SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.30 número62SER UN NIÑO NEGRO: UN ANÁLISIS EN LOS LIBROS DE LITERATURA INFANTILLA FRUICIÓN LITERARIA EN LA LITERATURA INFANTIL AFRICANA índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
Home Pagelista alfabética de revistas  

Servicios Personalizados

Revista

Articulo

Compartir


Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade

versión impresa ISSN 0104-7043versión On-line ISSN 2358-0194

Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade vol.30 no.62 Salvador abr./june 2021  Epub 16-Dic-2021

https://doi.org/10.21879/faeeba2358-0194.2021.v30.n62.p62-75 

DOSSIÊ TEMÁTICO

ANGELINA NEVES E A COLEÇÃO HISTÓRIAS TRADICIONAIS: DE COELHOS, HIENAS E MACACOS

ANGELINA NEVES AND THE TRADITIONAL STORIES COLLECTION: ABOUT RABBITS, HYENAS AND MONKEYS

ANGELINA NEVES Y LA COLECCIÓN DE HISTORIAS TRADICIONALES: DE CONEJOS, HENAS Y MONOS

Eliane Santana Dias Debus*  (UFSC)
http://orcid.org/0000-0003-0555-2069

Etelvino Manuel Raul Guila**  (UFSC)
http://orcid.org/0000-0001-7165-2362

Zâmbia Osório dos Santos***  (UFSC)
http://orcid.org/0000-0002-7301-6340

*Pós-doutorado em Educação pela Universidade do Minho (UMINHO), Portugal. Professora associada do Departamento de Metodologia de Ensino e dos Programas de Pós-graduação em Educação e Estudos da Tradução da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Florianópolis, Santa Catarina, Brasil. E-mail: elianedebus@hotmail.com

**Doutorando em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professor assistente da Universidade Eduardo Mondlane, Maputo, Moçambique. Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES/DS). E-mail: etelvino.guila@gmail.com

***Doutoranda em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Florianópolis, Santa Catarina, Brasil. Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES/DS). E-mail: zambiaos@yahoo.com.br


RESUMO

O presente artigo busca visibilizar a produção para infância da escritora moçambicana Angelina Neves, iniciada no início da década de 1990, em particular os títulos O Coelho e a Hiena (NEVES, 2012a) e O Coelho e o Macaco (NEVES, 2012b), adaptados e ilustrados por ela, os quais fazem parte da coleção Histórias Tradicionais dos Grupos Linguísticos de Cabo Delgado, uma província ao norte de Moçambique. A coleção é organizada com o objetivo de tradução de histórias recolhidas em Emakhuwa, Kimwani ou Shimakonde para Português e vice-versa e foi financiado pela Comissão Europeia no período de 2010-2012. As obras analisadas têm como característica o reconto como valorização das narrativas orais ao transpô-las para o sistema da escrita da Língua Portuguesa; por outro lado, o fabulário dos animais que ganha vida e voz nas personagens do coelho, da hiena e do macaco vivificam os valores a serem (re)configurados pelas leitoras e leitores. É como recontos, com características de narrativas africanas de expressão oral, que são realizadas as análises dos títulos. O artigo estabelece diálogos com Sisto (2010), Bâ (2008) e Rosário (1989) para compreensão de elementos presentes nos recontos. Por certo, sistematizar em forma escrita as narrativas comuns às crianças por meio da oralidade contribui para a manutenção da cultura.

Palavras-chave: infância; Moçambique; literatura; reconto

ABSTRACT

This article seeks to make the production for childhood of the Mozambican writer Angelina Neves, started in the early 1990s, particularly the titles The Rabbit and the Hyena (NEVES, 2012a) and The Rabbit and the Monkey (NEVES, 2012b) adapted and illustrated by her, which are part of the Collection “Traditional Stories of the Language Groups of Cabo Delgado”, a province in the north of Mozambique. The collection is organized for the purpose of translating stories collected in Emakhuwa, Kimwani or Shimakonde into Portuguese and vice versa and was funded by the European Commission in the period 2010-2012. The analyzed works have as characteristic the retelling as valorization of the oral narratives when transposing them to the writing system of the Portuguese Language, on the other hand, the fable of the animals that gains life and voice in the characters of the rabbit, the hyena and the monkey vivify the values ​​to be (re) configured by the readers. Certainly, systematizing in writing the narratives common to children through orality contributes to the maintenance of culture.

Keywords: childhood; Mozambique; literature; I recount

RESUMEN

Este artículo busca realizar la producción para la infancia de la escritora mozambiqueña Angelina Neves, iniciada a principios de la década de 1990, destacando los títulos El Conejo y Hiena (NEVES, 2012a) y El Conejo y Mono (NEVES, 2012b) adaptados e ilustrados por ella, que forman parte de la Colección “Historias tradicionales de los Grupos Lingüísticos de Cabo Delgado”, una provincia del norte de Mozambique. La colección está organizada con el propósito de traducir historias recopiladas en Emakhuwa, Kimwani o Shimakonde al portugués y viceversa y fue financiada por la Comisión Europea en el período 2010-2012. Las obras analizadas tienen como característica el recuento como la valorización de las narrativas orales al trasladarlas al sistema de escritura de la Lengua Portuguesa, por otro lado, la fábula de los animales que cobra vida y voz en los personajes del conejo, la hiena. y el mono vivifica los valores a ser (re) configurados por los lectores. Ciertamente, sistematizar por escrito las narrativas comunes a los niños a través de la oralidad contribuye al mantenimiento de la cultura.

Palabras clave: infancia; Mozambique; literatura; cuento

Introdução

O presente artigo busca dar visibilidade à produção para infância da escritora moçambicana Angelina Neves, em particular, para a coleção Histórias Tradicionais dos Grupos Linguísticos de Cabo Delgado, uma província ao norte de Moçambique.

A coleção tem como objetivo a tradução de histórias recolhidas em algumas línguas bantu faladas, maioritariamente, no norte de Moçambique, tal é o caso de Emakhuwa, Kimwani ou Shimakonde, para o Português e vice-versa, sendo financiado pela Comissão Europeia no período de 2010-2012. A materialização foi concebida pela Fundação Aga Khan, uma rede de desenvolvimento com ações centradas na província de Cabo Delgado, e contou com a coordenação de Américo Boaze e Ana Maria Pondeca, para além do apoio financeiro da União Europeia. É composta de 24 títulos, escritos entre os anos de 2010 e 2012, entre eles, O Coelho e a Hiena (NEVES, 2012a) e O Coelho e o Macaco (NEVES, 2012b).

