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Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade

versión impresa ISSN 0104-7043versión On-line ISSN 2358-0194

Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade vol.30 no.61 Salvador ene./mar 2021  Epub 18-Oct-2021

https://doi.org/10.21879/faeeba2358-0194.2020.v30.n61.p267-282 

EDUCAÇÃO DO CAMPO

POLÍTICA CURRICULAR E EDUCAÇÃO DO CAMPO: DISCUSSÕES E PRÁTICAS DE GESTÃO EDUCACIONAL EM TEMPOS DE PANDEMIA

CURRICULUM POLICY AND RURAL EDUCATION: DISCUSSIONS AND EDUCATIONAL MANAGEMENT PRACTICES IN PANDEMIC TIMES

POLÍTICA CURRICULAR Y EDUCACIÓN DEL CAMPO: DISCUSIONES Y PRÁCTICAS DE LA GESTIÓN EDUCATIVA EN TIEMPOS DE PANDEMIA

Gabriela Sousa Rêgo Pimentel*  (UNEB)
http://orcid.org/0000-0002-4278-0573

Simone Leal Souza Coité**  (UNEB)
http://orcid.org/0000-0003-0743-5798

*Pós-Doutorado em Educação pela Universidade Católica do Salvador (UCSal). Doutora em Educação pela Universidade Católica de Brasília (UCB). Professora Permanente do Programa de Pós-Graduação em Educação e Contemporaneidade da Universidade do Estado da Bahia (PPGEduC/UNEB). Universidade do Estado da Bahia. Salvador, Bahia Brasil.E-mail: meg.pimentel@uol.com.br

**Doutora em Educação pela Universidade Católica de Brasília (UCB). Professora Adjunta da Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Professora Colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Ensino da Universidade Federal do Oeste da Bahia (PPGEns/UFOB). Barreiras Bahia, Brasil. Técnica em Assuntos Educacionais da Universidade Federal do Oeste da Bahia (UFOB). E-mail: simonescoite@gmail.com


RESUMO

O objetivo deste artigo é discutir sobre política curricular e Educação do Campo no contexto da educação básica. Apresenta resultado de um estudo que teve como objetivo analisar a percepção dos dirigentes municipais de educação de 14 municípios da região oeste da Bahia sobre o desenvolvimento de atividades de gestão educacional em tempos de isolamento social, provocado pela pandemia da Covid-19.1 Trata-se de uma pesquisa exploratória e documental, abordagem qualitativa e teve como participantes secretários municipais de educação. Para coleta de dados, foi disponibilizado, via ambiente virtual, um questionário, com questões de múltiplas escolhas. Os resultados demonstraram que as ações precisam ser intensificadas na contribuição para a efetividade na atuação da gestão educacional, com vistas ao fomento de práticas pedagógicas inovadoras. Os desafios estão postos para a política curricular. Precisa-se de ações que garantam o adequado funcionamento das escolas públicas. O entendimento é de uma realidade diferenciada vivenciada por escolas públicas do campo e a superação das desigualdades existentes.

Palavras-chave: Política curricular; Educação do Campo; Gestão educacional

ABSTRACT

The purpose of this work is to discuss curriculum policy and rural education in the primary education context. It presents the result of a study that aimed to analyze the perception from municipal education leaders, out of 14 municipalities in the western region of Bahia, on the development of educational management activities in times of social isolation, caused by the Covid-19 pandemic. This is an exploratory and documentary research, in a qualitative approach and there had been the participation of municipal education secretaries. For data collection, a multiple choice questionnaire was available through virtual environment. The results showed that the actions need to be intensified in the contribution for effectiveness in the educational management performance, with a view to promote innovative pedagogical practices. The challenges are set for curriculum policy. Actions are needed to ensure the proper functioning of public schools. The understanding is about a different reality experienced by public schools in the rural areas and the overcoming of current inequalities.

Keywords: Curriculum policy; Rural education; Educational management

RESUMEN

El propósito de este artículo es discutir la política curricular y la educación rural en el contexto de la educación básica. Presenta el resultado de un estudio que tuvo como objetivo analizar la percepción de los líderes educativos municipales, de 14 municipios de la región oeste de Bahia, sobre el desarrollo de las actividades de gestión educativa en tiempos de aislamiento social, provocados por la pandemia de Covid-19. Esta es una investigación exploratoria y documental, con un enfoque cualitativo y contó con la participación de los secretarios municipales de educación. Para la recopilación de datos, se puso a disposición un cuestionario a través de un entorno virtual, con preguntas de opción múltiple. Los resultados demostraron que las acciones deben intensificarse en la contribución a la efectividad en el desempeño de la gestión educativa, con miras a fomentar prácticas pedagógicas innovadoras. Los desafíos están establecidos para la política curricular. Se necesitan acciones para asegurar el buen funcionamiento de las escuelas públicas. El entendimiento es de una realidad diferente vivida por las escuelas públicas en el campo y la superación de las desigualdades existentes.

Palabras clave: Política curricular; Educación rural; Gestión educativa

Introdução

A educação, delineada como direito social fundamental pela Constituição Federal de 1988, configura direito público subjetivo e possui como objetivos o desenvolvimento do indivíduo, a sua preparação para exercitar os preceitos da cidadania, bem como qualificá-lo para o trabalho (BRASIL, 1988). E, regulamentando o processo educativo, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, em seu artigo 1º, estabelece que a educação abrange processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho e igualdade de condições para o acesso e permanência na escola (BRASIL, 1996).

