teórico-metodológicos, realizaram o diálogo interdisciplinar e se dedicaram a compreender a vida social e a escola olhando para a cultura e para o cotidiano, tais como: Romanelli (2009), André (2011), Dalla-Bona (2012), Teixeira (2014), Chaves (2015), Teuber (2016), Vieira (2018) e Souza (2019).

Esses trabalhos, de natureza etnográfica, no contexto da Educação, e alguns a partir da Educação do Campo, oferecem formas de conhecer procedimentos, caminhos para os processos que assumem realizar pesquisas inspiradas nesta abordagem, além de proporcionar diferentes leituras sobre a diversidade de sujeitos e escolas do campo.

A pesquisa não se restringiu estritamente às orientações do fazer etnográfico específico da pesquisa antropológica, mas se pautou nas pesquisas já citadas, sobre questões relativas ao campo educacional, a partir da abordagem etnográfica de pesquisa. Tampouco buscamos realizar uma transposição direta do método etnográfico para o estudo realizado, mas sim desenvolver um trabalho dentro dos limites e características de uma etnografia no campo educacional. Conforme alerta Garcia (2011, p. 187, grifo do autor), é “[...] relevante lembrar os riscos de transposição direta, para o estudo da escola, das construções feitas pelos antropólogos em outras ‘situações etnográficas’ - entendidas como trabalho de campo [...].”

Na continuidade deste texto, apresentamos os principais elementos relacionados aos procedimentos assumidos na pesquisa, além de trazer fragmentos das informações levantadas junto aos sujeitos participantes/colaboradores a partir das entrevistas e questionários, de modo que possamos demonstrar alguns resultados do trabalho realizado no campo empírico.

Procedimentos, campo empírico e sujeitos participantes/colaboradores da pesquisa

Balizados nos pressupostos de uma etnografia no campo educacional, mais especificamente na Educação do Campo, apresentamos e descrevemos reflexivamente os procedimentos e técnicas para a produção dos dados a partir da observação participante, registro no caderno de campo, fotografias, questionários, entrevistas e estudo documental.

Como estratégia de delimitação do campo empírico e do próprio objeto de pesquisa, utilizamos um elemento que é característico da etnografia, isto é, uma inserção exploratória, que Moreira e Caleffe (2006, p. 71) denominam de um processo com o objetivo de “[...] proporcionar visão geral, de tipo aproximativo, acerca de determinado fenômeno. [...] é uma etapa prévia indispensável para que se possa obter explicações científicas”. A fim de focalizar o campo empírico, realizamos a inserção em quatro comunidades.

Isso posto sobre os procedimentos de pesquisa, definimos as comunidades e instituições escolares para realizar o estudo exploratório, ou seja, escolas estaduais do campo localizadas nas ilhas, no município de Guaraqueçaba, Paraná. Para definição da comunidade de inserção, foram realizadas reuniões com gestores de quatro escolas, análise de documentos e visita às comunidades. As instituições e comunidades3 visitadas foram: a) Colégio Estadual do Campo Guanandi, localizado na comunidade Vila Guanandi, na Ilha dos Guanandis; b) Colégio Estadual do Campo Jerivá, localizado na comunidade Jerivá, na Ilha dos Guanandis; c) Colégio Estadual do Campo Caixeta, localizado na comunidade Vila Caixeta, na Ilha das Caixetas; e d) Colégio Estadual do Campo Ilha da Pescada, localizado na comunidade Ostra, na Ilha da Pescada.

Ao findar a etapa exploratória e definir o campo empírico, isto é, a Ilha da Pescada, centramos forças no trabalho de campo, momento da pesquisa de aproximação com a realidade concreta, de interação com a comunidade. A imersão no cotidiano se deu de forma gradual, às vezes lenta, e por muitas oportunidades, intensa. A grande preocupação destas inserções sempre foi em relação ao olhar, o escutar para melhor conhecer a dinâmica da vida. A inserção na vida da comunidade tornou, a cada ida e vinda, maior o desejo de conhecê-la, vivenciá-la e de buscar descobrir o aparente desconhecido.

