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Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade

versión impresa ISSN 0104-7043versión On-line ISSN 2358-0194

Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade vol.30 no.62 Salvador abr./june 2021  Epub 16-Dic-2021

 

Apresentação

EDUCAÇÃO E LITERATURA: D’ÁFRICAS E SUAS DIÁSPORAS


É hora de contar histórias às nossas crianças, de explicar que não devem ter medo. Para combater esse vírus, temos de ter primeiro cuidado, depois coragem. (KRENAK, 2019, p. 85).

O presente Dossiê, na mesma linhagem de outros que o antecedem nesta Revista, parte de um problema antigo que, nos últimos tempos, tem se acirrado ainda mais no Brasil ou, no mínimo, tem se desvelado com mais contundência. Nos referimos ao “racismo à brasileira” (TELLES, 2003), e à necessidade de abrirmos trilhas para outras abordagens que favorecem a afirmação identitária negra. Essa linha investigativa, reflexiva e prospectiva atravessa os diversos textos do presente Dossiê, que tem como recorte a literatura infantil/juvenil das Áfricas e da sua diáspora.

Uma das questões centrais das reflexões parte do complexo campo das relações étnico-raciais e, nestas, em específico, as referidas literaturas. Levamos em conta, portanto, o impacto do racismo na sala de aula (ARAUJO, 2017; SILVA, 1995), nas ambiências familiares, na produção do conhecimento, do mercado editorial e nos produtos culturais, conforme evidenciado por Fúlvia Rosemberg e Paulo Vinícius Silva (2008), no extenso e importante levantamento bibliográfico nestas áreas. Corrobora essa assertiva, de certo modo, mas focalizando as áreas das Ciências Sociais, o reconhecido pesquisador Carlos Moore (2007), ao pautar o racismo em distintas sociedades, o que o leva a concluir que se trata de um problema histórico, mas atualizado ao longo do tempo.

De diferenciadas conjunturas históricas à atualidade, nesses idos do século XXI, quando nos defrontamos com um cenário de retrocessos sem precedentes no Brasil e, acreditamos, em outras partes do mundo por conta da Pandemia da Covid-19, que nos coloca em isolamento social, de março de 2020 até presente data (julho de 2021), sem tempo determinado para estarmos em convivência fraterna, entre abraços e afetos. Quando da ação da escrita desta apresentação o registro de 500 mil mortes no país é anunciado, provavelmente quando da circulação e leitura deste texto maior será o número de corpos tombados pelo vírus, não por sermos pessimistas, mas por constatarmos uma política viral que nos circunda.

A política de desmantelamento das instituições públicas e dos avanços nas áreas das ciências humanas, em particular no que diz respeito às políticas de reparação e às ações afirmativas para esse fim, está em ação diuturnamente, precisamos estar alertas. Desse modo, torna-se ainda imprescindível primarmos por visões mais críticas e menos distorcidas acerca do objeto livro e demais suportes através dos quais apreendemos e difundimos conhecimentos.

No caso dos livros para infância e juventude, e/ou aqueles que trazem a representação dessa infância e juventude, a pluralidade cultural no plano da ficção (verbal e visual) de igual modo deve estar presente na produção da escrita (autoral). Assim, este dossiê busca evidenciar o protagonismo negro e a necessária ação para que o mote “Vidas negras importam” seja compreendido em sua dimensão prática.

Este Dossiê agrega estudos de grande valia para educadores(as), pais e demais interessados(as) no conteúdo apresentado nas três seções que estão articuladas. São elas:

I) Protagonismos negros na LIJU1 brasileira: contra(pontos) e anseios; II) Áfricas: contos tradicionais e perspectivas afirmativas; III) Quilombos editoriais e as políticas públicas na LIJU brasileira.

Em termos de articulação, o conjunto de textos aqui expostos não se restringem às lentes eurocêntricas. Ao contrário, estão em consonância com a nossa Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN), Lei nº 9.394/96, no que se refere aos conteúdos que foram preteridos e/ou desqualificados em nossos currículos, a saber: a história e culturas negras/afro-brasileiras e africanas.