Dessa forma, ao estabelecer a educação como direito público subjetivo, o Estado materializa suas ações e permite a compreensão coletiva do direito e da função social da escola. Com isso, a discussão sobre a Educação do Campo, no nível da Educação Básica, está na agenda de ordem da realidade educacional brasileira. Ela apresenta, como um dos princípios, a cultura como matriz do conhecimento e a vinculação do conhecimento científico à realidade circunscrita, fundamentada nos saberes próprios e no respeito à diversidade da população do campo.

É o reconhecimento do espaço educativo como lugar de conhecimento e de troca de experiências entre os segmentos educacionais. Há de se considerar a importância da educação escolar para o exercício da cidadania, do respeito às diferenças, da universalização do saber, da garantia da justiça social e do diálogo entre todos, cujo protagonismo deve ser a valorização dos processos de interação e de transformação do campo. Entretanto, há de se destacar algumas especificidades e desafios propostos para a política educacional brasileira, no intuito de atender as demandas da Educação do Campo.

Precipuamente, os educadores precisam valorizar a identidade da escola em seus projetos político-pedagógicos, adequando o currículo e as metodologias às necessidades dos educandos e da comunidade do campo. Outro fator é a flexibilização do calendário ao tempo pedagógico, sem prejuízo para as crianças, os jovens e os adultos. Também a política de formação dos profissionais da educação precisa estar condizente com as especificidades da vida no campo, bem como a garantia da inclusão digital, com ampliação de acesso aos aparatos tecnológicos e formação específica para sua utilização como ferramenta pedagógica. Por fim, a práxis pedagógica deve possibilitar o desenvolvimento de uma consciência coletiva sobre a formação humana e as particularidades das comunidades camponesas.

Este artigo tem como objetivo analisar a percepção dos dirigentes municipais de educação dos 14 municípios da região Oeste da Bahia sobre o desenvolvimento de atividades de gestão educacional em tempos de isolamento social provocados pela pandemia da Covid-19,2 seus condicionantes e desdobramentos. No campo da educação, mais de 1 bilhão de estudantes e jovens em todo o planeta estão sofrendo o impacto do fechamento de escolas e universidades devido ao surto da Covid-19, o que representa 87% da população de estudantes no mundo, distribuídos em 165 países (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A EDUCAÇÃO, A CIÊNCIA E A CULTURA, 2020).

O Ministério da Saúde do Brasil editou a Portaria nº 188, de 3 de fevereiro de 2020, declarando Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (BRASIL, 2020b). A partir do panorama aqui apresentado e direcionando o olhar para a realidade local-regional, propôs contextualizar os processos de tomada de decisão das Secretarias Municipais de Educação, no que se refere à Educação do Campo, a partir do contexto de distanciamento social provocado pela Covid-19.

É consenso que a discussão e entendimento sobre as demandas educacionais das comunidades do campo perpassa pela ótica da reflexão e da análise de suas peculiaridades e de seus interesses específicos. Os diagnósticos da Educação do Campo têm apontado como principais questões: a insuficiência e a precariedade das instalações físicas; inadequação de transporte escolar; rotatividade constante de professores; currículo escolar que privilegia uma visão urbana de educação e desenvolvimento; ausência de assistência pedagógica; predomínio de classes multisseriadas; falta de atualização das propostas pedagógicas das escolas rurais; baixo desempenho escolar dos alunos e elevadas taxas de distorção idade-série; baixos salários e sobrecarga de trabalho dos professores; necessidade de reavaliação das políticas de nucleação das escolas; implementação de calendário escolar adequado às necessidades do meio rural (INSTITUTO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS EDUCACIONAIS ANÍSIO TEIXEIRA, 2007).

Com relação à Educação do Campo, o Anuário da Educação Básica 2019 (TODOS PELA EDUCAÇÃO; EDITORA MODERNA, 2019) aponta que 99,3% as crianças e dos jovens de 6 a 14 anos estavam na escola, de um total 5,5 milhões de matrículas. A escolaridade média da população rural é de 9,6 anos de estudo, em contrapartida à população urbana, que é de 11,6 anos de estudos, dois anos a mais. Assim, também, 29,8% das crianças da zona rural possuem nível suficiente de alfabetização em Leitura, enquanto isso ocorre com 47,7% das crianças que estudam na zona urbana. Das escolas da zona rural, 17,9% possuem dependências e vias adequadas a alunos com deficiência ou mobilidade reduzida, enquanto o mesmo ocorre para 44,2% das instituições da zona urbana. Na zona rural, o analfabetismo ainda chega a 17,5%. Da mesma forma, a porcentagem de analfabetos é duas vezes maior para pretos e pardos do que para brancos.

Assim, o direito à educação aos sujeitos do campo não pode ser entendido só na perspectiva da universalização do ensino, mas, sobretudo, na garantia de práticas pedagógicas que promovam o desenvolvimento local e a qualidade social da vida da população do campo. É fundamental valorizar as singularidades da Educação do Campo e como estão inseridas na totalidade do contexto educacional.

Educação do campo e currículo: inquietações e reflexões

Na contemporaneidade, a dinâmica social e os dilemas vivenciados pela humanidade têm provocado alterações com reflexos na educação, deslocando-se do foco que privilegia, exclusivamente, o desenvolvimento das capacidades cognitivas do sujeito para um avanço equilibrado entre a cognição e as diversas dimensões humanas.