Neste artigo, especificamente, debruçamo-nos sobre os títulos O Coelho e a Hiena (NEVES, 2012a) e O Coelho e o Macaco (NEVES, 2012b), que foram adaptadas e ilustradas por Angelina Neves. Essa escolha se deve porque somos da opinião de que sejam muito representativos no que tange aos valores e elementos intrínsecos à convivência em comunidade, como advogam os princípios que sustentam a educação moral nas sociedades africanas tradicionais. No entanto, a nossa eleição não coloca os demais livros da autora em segundo plano, servindo, apenas, como materiais que ajudam a mostrar a visibilidade da sua produção para infância, associada à sua preocupação com a formação das gerações vindouras.

A escritora e educadora moçambicana Angelina Neves, a “mãe da literatura infanto-juvenil moçambicana”, como carinhosamente é tratada nesse contexto literário, responsável pela adaptação e ilustração das narrativas, tem o seu trajeto de vida marcado pela dedicação aos direitos da infância e, como resultado, teve reconhecimento e premiações recebidas por várias organizações, como da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) e da Save the Children.

Neves possui um acervo imensurável de publicações individuais e em coautoria, publicizadas em formato livro, e contribuições em diferentes jornais e materiais didáticos. Iniciou a sua produção para infância no início da década de 1990, e continua a desenvolver sua verve artística, basta lembrarmos seu mais recente livro Por que é um livro mágico? (LOPES; NEVES, 2020), em coautoria com Pedro Pereira Lopes. Seu ativismo pela causa da infância, na busca de produzir e fazer circular os livros, continua a resistir. Reformada (aposentada), alimenta atualmente o desejo de construir uma biblioteca comunitária em um parque em Ponta do Ouro, na província de Maputo, sul de Moçambique, onde natureza, infância e leitura estejam integradas.

O artigo, inicialmente, apresenta elementos históricos de Moçambique que estão relacionados à trajetória da escritora - que, embora tenha uma vasta produção, é pouco conhecida fora do país - e as características de seus textos, fixando a leitura sobre dois recontos da referida coleção, como já destacado.

A produção para infância de Angelina Neves e suas características

Enquanto criança eu deixei de ter os ‘adultos’ em consideração! Descobri muito cedo que eles: não eram ‘fortes’ e não podíamos contar com eles para nos protegerem - morriam assim, sem mais nem menos ficavam doentes - além disso, não percebiam muito sobre a vida e andavam sempre a ‘guerrear-se’, a fingir que sabiam tudo e mais que os outros, a mentir uns aos outros e a nós (as crianças), a dizerem e desdizerem coisas e tinham medo de tudo (dos outros, dos chefes, dos familiares, do que se dizia ou não dizia, dos protocolos e das modas, dos animais, de deuses e de demónios, da trovoada...), eu sei lá! - eram seres ‘estúpidos’ que não mereciam muita consideração da minha parte! (NEVES, 2010).

Nascida da década de 1950, na cidade de Lourenço Marques, hoje Maputo, Moçambique, Angelina Neves, a mais velha de cinco irmãos, perde a mãe ainda criança e o pai passa a definhar por 10 anos, assumindo, assim, responsabilidades muito cedo. Nesses cuidados com o outro ela vai se constituindo, valorizando mais a infância do que a adulteza. De família de origem portuguesa, teve uma infância entre histórias narradas e livros lidos; na adolescência, os livros proibidos e o encontro com os ideais de liberdade propagados pela Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO).

O conjunto da produção de Angelina Neves para infância é o mais variado possível. Pedro Pereira Lopes (2020), debruçando-se sobre as características desse fazer, organiza-a, de forma geral, a partir de três grupos:

[....] recontos com características pedagógicas (como as fábulas), recontos com finais invertidos (como, por exemplo, ‘Ontem e Hoje - contos tortos e os direitos’, ainda com um tom pedagógico) e contos de autor (outras fábulas e contos de intervenção social com o objectivo de informar ou emponderar a criança. De qualquer forma, os seus textos, sempre contos, ajudam a criança a se descobrir e se construir.

A organização proposta por Lopes (2020) dá dimensão da extensa produção da autora e a variedade que nela está contida, e sua percepção da obra está localizada enquanto leitor e também escritor para infância, e é um convite a outros possíveis (re)arranjos. Convite este que aceitamos e, em um exercício de sistematizar parte da produção de Neves dedicada às infâncias, elencamos três grandes grupos: 1) produção didático-informativa, que abarca os “livros didáticos para a fase pré-escolar” (OLIVEIRA, 2011, p. 85), revistas e livros informativos, compreendidos como “livros que convidam a uma reflexão, e livros que informam sobre tudo aquilo que as crianças veem de maneira fugaz na vida real” (GARRALÓN, 2012); 2) recontos, enquanto tradução de cultura oral para uma cultura grafada e também recriação, reconstrução de tradições que não são estáticas (SISTO, 2010); e 3) narrativas contemporâneas, tendo como uma de suas características a interdependência de linguagem verbal e visual na composição do livro (LAJOLO; ZILBERMAN, 1985).

A partir disso, consideramos, a seguir, os elementos do contexto histórico com o qual essa vasta produção dialoga.

Alguns elementos sobre a história de Moçambique

Tem várias versões, dependendo do ‘ponto de vista’ (como tudo na vida, no tempo, na história pessoal ou mundial!). (NEVES, 2010).

Para compreender alguns elementos e características de sua produção, é necessário considerar o contexto histórico em que Angelina Neves se insere: é um corpo branco, neta e filha de portugueses nascidos na, então, “província de Portugal” (NEVES, 2010), intensamente envolvida nos processos de construção de projetos políticos para uma Moçambique independente.

Retrocedamos no tempo, muito antes de suas primeiras publicações na década de 1990, em um passado comum entre Moçambique e Brasil: o colonialismo português. Portugal enquanto possível ligação é também de distanciamento, pois a realidade colonial na América pertence aos tempos dos séculos XVI ao XIX, e na África o colonialismo português se desenvolve intensamente no século XIX e os processos de independência acontecem na segunda metade do século XX.

Assumindo a possibilidade de anacronismos, ambas as ações coloniais constroem justificativa e legitimação na tarefa de contribuir para expandir o projeto civilizador eurocêntrico, enquanto para os colonizados a experiência colonial é de barbárie (MENESES, 2018). A presença portuguesa na costa oriental de África remonta ao século XVI, momento de expansão ao Oriente, a forma era de sistema de feitorias e portos para abastecimento desta nova rota. Destacamos que essa região de África manteve há séculos relações comerciais e culturais no espaço do Índico, sem interferências europeias. Conforme Sherif (2010, p. 626):

Por volta do fim do século VII, portanto, tinham se restabelecido sólidos laços comerciais entre a costa da África oriental e as margens setentrionais do oceano Índico. A crescente demanda de marfim na Índia permitiu ao menos a criação de laços comerciais entre as duas regiões de ‘floresta’, e o mercado indiano serviu a África oriental até o século XIX. Em troca, os africanos orientais provavelmente recebiam uma variedade de artigos manufaturados, incluindo tecidos e pérolas. Tais trocas sustentavam as cidades-estado fundadas ao longo da costa.