No que se refere às metodologias empregadas para as análises e resultados valiosos que requerem mais socialização e reflexões, busca-se favorecer a atuação docente, a recepção por parte dos discentes e de familiares que podem acompanhar o processo de apreensão de conhecimento dos estudantes diante da leitura das literaturas de lá, do continente africano e da sua diáspora, em específico o Brasil e a Espanha. Esta última, em um dos artigos deste Dossiê.

Outro ponto de encontro entre as três seções é o reconhecimento de que a linguagem literária não é neutra, que expressa a visão de mundo de quem a produz e reproduz no mercado livresco, sendo essas visões expressas e impressas no objeto livro. Mas, qual a perspectiva? Quais delimitações e a quais resultados cada autor(a) chega? E, o que nos interessa das suas reflexões para embasar estudos correlatos? Eis outras indagações que abrem trilhas para aumentarmos os pontos desse encontro. Que ele seja realizado com encanto, apesar do desalento social que nos atravessa. Afinal, sabemos, resistimos e reexistimos (SOUZA, 2011), como sempre fizemos.

Como vivemos em um país marcado pelas consequências nocivas de um racismo histórico (MOORE, 2007), estrutural, institucional (ALMEIDA, 2019) e epistêmico (CARNEIRO, 2005) que afeta o nosso cotidiano (KILOMBA, 2019), as pesquisas constitutivas do Dossiê apontam para outras perspectivas que são, na realidade, antirracistas.

O Dossiê traz à cena as vozes das margens, pela palavra, pela imagem e pela autoria, uma poética da negritude nas narrativas em questão. Se trata de obras que destacam protagonistas negros na trama narrativa. Narrativas estas que são de interesse de todos os leitores, independentemente do pertencimento étnico-racial, o que é possível constatar quando nos debruçamos sobre os marcos legais históricos, a exemplo da Lei Federal nº 10.639/03 (BRASIL, 2003, 2004, 2009), muito embora endossemos a necessidade de também se investir na Lei nº 11.645/08 que, por conta da especificidade da temática, não foi contemplada aqui.

A Lei nº 10.639 (BRASIL, 2003), bem como os documentos para a sua implementação, por certo fomentou no mercado editorial brasileiro a publicação e circulação de livros para infância e juventude, e podemos dizer, para fins didáticos, que hoje convivem três categorias: “1) literatura que tematiza a cultura africana e afro-brasileira; 2) literatura afro-brasileira; e 3) literaturas africanas.” (DEBUS, 2017, p. 33). Embora celebrando a conquista histórica a partir de tais marcos, ainda carecemos de mais investimentos em termos de suportes teóricos, literários e didáticos, com vistas a subsidiar as/os profissionais da área. Afinal, pensamos com a escritora Chimamanda Adichie (2019) em suas potentes palavras que nos alertam em relação ao perigo de uma história única que é, sabemos, sob a ótica ocidental em detrimento das demais.

O Dossiê “Educação, literatura e relações étnico-raciais” leva em conta o diálogo com adversos contextos e espaços educativos. Para tal reunimos artigos de pesquisadores de diferentes instituições e regiões do país, bem como a participação do professor Etelvino Guila, da Universidade Eduardo Mondlane, Moçambique, por meio dos quais são analisadas as obras literárias que focalizam protagonistas negros em distintos espaços sociais, seja nas Áfricas, seja na diáspora.

A escolha pela interlocução com as literaturas negras/afro-brasileiras e africanas deve-se ao levantamento prévio e à constatação de que a produção dos países cujas obras foram objetos de estudos (Brasil, Moçambique e Espanha) são de grande relevância social.

Ao pesquisar as referidas literaturas, Oliveira (2009, 2016) evidenciou a existência de obras, autores(as) e temáticas distintas editadas em Angola, Moçambique e no Brasil que situam protagonistas negras em espaços sociais diversificados e reaproximam a África continental da sua diáspora. Favorecem, assim, a ressignificação do nosso olhar em face dos legados ancestrais recriados do lado de cá. Das produções africanas, Debus (2018, 2019), por sua vez, atualiza e expande tais pesquisas com recorte para a obras moçambicanas contemporâneas, além da literatura de temática afro-brasileira.