De acordo com Coité (2017), é incontestável a confirmação de que a sociedade contemporânea se encontra em transição, marcada por constantes crises, seja no âmbito social, seja no político, econômico ou cultural. Alguns autores destacam que a caracterização superficial de uma crise na educação é resultado da inexistência ou da transformação de forma abrupta nos valores ou pela ausência nos projetos que são de ordem pessoal ou coletiva. Em outra vertente, mudanças de valores e crenças pessoais e culturais sinalizam para uma nova concepção de mundo, em que a valorização do ser humano e do espírito passa a ser a própria essência da vida (MACHADO, 2004; MORIN, 2007).

Na gênese, nos seus objetivos e funções, a educação é um fenômeno social, diretamente vinculada ao contexto político, econômico, científico e cultural de uma sociedade historicamente determinada (COITÉ, 2017). Nessa esteira de reflexão, merece destacar que a educação é um processo dinâmico, no qual a sociedade apropria-se para formar os indivíduos a sua imagem e aos seus interesses. Pinto (2007) discute que essa visão remete ao fato de que, não obstante a educação ser um processo constantemente presente na história das sociedades, ela sofre alterações que variam e se apresentam de forma diferenciada de acordo com os tempos e os lugares, por estar vinculada ao projeto de ser humano e de sociedade que pretende emergir por meio do processo educativo.

Por conseguinte, Coité (2017, p. 94) adverte que o fenômeno educativo não deve ser compreendido de forma fragmentada, mas compreendido como uma “prática social, situada no tempo e no espaço, envolvendo aspectos valorativos, culturais, políticos e econômicos que perpassam a vida humana”. É fundamental a defesa da promoção de uma educação do futuro que, de acordo com Morin (2007), seja centrada na condição humana, visto que apreender o humano envolve duas ações importantes: localizar e indagar a posição do indivíduo no universo. O autor em tela ressalta que o ensino da condição humana depende, entre outras circunstâncias, das concepções que os sujeitos possuem sobre si e sobre o outro.

Na opinião de Charlot (2000), a educação se configura como um processo dinâmico, complexo e inacabado, o qual proporciona uma dinâmica de construção e reconstrução do Ser por meio das interações constituídas e de processos que constituem um sistema de sentido. Esse autor enfatiza que, nesse processo, o aprender se configura como um instrumento para apropriação do mundo por meio de um triplo processo de “‘hominização’ (tornar-se homem), de singularização (tornar-se um exemplar único de homem), de socialização (tornar-se membro de uma comunidade, partilhando os seus valores e ocupando um lugar nela)” (CHARLOT, 2000, p. 53).

A história da educação brasileira revela que a Educação do Campo é tratada como política compensatória, visto que historicamente fica à margem na construção de políticas públicas. As demandas e especificidades ocupam espaço reduzido como objeto de pesquisa, bem como nas políticas curriculares nos diferentes níveis e modalidades de ensino. Nesse sentido, a educação para a população do campo é abordada com base em um currículo substancialmente voltado para o urbano. Consequentemente, distante das particularidades, das necessidades e da realidade do campo.

O debate acerca da Educação do Campo é urgente e necessário, uma vez que emergem indagações diversas, dentre as quais destacam-se a educação pública no Brasil, as políticas educacionais e curriculares, a organização do trabalho pedagógico, a produção de materiais didáticos e a formação docente. Outro aspecto relevante consiste nas discussões inerentes à Educação do Campo e sua vinculação com a cultura, os saberes da experiência, o cotidiano dos povos que vivem no campo. Esses elementos são fundamentais para a formulação de políticas educacionais pautadas nas especificidades e na identidade da população do campo.

Arroyo e Fernandes (1999) advertem que a escola do campo é sinônimo de defesa dos interesses da agricultura camponesa e construção de conhecimentos, tecnologias direcionadas ao desenvolvimento social e econômico daqueles que vivem no meio rural. Nessa perspectiva, a educação campestrina deve ser pensada no sentido amplo, por meio de reflexões centradas na sua função social, na sua condição formativa, nos processos de ensino e aprendizagem e na elaboração de proposta pedagógica que contemple a história de vida dos educandos e a história de luta dos trabalhadores e trabalhadoras por terra e educação. A concepção de Educação do Campo é resultado das lutas sociais e das práticas de educação, com foco na identidade e na cultura dos povos do meio rural, reconhecimento das particularidades dos sujeitos que carregam traços culturais e valores vinculados à vida no campo.

Araújo e Bergamasco (2018) conceituam o campo como um lócus peculiar de cultura, política, identidade, história e de existência social. Nessa vertente, o campo é caracterizado como espaço de trabalho, produção de cultura e de conhecimento que emerge da relação dos indivíduos pela sua existência e sobrevivência. Esses atributos ensejaram, a partir de 1997, um movimento mais abrangente em defesa da Educação do Campo, o qual consistia na definição de princípios da educação como manifestação dos saberes e particularidades da população do campo, a formação humana, bem como a valorização da vida e do currículo.

A Educação do Campo deve ser fundamentada em princípios que favoreçam “a inclusão e o reconhecimento dos sujeitos do campo como cidadãos do processo educacional e de sua própria identidade” (ARAÚJO; BERGAMASCO, 2018, p. 227). Dessa forma, a política educacional, a organização do trabalho pedagógico, o currículo e as metodologias de ensino devem primar pelo respeito à identidade dos indivíduos que vivem no campo, seu espaço, cultura e pluralidade de saberes e conhecimentos.

A Educação do Campo é fundamentada em princípios filosóficos, os quais consistem em: educação para a transformação social; educação para o trabalho e a cooperação; educação voltada para as várias dimensões da pessoa humana; e educação para valores humanos e sociais. Portanto, é possível considerar que o desafio teórico presente na atualidade se refere à construção do paradigma da Educação do Campo (VIEIRA; MEDEIROS, 2018). Para tanto, é fundamental o diálogo permanente em busca da implementação de políticas educacionais voltadas para a Educação do Campo que estejam fundamentadas na pedagogia crítica, princípios e finalidades que promovam inclusão, emancipação, autonomia, justiça e igualdade social para o povo do campo.