Após a definição do campo empírico, nos inserimos na comunidade escolhida e intensificamos as idas, enfrentando algumas vezes um mar agitado e cheio de surpresas, fonte de muito conhecimento e vivência do cotidiano de quem vive e trabalha em uma ilha, experiências que ampliaram nosso olhar de pesquisadores.

Para o levantamento de dados, aplicamos os questionários aos moradores(as) da ilha que cursam a graduação na Licenciatura em Educação do Campo da Universidade Federal do Paraná (UFPR) do Setor Litoral, os quais, na sua maioria, são ex-alunos(as) do Colégio Estadual do Campo Ilha da Pescada. O questionário possibilitou levantar informações sobre a relação entre a educação e a comunidade, o papel da escola na trajetória escolar e universitária e o envolvimento deles(as) na elaboração da Proposta Pedagógica das Escolas das Ilhas.

Também foram realizadas entrevistas com lideranças, pessoas que moram a mais tempo na comunidade, na perspectiva de identificar qual a compreensão deles da relação entre comunidade e educação, o papel da escola na comunidade e a importância dos conhecimentos tradicionais na formação da população que vive na ilha.

Para contribuir com a produção dos dados, elaboramos um questionário para os Elaboradores(as) da Proposta Pedagógica das Escolas das Ilhas do Litoral Paranaense (PARANÁ, 2009), desenvolvido em uma plataforma on-line no formato de formulário e enviado via e-mail a todos(as) envolvidos(as) no processo de elaboração da proposta, a saber, professores(as) das escolas das ilhas, gestores(as) e técnicos(as) da Coordenação Estadual da Educação do Campo no Paraná e professores(as) universitários que estavam no grupo de construção da Proposta.

Além dos questionários e entrevistas, ampliamos a intensidade do trabalho de campo, que foi realizado com maior frequência nas comunidades Ostra e Marisco, visto ser onde a maioria dos alunos(as) do Colégio Estadual do Campo Ilha da Pescada moram. Na comunidade Ostra estivemos bem inseridos, pois é onde está construído o prédio do colégio. Salientamos que não foi realizado trabalho de campo nas dependências da escola (observação de aulas, conversa com os estudantes e docentes), somente dialogamos com os/as moradores(as) da ilha, observamos a comunidade, o seu cotidiano, a organização social, a relação com a escola e a educação.

Também realizamos o levantamento de informações na base de dados do Catálogo de Teses e Dissertações da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), que possibilitou descreve e dialogar com as principais pesquisas que tinham aderência com a nossa. Este levantamento foi fundamental no processo de delimitação do campo empírico e da seleção dos instrumentos de produção de dados.

Os dados oriundos das informações coletadas através dos questionários e entrevistas e do trabalho de campo permitiram conhecer mais características do contexto das ilhas, para além das aparências, quando percebemos as contradições, vulnerabilidades, desafios e limites nas comunidades. Ao experienciar o campo empírico, percebemos os avanços com os processos realizados pela escola dentro das comunidades, bem como a importância da comunidade se inserir na vida da escola. Evidenciamos que a aproximação e o diálogo entre os conhecimentos tradicionais (comunidade) e os conhecimentos científicos (escola) podem fortalecer os significados da existência da escola na vida das comunidades.

Contribuições dos sujeitos participantes da pesquisa: análise e resultados dos achados da pesquisa

Com o intuito de socializar elementos mais específicos do trabalho de campo, apresentamos fragmentos das informações e análises oriundas dos questionários e entrevistas, realizadas com os sujeitos/participantes da pesquisa.