O trecho de Abdul Sherif (2010) indica a existência de fluxos comerciais. A “novidade” desses trânsitos pela África oriental era tão somente pela experiência portuguesa, essa nuance fratura a concepção de que a presença europeia é arauto de civilidade e reconhece populações africanas dessa região como agentes históricos não passivos, que são necessários para o “sucesso” das empreitadas coloniais portuguesas, como vemos na história “Em Nampula, na Ilha de Moçambique” (NEVES, 1999), em que a personagem Sura, ao pedir uma história sobre a Ilha de Moçambique, escuta de uma senhora os elementos que motivaram a escolha da ilha como a primeira sede do Governo colonial português: “[...] holandeses também queriam a ilha para eles e por isso cercaram-na com barcos e destruíram a cidade em 1607. Conta-se que os portugueses foram salvos pela população da costa, com quem tinham boas relações” (NEVES, 1999, p. 7).

As feitorias portuguesas eram mantidas, em sua maioria, sob a autorização dos potentados locais, baseada em muita diplomacia, longas negociações e presentes, a título de direito de passagem e estabelecimento temporários. A necessidade de garantir o fluxo constante de mercadorias tornava a cordialidade das relações essenciais - a cordialidade portuguesa não é isenta de relações violentas em muitos níveis, como a nossa experiência colonial brasileira demonstra -, na qual portugueses figuravam como intermediários comerciais, assim como tantos outros que havia naqueles tempos. Durante os séculos XVIII e XIX, Portugal reivindicava, mas não exercia de fato suserania sobre a província de Gaza, ao sul de Moçambique. As relações comerciais são características desse território de domínio português e duram todo o período do tráfico de escravizados, como salienta Zamparoni (2012, p. 35):

É certo que a abolição formal do tráfico pelas autoridades portuguesas não significou a supressão da escravatura, e mesmo quando esta foi legalmente banida, em 1879, persistiram práticas de tipo escravista mais ou menos escamoteadas sob fórmulas jurídicas diversas. Entretanto, as abolições do tráfico e da escravatura apontavam para uma necessária reorientação da prática colonial e prenunciavam o desencadeamento do processo de paulatina substituição do caráter mercantil pela atividade produtiva intrínseca ao capitalismo da segunda metade do século XIX, ainda que tal reorientação, de fato, pouco tenha mudado as condições impostas aos trabalhadores africanos.

No final do século XIX, constitui-se, então, outra forma de colônia baseada na prestação de serviços, como portos e ferrovias, e também no fornecimento de força de trabalho migrante para as colônias vizinhas. Os trabalhadores migrantes eram instalados em regiões da atual África do Sul, onde havia plantations em áreas controladas pelas companhias concessionárias capitalistas. Enfrentavam extensas jornadas, e somada à política de cobrança de impostos da população autóctone pagos à coroa portuguesa, tratava-se de trabalho compulsório. A conquista militar e o estabelecimento de formas de controle sobre a força de trabalho são a tônica desse momento histórico do colonialismo português, cujo discurso colonial se estrutura na “necessidade de se obter força de trabalho” (ZAMPARONI, 2012, p. 43), o qual adentra o século XX.

A história colonial portuguesa em Moçambique é um contexto de tramas sociais mais amplas, que inclui potentados, recusas à dominação, disputas entre populações autóctones, exploração por parte de empresas de capital europeu, coexistência de cenários em uma complexa realidade, na qual não se pode reduzir colonizadores, colonos e colonizados a unidades monolíticas. Nossas breves entradas históricas tencionam complexificar nossa compreensão sobre o domínio português em Moçambique.

Todo o projeto colonial, como a história da humanidade demonstra, tem como elemento central o domínio e a exploração não apenas de bens e de terras, mas, especialmente, das culturas e mentes dos seus habitantes, por meio da coloniadade. Esse processo de colonizar mentes por meio de convencimento é atravessado por violências estruturadas em relações de poder. A empreitada colonial portuguesa se encontra comumente extremada em duas posições aparentemente opostas, mas que são faces de um mesmo projeto: traços paternalistas, na forma de integração e assimilação; e um conjunto de indicadores estatísticos e materiais, que relevam a iniquidade, a segregação racial, a exploração, o subdesenvolvimento econômico.

Dessa maneira, a violência efetiva-se por formas relacionadas à colonialidade do saber e à colonialidade do ser. A primeira diz respeito ao conjunto das epistemologias e da produção de conhecimento na tradição europeia que reproduzem os regimes de pensamento colonial (QUIJANO, 2010); já a segunda refere-se à experiência vivida da colonização e seu impacto na linguagem e na construção da subjetividade (MALDONADO-TORRES, 2007).

Enquanto uma colonização epistêmica forçada, o resultado são mentes dominadas de tal forma que a superioridade eurocêntrica é naturalizada: a Europa é detentora da civilidade e passa a desprezar culturas e histórias autóctones, pois estas assumem o lugar de atraso e a forma de lidar com essa realidade é a superação do estado de barbárie. Essa elaboração, aqui simplificada, dá-se em uma rede de relações e elaborações que fundamentam o projeto colonial e que, enquanto colonialidade, existem após os processos de independência.

Durante o século XX, as lutas de independência se intensificaram em regiões de África e Ásia. Nesse contexto, na Moçambique da década de 1960 ocorre o desenvolvimento de movimentos nacionalistas contrários ao colonialismo, muitos dos quais eram armados, como no caso da FRELIMO. Em 1964, tem início a guerra por independência, que se estendeu até 1974, com a assinatura dos Acordos de Lusaka, em 7 de setembro do mesmo ano, e a proclamação da independência nacional, em 25 de junho do ano de 1975. A dimensão dos conflitos está inscrita no cotidiano moçambicano e aparece em alguns livros de Angelina Neves (2000), como em uma das viagens da personagem Sura pelas 11 províncias de Moçambique, da coleção “Viagens com a Cabaça Mágica”:

Eu disse à senhora que não gostava nada de guerras e lutas. Eu sou como o meu avô. Mas a titia explicou: - Há alturas em que a luta parece a única solução. Temos de lutar para não morrermos. Temos de sacrificar a nossa vida para que os nossos filhos possam viver melhor. Foi isso que levou os camaradas dessa FRELIMO a lutar contra todas as injustiças. (NEVES, 2000, p. 5).