As discussões voltadas para currículo têm assumido lugar de destaque, tendo cada vez mais relevância nas pesquisas em educação, no Brasil e no mundo. Concernente a esse campo epistemológico, amplificam de forma gradativa o referencial teórico para o campo curricular com questionamentos que se estendem aos processos formativos e educacionais, à concepção de ser humano, sociedade, currículo e educação. Nessa seara, Coité (2017, p. 182) ressalta que a discussão no campo curricular demanda uma compreensão plural e dialética, fundamentada na “complexidade e na multirreferencialidade, devido à necessidade de se buscar um entendimento conceitual em torno das indagações curriculares, do contexto social e cultural”. Isso por meio de um ciclo dinâmico que possibilite entender as demandas sociais, perceber as ideologias, valores e relações de poder existentes no ambiente educacional.

Na literatura nacional e internacional que aborda o campo curricular, verifica-se uma ampla conceituação para o termo currículo, sendo caracterizado pelos curriculistas um termo polissêmico, uma definição sujeita à ambiguidade e à diversidade de sentidos. É fundamental destacar que qualquer concepção de currículo estará “impregnada de ideologias, valores e relações de poder, visto que não existe neutralidade no currículo” (COITÉ, 2017, p. 119). Nessa vertente, as discussões são direcionadas para o currículo como campo permeado de ideologia, cultura e relações de poder, lugar privilegiado em que se “entrecruzam saber e poder, representação e domínio, discurso e regulação [...]” (SILVA, 1996, p. 23). Assim, as conceituações de currículo emergem envoltas de subjetividade, sentidos, construídas numa relação entre currículo, sociedade e educação.

De acordo com Pacheco (2005), é relevante a compreensão de que não temos uma definição única de currículo capaz de congregar todas as informações inerentes às atividades educativas, uma vez que o currículo detém particularidades, complexidade e ambiguidade, uma definição que não apresenta um sentido único. Todavia, esse autor adverte que o currículo é um instrumento de formação, plano de construção e desenvolvimento interativo que engloba diversas dimensões “implicando unidade, continuidade e interdependência entre o que se decide em nível de plano normativo ou oficial e em nível de plano real ou ainda do processo de ensino-aprendizagem” (PACHECO, 2005, p. 37).

Currículo também é caracterizado como uma prática pedagógica proveniente da interação e confluência de várias estruturas, sejam de cunho político, administrativo, econômico, escolar ou social (COITÉ, 2017). A palavra currículo tem origem no latim, curriculum, que quer dizer pista de corrida, percurso, trajetória, caminho. Silva (2010) destaca que currículo significa viagem, texto, poder e território, espaço de saber, poder e identidade, construção social e território político.

O entendimento de currículo relacionado à ideia de um projeto de formação remete a conteúdos, valores/atitudes e experiências cuja elaboração acontece numa dinâmica complexa e diversificada de práticas que emergem dos cenários social, cultural, político e ideológico. Currículo com sentidos e significados que vão além das questões técnicas, perspectivado como trajetória, percurso, viagem, texto, poder e território (COITÉ, 2017; PACHECO, 2005; SILVA, 2010).

Importante considerar que a relação implicada entre currículo e formação se materializa em um movimento dialógico/dinâmico de construção de identidades, valores, conhecimento e saberes (COITÉ, 2017). Nesse sentido, Moreira e Tadeu (2011) conceituam currículo como um artefato social e cultural permeado por relações de poder, produtor de identidades individuais e sociais particularizadas.

Moraes (2010) considera que currículo envolve uma trama de mudança e transformação, constituída por relações mutáveis entre conhecimento, identidade, poder e consciência. Nessa perspectiva, é fundamental a defesa da construção de políticas curriculares voltadas para a Educação do Campo e a formação do professor fundamentadas em uma nova configuração que contemple “a dimensão política, estética, ética, cultural e pedagógica, ou seja, a formação como algo complexo, dialético, dialógico, humano e político” (COITÉ, 2017, p. 119).

O currículo da Educação do Campo, conforme apresentada na perspectiva da legislação educacional vigente, está pautada na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN), Lei nº 9.394/1996, da seguinte forma:

art. 26. Os currículos da educação infantil, do ensino fundamental e do ensino médio devem ter base nacional comum, a ser complementada, em cada sistema de ensino e em cada estabelecimento escolar, por uma parte diversificada, exigida pelas características regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e dos educandos. (BRASIL, 1996).

Em continuidade, o artigo 28 estabelece as necessidades de adaptações curriculares, ajustando-as às especificidades da demanda da Educação do Campo:

Art. 28. Na oferta de educação básica para a população rural, os sistemas de ensino promoverão as adaptações necessárias à sua adequação às peculiaridades da vida rural e de cada região, especialmente:

I - conteúdos curriculares e metodologias apropriadas às reais necessidades e interesses dos alunos da zona rural;

II - organização escolar própria, incluindo adequação do calendário escolar às fases do ciclo agrícola e às condições climáticas;

III - adequação à natureza do trabalho na zona rural. (BRASIL, 1996).