Para fins de organização e tratamento das informações coletadas para produção de dados, realizamos o processo de codificação dos sujeitos/colaboradores(as).4 Os participantes foram categorizados em dois grupos distintos, o primeiro denominado “Povos das Águas”, composto por dois subgrupos: os “Caiçaras”, que foram codificados com nomes iniciados com a letra “C” - Cambucica, Camboatá, Cambucá e Crindiúva - e colaboraram por meio de entrevista, e o subgrupo “Pescadores(as)”, com nomes iniciados com a letra “P” - Parati, Paru, Panã, Passuaré, Pitanga e Pindaúva -, que responderam um questionário.

O outro grupo foi constituído por professores(as) da educação básica e do ensino superior, chamados de “Elaboradores(as)”, que responderam um questionário de forma virtual. Estes foram codificados com nomes iniciados com a letra “E” - Embaúba, Embira, Embiruçu, Estopeira, Estrelinha e Estalador. Neste grupo, todos(as) são professores(as), têm entre 38 e 55 anos de idade e atuam e/ou atuaram na educação básica e no ensino superior. Todos(as) informaram ter curso de pós-graduação e entre 12 e 25 anos de experiência na educação básica e/ou superior. Nas suas respostas demonstraram forte compromisso com a educação, de modo que continuam atuando na educação pública.

Os participantes moradores(as) na Ilha da Pescada, denominados “Povos das Águas”, quase todos se identificam como caiçaras e pescadores(as) artesanais, sugerindo a autoidentificação de forma explícita, porém mais individualizada, como nativos das ilhas, caiçaras, pescador e/ou pescadora artesanal. Na sua maioria, os sujeitos das ilhas têm sua principal atividade de trabalho, ou mesmo secundária, vinculada à pesca artesanal. O grupo “Pescadores(as)” tem uma característica singular, o que nos levou a convidá-los a colaborar com este estudo, isto é, todos são alunos e alunas do curso de Licenciatura em Educação do Campo - Ciências da Natureza (LECampo), da Universidade Federal do Paraná (UFPR) - Setor Litoral, e na sua maioria estudaram no colégio da comunidade localizado no campo empírico da pesquisa.

O que dizem os dados? Relação entre escola e a comunidade

Muitas vezes não é reconhecido e valorizado o conhecimento tradicional e ancestral produzido dentro do cotidiano, da memória e da história de determinado território, mais especificamente, conforme aponta Almeida (2008), território tradicionalmente ocupado. Conhecimentos são um bem cultural fundamental para a existência dessas comunidades, enquanto garantia dos seus modos de vida. Diante deste elemento fundamental para as comunidades, apresentamos fragmentos das informações obtidas através das entrevistas,5. Ao perguntamos para Crindiúva e Cambucica, respectivamente, enquanto sujeitos/colaboradores(as) do subgrupo Caiçaras, sobre a relação entre escola, comunidade e conhecimentos tradicionais da cultura local, os mesmos responderam que:

[...] às vezes algumas pessoas ensinam sobre a cultura, né?? Mas eu acho que também, se nós que somos nativos de uma ilha, a gente já traz ela, a cultura da gente mesmo, no nosso ser, no nosso dia a dia mesmo. Porque a gente já nasce com aquilo, a gente tem, então a gente tenta resgatar aquela cultura que a gente tem, a gente nunca deixa se perder, em alguma coisa na nossa vida sempre a gente... a gente não deixa se perder isso. Tipo assim, a gente, como eu aqui, a gente gosta de buscar uma lenha, cortar, fazer um fogo, cozinhar em fogão de lenha, ou mesmo plantar uma rocinha ali, de tirar o seu inhame, sua batata. Quer dizer que são culturas que a gente nunca, nunca se esquece, e isso a gente tenta passar de pai para filho, vai indo de geração em geração e nunca se acaba. Então eu acho que na escola eles tentam passar isso, mas eu acho que já vem de família em família, vem da gente. (PAULA, 2019, p. 163).

Pelo que eu vejo aqui na nossa ilha, isso ainda não tá, tá faltando, tá deixando a desejar. Eu acho que não tão aprendendo a cultura, ainda aquilo que é de suma importância, não tão. Acho que ainda tem que melhorar os professores, não sei se é o professor que não passa, o aluno que não quer aprender, mas ainda eu creio que precisa ter mais uma melhorada nesse sentido aí, na minha opinião. (PAULA, 2019, p. 163).