O trecho nos dá dimensões das tensões latentes no período colonial, as quais não se dissipam com a independência, mas ganham outros contornos com a Guerra Civil entre FRELIMO e a Resistência Nacional Moçambicana (RENAMO), que perdurou de 1977 até 1992, com a assinatura de Acordos Gerais de Paz, em Roma, em 4 de outubro, após um período extenso de negociações entre as entidades envolvidas no conflito e com a Guerra Fria como pano de fundo.

Após a independência, a Língua Portuguesa foi instituída como oficial e garantia da unidade nacional, não atribuindo às línguas autóctones moçambicanas uma função social específica. Nesse movimento, as identidades tradicionais e as heranças do período colonial e racista são contrapostas ao projeto que se chamou de criação de um “Homem Novo” para superação de um passado colonial. Nesse projeto, a FRELIMO buscou estabelecer uma identidade moçambicana, com elementos presentes nas declarações de Eduardo Mondlane e de seu sucessor, Samora Machel.

Durante o projeto colonial português, foram intensificadas as separações das populações regionais de Moçambique e, no contexto de sua luta por independência, a FRELIMO reafirmou a luta através da oposição às diferenças étnico-raciais. Para findar as diferenças - que sustentaram e foram sustentadas pelo projeto colonial -, a integração do país tem a forma do “Homem Novo” e um projeto para a nação.

O discurso colonial português da assimilação apregoava o não racismo, enquanto o racismo violento da ordem colonial moçambicana se expressava em todas as nuances do cotidiano. Em entrevista, Neves (2010) recorda-se, “[...] com uns 10 ou 11 anos, de um dia ter perguntado ao meu pai por que é que os ‘pretos’ não iam à escola”. Havia, à época, um estatuto indigenista e aparatos de limitação à cidadania imposta sobre as populações autóctones. A FRELIMO constitui-se por pessoas de diferentes configurações raciais, com intenções de independência e projetos diversos para a nação, mas que em certa medida eram possuidores de interseções. Não se posicionar enquanto exclusiva de um pertencimento racial era compreendido como fazer oposição ao projeto colonial, em decorrência desta escolha uma retórica do não racismo vai permear fortemente a FRELIMO (CABAÇO, 2007).

Ao eleger a Língua Portuguesa e promover a marginalização das línguas bantu moçambicanas, não podemos desconsiderar a agência da colonialidade do poder e do ser. Nesse aspecto, o resultado na materialidade foi o fracasso da preservação de valores culturais da sociedade. Hoje, é amplamente defendido o argumento que o respeito e a promoção das línguas autóctones devem ser reconhecidos, antes de tudo, como poderosos meios de democratização; como exemplo disso se tem a “Coleção Histórias Tradicionais dos Grupos Linguísticos de Cabo Delgado”.

A produção de Angelina Neves: formas de contar histórias para crianças

Por que as crianças? Por que o azul? Por que t-shirt e não camisas?! [...] Porque gosto de cores, risos, sinceridade, simplicidade e balões a voar! (NEVES, 2010).

É no contexto das disputas de projetos políticos sobre a sociedade moçambicana, no qual a condição para criação de políticas públicas é fomentada por organismos internacionais, com interesses diversos no país, que Neves inicia sua escrita para infâncias. Muitos textos são produções com apoio financeiro de organismos internacionais, como o Fundo de Emergência Internacional das Nações Unidas (UNICEF) em parceria com a Secretaria de Estado da Ação Social. Este é caso da coleção Mbeu, em que há livros de sua autoria, o primeiro deles intitulado O Segredo das Vassouras (NEVES, 1991), datado de 1991; e a coleção Vamos Falar, que teve o apoio da Save the Children.

Os títulos que elencamos como produção didático informativa emergem desse cenário, como em O Dia que eu Encontrei uma Mina (NEVES, 1993), em que Rita, em sua tarefa de apanhar lenha, encontra uma mina e aprende sobre a necessidade de percorrer caminhos conhecidos, avisar a toda a gente sobre o perigo, entre outros.

Nas publicações em jornal, destacamos o Suplemento Infantil Njingiritane, encartado no semanário Domingo, no qual, a convite de Jorge Rebelo, membro, no período, do Comitê Político Militar da Frelimo, Angelina Neves começa a colaborar sistematicamente na década de 1980, inserindo narrativas de cunho tradicional e encantatório, para além dos jogos, palavras cruzadas, entre outros assuntos diversos no espaço que ocupava - em média de 16 páginas de tamanho A4 (21cm X 29,7cm), correspondendo a duas páginas do jornal (CAETANO, 2016). Após a saída da escritora do periódico, Mário Lemos, que desde jovem a auxiliava, assume a função por mais 17 anos. A circulação nos dias do hoje comprova o papel importante desempenhado pelo Suplemento Infantil Njingiritane.

O exercício de escrita em jornais e revistas para crianças se constitui um exercício constante na sua carreira, como é o caso da revista Vamos Falar: revista escolar, iniciada em 2010. Escrita em conjunto com Mário Lemos, esse projeto é dedicado às crianças das áreas rurais de Moçambique e, em seu editorial, apresenta-se como “[...] um espaço para as crianças, pais e professores falarem de problemas práticos e soluções” (NEVES; LEMOS, 2010a, p. 2). Entre seus títulos estão A Vida Reproduz-se! (NEVES; LEMOS, 2010a), no qual a centralidade é o ciclo da vida e a necessidade de respeitar nossos corpos e a natureza, e Higiene, Água e Saneamento: Vamos Aprender um Pouco Mais? (NEVES; LEMOS, 2010b), focado na importância de ter uma boa higiene, água e saneamento.

Insere-se também nesse grupo o que Oliveira (2011, p. 85) elencou como “livros didáticos para a fase pré-escolar”. São títulos como Boa Noite (NEVES, 1992), onde um macaco com medo da escuridão tem a ajuda de Dona Lua para perder seus medos e adormecer, e Vamos Contar? (NEVES, 2003), que em sua capa se apresenta como livro didático para o ensino inicial, composto por um conto intitulado “Uma mão, cinco dedos e dois contos” e fichas de apoio com ideias e sugestões.

O grupo composto por títulos de recontos está organizado a partir de narrativas que apresentam movimentos de escuta e recolha de histórias de diferentes lugares, como é o caso da coleção Histórias Tradicionais dos Grupos Linguísticos de Cabo Delgado, com livros publicados entre 2010 e 2012, a exemplo de Contos Tortos e os Direitos ou a Mulher nos Contos Tradicionais (NEVES, 2011), que é uma coletânea com 24 contos costurados pela narrativa de Ilundi, personagem que junto com sua prima Marta ouve as histórias de sua avó e sua tia. Os livros que analisamos neste artigo, O Coelho e a Hiena (NEVES, 2012a) e O Coelho e o Macaco (NEVES, 2012b), inserem-se no grupo de recontos.