Em 2002, o Conselho Nacional de Educação institui as Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas Escolas do Campo, Resolução CNE/CEB nº 1/2002, que no art. 2º, parágrafo único, estabelece que

A identidade da escola do campo é definida pela sua vinculação às questões inerentes à sua realidade, ancorando-se na temporalidade e saberes próprios dos estudantes, na memória coletiva que sinaliza futuros, na rede de ciência e tecnologia disponível na sociedade e nos movimentos sociais em defesa de projetos que associem as soluções exigidas por essas questões à qualidade social da vida coletiva no país. (BRASIL, 2002).

Fica evidente que os sistemas de ensino devem direcionar suas atividades curriculares e pedagógicas para um projeto de desenvolvimento sustentável, bem como que o controle social da qualidade da educação escolar deve acontecer mediante a efetiva participação da comunidade do campo. Outro destaque é que as propostas pedagógicas das escolas do campo, respeitadas as diferenças e o direito à igualdade, contemplarão a diversidade do campo em todos os seus aspectos, sociais, culturais, políticos, econômicos, de gênero, geração e etnia (BRASIL, 2002).

O Decreto nº 7.352, de 4 de novembro de 2010, que dispõe sobre a política de Educação no Campo, estabelece, no artigo 2º, a elaboração de projeto pedagógico específico e assegura os seguintes princípios:

II - incentivo à formulação de projetos político-pedagógicos específicos para as escolas do campo, estimulando o desenvolvimento das unidades escolares como espaços públicos de investigação e articulação de experiências e estudos direcionados para o desenvolvimento social, economicamente justo e ambientalmente sustentável, em articulação com o mundo do trabalho;

[...]

IV - valorização da identidade da escola do campo por meio de projetos pedagógicos com conteúdos curriculares e metodologias adequadas às reais necessidades dos alunos do campo, bem como flexibilidade na organização escolar, incluindo adequação do calendário escolar às fases do ciclo agrícola e às condições climáticas; [...] (BRASIL, 2010).

Contudo, segundo Ribeiro e Moreira (2018, p. 96), “romper com o sistema tradicional de ensino e assegurar” o respeito à diversidade do campo em seus aspectos sociais, culturais, ambientais, políticos, econômicos, de gênero, geracional e de raça e etnia (BRASIL, 2010), “não é algo simples, pois exige da escola e da comunidade escolar uma série de elementos e conhecimentos que, usualmente, não são fomentados” (RIBEIRO; MOREIRA, 2018, p. 96),

O Plano Nacional de Educação (PNE), Lei n° 13.005/2014, determina, na meta 8, “elevar a escolaridade média da população de 18 (dezoito) a 29 (vinte e nove) anos, de modo a alcançar, no mínimo, 12 (doze) anos de estudo no último ano de vigência deste Plano, para as populações do campo [...]” (BRASIL, 2014). Segundo Coelho (2011, p. 145), faz-se necessário pensar outro paradigma de “compreender o lugar da escola na educação do campo significa compreender o tipo de ser humano que ela necessita ajudar a formar, bem como contribuir com a formação de novos sujeitos sociais”, que vêm se constituindo no campo hoje.

A Resolução CEE nº 103, de 28 de setembro de 2015, do Conselho Estadual de Educação da Bahia, dispõe sobre a oferta da Educação do Campo no Sistema Estadual de Ensino da Bahia. O artigo 4º apresenta os princípios, dentre eles: VI - valorização da identidade da escola por meio de projetos político pedagógicos com organização curricular e metodológicas adequadas às necessidades dos educandos e comunidades do campo. Em seguida, no artigo 7º, enfoca que a “organização curricular das etapas educação infantil, ensino fundamental e médio deverá atender às especificidades do público para o qual serão ofertadas, em formas diferenciadas, conforme recomende o interesse do processo de aprendizagem” (BAHIA, 2015).

Segundo Caldart (2012, p. 262), a “realidade que produz a Educação do Campo não é nova, mas ela inaugura uma forma de fazer seu enfrentamento. Ao afirmar a luta por políticas públicas que garantam aos trabalhadores do campo o direito à educação, especialmente à escola”. É um processo de construção histórica e de confrontação das políticas educacionais, na proposição de uma agenda de educação voltada para as demandas dos sujeitos do campo.

Educação do campo na região oeste da Bahia: desafios e perspectivas da política curricular em contexto da pandemia - covid-19

O Conselho Estadual de Educação (CEE) da Bahia publicou a Resolução CEE nº 27, de 25 de março de 2020 (BAHIA, 2020b), que orienta as instituições integrantes do Sistema Estadual de Ensino sobre o desenvolvimento das atividades curriculares, em regime especial, enquanto permanecerem os atos decorrentes do Decreto Estadual nº 19.529, de 16 de março de 2020, que estabelece as medidas temporárias para o enfrentamento de Emergência em Saúde Pública de Importância Internacional (ESPIN), para fins de prevenção e enfrentamento à Covid-19 (BAHIA, 2020a).

A Resolução CEE/BA nº 27/2020, artigo 1º, prevê “a possibilidade de reorganização das atividades curriculares, a partir dos projetos pedagógicos, com acompanhamento, pelas respectivas unidades escolares da educação básica” (BAHIA, 2020b). Nesse sentido, propõe tanto a realização de atividades pedagógicas não presenciais durante a pandemia com o direcionamento pela escola e por seu corpo docente, quanto a reposição da carga horária de forma presencial no período pós-pandemia. Com isso, fez-se necessário apresentar as experiências de 10 municípios do Oeste da Bahia (4 dirigentes não responderam), a partir do contexto relatado, no intuito de minimizar o prejuízo da ausência das aulas presenciais. Para efeito de anonimato, os municípios foram identificados com números.