Ou seja, adentramos uma área complexa que envolve ilustrações, a oralidade, o mercado editorial, as políticas públicas, a prática docente e a recepção, entre outros aspectos, o que contraria certas visões preconceituosas de que se trata de uma área menor que as demais e, assim sendo, pode ficar aquém de outras searas. A linguagem literária destinada às crianças, aos adolescentes e, é óbvio, aos adultos, mesmo sendo uma das valiosas fontes de pesquisas no ensino superior, ainda carece de um lugar no campo dos estudos literários, conforme evidenciado por Mônica Santos (2011) e, reiteramos, o que faz desse Dossiê mais um precioso legado para outros estudos.

Em termos de conteúdo, os artigos aqui reunidos rasuram vieses simplistas acerca do continente africano e, por conseguinte, das relações étnico-raciais enredadas por via da linguagem literária. Nessa direção, algumas questões: quais são essas obras? Quem as escreve? Em qual aspecto podem favorecer outras aproximações entre o espaço social africano e sua diáspora, no caso do Brasil?

Entendemos que uma das contribuições deste Dossiê resulta dos livros literários que circulam em diferentes acervos de bibliotecas escolares, bibliotecas públicas e outros espaços de promoção literária, com ênfase no Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE) - 1997-2014. Cremos que esta publicação, sem sombra de dúvidas, cumpre um papel preponderante para a educação das relações étnico-raciais ao dar a conhecer e debater sobre a produção literária para infância e juventude.

Em termos de contextualização, nos encontramos em um momento de incerteza, de lutos e lutas. Nesse contexto adverso, as crianças, os jovens e nós, adultos, tentamos reexistir (SOUZA, 2011) ao adoecimento social que se instaura no país. A despeito dos desalentos, das perdas irreparáveis e de mais de meio milhão de vidas ceifadas, estudiosas(os) que se dedicam às literaturas destinadas às crianças e à juventude partilharam estudos empreendidos na área que, agora, socializamos às leitoras e leitores.

Nossos “anseios”, um dos termos que atravessa o livro de bell hooks (2019), é que tenhamos a sabedoria para superar as tensões que nos atravessam e que os textos e/ou as obras literárias que foram objeto de estudos neste Dossiê contribuam, de algum modo, para nos ajudar a preservar a saúde emocional, intelectual e, enfim, vital diante das travessias que se seguem.

Que o Dossiê “Educação, literatura e relações étnico-raciais” (Revista da FAEEBA), à direção dos que o sucederam e dos que os sucederão, amplie as fontes e frentes de lutas em tempos de lutos e lutas que, certamente, passarão. Que os textos envolvam nossos(as) leitores(as) em geral para que, dentro do possível, se tenha acesso a mais este dispositivo e que ele seja plausível às interpretações das histórias que aguçam o senso crítico, criativo, emocional e intelectual de todas as pessoas das Áfricas e das suas diásporas.

Na arte de aguçar ideias, estimular as reflexões e prospecções, na linhagem e nas linguagens mais apropriadas às crianças e demais leitores, que não nos deixemos sucumbir diante dos dissabores impostos por uma minoria que o curso da História cuspirá das páginas de um livro chamado vida. Nessa sinfonia, vislumbramos outras correntezas com vistas à “suspensão do céu”, conforme sugere Ailton Krenak (2019), ao destacar a importância das histórias que precisamos contar para “adiar o fim do mundo”. Propomos, em sintonia com Krenak (2019), estudos que abrangem corpus de obras literárias destinadas às infâncias, às adolescências e às jornadas adultas para, através delas, tecermos os fios da nossa vida neste mundo.

Ressignifiquemos, então, aqui da Bahia, a “miniÁfricas”, do Sul que também é negro, e de outras localidades, um ser e estar no mundo que contemple o Nós!

O número 62 da Revista da FAEEBA - Educação e Contemporaneidade conta, ainda, com cinco artigos publicados na Seção Estudos.

Nos anseios de novos tempos e bons ventos, desejamos Boa leitura!

As organizadoras

REFERÊNCIAS

ADICHIE, Chimamanda Ngozi. O perigo de uma história única. Tradução de Julia Romeu. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. [ Links ]

ALMEIDA, Silvio. Racismo estrutural. São Paulo: Pólen, 2019. (Coleção Feminismos Plurais). [ Links ]

ARAUJO, Débora Cristina de. Personagens negras na literatura infantil: o que dizem crianças e professoras. São Paulo: CVR, 2017. [ Links ]

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1Sigla para nos referirmos à Literatura infanto-juvenil.

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