As respostas indicaram que, de alguma forma, a escola considera esses conhecimentos para as práticas educativas realizadas pelos docentes, contudo há certa insegurança se de fato isto acontece, já que um dos sujeitos questiona indiretamente a formação dos/as professores(as). A narrativa sugere uma preocupação, no sentido de que para a escola da/na ilha é necessário um docente que conheça a realidade, situação que também é expressa nas respostas de Camboatá e Cambucá a seguir.

Ensina, né, da escola sai tudo, né. Tudo que é bom vem da escola, ali, né. Acho que sim, antes tinha muito professor daqui, agora que vem muito da cidade, ele não tem muito a raiz daqui, mas eles, com os próprios alunos, vão aprendendo, né. (PAULA, 2019, p. 164).

Eu acho que tem que ensinar, né. Hoje acho que não estão aprendendo sobre isso na escola, hoje meu neto, minha neta, parece que não estão ligados nestas coisas. Hoje, para nós, tem muito a questão da prática, na escola tem que trazer estas questões. (PAULA, 2019, p. 164).

Percebemos nas falas dos sujeitos que a escola pode assumir essa tarefa de diálogo com os conhecimentos que permeiam a vida da comunidade, pois, através da instituição escolar, que se faz tão importante para as comunidades, os sujeitos podem se fortalecer a partir da valorização e reconhecimento destes conhecimentos tradicionais, a fim de contribuírem com os processos educativos experienciados na escola. Contudo, estes conhecimentos vêm sendo desvalorizados e não reconhecidos devido a narrativas, pensamentos preconceituosos e discriminatórios, demonstrando sinais de não aceitação da diversidade de pensamento e de distintas formas de conceber o mundo, as pessoas, a natureza, o próprio conhecimento em si, enfim, desrespeito à pluralidade de cosmovisões.

Um importante documento utilizado para compreender a educação escolar nas ilhas foi a Proposta Pedagógica das Escolas das Ilhas do Litoral Paranaense, elaborada coletivamente e publicada em 2009 (PARANÁ, 2009). A Proposta tem como uma das suas motivações a superação de um modelo de escola posto às populações que moram nas ilhas, ou seja, de uma escola que não tinha autonomia pedagógica e administrativa e não atendia a demanda da comunidade.

Assim, diante de um histórico contexto de abandono e, consecutivamente, exclusão e negação de direitos por parte do Estado, as comunidades e escolas das ilhas do litoral paranaense que não tinham (e/ou não têm?) atenção na implementação de políticas públicas educacionais (de Saúde? Lazer? Saneamento Básico? Transporte?) adequadas à sua realidade, juntamente com outros sujeitos, pensaram e elaboraram coletivamente uma Proposta que, mesmo com limites, pudesse atender as suas demandas e anseios.

Conforme o documento (PARANÁ, 2009, p. 8), o projeto “[...] é resultado de uma construção coletiva que envolveu membros da Coordenação da Educação do Campo [...], do Núcleo Regional de Educação de Paranaguá, professores da Universidade Federal do Paraná - Litoral e coordenadores das Escolas das Ilhas [...]”. No que se refere à elaboração da proposta, podemos verificar nas respostas dos “Elaboradores(as)” um intenso processo coletivo com distintos sujeitos, conforme resposta da participante da pesquisa denominada Estrelinha:

O processo de construção do PPP das Escolas das Ilhas ocorreu pela necessidade de qualificar o processo de escolarização e de formação de professores que estavam atuando em escolas públicas municipais e estaduais que estavam atendendo comunidades litorâneas historicamente invisibilizadas. Pescadores Artesanais, filhos de Caiçaras, de populações de Manguezais, Quilombolas, entre outros [...] organizamos uma equipe de elaboração que compreendia a participação de representações das escolas, da Universidade Federal do Paraná (Setor Litoral) e da Coordenação de Educação do Campo da Secretaria de Estado da Educação (SEED-PR). Realizamos um conjunto de reuniões de elaboração, trabalhos de campo e diálogo com lideranças das comunidades. [...] Muito embora tenhamos desencadeado um processo intenso de formação continuada de professores e de elaboração de uma proposta pedagógica voltada às Escolas das Ilhas do Litoral, após a sua aprovação no âmbito do Conselho Estadual de Educação, a equipe não acompanhou seu processo de implementação. Não temos como saber se houve ou não ações de implementação, assim como acompanhamento e avaliação por parte do CEE-PR. (PAULA, 2019, p. 171).

A posição desse participante expressa as motivações para a elaboração da proposta, que visava qualificar os processos de ensino e avançar na formação dos professores(as); demonstra também a preocupação de realizar um trabalho capaz de articular os diferentes conhecimentos, os científicos e os tradicionais, oriundos das comunidades. No entanto, deixa explícito que não houve possibilidade de a equipe participar dos processos de implementação, acompanhamento e avaliação.

A não continuidade da equipe gestora desse processo que atuava na Coordenação da Educação do Campo, em virtude da mudança de governador no ano de 2011, foi uma das maiores justificativas de o projeto não ter avançado conforme planejado, considerando-se o alinhamento às políticas neoliberais do grupo que assumiu o estado do Paraná na época (e até os dias de hoje), o que necessariamente implica políticas de educação antagônicas às do projeto anterior, principalmente no que se refere à Educação do Campo.

Todavia, outro elemento a se destacar na não garantia da continuidade dos processos de articulação da efetivação do PPP das Escolas das Ilhas talvez seja a não participação ativa da comunidade nesta construção, visto que poucas foram as reuniões realizadas nas comunidades, bem como participaram somente algumas lideranças e diretores das escolas, porém este fato não deve reduzir a importância da Proposta, mas apontar caminhos para sua melhoria.

A Proposta Pedagógica das Escolas das Ilhas (PARANÁ, 2009), após quase dez anos de caminhada, é o atual documento que visa mediar e orientar a prática docente. Compreendemos que a escola da/na ilha, mesmo que diante dos desafios políticos e pedagógicos no estado do Paraná e no Brasil, enquanto educação pública, vem resistindo, forjando novas experiências escolares. Estas escolas têm buscado realizar práticas que tenham significado e sentido transformador na vida da comunidade. Neste sentido, destacam-se várias parcerias entre as comunidades, as escolas e as instituições públicas de ensino superior, com ações e eventos contribuindo para a garantia de processos qualificados no âmbito da luta pedagógica e política das escolas. Desde ações que visam a formação docente, tanto inicial, no caso dos cursos de Licenciatura em Educação do Campo por área do conhecimento, quanto na formação continuada, participando das semanas pedagógicas, reuniões locais e regionais que tratam da educação escolas nas ilhas. No aspecto político, as parcerias têm sido elemento fundamental no processo organizativo das comunidades para resistir aos ataques do Estado, que visa fechar turmas e, na sequência, as próprias escolas.

Apresentamos a seguir a posição dos(as) moradores(as) da ilha do grupo “Pescadores(as)”, mais especificamente Parati e Paru, sobre a importância da escola nas suas vidas e para a comunidade. As respostas indicam que esta instituição está para além da aprendizagem de conteúdos, mas viabiliza experiências formativas que contribuirão na constituição do ser humano como participante do conjunto da própria comunidade no seu cotidiano.

[...] tenho uma visão de que a relevância da escola na minha vida, [...] é de formação como cidadão e tenho uma satisfação em servir de exemplo para os jovens que procuram melhorar sua identificação com o mundo, ocupando seus espaços e sua identidade como cidadãos. A formação acadêmica me fez perceber a necessidade de aprofundar o conhecimento para ajudar a comunidade a garantir e evidenciar seus direitos. (PAULA, 2019, p. 198).