A pesquisa foi desenvolvida na Região Oeste da Bahia, localizada à margem esquerda do Rio São Francisco, que está geograficamente inserida na região mais rica em recursos hídricos do Nordeste brasileiro. Graças a esta privilegiada bacia hidrográfica, à topografia plana e ao clima com estações definidas, a região tem vivenciado forte expansão da agricultura, especialmente nos municípios de Barreiras, Luiz Eduardo Magalhães e São Desidério.

Nas duas últimas décadas, o cultivo de grãos e a pecuária impulsionaram, sobremaneira, o desenvolvimento econômico da região que é formada por 14 municípios, a saber: Angical, Baianópolis, Barreiras, Buritirama, Catolândia, Cotegipe, Cristópolis, Formosa do Rio Preto, Luís Eduardo Magalhães, Mansidão, Riachão das Neves, Santa Rita de Cássia, São Desidério e Wanderley. Os municípios que fazem parte da Região Oeste da Bahia, apesar de serem limítrofes e exercerem atividades econômicas semelhantes em maior ou menor proporção, apresentam resultados distintos no contexto educacional.

Para efeito de análise neste trabalho, foram consideradas três perguntas do questionário, do total de dez, aplicado aos dirigentes. O instrumento de coleta de dados foi elaborado em ambiente virtual e o link foi disponibilizado para todos os participantes responderem. A análise considerou as especificidades e peculiaridades do objeto da pesquisa.

Participaram 10 Dirigentes Municipais de Educação, do total de 14 municípios pesquisados. Os participantes têm trajetórias acadêmicas e profissionais diversas. O perfil da amostra é de 8 respondentes do gênero feminino e 2 do gênero masculino. A faixa etária varia de 28 a 56 anos, com média de 38,1 e mediana de 39,3 anos, e a moda 27,2%. Quanto à formação, observou-se que a licenciatura é o curso que predomina tanto no que se refere à graduação, quanto à Pós-Graduação.

Os participantes foram indagados com a seguinte questão: O município promoveu formação para o uso das tecnologias na educação antes da pandemia? A maioria, 70%, respondeu que o município não promoveu ações formativas para o uso das tecnologias na educação no decorrer da pandemia. Apenas 30% dos entrevistados afirmaram que sim, houve promoção de formação voltada para o tema citado anteriormente. Os dados revelam que os municípios apresentam dificuldades para o desenvolvimento de atividades formativas que contemplem o uso das tecnologias na educação. Isso denota a fragilidade dos sistemas de educação para o atendimento às demandas formativas que favoreçam a formação continuada dos docentes e profissionais de educação. É importante ressaltar que o uso adequado das tecnologias na educação pelos docentes é imprescindível em tempos de crise sanitária, isolamento social e fechamento das escolas.

A adoção do regime especial de atividade curricular, conforme previsto no artigo 2ª da Resolução CEE/BA nº 27/2020, direcionada às redes e unidades escolares da educação básica, bem como às Instituições Estaduais de Ensino Superior (IEES) que compõem o sistema estadual de ensino da Bahia, se refere à adoção de atividades não presenciais, mediadas ou não por tecnologias, no período em que vigorar a atual situação de emergência sanitária (BAHIA, 2020b). Assim, ao serem inquiridos acerca de quais estratégias foram adotadas na Rede Municipal de Ensino, destinadas às escolas do campo, para a retomada das aulas e outras atividades em formato a distância ou ensino remoto, os pesquisados elencaram algumas ações pedagógicas compensatórias ao período de afastamento social, conforme pode ser verificado no Quadro 1.

Quadro 1 Em razão da pandemia da Covid-19, estratégias adotadas na rede de ensino para retomada das aulas e outras atividades em formato a distância ou ensino remoto 

Municípios Respostas
Município 1 Videoaulas gravadas; materiais digitais, via redes sociais; orientações genéricas, via redes sociais; tutorial/chat/WhatsApp; orientações e cronograma de atividades para pais; disponibilização de material impresso.
Município 2 Videoaulas gravadas; tutorial/chat/WhatsApp; orientações e cronograma de atividades para pais; disponibilização de material impresso.
Município 3 Orientações e cronograma de atividades para pais; disponibilização de material impresso.
Município 4 Orientações e cronograma de atividades para pais; disponibilização de material impresso.
Município 5 Materiais digitais, via redes sociais; orientações genéricas, via redes sociais; tutorial/chat/WhatsApp; orientações e cronograma de atividades para pais; disponibilização de material impresso.
Município 6 Orientações e cronograma de atividades para pais; disponibilização de material impresso.
Município 7 Videoaulas gravadas; materiais digitais, via redes sociais; aulas online; orientações genéricas, via redes sociais; tutorial/chat/WhatsApp; orientações e cronograma de atividades para pais; disponibilização de material impresso.
Município 8 Plataformas online; materiais digitais, via redes sociais; orientações e cronograma de atividades para pais; disponibilização de material impresso.
Município 9 Não assinalou nenhuma das opções.
Município 10 Não assinalou nenhuma das opções.

Fonte: Elaborado pelas autoras deste artigo com base em dados da pesquisa.

As respostas dos dirigentes municipais de educação apontam que as estratégias adotadas na rede de ensino para retomada das aulas e outras atividades em formato a distância ou ensino remoto não estão relacionadas à aplicação do regime especial de atividades curriculares nos domicílios dos estudantes. A atividade remota requer as seguintes etapas: planejamento, aplicação, monitoramento, alcance da aplicação nas aprendizagens, formas de avaliação. Etapas fundamentais para garantir os padrões de qualidade, a gestão pedagógica e a organização das atividades visando ao alcance dos objetivos de aprendizagens previstos para cada etapa da educação básica e de educação superior.