O grupo de narrativas contemporâneas abarca parte desses títulos, como A Bolinha Verde (NEVES, 2001), história em que a personagem Nada cria bolas de fogo para ter companhia, e uma delas, cansada de brilhar, apaga-se e inventa sementes que têm o segredo da vida. A história possui final aberto e provoca cada leitora e leitor a criar um desfecho, o que pode ser pedagogicamente explorado. Além desse, o livro Uma Viagem ao Futuro (NEVES, 1994) também está nesse grupo, integra a coleção Tan Tan e conta a história de um menino que viaja de barco e chega até uma ilha chamada Futuro. Embora as obras não tenham ilustrações que avançam as páginas, as linguagens visual e verbal tecem a narrativa em conjunto e interdependência.

O maravilhoso e o fantástico, umas das especificidades centrais de uma obra literária (SARAIVA; LOPES, 1989), são elementos presentes em A Bolinha Verde (NEVES, 2001) e Uma Viagem ao Futuro (NEVES, 1994). Além disso, uma característica marcante na obra de Neves é o realismo animista, que, segundo Garuba (2012, p. 246), é uma “[...] prática predominantemente cultural de harmonizar um aspecto material físico, frequentemente animado”. Nessa compreensão animista, em Uma Viagem ao Futuro (NEVES, 1994), o barco que a personagem do menino usa em sua viagem tem sentimentos e pensamentos. Em A Bolinha Verde (NEVES, 2001), os elementos do Universo são as personagens e possuem rostos, diferenciando-se do realismo mágico, pois as narrativas como as de Angelina Neves, em seu contexto de produção, partem de culturas que tradicionalmente possuem sistemas de pensamento animista, em que todas as coisas, incluindo pessoas, animais, características geográficas, fenômenos naturais e objetos inanimados, possuem vida.

Para além das coisas possuírem vida nas narrativas de Neves, ressalta-se também que buscam “[...] empenhar e reelaborar os impulsos e os recursos comunicativos menos conscientes, os gostos, atitudes e valores que se enraízam através do aprendizado, decisivamente formativo, da língua materna e de uma dada vida social” (SARAIVA; LOPES, 1989, p. 17). Portanto, nos textos dessa autora, temos uma densidade de elementos formativos para o público infantil, que aludem a uma realidade concreta.

Angelina Neves ilustra considerável parte dos livros que escreve. Esse exercício é desenvolvido e ampliado a partir de workshop realizado por Ziraldo em 1992, em Maputo. Segundo a escritora, ela era a única mulher presente e também a mais velha (à época, tinha 39 anos) entre os presentes, que tinham entre 19 e 23 anos (NEVES, 2010).

Contos e (re)contos: diferentes formas de narrar

Os recontos são uma estratégia de escrita muito usual em diferentes países, e não poderia ser diferente em Moçambique, com farto material de narrativas orais. Nesse fazer, ressaltamos a coleção Contos e Histórias de Moçambique, composta por 10 volumes, que surge da colaboração entre o Centro de Ensino e Língua Português da Escola Portuguesa de Maputo (CELP-EPM) e a Fundación Contes Pel Món, de Barcelona. Esse projeto tem como objetivo principal divulgar, por meio de contos da tradição, o rico manancial do imaginário popular moçambicano e apresentá-los às crianças. A coleção recebeu a coordenação editorial de Teresa Noronha (CELP-EPM) e Ruth Banón Méndez (Fundación Contes Pel Món), e foi publicada em Maputo/Moçambique entre os anos de 2009 e 2014. No Brasil, a coleção recebeu a denominação de Contos de Moçambique pela editora Kapulana, que publicou os títulos entre os anos de 2016 e 2018. Nessa coleção, são apresentados escritores conhecidos como Mia Couto, Marcelo Panguana e Ungulani Ba Ka Khosa, e outros a apresentar seus primeiros trabalhos, como Tatiana Pinto, Pedro Pereira Lopes, entre outros.

A ampliação do reconto a partir da política de recolha de histórias e publicação em formatos tradução e adaptação para a língua portuguesa e línguas locais moçambicanas é o caso da Coleção Histórias Tradicionais dos Grupos Linguísticos de Cabo Delgado. Essa escolha de publicação preocupada com questões linguísticas é presente em outras coleções de livros para infância em Moçambique. São movimentos que buscam, de acordo com os agradecimentos do livro, “integrar a cultura deles em material do sistema educativo” (NEVES, 2012a, p. 2). Assumindo que língua é cultura e identidade de um povo, não restam dúvidas que as comunidades linguísticas da província em referência se sentem representadas nas narrativas que mostram a sua cultura e promovem fraturas na colonialidade.

Para Jan Vansina (2010, p. 139), na África encontramos muitas “civilizações da palavra falada”, mas essa aparente ausência da escrita não deve ser encarada pela compreensão de sociedades grafocêntricas, como a nossa. É preciso considerar o poder que a palavra dita carrega na criação e manutenção de sistemas de organização da vida e do mundo. Memória grafa-se e postula-se também na voz e, por isso, na forma do texto, há a repetição, em um jogo poético de linguagem que cria ritmo na história (MARTINS, 2003).

Dessa maneira, identificamos os títulos O Coelho e a Hiena (NEVES, 2012a) e O Coelho e o Macaco (NEVES, 2012b) como recontos, produções literárias que são reconstruções de contos de narrativas africanas de expressão oral. Nesse sentido, o processo de feitura dos recontos ultrapassa a autoria individual, pois da escuta, da recolha, do registro e, por fim, do reconto no papel, diferentes pessoas estão implicadas nesse processo.

Em seu livro Contos Tortos e os Direitos ou a Mulher nos Contos Tradicionais, Angelina Neves (2011, p. 1) expõe elementos que compõem a dinâmica de seus processos literários em intenso diálogo com contos populares africanos:

[...] Estas recolhas são feitas entre professores, educadores e ‘avós’. Na sua maioria os contos chegam até mim manuscritos, para que eu seleccione alguns, os ‘harmonize’ ou adapte e transforme numa linguagem mais acessível às crianças, a fim de serem publicados em livrinhos infantis. É de notar que não saberia dizer se um conto é do Norte ou do Sul de Moçambique - com toda a movimentação de pessoas devido às guerras, e mesmo ‘missões de serviço’, ser-me-ia impossível dizer de onde é originário um conto uma vez que o mesmo conto, ou um similar, me chega de vários locais diferentes e, inclusive, há contos que não saberia dizer se são uma adaptação africana dum conto árabe, europeu, indiano ou se terá sido adaptado pelos árabes, europeus, indianos a partir de um conto africano.