A escola é a entrada para conhecer novos caminhos de viver uma atividade nova. Por isso considero que a profissão de professor é a principal para a formação de outras profissões. A importância da escola na vida de uma pessoa é de extrema importância, e isso é motivador por ser um ambiente onde ensina e mostra quem somos de verdade, ela nos traz para um novo mundo, o mundo onde podemos sonhar e conquistar o que sonhamos. Não dá pra definir a importância desse espaço onde leva a ser pessoas capacitadas para enfrentar a vida futuramente. (PAULA, 2019, p. 198).

A valorização da escola é evidenciada nas falas de Panã e Pindaúva, que afirmam o significado da escola para a vida dos sujeitos. Destaca-se a importância do acesso ao conhecimento, o quanto tem permitido compreender melhor a sociedade, e demonstra o reconhecimento e construção das suas identidades enquanto sujeitos que vivem e trabalham na ilha.

Muito significativo, em todos os aspectos permite ampliar o conhecimento acadêmico e profissional, permite uma visão ampla da sociedade e de seu contexto e faz com que seja possível lutar pelos direitos comunitários e tornar partícipe desses processos. Fundamental também seja no aspecto educativo (científico), seja como fomentadora de renda (geradora de trabalho), possibilitando um maior desenvolvimento econômico da comunidade. (PAULA, 2019, p. 199).

Eu percebo a escola como uma facilitadora, em vários aspectos que levam a compreender o convívio nos ambientes. Pois é ela que vai formar a identidade dos sujeitos, que irá retratar os conhecimentos que permeiam as suas realidades. A educação só será importante quando for voltada às práticas, aos saberes da realidade, envolvendo cada vez mais as pessoas, trabalhando a coletividade, pois os sujeitos precisam saber de seus direitos, sua existência. (PAULA, 2019, p. 199).

Na compreensão dos sujeitos, representada pelas reflexões expostas, também é reforçada a importância da escola na formação humana, ampliando as suas ações para além do acesso ao conhecimento escolar, científico. Na perspectiva de Arroyo (2014, p. 76), seria viver uma cotidianidade que subverta a ordem da escola do capital:

Quando a cotidianidade do viver é subvertida, se subvertem identidades, memórias, culturas, saberes, porque se subvertem as ações, experiências coletivas e as relações sociais que as informam e dão significado. Um padrão de poder/saber/destruição das bases do viver tão específico e tão persistente em todas as empreitadas colonizadoras e incorporado da pedagogia capitalista.

Entendemos a escola enquanto lugar de ensejar diferentes experiências, conforme as dinâmicas do cotidiano, que estabeleça, de acordo com Freire (1989), leituras e compreensões de mundo, olhando para o local de modo a relacioná-lo com a totalidade, de tal forma que tenha como horizonte a transformação da sociedade que vivemos. Nesse contexto escolar, reivindicamos a valorização do(a) professor(a) na evolução da prática de leitura na escola, ampliando o seu domínio e aprofundando os seus níveis. A escola na comunidade não é isolada das demais relações, situações e contextos presentes na sociedade; ela é reflexo deste mundo de maneira a conformar-se, adaptar-se, ou contrapor-se, transformar-se, lutar para mudar a si e o mundo.

Conforme Rockwell (1995), no que se refere às funções docentes, estas perpassam uma cultura institucional, de um determinado tempo histórico, embora, em muitas práticas pedagógicas, se materializem ações tradicionais de reproduzir o currículo oficial. Essa autora destaca que na escola são possíveis ações alternativas, de resistência àquelas definidas em nível oficial. Neste sentido, podemos fazer um paralelo entre as reflexões de Rockwell (1995) e os conteúdos escolares propostos pela Proposta Pedagógica das Escolas das Ilhas do Litoral Paranaense (PARANÁ, 2009). A Proposta buscou, numa perspectiva contra-hegemônica, articular os conteúdos oficiais, isto é, os conteúdos estruturantes já orientados nas Diretrizes Educacionais do Estado do Paraná, com Eixos Temáticos, ou seja, questões vinculadas à realidade das comunidades das ilhas, além de pensar uma organização por áreas do conhecimento. Os “Elaboradores(as)” da Proposta, a partir das suas respostas, apresentam os desafios desta articulação e ressaltam a sua importância, visto as possibilidades de atender a uma realidade específica. Todavia, ainda dentro dos limites, buscou-se estabelecer diálogos com a comunidade, mesmo que seja uma Proposta gerada a partir do âmbito da estrutura governamental.