Ao analisar as respostas do inquérito, percebe-se um descompasso entre os objetivos da educação e as estratégias adotadas pelas secretarias, frente às demandas específicas do contexto pandêmico. Percebe-se uma transposição das atividades presenciais para o ensino remoto, com um alargamento de metodologias e de conteúdos. Fátima Braga (2016, p. 144) alerta que o currículo escolar deve ‟ultrapassar a análise dos dados objetivos e das condutas explícitas, passando a abordar o conjunto de processos cognitivos que determinam as condutas”.

É nesse contexto de cultural digital, de desafios contemporâneos para as escolas, que Dussel (2014, p. 16) questiona como o currículo escolar está respondendo a esses desafios: ‟Puede señalarse una cierta desproporción entre lo arrollador de la cultura digital, y la lentitud y dimensión acotada de las respuestas escolares.” O questionamento é atual e necessita de uma atenção à injustiça escolar e precisa avançar nas respostas da política educacional em meio à crise da pandemia, o que ocasiona o isolamento social, refletindo no contexto educacional.

Segundo Shultz, e Viczko (2020), existe uma preocupação em examinar o poder perguntando quem ou o que está controlando quem e por que; um silêncio gritante é o papel da educação no apoio à democracia, especialmente em condições de crise. Desta forma, questionou-se quais estratégias de comunicação adotadas pela secretaria de educação para manter o vínculo com a família dos estudantes, conforme retrata o Quadro 2. Deve-se considerar o limite do tempo-espaço geográfico, os espaços de rede, que mudam rapidamente, e a incerteza sobre as consequências da crise.

Quadro 2 Estratégias de comunicação criadas pelas Secretarias de Educação para manter o contato e os vínculos com as famílias e os estudantes 

Municípios Respostas
Município 1 Utilizamos a mesma estratégia: orientações e cronograma de atividades para pais por meio do WhatsApp, pelos grupos de escolas. As famílias não alcançadas por essa estratégia eram procuradas pelo diretor e pelo coordenador via contato telefônico ou até mesmo por envio de bilhetes.
Município 2 Criação de grupos de WhatsApp, cronograma de atendimentos às famílias nas instituições escolares por turma/série e momentos de esclarecimentos sobre essas estratégias adotadas na rádio comunitária local.
Município 3 Ligações telefônicas via WhatsApp, em algumas localidades.
Município 4 Ida às casas para levar e buscar as atividades, e nesse momento passar e buscar informações.
Município 5 Ações constantes no Plano Municipal de Atividades Remotas
Município 6 Sim. Elaboração de um plano de ação que está sendo desenvolvido em parceria com as Unidades Escolares e Supervisores de Núcleos.
Município 7 Comunicação através de redes sociais, rádio, materiais impressos.
Município 8 Via redes sociais e material impresso.
Município 9 Não assinalou nenhuma das opções.
Município 10 Não assinalou nenhuma das opções.

Fonte: Elaborado pelas autoras deste artigo com base em dados da pesquisa.

Em análise, o processo de comunicação representava um dos problemas da educação durante a pandemia. Percebe-se que o recurso WhatsApp foi o mais utilizado pelos municípios que criaram algum tipo de estratégia, por se tratar de uma ferramenta disponível para o público em geral. Moran (2017, p. 67) questiona como ensinar em um mundo conectado. Esse autor analisa que ‟os processos de aprendizagem são múltiplos, contínuos, híbridos, formais e informais, organizados e abertos, intencionais e não intencionais”. A questão da autonomia é fator crucial para o fortalecimento de uma escola mais flexível, que propicia espaços de participação, de decisão coletiva, e que os estudantes sejam consultados sobre os processos educativos. ‟A educação é mais complexa porque tem de preparar para a autonomia, para podermos tomar decisões mais complexas em todos os momentos, de forma criativa, empreendedora e realizadora” (MORAN, 2017, p. 67), com atividades significativas, metodologias ativas e o intenso uso das tecnologias digitais. Para Marcus Braga (2020, p. 13), ‟faz-se necessário uma autonomia que seja fortalecedora das capacidades estatais, em uma via emancipatória, e não tuteladora”.

Nota-se que 1 (um) município relatou que elaborou um Plano Municipal de Atividades Remotas. O plano é um documento de programação, com objetivos, estratégias e atividades a serem seguidas. O que se verificou foi que tal documento só foi percebido em um município. A lógica desses guias é manter o sentido da escola e da escolaridade, tanto para os alunos quanto para as famílias. A educação institucionalizada não pode ser interrompida e nem desvinculada do processo de aprendizagem. Então, o que esperar de uma rede de ensino que não elaborou um plano educacional de emergência para o período de pandemia?

Destarte, Pimentel (2019, p. 28) alerta que é necessário entender que educação é um direito humano e as ‟políticas educacionais devem levar em conta que, além de assegurar o acesso, precisa garantir espaços de aprendizagem que contribuem para o desenvolvimento de práticas sustentáveis, alicerçadas nos princípios da equidade e da inclusão”.