As narrativas nos territórios e nos tempos transitam, agora, com nova forma: a grafada. Demarcarmos enquanto outra forma, pois os trânsitos já eram realidade em culturas da oralidade. Assim, o suporte livro cria outros caminhos em trilhas muito antigas. As histórias recontadas pressupõem uma literatura oral que atravessa gerações pela palavra e elaborações da memória, sistematizando informações e conhecimentos sobre a humanidade, como salienta Sisto (2010):

[...] a literatura oral africana (mito, conto, provérbio, adivinhação, etc.) é uma criação grupal, e deve ser vista assim; portanto, tem certas regras e, para compreendê-la, é preciso analisar sua forma e seu conteúdo a partir de um enfoque multidimensional. O ato de contar é ato de reunir, ato de reencontro, de comunhão (portanto, rito coletivo). E essas histórias, através do tempo são enriquecidas, refeitas muitas vezes, pela interação com o público. No processo de produção e difusão dessas obras culturais, o ouvinte atua como coprodutor, numa interação constante entre autores e destinatários. Desta interação resulta uma estimulante energia de criação e uma participação de toda a coletividade no enriquecimento do patrimônio comum.

As histórias são fonte de conhecimento sobre as sociedades e, ao recontar, a autoria é refeita, coexiste, então, a forma oral e escrita, possuindo pressupostos distintos em relação dialógica. Angelina Neves tem a autoria ao recontar e, em seu fazer literário, com o exercício de reconstrução da narrativa são inseridos elementos de outras histórias e criações, reinventando as histórias para dialogar com a leitora ou o leitor, evocando e perpetuando valores humanos compartilhados (BÂ, 2008). No caso das sociedades africanas, esse recontar é indispensável para a sua permanência, se tivermos em consideração que os valores e os elementos tradicionais em que se alicerçam essas sociedades centram-se, fundamentalmente, na transmissão oral de geração para geração.

Assim, a valorização, o redescobrimento e a reescritura de narrativas oriundas da oralidade é uma constante nos países de língua portuguesa pós-independência (MACÊDO; CHAVES, 2007; PAZ, 2017). No caso da literatura para infância, tal dado fica mais acentuado.

De coelhos, hienas e macacos: o fabulário moçambicano

Os livros O Coelho e a Hiena (NEVES, 2012a) e O Coelho e o Macaco (NEVES, 2012b), publicados em 2012, têm adaptação e ilustrações de Angelina Neves, que foram realizadas com fotografias e técnica de clipart. Embora esta ideia seja interessante, por vezes, algumas imagens se apresentam desfocadas, provocando uma imprecisão na imagem, não qualificando o trabalho.

O livro O Coelho e o Macaco (NEVES, 2012b), para além de estar em língua portuguesa, também teve a tradução por Abudala Machude, Curtume Chande e Davety Mpiuka para as línguas bantu da província de Cabo Delegado, concretamente: o Kimwani, falado em Mocímboa da Praia, Macomia, Quissanga, Ibo e nas Ilhas do Arquipélago das Quirimbas, Cidade de Pemba, capital da província e Vila de Palma; o Shimakonde, que marca presença em Macomia, Meluco, Mocímboa da Praia, Mueda, Muidumbe, Nangade e Palma; e, por fim, o Emakhuwa, falado em algumas regiões fronteiriças com a província de Nampula.

A narrativa curta, de 24 páginas, gira em torno de dois animais da fauna moçambicana, designadamente, o coelho e o macaco, dois amigos que estabelecem diversas relações quotidianas, com foco na plantação de feijão, em um ambiente fraternal.

No entanto, as boas relações iriam comprometer-se pela falta de honestidade de ambos ao não dizerem a verdade um para o outro quando cometem algo de errado, preferindo inventar justificativas infundadas, tal como ilustram as falas do macaco e do coelho, respectivamente: “Sabes amigo, decidi dar os ovos à galinha.” (NEVES, 2012b, p. 10); “Sabes amigo, decidi tornar a plantar o feijão. Assim, vamos ter mais feijão!” (NEVES, 2012b, p. 18). Nesses casos, trata-se de justificações ilógicas se tivermos atenção que a galinha não choca os ovos cozidos, assim como o feijão cozido que não pode ser plantado.

Os dois amigos, felizmente, ao descobrirem as suas ações maléficas, optaram por retificar o seu comportamento, propondo-se a não repetir os mesmos deslizes do passado. Portanto, “os dois prometeram que nunca mais iam ser gulosos” (NEVES, 2012b, p. 22).

Sobressai como ensinamento dessa fábula que sempre devemos dizer a verdade. Nas nossas ações temos que sempre pensar no outro, o que favorece a vivência em comunidade. Por conseguinte, é importante ressaltar que as relações que estabelecemos com o outro são importantes, posto que elas nos constituem como pessoas passíveis de viver em comunhão.

A narrativa é recomendável para crianças em fase de iniciação da leitura se tivermos em consideração a mancha gráfica do texto, que apresenta palavras em caracteres tipográficos maiores, com um vocabulário acessível, as imagens e muita cor que oferecem mais vida ao texto, para além de pessoas interessadas em ter conhecimentos relativos à cultura moçambicana.

Em O Coelho e a Hiena (NEVES, 2012a), a narrativa de 16 páginas acompanha as personagens em diferentes situações, onde a hiena tira vantagem da suposta boa visão, ignorando a excelente visão do coelho, atribuída ao fato de comer muitas cenouras. Em uma das ocasiões, quando encontram mel, a hiena prontamente diz: “Este mel é meu. Fui eu que o encontrei primeiro.” (NEVES, 2012a, p. 4) e devora todo o mel sozinha. Esta premissa se repete com a abóbora. Cansado da situação, o coelho pensa em “lhe dar uma lição” (NEVES, 2012a, p. 9). Inicialmente, a personagem do coelho parece ingênua, o mesmo que aconteceu na narrativa anterior d’O Coelho e o Macaco (NEVES, 2012b). Contudo, os animais pequenos, tais como o coelho, a tartaruga, entre outros, são conhecidos pela esperteza em várias narrativas africanas de expressão oral (ROSÁRIO, 1989). Nesse caso, o coelho também mobiliza sua astúcia, contribuindo para um desfecho interessante e pedagógico à narrativa.

Para dar uma lição à hiena, a personagem do coelho, ao encontrar grandes animais discutindo sobre o roubo da comida, resolve dizer “[...] foi a hiena. Ela vê tudo antes de todos” (NEVES, 2012a, p. 11). Diante disso, a hiena precisa fugir dos animais que agora estão furiosos e agastados com a situação.