Diante do exposto, entende-se que seria estratégico, para além das mazelas, dos interesses do Estado, refletir as potencialidades da escola enquanto transformadora conforme afirma Rockwell (1995), superando a invisibilização por parte da institucionalidade, a qual tende a negar diversas práticas transformadoras gestadas, realizadas no cotidiano das próprias escolas e que nem sempre ou quase nunca são aceitas pelo Estado. Como é o caso de escolas que têm parcerias com movimentos sociais e populares, as que tentam adequar suas propostas pedagógicas de forma autônoma, ou, minimamente, o calendário letivo. Enfim, as escolas que extrapolam os limites das orientações e autoritarismos das gestões dos núcleos e secretarias de educação.

Há que se continuar caminhando: considerações finais

Ao discutir as relações entre a Educação do Campo, o Território e a escola da/na ilha, este artigo teve como objetivo apresentar a trajetória, os resultados e as discussões de uma pesquisa mais ampla realizada no contexto da Educação do Campo, a partir de uma comunidade tradicional do município de Guaraqueçaba no litoral paranaense, que resultou na tese Relações entre Educação do Campo e o território: significados da escola da/na ilha para uma comunidade tradicional de Guaraqueçaba no litoral do Paraná (PAULA, 2019). Evidenciamos a seguir as principais considerações da referida tese, as quais foram produzidas a partir das discussões que constituíram este texto. No entanto, reconhecemos que o objetivo proposto para este estudo foi alçando, visto que apresentamos brevemente a construção histórica da Educação no Brasil e no estado do Paraná, enquanto movimento inacabado e em constante movimento; o uso da abordagem etnográfica nas pesquisas em Educação do Campo; as contribuições dos sujeitos/participantes para a produção dos dados da tese; e as principais análises e resultados da pesquisa, com a exposição de fragmentos das entrevistas e questionários e das análises de documentos.

E o fizemos apoiados na realidade, no concreto do campo empírico da pesquisa, tanto do ponto de vista da particularidade do território, ou seja, as ilhas e suas contradições, quanto da relação desta especificidade com uma totalidade, ou seja, a comunidade onde realizamos a pesquisa, inserida no mundo, em uma sociedade frente a um tempo histórico específico, que marca uma conjuntura e estrutura singular para este tempo que vivemos. Experienciar o ato da pesquisa, que resultou na tese e neste artigo, é, e continuará sendo, uma vivência plena de aprendizados para além do ato de pesquisar em si. O deslocamento até as comunidades, o ir e vir até as ilhas, o encontro com as pessoas que vivem e trabalham nas comunidades nas quais nos inserimos e cada olhar no território, neste lugar de vida, foram motivos de inspiração, de formação para além da dimensão acadêmica, uma transformação na nossa constituição como seres humanos.

No desenvolvimento da pesquisa, principalmente a cada ida a campo, ou seja, inseridos na realidade concreta, confirmamos as contribuições dos estudos etnográficos na perspectiva latino-americana, mais especificamente nas pesquisas em Educação do Campo. Ao sermos orientados por essas contribuições, entendemos que o/a pesquisador(a) deve priorizar no seu olhar os aspectos culturais, políticos, econômicos e sociais nos processos de investigação. Assim, foi possível inferir que a Educação do Campo, por mais que tenha seu olhar geral para a luta dos sujeitos do Campo, das Águas e das Florestas, tem se constituído e se fortalecido a partir das lutas específicas de cada contexto, no caso da nossa pesquisa, das comunidades tradicionais localizadas nas ilhas, ou seja, em grande parte formada por pescadoras e pescadores artesanais e caiçaras. Outro elemento importante no processo de consolidação da EdoC é o reconhecimento do território na produção e resistência do modo de vida, da dimensão cultural e política das comunidades.

Com o estudo dos documentos oficiais podemos concluir que o projeto de Educação do Campo no estado do Paraná é pioneiro e referência nacional, pois se posiciona com a classe trabalhadora, por mais que ele não tenha conseguido envolver, de modo mais intenso, a participação dos sujeitos do campo, questão que se justifica dada a conjuntura, no seu aspecto mais amplo. Importa ressaltar que tal participação tornou-se um pouco limitada em virtude de ser um documento originado do Estado, não oriundo das entranhas da comunidade, do movimento social, por mais que o desejo de ouvir os sujeitos estivesse presente durante o processo postulado pelo próprio Estado, conforme relato dos Elaboradores(as) da Proposta.

A pesquisa revela a importância desses documentos na construção da escola do campo, principalmente a Proposta Pedagógica das Escolas das Ilhas do Litoral Paranaense (PARANÁ, 2009), na busca pela superação do histórico abandono das comunidades e escola, visando a um documento que, mesmo com limites, pudesse atender a realidade dos sujeitos. Mesmo com seus desafios para a prática docente, a proposta deve ser vista como um movimento ousado, no sentido de produzir experiências em Educação do Campo alinhadas com a ideia freireana do “inédito viável”.

Esperamos que as reflexões explicitadas possam contribuir com a continuidade de novas pesquisas e ações transformadoras a partir da Educação do Campo, e, de modo particular, nos territórios tradicionalmente ocupados por pescadoras e pescadores artesanais e caiçaras do litoral paranaense. As posições defendidas não pretendem ser verdades absolutas, mas sim uma leitura possível, a partir de um chão específico, de uma determinada realidade, inserida em um contexto social, cultural, político, econômico e ambiental singular.

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1O artigo apresentado é oriundo de uma pesquisa de doutorado em Educação, realizado no Programa de Pós-Graduação em Educação do Setor de Educação na Universidade Federal do Paraná (UFPR), que resultou na tese intitulada Relações entre Educação do Campo e o território: significados da escola da/na ilha para uma comunidade tradicional de Guaraqueçaba no litoral do Paraná (PAULA, 2019).

2No que se refere aos aspectos éticos da pesquisa, mesmo não havendo a obrigatoriedade de submissão ao Comitê de Ética, seguimos como orientação da ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO (2011), que trata da Convenção nº 169 sobre povos indígenas e tribais e Resolução referente à ação da OIT e as regulamentações que tratam do tema no âmbito acadêmico. Esses documentos nos motivaram a participar de reuniões da Associação de Moradores da comunidade, campo empírico da pesquisa, de forma que apresentamos o projeto publicamente e solicitamos uma carta de aceite da comunidade, para legitimar a nossa presença na vida, no cotidiano dos sujeitos colaboradores/participantes da pesquisa, além do uso do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).

3Para preservar a identidade dos sujeitos e de cada lugar visitado, utilizamos nomes fictícios para as comunidades e escolas envolvidas no estudo exploratório. Os nomes escolhidos são de espécies de árvores nativas do litoral brasileiro, bioma Mata Atlântica.

4Para preservar o anonimato dos sujeitos/colaboradores(as), substituímos os nomes verdadeiros por nomes de espécies da flora e fauna da Mata Atlântica.

5A totalidade das discussões e análises do conteúdo das entrevistas e questionários da pesquisa que originou este artigo podem ser acessadas na tese intitulada Relações entre Educação do Campo e o território: significados da escola da/na ilha para uma comunidade tradicional de Guaraqueçaba no litoral do Paraná (PAULA, 2019).

Recebido: 15 de Novembro de 2020; Aceito: 04 de Fevereiro de 2021

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