Quadro 3 Ações específicas de apoio aos estudantes das escolas do campo durante o período em que as aulas e atividades escolares estão suspensas 

Municípios Respostas
Município 1 Utilizamos a mesma estratégia: orientações e cronograma de atividades para pais por meio do WhatsApp, pelos grupos de escolas. As famílias não alcançadas com essa estratégia foram procuradas pelo diretor e pelo coordenador via contato telefônico ou até mesmo por envio de bilhetes.
Município 2 Atividades impressas e entregues aos alunos, respeitando todos os protocolos de segurança, com cronograma de atividades por área do conhecimento e horas/atividades e guia de orientações.
Município 3 Atividades Impressas.
Município 4 Não foram implementadas ações.
Município 5 Não foram implementadas ações.
Município 6 Sim. Entrega de atividades na casa de cada aluno. Em algumas localidades o professor está indo orientar o aluno individualmente.
Município 7 Não foram implementadas ações.
Município 8 Entrega de material pedagógico nas suas residências.
Município 9 Não foram implementadas ações.
Município 10 Não foram implementadas ações.

Fonte: Elaborado pelas autoras deste artigo com base em dados da pesquisa.

Na visão de Shultz, e Viczko (2020), o conceito-chave de autonomia foi usado como um meio importante para articular uma relação tênue entre o aluno colaborativo, mas independente, um conjunto de práticas divididas envolvidas na educação para alunos e professores. Há uma justaposição entre a atividade direta por uma aprendizagem autodirigida, independente, e as atividades estabelecidas pela escola. Ao optarem por realização das atividades não presenciais, as unidades escolares deverão proceder a gestão online das atividades curriculares em regime especial, com vistas ao cômputo do tempo em horas e dias letivos.

Os estudantes e professores da educação básica precisam se reconhecer como protagonistas do processo de flexibilização curricular. O não reconhecimento de ‟tal perspectiva pode contribuir para fragilizar o movimento curricular nas escolas, tão necessário para qualificar os processos de ensinar e aprender em sala de aula” (KREUZ; LEITE, 2020, p. 11-12). Conforme as respostas apresentadas no Quadro 3, não houve muitas ações implementadas pelas escolas do campo para o atendimento pedagógico aos alunos no período do isolamento social. Isso pode acarretar uma exclusão escolar dentro do próprio contexto educacional. Quanto aos professores, foram colocados entre o binário do profissional colaborativo e o indivíduo autônomo, um posicionamento necessário na mudança para tornar possível o acesso online e outras modalidades.

O Parecer CNE/CP nº 5/2020 indica o desenvolvimento do trabalho escolar por meio de atividades não presenciais como uma das possibilidades para a redução da reposição de carga horária presencial pós-pandemia, e o contato presencial dos estudantes com as atividades escolares durante o afastamento do ambiente físico da escola (BRASIL, 2020a). O parecer se refere à reorganização do calendário escolar e à possibilidade de cômputo de atividades não presenciais para fins de cumprimento da carga horária mínima anual. De acordo com Costa e Souza (2018, p. 68),

[...] as discussões a respeito da educação do campo têm ocorrido no sentido de estabelecer um processo educativo que leve em consideração os conhecimentos camponeses e as condições sociopolíticas vivenciadas pela população do campo. Esta proposta prevê a valorização dos saberes camponeses, especialmente a partir de sua relação de proximidade com o ambiente natural. A educação do campo, entendemos, é o caminho para a construção de um campo socialmente mais justo e ambientalmente equilibrado.

É nesse contexto que a discussão sobre o futuro da educação se encontra. O contexto da educação, em tempos de pandemia, precisa estar no epicentro das agendas, nacional e internacional. Ireland (2020, p. 439) adverte que esse debate deve centrar-se na vida das pessoas e ‟nas suas múltiplas expressões que exigem condições necessárias para florescer que, no caso do ser humano, exigirão que todos os seres humanos tenham o direito de exercer sua capacidade inerente de aprender”.

Considerações finais

Os desafios estão postos para a política curricular. Precisa-se de ações que busquem garantir o adequado e salutar funcionamento das escolas públicas. O entendimento é de uma realidade diferenciada vivenciada por escolas públicas do campo e a superação das desigualdades existentes, bem como desenvolver ações voltadas para a melhoria da qualidade do ensino e a consequente elevação dos índices de desempenho apresentados por alunos de escolas públicas do campo.

A pesquisa realizada tende a contribuir para a ampliação do conhecimento do contexto educacional investigado. As evidências apontadas neste trabalho apontam para a falta de planejamento institucional do poder público em atender as demandas de um contexto de pandemia. É possível atuar sobre os fatores externos e garantir o direito à educação para os estudantes das escolas do campo. Os municípios estudados ratificam a necessidade de ações administrativas e pedagógicas pautadas em um olhar mais apurado para as questões especificas do contexto educacional. O trabalho didático, a valorização dos profissionais da educação, a gestão democrática e o processo decisionário das políticas públicas são alguns elementos-chave em toda e qualquer instituição voltada para o processo de ensino e aprendizagem e a melhoria da qualidade da educação.

Ressalta-se a relevância deste estudo e sua contribuição para fomentar e estimular o poder público na elaboração de políticas públicas educacionais locais que induzam à melhoria da qualidade de ensino. Os dados podem fomentar e estimular as Secretarias Municipais de Educação na indicação de algumas possibilidades de ressignificação da realidade educacional da Região Oeste da Bahia, sobretudo na busca de melhorias no trabalho pedagógico das escolas públicas do campo.

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2A Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional declarada pela Organização Mundial de Saúde (OMS), que é a disseminação comunitária da Covid-19, foi caracterizada como pandemia. Para impedir a contaminação, a OMS recomendou isolamento, tratamento e distanciamento social.

1A Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional declarada pela Organização Mundial de Saúde (OMS), que é a disseminação comunitária da Covid-19, foi caracterizada como pandemia. Para impedir a contaminação, a OMS recomendou isolamento, tratamento e distanciamento social.

Recebido: 15 de Novembro de 2020; Aceito: 04 de Fevereiro de 2021

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