Salientamos que a situação referente ao encontro de grandes animais, que discutiam uma situação pontual sobre o caso vertente de roubo de comida, onde “[...] alguém tinha roubado a comida que tinham escondido” (NEVES, 2012a, p. 10), alude aos valores tradicionais, à solidariedade africana, que deve ser entendida, na perspectiva de Golias (1993), como a necessidade que os membros de uma comunidade africana têm de cumprir os deveres recíprocos entre os membros, que dá direito à alimentação e a um alojamento. No texto em referência, da necessidade de garantir a alimentação do grupo, surge a necessidade de reunir o coletivo composto pelos animais grandes com vista a solucionar o imbróglio.

Nas sociedades africanas, o coletivo e a hierarquização das idades são tidos como valores tradicionais que são intrínsecos às estruturas organizacionais dessas sociedades. É aí que os interesses do coletivo suplantam os interesses do indivíduo, bem como os mais velhos surgem como sujeitos com mais legitimidade para discutir os aspectos que enfermam ou preocupam a comunidade.

Na sequência do sucedido, a hiena aprende que mentir e contar vantagens não são a melhor escolha para manter amizades. Quando estavam já distantes da perseguição, ela confronta o coelho sobre sua mentira: “Por que é que mentiste? Não sabes que não se deve mentir?” (NEVES, 2012a, p. 14). Ele responde que não mentiu, estava apenas seguindo a lógica de tudo o que a hiena já dissera. A hiena se vê, então, na necessidade de confessar sua mentira. Diante disso, identificamos regras sociais de comportamento e conduta presentes na narrativa, com o pedido de desculpas e o acordo de que não haverá mais mentiras.

Nas duas narrativas temos, em comum, a personagem coelho, uma figura recorrente em muitas fábulas tradicionais moçambicanas, sempre com qualidades únicas, como astúcia, inteligência, atenção, entre outras. Os contos em que esta personagem é parte integrante acompanham a trajetória de vida de muitas crianças, quer seja através do reconto oral, diante de uma fogueira, ou por meio da leitura, em que os mais velhos dão a conhecer vários ensinamentos de convivência com o outro, procurando, em parte, trazer à superfície os preceitos que desde os tempos remotos serviram de sustentação das comunidades africanas. Ou seja, buscam resgatar a educação tradicional, que, no entendimento de Golias (1993, p. 13), é aquela que:

[...] dada à criança não lhe permitia individualizar-se do grupo; ela visava à formação da personalidade no sentido de dependência ao grupo e pouco favorecia o desabrochamento de qualidades humanas individuais através do desenvolvimento da sua consciência; ela procurava fazer do indivíduo uma parte integrante da sociedade onde vivia.

Os valores morais e éticos que se materializam nas duas obras são deveras importantes para a manutenção da vida harmoniosa no seio da coletividade, bem como o favorecimento da coesão do grupo. Portanto, a sua aprendizagem e incorporação, desde as idades iniciais, é tida como indispensável para a subsistência da coletividade.

Das necessidades de conclusão

O exercício de sistematização da produção de Angelina Neves é importante para a história da literatura para infância em Moçambique, pois, sem sombras de dúvidas, seus escritos dialogam com a nação em construção pós-independência e vão nos lançando pistas da necessidade inicial de uma produção que focasse na educação das e para as crianças. Desse modo, partilhamos a percepção de que a preocupação com a educação, uma educação integral enquanto concepção teórica, é característica da autora em seus projetos literários de ontem e hoje.

Seus escritos fazem parte da formação de diferentes gerações de leitores. Para essa afirmação, tomamos como exemplo o Suplemento Infantil Njingiritane, encartado no semanário Domingo, e a coleção Viagens com a Cabaça Mágica. O primeiro circula há mais de 30 anos em Maputo, embora tenha a restrição geográfica, segundo depoimento de Angelina Neves, escritores de livros para infância como Humberto Ossman e Mário Lemos aguçaram sua capacidade de escrever a partir dele (CAETANO, 2016). Já os livros da Coleção, financiados pela Fundação Bernard Van Leer, ao focalizarem as 11 províncias, também circularam por elas, sendo que suas edições tinham número mínimo de 10 mil exemplares.

Sobre as categorias, pensamos que é necessário considerar a forma e o conteúdo nas possíveis elaborações que se realizam. No caso dos livros O Coelho e a Hiena (NEVES, 2012a) e O Coelho e o Macaco (NEVES, 2012b), a organização dialoga com a categoria de reconto. Considerando a origem da história, a recolha de contos tradicionais dos grupos linguísticos de Cabo Delgado perpassa o conteúdo da narrativa e a forma literária dessa produção. O reconto é tradução de cultura oral para uma cultura grafada e também (re)criação e (re)construção de tradições que não são estáticas.

Os recontos de Angelina Neves têm aproximações e distanciamentos com características de narrativas africanas de expressão oral. Estabelecemos esse diálogo tendo o cuidado de não criar fórmulas ou tipos narrativos. Nesse sentido, sobre essas aproximações, consideramos que os temas nos contos de expressão oral são de natureza local, social, política ou moral (ROSÁRIO, 1989); no caso específico dos dois livros, são conflitos de natureza moral. No caso dessa coleção, as obras não possuem referência ao contexto atual do momento da publicação dos livros, pois em outros trabalhos de Neves há atualizações de situações socialmente conhecidas, o que pode ser considerado critério para distinção entre os recontos e as narrativas contemporâneas em suas produções.

As duas histórias não têm função etiológica, ou seja, um modo figurado ou fictício de explicar o aparecimento e a razão de ser do mundo físico ou da sociedade em que se inserem. Tratam-se de livros produzidos no âmbito da integração da cultura local no sistema educativo.

Valorar as narrativas orais e transpô-las para o sistema da escrita da Língua Portuguesa se anuncia como exercício fértil e exitoso na produção para infância de Angelina Neves, seja nos livros ou nas Revistas. No caso dos títulos analisados, o fabulário dos animais que ganham vida e voz nas personagens do coelho, da hiena e do macaco vivificam os valores a serem (re)configurados pelo leitor.

Retomamos a uma das epígrafes utilizadas neste texto para fechá-lo: “Por que as crianças? Por que o azul? Por que t-shirt e não camisas?! [...] Porque gosto de cores, risos, sinceridade, simplicidade e balões a voar!” (NEVES, 2010), porque, talvez, seja a melhor definição da escritora feita por ela mesma, e também de seus livros para infância, permeados de coloridos (cores), alegrias (risos), sinceridade, simplicidade e leveza (balões a voar)!

REFERÊNCIAS

BÂ, A. H. Amkoullel, o menino fula. 2. ed. Tradução de X. S. Vasconcellos. São Paulo: Palas Athena: Casa das Áfricas, 2008. [ Links ]

CABAÇO, J. L. O. Moçambique: identidade, colonialismo e libertação. 2007. 475f. Tese (Doutorado em Antropologia) - Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, 2007. [ Links ]

CAETANO, S. A dimensão pedagógica do suplemento infantil Njingiritane. Maputo: Alcance, 2016. [ Links ]

GARRALÓN, A. O livro informativo. Revista Emília, jun. 2012. Disponível em: https://revistaemilia.com.br/o-livro-informativo/#. Acesso em: 09 fev. 2021. [ Links ]

GARUBA, H. Explorações no realismo animista: notas sobre a leitura e a escrita da literatura, cultura e sociedade africana. Tradução de E. S. Tarouco. Nonada: Letras em Revista, Porto Alegre, v. 2, n. 19, p. 235-256, out. 2012. [ Links ]

GOLIAS, M. Sistemas de ensino em Moçambique: passado e presente. Maputo: Escolar, 1993. [ Links ]

LAJOLO, M.; ZILBERMAN, R. Literatura infantil brasileira: história e histórias. São Paulo: Ática, 1985. [ Links ]

LOPES, P. P. Angelina Neves: uma andança sem destino e de como inspirou a minha escrita. O País, Maputo, 07 set. 2020. Disponível em: http://opais.sapo.mz/angelina-neves-uma-andanca-sem-destino-e-de-como-inspirou-a-minha-escrita. Acesso em: 07 dez. 2020. [ Links ]

LOPES, P. P.; NEVES, A. Por que é um livro mágico? Ilustrações de M. Negro. Maputo: Escola Portuguesa de Moçambique, 2020. [ Links ]

MACÊDO, T.; CHAVES, R. Literaturas de Língua Portuguesa: marcos e marcas - Angola. São Paulo: Arte & Ciência, 2007. [ Links ]

MALDONADO-TORRES, N. Sobre la colonialidad del ser: contribuciones al desarrollo de un concepto. In: CASTRO-GÓMEZ, S.; GROSFOGUEL, R. (org.). El giro decolonial: reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá: Siglo del Hombre, 2007. p. 127-167. [ Links ]

MARTINS, L. M. Performance da oralitura: corpo, lugar da memória. Letras, Santa Maria, RS, n. 26, p. 63-81, 2003. [ Links ]

MENESES, M. P. Colonialismo como violência: a “missão civilizadora” de Portugal em Moçambique. Revista Crítica de Ciências Sociais, Número especial, p. 115-140, 2018. Disponível em: https://journals.openedition.org/rccs/7741. Acesso em: 02 mar. 2021. [ Links ]

NEVES, A. A bolinha verde. Maputo: Coopimagem, 2001. [ Links ]

NEVES, A. Boa noite. Maputo: UNICEF, 1992. [ Links ]

NEVES, A. Contos tortos e os direitos ou a mulher nos contos tradicionais. Moçambique: PAWAEDM, 2011. [ Links ]

NEVES, A. Entrevista: Angelina Neves (Educação e Literatura Infanto-Juvenil) - Moçambique - 1a parte. Recanto das Letras, São Paulo, 04 abr. 2010. Disponível em: https://www.recantodasletras.com.br/entrevistas/2177575. Acesso em: 20 maio 2020. [ Links ]

NEVES, A. O coelho e a hiena. Moçambique: Fundação Aga Khan, 2012a. [ Links ]

NEVES, A. O coelho e o macaco. Moçambique: Fundação Aga Khan, 2012b. [ Links ]

NEVES, A. O dia em que eu encontrei uma mina. Maputo: Handicap International, 1993. [ Links ]

NEVES, A. O segredo das vassouras. Maputo: Direcção Nacional de Acção Social/Secretaria de Estado da Acção Social, 1991. [ Links ]

NEVES, A. Uma viagem ao futuro. Maputo: UNICEF, 1994. [ Links ]

NEVES, A. Vamos contar. Maputo: Coopimagem, 2003. [ Links ]

NEVES, A. Viagens com a cabaça mágica 1: Manica. Ilustração de Razac, Humberto, Angelina. Maputo: Fundação Bernard Van Leer, 2000. [ Links ]

NEVES, A. Viagens com a cabaça mágica 4: Nampula. Maputo: Coopimagem, 1999. [ Links ]

NEVES, A.; LEMOS, M. Revista Escolar Vamos Falar: a vida reproduz-se. Maputo, 2010a. [ Links ]

NEVES, A.; LEMOS, M. Revista Escolar Vamos Falar: higiene, água e saneamento: vamos aprender um pouco mais? Maputo, 2010b. [ Links ]

OLIVEIRA, M. A. J. Um passeio panorâmico pela produção literária infanto-juvenil moçambicana: autores e obras. A Cor das Letras, Feira de Santana, BA, v. 12, n. 1, p. 79-92, 2011. [ Links ]

PAZ, D. A. Literatura infanto-juvenil africana no Brasil: um levantamento bibliográfico. Terra Roxa e Outras Terras: revista de estudos literários, Londrina, PR, v. 33, p. 42-52, nov. 2017. [ Links ]

QUIJANO, A. Colonialidade do poder e classificação social. In: SANTOS, B. S.; MENESES, M. P. (org.). Epistemologias do sul. São Paulo: Cortez, 2010. p. 73-118. [ Links ]

ROSÁRIO, L. J. C. A narrativa africana de expressão oral. Lisboa: Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1989. [ Links ]

SARAIVA, A.; LOPES, Ó. História da Literatura Portuguesa. Porto: Porto Editora, 1989. [ Links ]

SHERIF, A. M. H. A costa da África oriental e seu papel no comércio marítimo. In: MOKHTAR, G. (ed.). História Geral da África: África antiga. v. 2. Brasília, DF: UNESCO, 2010. p. 606-626. [ Links ]

SISTO, C. O conto popular africano: a oralidade que atravessa o tempo, atravessa o mundo, atravessa o homem. Tabuleiro de Letras, Salvador, v. 3, n. 1, 2010. [ Links ]

VANSINA, J. A tradição oral e sua metodologia. In: KI-ZERBO, J. (org.). História Geral da África: metodologia e pré-história da África. v. 1. Brasília, DF: UNESCO/MEC, 2010. p. 139-166. [ Links ]

ZAMPARONI, V. De escravo a cozinheiro: colonialismo & racismo em Moçambique. Salvador: EDUFBA/CEAO, 2012. [ Links ]

Recebido: 05 de Maio de 2021; Aceito: 19 de Junho de 2021

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons