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Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade

versión impresa ISSN 0104-7043versión On-line ISSN 2358-0194

Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade vol.30 no.63 Salvador jul./sept 2021  Epub 09-Mar-2022

https://doi.org/10.21879/faeeba2358-0194.2021.v30.n63.p151-165 

DOSSIÊ TEMÁTICO 63

UMA MULHER INSERIDA EM SEU TEMPO: OS ESCRITOS DE FRANCISCA CLOTILDE NA REVISTA A QUINZENA

A WOMAN INSERTED IN HER TIME: THE WRITINGS OF FRANCISCA CLOTILDE IN THE MAGAZINE A QUINZENA

UNA MUJER INSERTADA EN SU TIEMPO: LOS ESCRITOS DE FRANCISCA CLOTILDE EN LA REVISTA A QUINZENA

Cleidiane da Silva Morais*  Universidade Federal do Ceará
http://orcid.org/0000-0003-4180-2651

*Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal do Ceará - UFCE, Fortaleza, Brasil. Membro do Grupo de Estudos de América Latina (UFCE). Bolsista da Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico - FUNCAP. E-mail: cleidimorais2010@hotmail.com


RESUMO

O presente trabalho busca investigar, no recorte temporal das últimas décadas do século XIX, a atuação de mulheres professoras pela conquista do espaço público ocupado por figuras masculinas, seja nas funções de inspetores e diretores escolares, ou como sócios de agremiações literárias e sociedades diversas, que tomaram para si a tarefa de direcionar os rumos das questões atinentes à educação. A investigação se deterá na trajetória de Francisca Clotilde, professora, escritora e jornalista, atentando sempre para a dinâmica conflitual que envolveu sua atuação no cenário letrado. Suas posturas ora constituíram reverberações do conservadorismo católico, ora foram se modificando, mesmo quando os papéis sociais tentavam incutir o contrário. Essas mulheres tomaram as ideias vigentes que lhes designavam as atividades no espaço doméstico, na tentativa de ter reconhecida sua importância na ordem e harmonia da estrutura social, e de reivindicar sua competência para o exercício de funções até então ocupadas por homens, como as de caráter administrativo, seja na Instrução Pública, na Escola Normal ou de participação nos debates das principais questões que direcionaram o estado de coisas àquela época.

Palavras-chave: Francisca Clotilde; instrução moral e religiosa; formação de professores

ABSTRACT

The present work seeks to investigate, in the time frame in the last decades of the 19th century, the role of women teachers in the conquest of public space occupied by male figures, either as inspectors and school principals, or as members of literary and different societies, which have taken on the task of directing the course of issues pertaining to education. The investigation will focus on the trajectory of Francisca Clotilde's as teacher, writer and journalist, always considering the conflictual dynamic that involved her performance in the literate scenario. Their attitude one time constituted reverberations of Catholic conservatism, another time they were modified, even when social roles tried to instill the opposite. These women took the current ideas that designated them the activities in the domestic space, in an attempt to have its importance recognized in the order and harmony of the social structure, and to claim their competence for the practise of functions until then occupied by men, such as those of administrative character, either in Public Instruction, in the Normal School or participation in the debates about the main issues that drove state of affairs at the time.

Keywords: Francisca Clotilde; moral and religious education; teacher training

RESUMEN

El presente trabajo busca investigar, en el marco temporal en las últimas décadas del siglo XIX, el papel de las maestras en la conquista del espacio público ocupado por figuras masculinas, ya sea como inspectoras y directores de escuela, o como integrantes de la escuela. sociedades literarias y diferentes, que se han encargado de orientar el rumbo de las cuestiones relativas a la educación. La investigación se centrará em la trayectoria de Francisca Clotilde, como profesora, escritora y periodista, prestando especial atención a la dinámica conflictiva que afectó su actuación en el escenario letrado. Sus posturas no solo constituyeron reverberaciones del conservadurismo católico sino que también se fueron modificando, incluso cuando los papeles sociales intentaban inculcar lo contrario. Esas mujeres tomaron las ideas vigentes que designaban sus actividades en el espacio doméstico, en el intento de que se reconozca su importancia en cuanto al orden y la armonía de la estructura social y de reclamar su capacidad para el ejercicio de funciones hasta el momento ocupadas por hombres, como las de carácter administrativo, tanto en la Instrucción Pública, como también en la Escuela Normal, o de participación en los debates de las principales cuestiones que dirigían el estado de cosas en aquel periodo.

Palabras-clave: Francisca Clotilde; instrucción moral y religiosa; formación de professores

1 A INSTRUÇÃO PRIMÁRIA EM PAUTA: RELIGIÃO E ENSINO

Os debates em torno da necessidade de reformar o ensino público na Província do Ceará ganham maior fôlego na década de 1880, isto porque à administração da Instrução Pública1 seria apresentado, logo no primeiro ano, um Relatório produzido por Amaro Cavalcanti2 como resultado de sua viagem aos Estados Unidos, com o fim de reunir informações sobre a instrução primária, o ensino normal e seu movimento de fiscalização e inspeção. Em 7 de setembro de 1881, o Cearense, folha político-partidária que representava os interesses do partido Liberal, daria início à publicação do referido documento produzido por um sujeito apto a discutir questões concernentes à difusão do ensino, visto ter ele próprio testemunhado o que havia de mais moderno no âmbito educacional, no que dizia respeito a currículo, métodos, formação e avaliação de professores, como reiteravam costumeiramente seus colegas naquela época.

No Relatório, a educação moral e religiosa e a formação para o que Cavalcanti chamou de “vida ativa” ganham, sempre numa perspectiva de correlação com a ideia de trabalho e disciplina, lugar de destaque. Tal espaço reservado à dimensão religiosa, naquela época, se devia, especialmente, ao contato com as principais discussões sobre o ensino laico e a secularização dos programas escolares que já se faziam na Europa e nos Estados Unidos e ganhavam, ainda que de forma lenta, adeptos no Império do Brasil. Uma tarefa nada fácil para aquele inspetor, advogado e também professor de latim foi, certamente, a partir das informações coletadas, concluir o fim principal da instrução primária e apontar possíveis ações a serem implementadas no ensino cearense. Levando em conta as especificidades da Província, Cavalcanti se depararia com altas taxas de analfabetismo; períodos de seca, sobretudo nos anos finais da década de 1870 e inícios da seguinte, e com o empobrecimento constante, características do cotidiano das camadas pobres a quem a instrução primária era direcionada.

De fato: educar não é somente desenvolver, pelos exercícios regulares da ginástica, por uma nutrição abundante ou pelas lições da higiene, as forças, a boa composição e a saúde do corpo; nem tão pouco, dar exclusivamente, esmerada cultura às faculdades do espírito pelo estudo frequente das artes, das letras e das ciências. Os primeiros meios se oportunamente empregados fariam com certeza um indivíduo são e robusto ou mesmo uma criatura formosa, mas não educado; os segundos formariam provavelmente um espírito versado ou instruído; e ambos os meios bem combinados já dariam, sem dúvida, à família e à sociedade um membro assaz prestimoso, porém, talvez ainda assim, não perfeitamente educado. Há uma condição ulterior, um outro requisito na obra imensa da Educação, que, não sendo convenientemente preenchido, privará a esta de seus melhores e mais abundantes frutos. A par dos meios regulares que operam o bem-estar do corpo, de pari-passu com a instrução que dá saber e engrandece o espirito, deve igualmente seguir a luz, sempre pura, da moral e da religião, que guia o homem ao dever, ao bem, à verdade e à virtude por entre as veredas tortuosas dos erros, vícios e crimes da frágil humanidade. Enfim: reunidos esses três meios, combinados seus vários processos, e aplicados com a inteligência à direção e cultura da natureza humana, todo esse grande conjunto de ordem e trabalho fará certamente o que entendemos por Educação, de cujo seio portentoso vemos, todos os dias, sair, para a família, para a sociedade e para o Estado, membros - sãos, robustos e belos, industriosos, sábios e probos. (CAVALCANTI, 1881a, p. 3)

Amaro Cavalcanti parecia representar com boa desenvoltura a tarefa que lhe foi incumbida como intelectual da causa da instrução. Suas posições representam também os interesses religiosos, aspecto observado nas iniciativas de inspetores e diretores, visto considerarem as bases de caráter religioso como as mais adequadas à explicação da própria estrutura e organização do ensino. O exercício da função de padre e pároco por parte desses “funcionários” da Instrução Pública, assim como as boas relações estabelecidas com a elite eclesiástica na Província, também reverberaram sobre suas posturas acerca do universo educacional.

Na tarefa de apresentar suas análises quanto ao ensino estadunidense para as autoridades dirigentes e para os cearenses preocupados com os meios necessários à difusão e desenvolvimento do ensino, Amaro Cavalcanti dedicou maior importância à religião e sua relação com a instrução primária. Naquela época, tal questão conquistaria maior entusiasmo, especialmente pelos debates no cenário político e letrado, a bem dizer, as discussões que também envolviam o trono e o altar, representadas pela laicização e secularização do ensino que, na prática, significavam a destituição do ensino religioso da escola reservando-o à família e à igreja.

O Inspetor Geral da Instrução Pública mostrou-se, portanto, adepto da formação “completa” no nível primário de ensino, que compreendia o tripé corpo, espírito e moral. Nessa definição, de nada adiantaria formar a dimensão física e o espírito com a ginástica, as lições de higiene, o estudo das letras ou das ciências e das artes, se os princípios religiosos não fossem incutidos. Uma clara tensão saltava do assunto, como medida para se estabelecer possíveis direcionamentos relativos à instrução pública: para se formar sujeitos instruídos, robustos e sãos, a instrução religiosa constituía dimensão indispensável. O bem-estar do corpo parecia vincular-se às virtudes e à moral e vice-versa.

Naquela época, a educação da parte física do sujeito, tema discutido quando se pensavam os requisitos indispensáveis à difusão do ensino público, compreendia questão fundamental às necessidades do trabalho livre. Para as elites ilustradas e dirigentes, a saúde do corpo agiria contra os vícios, os maus hábitos e comportamentos, somente se aliada à disciplina, à moral e à religião. Conforme Gomes (2002, p. 400), tais discussões indicam uma maior atenção às necessidades do mundo capitalista, urbano e industrial, e a um desejo de progresso do sujeito alfabetizado. Nos projetos para a instrução pública, pensados pelas camadas letradas, na perspectiva de Olinda (2004), o ensino primário está diretamente vinculado à disciplinarização e ao controle de si, aspectos que se acreditava apontarem para a regeneração moral e progresso material.

Em seu relatório, Cavalcanti parecia desejar convencer o leitor da importância das pautas levantadas, bem como de suas indicações para que tais demandas fossem efetivadas na prática escolar, especialmente por reiterar, de forma exaustiva, seus posicionamentos atinentes à parte religiosa. Ao tema da formação “completa” para a “vida ativa”, Cavalcanti juntou o debate acerca da secularização do ensino, apresentando sua desconfiança frente aos burburinhos que circulavam em terras cearenses e já garantiam defensores da ideia de que a educação religiosa deveria reservar-se à família.

Jamais deve esquecer: que dar somente cultura e desenvolvimento ao físico e ao intelecto, sem atenção as faculdades Moraes, é o mesmo que polir e afiar belos instrumentos, que serão em breve gastos pela ferrugem, à falta de necessária e regular aplicação.

[...]

É facto que os espíritos cultos tem procurado demonstrar a conveniência de não dar-se ensino religioso na escola, invocando em apoio ao que chamam liberdade de culto.

Alegam que o ensino da religião na escola pública ou comum levará ao resultado injusto de obrigar o discípulo aos exercícios de um credo, muita vez diverso e oposto ao seu próprio; e que, por isso, importaria, uma injuria aos direitos da consciência individual.

Para os brasileiros, que felizmente ainda professam uma mesma crença, o argumento perde toda força e importância relativa; portanto, nos seja licito passar além sem darmos especial refutação, tanto mais quando, sem ocasião oportuna, teremos ainda de tocar sobre o mesmo argumento.

Não se separe um só instante, o ensino da religião e da moral - é nossa humilde opinião, aliás todo aquele será infrutífero, ou talvez pernicioso.

Na alma tenra e cândida da criança, nesse coração puro, onde somente sorria inocência, as primeiras lições, que se deve gravar, são, sem dúvida: o amor de Deus, de seus pais, de seus semelhantes e da virtude. E nada disto se poderá conseguir, desde que se separar totalmente do ensino os preceitos sublimes da verdadeira religião. (CAVALCANTI, 1881c, p. 3)

Na década de 1880, na capital do Ceará, a dimensão educacional parecia ganhar novos ares especialmente pela inauguração da Escola Normal em 1884 - possibilitando às mulheres a ampliação de sua educação para além do nível primário -, pela produção de novos regulamentos para a instrução pública, ou mesmo pela maior atenção, ao menos no campo discursivo, à difusão do ensino primário entre as camadas pobres. Nesse momento, foram fundadas escolas noturnas e bibliotecas pelas sociedades propagadoras da instrução e gabinetes de leitura, ainda que os grandes beneficiados tenham sido as classes ilustradas. Ao longo dessa década, as discussões nos círculos políticos e letrados tomam como pauta indispensável ao progresso da Província, de forma ainda mais incisiva, a vinculação da instrução à religião católica, num movimento visto ora como necessário, unindo-as de forma essencial, ora como irrealizável, pois a parte religiosa seria um entrave a esse vínculo.

Na esteira desses debates, uma professora pública primária e, posteriormente, integrante do quadro de mestres da Escola Normal teve seu nome envolvido em diversos momentos importantes da história do Ceará Imperial, com destaque para as questões educacionais. Cearense de Tauá, região do Sertão dos Inhamuns, Francisca Clotilde Barbosa de Lima, nascida em 1862, reuniu em sua trajetória a extensão do que havia de mais contraditório para uma mulher naquele momento, se pensados os papéis destinados às mulheres e homens na sociedade oitocentista, por ter transitado com desenvoltura nos mais diversos círculos letrados de então3.

Como professora, seu itinerário não se reduziu ao magistério público primário ou à Escola Normal. Ela dedicou-se também a ministrar aulas particulares de várias matérias, das 4 horas às 6 da tarde, em sua residência, situada na Praça do Marquês de Herval, n. 41, em março de 1886, era possível adquirir instrução pelo valor de 3.000 réis mensais (LIMA, 1886, p. 1).

A vida de Francisca Clotilde parecia ser bastante animada pelas diversas discussões com que prontamente se envolveu no cenário letrado fortalezense, seja nas sociedades e agremiações literárias, ou mesmo nos jornais e revistas de maior circulação e representativos das principais forças políticas, como o Libertador, órgão da Sociedade Cearense Libertadora e o Cearense, folha que representava os interesses do partido Liberal. Além desses jornais, conforme Studart (1910) e Almeida (2008), Clotilde colaborou em publicações como A Quinzena; Revista Contemporânea; A Evolução; Gazeta do Sertão; Ceará Ilustrado; Iracema; O Combate; A República; A Fortaleza; Folha do Comércio; O Domingo; A Cidade; A Ordem e o Almanach do Ceará, tendo seus textos também publicados no Almanach das Senhoras (Brazil/Lisboa). Dedicando-se à prosa, à poesia, contos, crônicas, crítica literária, teatro e traduções, sua influência chegaria até outras províncias do Império, a contar pela contribuição em diversas outras folhas, entre elas O Lyrio, de Recife; O Bathel, da Paraíba; Paladino, do Acre; A Família, de São Paulo e Rio de Janeiro; e A Mensageira, também paulista.

Francisca Clotilde foi sócia do Club Literário, agremiação que reuniu intelectuais da causa abolicionista na Província. Em A Quinzena, revista que representava os interesses dessa agremiação, escreveu dois importantes artigos quanto às questões que envolviam ensino e religião naquele momento: “A educação moral das crianças na escola” e “A mulher na família”. Corroborando com o movimento do cenário das letras, a professora da Escola Normal apresentou suas posições quanto aos temas que já vinham sendo discutidos desde o Relatório de Cavalcanti em 1881.

A religião e a moral - esses dois elementos indispensáveis para a formação do caráter podem ser infiltrados nos corações infantis da maneira mais simples. Um passeio à beira-mar, uma manhã de estio, uma flor que desabrocha, uma ave que canta, uma abelha que fabrica o mel, uma borboleta que esvoaça, podem trazer à criança a ideia do autor dessas cousas que tanto enlevam e arrebatam sua imaginação pueril, e o professor terá ensejo de auxiliar-lhe o espírito de observação, infundindo-lhe ao mesmo tempo o amor às ciências naturais. (LIMA, 1887a, p. 22)

O trecho acima corresponde ao artigo “A educação moral das crianças na escola”, publicado n’A Quinzena no dia 15 de fevereiro de 1887. A professora da Escola Normal se juntava ao time de colaboradores de renome dessa revista, formado por figuras como José de Barcelos, Justiniano de Serpa e Juvenal Galeno, intelectuais que se envolveram nas questões educacionais, seja exercendo funções no interior da Instrução Pública, ou produzindo compêndios destinados ao ensino, ou mesmo escrevendo sobre o assunto nos periódicos que circulavam na Província.

Como mulher inserida em seu tempo, por sua importante participação na dinâmica política e literária, Francisca Clotilde estava inteirada dos principais debates que envolviam a educação no Império. Inebriando-se dos referenciais pedagógicos discutidos à época pelos sujeitos mais célebres do cenário político e educacional, no referido artigo a autora travou embate, como quem respondia aos que buscavam, ao menos nessa parte, formar dividendos pelas posições a favor da separação da religião do ensino, resultado também dos conflitos entre a Igreja e o Estado na segunda metade do século XIX. Clotilde, portanto, trazia a religião e a observação, respectivamente como o conteúdo e o método mais acertados para uma instrução promissora, nos moldes estabelecidos por aqueles que se declaravam capacitados para legislar sobre o ensino ou mesmo prescrever o que seria mais “adequado” no plano educacional.

Por meio da observação e aguçamento dos sentidos, os ensinamentos morais e religiosos seriam incutidos nos “corações infantis”. Mostrando-se inserida no movimento letrado que defendia a inclusão de novas matérias no currículo escolar primário, Francisca Clotilde arvorava-se numa formação do espírito e do corpo pautada na dimensão da fé, da moral e da religião. O aprendizado das ciências naturais se daria por meio da observação e intuição das coisas que rodeiam as crianças, a própria natureza representada por animais e plantas. Na medida em que “a ideia de criação do mundo” fosse apresentada por meio desses elementos, as ciências naturais seriam infiltradas.

Para Clotilde, a instrução moral e religiosa tinha sobre as demais matérias uma “incontestável superioridade”, pois debelava vícios e purificava hábitos e costumes, sendo a dimensão mais importante, dentro do programa escolar, a ser direcionada pela escola. Tais questões foram tomadas por um olhar que compreendia os saberes a serem ensinados na instrução primária a partir de uma hierarquia de valores que admitia a importância do tripé espírito, corpo e moral, a ser trabalhado ora em diálogo, ora identificando a religião como a dimensão mais necessária à formação escolar.

Em seu segundo artigo “A mulher na família”, dado à apreciação do público cearense em 15 de março do mesmo ano de 1887, Francisca Clotilde trataria logo de discutir qual “instituição”, entre a escola e a família, efetivaria ou ficaria responsável pela dimensão da moral e da religião na instrução infantil. Tais questões não deixaram de responder, sobretudo quando analisadas posteriormente pelos historiadores, às principais demandas daquele estado de coisas, a dizer, as discussões, ainda que tímidas, acerca da laicização e secularização do ensino público, compreendidas como a transferência da instrução moral e religiosa para a dimensão doméstica e ou responsabilidade do credo religioso.

Nessa época, as tensões entre as experiências que fugiam às normas e leis estabelecidas - fossem elas de caráter religioso, pedagógico e higiênico, impulsionadas pelo empobrecimento das camadas pobres - e uma “perspectiva racionalizadora de entendimento dos sujeitos”, cresciam de forma cada vez mais expressiva (VEIGA, 2011, p. 400). A instrução foi tomada como principal meio para se alcançar os modos do “mundo civilizado”, vinculado às tentativas de controle que se imprimiam sobre a população, passando pela normatização dos corpos e remodelação dos hábitos e costumes. Nesse movimento, surgia uma questão latente para a qual convergiriam todas as outras: a necessidade de se pensar quanto a que tipo de instrução deveria ser aplicada no ensino primário e quem se encarregaria de efetivá-la.

Francisca Clotilde, de fato, disputava “lugar de fala” no cenário letrado, fazendo-se ser ouvida e acreditada, especialmente pelo comprometimento com que se envolveu nas questões de seu tempo, considerando-se a quantidade de periódicos em que veiculou seus escritos. Tal questão lhe rendeu, inclusive, credenciais tanto na dimensão educacional, na própria instrução primária e na Escola Normal, como na fundação, em momentos posteriores, de estabelecimento de ensino, como o Externato Santa Clotilde, nos primeiros anos da década de 1890 e revistas, como a Estrella, em 1906, numa conjuntura em que a participação das mulheres na própria cena pública ilustrada ainda era ínfima.

Nesse cenário, a elite política na Província reunia “membros do governo e da alta administração, chefes militares, e, em alguns casos, famílias politicamente importantes e diretores de empresas econômicas” (PAIVA, 1979, p. 28). Parte significativa dos que exerciam os cargos da estrutura político-administrativa, conforme Paiva (1979, p. 58), era herdeira dos potentados rurais. Realizando sua formação secundária em colégios como o Liceu e o Ateneu Cearense, logo após os preparatórios, ingressavam no Ensino Superior em cidades como Recife, Salvador ou Rio de Janeiro. O repertório de leitura e base político-filosófica que direcionaram suas ações foram formados também a partir do contato com experiências intelectuais realizadas fora do território cearense. Ao retornar à Província, juntavam-se às afeições políticas e intelectuais de outros sujeitos levando à fundação de jornais, sociedades, gabinetes e agremiações literárias. De acordo com Oliveira (1998, p. 42), o universo letrado atuante na capital na década de 1880 entre jornalistas, docentes, políticos e literatos era formado por esse movimento de estudantes que faziam seus preparatórios na Província mesclando-se aos que retornavam dos cursos superiores.

Era esse o universo letrado em que Francisca Clotilde estava inserida. No início daquela década, em 1881, a questão do ensino religioso nos debates da 37ª Assembleia Legislativa do Ceará e publicados na Gazeta do Norte em setembro do mesmo ano, ocupou lugar de destaque nas preocupações dos deputados provinciais. As vozes que se levantaram na sessão, divididas entre João Lopes Ferreira Filho, Te. Cel. Antônio Pereira de Brito Paiva, Pe. Antero José de Lima, Dr. Francisco Ribeiro Delfino Montezuma, Pe. Vicente Jorge de Souza, Dr. Francisco Barbosa de Paula Pessoa e Pe. João Antônio do Nascimento e Sá, defenderam o ensino moral e religioso como responsabilidade que deveria pesar sobre a Igreja, na figura do padre, e não sobre o professor. Este ensino constituía um “direito materno”, um “sagrado direito da família”, como afirmou João Lopes:

Nesta questão, senhores, o meu voto seria contra o ensino religioso nas escolas, ainda que eu fosse crente fervoroso e já o disse; por amor da religião, em respeito ao sagrado direito da mãe de família. Senhores o ensino religioso nas escolas é de todo ponto ineficaz; qual de vós tem no espírito crenças religiosas bebidas nos bancos escolares? Qual de vós teve desenvolvidas ou acentuadas pelo professor as noções que levou do lar para os bancos da escola primária? Nenhum, certamente, ao passo que todos conservais indeléveis os ensinamentos que recebemos na primeira infância, ungidos ainda da sinceridade com que impregnaram os lábios maternos. O ensino religioso é uma disciplina naturalmente confiada aos cuidados da família; a mãe é o único mestre que possui bastante eloquência para o incutir no ânimo da infância. (GAZETA DO NORTE, 1881, p. 1)

Embora os deputados provinciais se apresentassem enquanto sujeitos que professavam a religião católica, reconheciam que a matéria religiosa na instrução elementar, aplicada por meio da memorização de assuntos dos Catecismos da Doutrina Cristã, impedia as crianças de se tornarem “mais conhecedoras e amantes de Deus”. A profissão de fé católica na experiência dessa classe, não estava relacionada meramente ao exercício de uma liturgia, doutrina ou fé, mas de participação da elite dirigente no seio de uma instituição que, ao longo dos anos, esteve vinculada ao Estado e direcionou a legislação educacional, assim como a própria construção da estrutura política e social.

Segundo João Lopes, esse ensino servia apenas para punir os alunos que incorressem em erros quando inquiridos sobre as definições do catecismo nos exames. Tratando a questão do ensino religioso de maneira cautelosa, visto tal matéria do currículo escolar reservar lugar à Igreja na própria organização do ensino, dois instrumentos estavam postos em questão: o catecismo da doutrina cristã e os afagos da mãe no lar.

Esse assunto, no âmbito das questões educacionais, perpassou toda a década de 1880, especialmente pelos conflitos que se arrastavam desde o início da segunda metade do século XIX entre a Igreja e o Estado Imperial. Nos escritos de Francisca Clotilde, a família também ganhou centralidade quando se discutiu sobre o lugar reservado à educação moral e religiosa na formação dos sujeitos. O artigo “A educação moral das crianças na escola” apresenta a figura da mãe como a primeira educadora dos filhos, de modo que seria no ambiente doméstico que os primeiros ensinamentos seriam infiltrados. As noções de caráter, ensinadas por meio da dimensão religiosa, pois baseada na doutrina cristã católica, seriam os primeiros e mais importantes ensinamentos por onde todos os outros deveriam ser impressos.

Não deve esquecer nunca que dela dependem a felicidade e o futuro das tenras criaturas que nela se reveem como em um espelho que deve refletir as mais belas puras imagens; que lhe cumpre velar incessantemente para desenvolver o bem n’aqueles corações ingênuos e inexperientes, procurando todos os meios para depositar neles o gérmen que deverá produzir no decurso bons e salutares frutos. (LIMA, 1887b, p. 40)

No lar, uma atmosfera clara estava definida: seria a figura paterna quem designaria os princípios pelos quais a família seria educada, cabendo à figura feminina - a mãe - garantir o exercício de tais princípios na prática cotidiana. Caso os filhos se desviassem dos trilhos da ordem e da disciplina, a culpa, que era sobretudo religiosa, recairia sobre a função maternal, pois “o menino molda-se à sua vontade, à sua influência e guiado pelo amor solícito e desvelado que ela lhe dedica cresce nas melhores disposições” (LIMA, 1887b, p. 47). Sobre tal questão, os esclarecimentos de June E. Hahner são indispensáveis à compreensão dos papéis designados a esses sujeitos no século XIX.

Na lei, como nos costumes, a ideologia da supremacia masculina era prevalente. As ordenações Filipinas, compiladas em Portugal em 1603, que basicamente permaneceram efetivas no Brasil até a promulgação do Código Civil de 1916, designavam especificamente o marido como “cabeça do casal”, e somente com sua morte a mulher podia ocupar tal posição. De acordo com a estrutura do sistema de direito civil brasileiro no século XIX, uma extensão das Ordenações Filipinas, as mulheres eram perpetuamente menores. (E o Código Civil de 1916 não mudou realmente a questão). Uma mulher casada tinha que se submeter à autoridade do marido nas questões relativas à educação, criação e local de residência dos filhos. A lei negava às mulheres casadas o direito de envolver-se no comércio, de alienar bens imóveis por vendo ou doação, e, ainda, de administrar a propriedade sem o consentimento de seus maridos. (HAHNER, 2003, p. 44)

As mulheres das classes mais abastadas, isto é, as herdeiras de grandes potentados, acumularam em si, ao longo da segunda metade do século XIX, toda a extensão do que se designava como papel para a mulher na estrutura social: ser mãe, esposa e dona de casa. Por outro lado, as mulheres letradas, embora exercendo tal tripé, como foi o caso de Francisca Clotilde, transgrediram os níveis de instrução designados para sua condição na sociedade. Inseriram-se, por sua desenvoltura com as letras, com os livros ou mesmo com aquela ambiência dirigida e ocupada majoritariamente por homens, em quadros de colaboradores de jornais e revistas. Ocuparam também importantes postos de discurso na conjuntura oitocentista, como as questões abolicionistas, como, mais uma vez, observa-se quanto à participação de Clotilde.

Nos escritos de Francisca Clotilde, suas posições mostram uma educação voltada ao público infantil ainda demasiadamente alicerçada no conservadorismo católico - cujas bases de formação foram construídas desde há muito tempo pela Igreja Católica -, tomando a figura materna como a principal propulsora da educação dos sujeitos desde tenra idade. Nessa parte, a questão primordial a se destacar é que, embora atendendo a essa dimensão, inúmeras mulheres não cercearam seu horizonte de expectativas à vontade das figuras masculinas da estrutura política e social. Desejaram e, de fato, conseguiram construir uma trajetória de busca incessante pela realização de seus planos e projetos, sempre numa correlação com as principais questões de seu tempo.

Nesse ínterim, não é que Clotilde continuasse a cristalizar o papel reservado às mães, uma “missão” da qual dependeria o futuro da pátria, pois as progenitoras “moldariam” futuros trabalhadores, ordeiros, disciplinados e amantes da religião. Certamente, fugir a essa responsabilidade dita “maternal” se tornava ainda mais difícil, especialmente pela vigilância e fiscalização impressa às experiências femininas, sobretudo daquelas que reuniam mulheres-mães, professoras e católicas. Assim, não se trata somente de compreender Francisca Clotilde como voz dissonante, “indisciplinada” frente à sociedade que lhe designava os “recônditos do lar”, principalmente quando se pensa as mulheres das camadas mais elevadas, mas de compreender como, ao longo do século XIX, as posturas dessas mulheres professoras foram modificando-se, mesmo quando o discurso vigente tentava incutir o contrário. Como essas mulheres responderam, por meio de suas ações, à legislação educacional, matrimonial, familiar, questões que se dão, quando se trata de valores religiosos, numa perspectiva de “longa duração”. Isto é, as mudanças ocorrem dentro de um tempo histórico mais longo, numa dinâmica que se desenvolve a partir de permanências, desvios, rupturas e ressignificações. Os argumentos de Francisca Clotilde, em seu artigo “A mulher na família”, publicado n’A Quinzena em 15 de março de 1887, concorrem para se concluir algumas questões:

Não será mil vezes mais glorioso desempenhá-lo e fazer da criança um homem útil à pátria e à família do que sentar-se nos bancos de academias em busca de um pergaminho, ou acompanhar os vaivéns da política, duende fatal que deve amedrontar até os animais varonis? (LIMA, 1887b, p. 40)

Ao leitor menos atento, pode parecer que a professora da Escola Normal via com certa apatia os bancos das academias ou o exercício de funções na vida política. Porém, Francisca Clotilde, no trecho acima, certamente tentou convencer o leitor da importância das atividades exercidas pelas mulheres no ambiente doméstico, em um momento em que se reservava um valor mais baixo às tarefas no lar, na hierarquia das funções na sociedade oitocentista.

Conforme as investigações de Perrot (2020, p. 187), concebiam-se, nesse período, as funções destinadas aos sujeitos a partir da compreensão do que se denominou “vocação natural”, discurso compartilhado, inclusive, por filósofos notáveis como Fichte, Hegel e Comte. A educação foi dimensão por meio do qual esse discurso se fez produzir e reverberar de maneira notável. Por considerarem as mulheres possuidoras de virtudes como paciência, abnegação e sentimento de cuidado, a educação dos filhos, questão mais ligada à formação do caráter do que à soma dos conhecimentos, foi-lhes designada, ainda que posições contrárias se tenham feito presentes. Reconhecia-se essa tarefa como essencial à formação de um estado ordenado e “harmonioso”, todavia reservava-se pouco valor frente ao papel destinado aos homens: provedor e direcionador dos princípios em que a família deveria ser educada, se pensarmos os sujeitos das camadas mais abastadas. É importante ressaltar que tal aspecto não cabe às circunstâncias vividas pelas mulheres e homens das camadas pobres. Na perspectiva de Dias (1995), o empobrecimento constante fazia com que essas mulheres, desde cedo, estivessem circulando pelas ruas exercendo as mais diversas atividades para sustento de sua família. O serviço doméstico constituiu, na segunda metade do século XIX, a “principal categoria de emprego urbano feminino” (HAHNER, 2010, p. 319).

2 A INSTRUÇÃO PRIMÁRIA EM PAUTA: RELIGIÃO E FORMAÇÃO DE PROFESSORES

Francisca Clotilde parecia já ter conquistado lugar como voz a fazer-se ouvida sobre questões atinentes à educação, sempre na perspectiva de direcionar os caminhos mais adequados para a elevação moral e intelectual do povo. Junto de figuras como José de Barcelos e Amaro Cavalcanti, encabeçou discussões que, na medida em que se pensava o espaço doméstico, apontavam questões cuja pauta mudaria de enredo, se pensados os sujeitos das novas argumentações: os professores. Do ambiente familiar, Clotilde chegava ao espaço escolar, dando maior atenção dali por diante em seu artigo “A educação moral das crianças na escola”, à formação dos aspirantes ao magistério.

Identificando a escola como espaço, por excelência, para se modelar condutas e incutir visões de mundo, Francisca Clotilde e tantos outros sujeitos ligados ao mundo das letras, disputaram entre si projetos, ideias, propostas educacionais e políticas para o estado de coisas de sua época, ora em concordância, ora construindo divergências. A crença no poder da instrução como uma espécie de panaceia para os males do país e instrumento de regeneração moral, fazia saltar de suas preocupações um aspecto no qual se deveria investir toda a atenção: os requisitos ideais para o exercício da função de professor. Tidos enquanto os “arquitetos do porvir”4, aos mestres caberia uma tarefa nada fácil: “civilizar” consciências e moldar comportamentos, especialmente porque sua função no magistério foi construída, ao longo dos anos, sob as influências da religião católica na própria organização do ensino, que a concebiam como uma “missão” e “sacerdócio”. No Ceará, os professores primários eram identificados quase como figuras religiosas, quer fosse o catequista, quer o padre, visto conduzirem inclusive seus alunos à missa e lá permanecerem cumprindo a liturgia católica.

A formação dos professores constituiu, em toda a segunda metade do século XIX, pauta dos principais documentos referentes ao ensino, como a legislação educacional do período, e os relatórios, frutos de viagens feitas por sujeitos que exerceram funções no interior da Instrução, como foi o caso de Amaro Cavalcanti e de José de Barcelos, na década de 1880, conforme Valdez (1952). No relatório de Cavalcanti, então Inspetor Geral da Instrução Pública, publicado no dia 13 de setembro de 1881 no Cearense foi reiterado o seguinte:

Preparar, pois, o educador é o que urge fazer quanto antes; - de muito pouco ou de quase nada, servirão os bons métodos e os mais excelentes aparatos escolares se estes forem entregues a inteligências incultas ou à braços incapazes de bem manejá-los. (CAVALCANTI, 1881b, p. 3)

Nesse momento, não havia políticas e ações de valorização da carreira docente. Os regulamentos e regimentos internos que organizavam a instrução pública eram os documentos por meio dos quais os professores se (in)formavam, visto ser possível acompanhar nas correspondências de sua autoria e enviadas à Inspetoria e à Diretoria da Instrução, os pedidos de folhetos contendo o regulamento e regimento interno da instrução primária, como meio de melhor cumprir com suas funções. Durante boa parte do século XIX, os aspirantes eram avaliados por meio dos Exames de Capacidade Profissional, momento em que teriam que comprovar estarem aptos ao exercício do magistério.

Nos Exames, os futuros professores deveriam apresentar atestados de conduta moral e civil, como requisito principal para garantir sua “aptidão” ao exercício de tal função. No Art. 189 do Regulamento Orgânico da Instrução Pública e Particular da Província do Ceará de 1881 é estabelecido o seguinte:

Só poderá se propor ao magistério público o cidadão brasileiro, que reunir os seguintes requisitos provados perante o Inspetor Geral: § 1. Maioridade legal; § 2. Moralidade; § 3. Isenção de pena e culpa; § 4. Não sofrer enfermidade ou defeito físico e § 5. Capacidade Profissional. (VIEIRA; FARIAS, 2006, p. 63)

Naquela época, a moralidade compreendia o exercício de uma boa conduta civil e religiosa, integrando a isenção de crimes e a vivência dos valores cristão-católicos adquiridos no seio familiar e na Igreja, devendo ser externados nas relações entre os sujeitos. A falta dessa dimensão, tão indispensável aos professores, impedia o acesso, na função de professor primário, à Instrução Pública, sendo motivo pelo qual também poderiam vir a perder sua cadeira ou ser afastados de sua função.

Nos Exames de Capacidade Profissional, a formação dos futuros professores quanto aos ensinamentos da Leitura, da Escrita, da Aritmética, da Gramática, matérias exigidas para garantirem uma declaração de “aptidão”5 ao exercício de “lecionar”, constituía, entre as exigências, o último requisito. Os conhecimentos referentes a tais matérias eram postos em segundo plano quando se pensavam as condições “ideais” para se tornar professor. Observa-se, portanto, um verdadeiro esquadrinhamento da vida dos aspirantes ao magistério, na tentativa de especular sobre seus prosseguimentos quanto aos deveres como futuro professor primário, questão que colocava em xeque o seu referencial de moralidade, visto tal aspecto abranger não apenas a dimensão religiosa, mas também os seus deveres civis, como o respeito às autoridades públicas constituídas e a manutenção da ordem estabelecida.

Na segunda metade do século XIX, esperava-se que os professores fossem verdadeiros modelos de boa conduta e moral ilibada, a quem todos deveriam tomar como parâmetro na experiência cotidiana. Tal discurso funcionava quase como uma máxima ou dogma religioso, visto que foi produzido a partir dos referenciais da doutrina de base cristã católica, ou mesmo porque não se discutia, apenas se aceitava, seja por meio da palavra impressa ou falada, nos compêndios escolares e religiosos ou nos sermões dos padres. Francisca Clotilde demonstrou, em seu artigo “A educação moral das crianças na escola”, preocupação com essa questão.

A época mais importante da vida, como disse Richter é a da infância, quando a criança começa a modelar-se por aqueles com quem convive, por isso a influência do primeiro professor excederá sempre a dos outros; portanto, os pais devem ser cautelosos na escolha daquele que tem de continuar logo depois deles na educação moral e intelectual de seus filhos e nunca entregá-los a uma pessoa destituída de virtudes e incapaz de dar-lhes bons e salutares exemplos. (LIMA, 1887a, p. 22)

Na legislação educacional do período, verifica-se preocupação latente com a formação moral de homens e mulheres, especialmente quando se tratava de professores, cujas exigências vindas das autoridades educacionais e da comunidade onde lecionavam e/ou moravam, eram ainda maiores. Suas ações deveriam ser acompanhadas por uma rígida disciplina de si, manifestando-se em hábitos de limpeza e asseio, bom comportamento, disciplina, maneiras e expressões gentis. As virtudes católicas constituíam dimensão indispensável ao ofício de professor primário. Se certificado pelos párocos, nos atestados de moralidade civil e religiosa, poderiam posteriormente concorrer a uma cadeira na instrução pública primária, como afirmava ainda Francisca Clotilde no mesmo artigo.

Se o professor possuir qualidades morais elevadas e se à vocação juntar uma instrução completa e uma educação aprimorada, concorrerá honrosamente para a formação do caráter de seus alunos e contribuirá para o desenvolvimento e progresso de sua pátria realizando a frase do grande Pestalozzi: “O futuro das nações está nas escolas. (LIMA, 1887a, p. 22)

O futuro da nação estava nas escolas, representado pelo progresso moral e intelectual, desde que os professores estivessem “aptos” à tarefa de conduzir as crianças pelas sendas da moral, ordem e disciplina. Sua capacidade era testada pelas “qualidades morais elevadas” e a vocação para o ofício de ensinar. Os agentes da civilização, característica tão cara aos professores, reservada a sua incumbência pelas elites política e ilustrada, deveriam ser sujeitos trabalhadores, ordenados, moralizados e católicos. Nesse momento, conforme Villela (2011, p. 106), se reconhece a necessidade de formar professores capazes de reproduzir uma educação que conservasse a ordem da dinâmica estrutural da sociedade oitocentista, baseada na manutenção dos privilégios das camadas mais abastadas.

A vida dos professores era, pelos critérios de ingresso e permanência no magistério, tomada por uma política de controle, dirigida pelos inspetores, diretores e famílias dos alunos. As fronteiras entre a dimensão pública e privada, a dizer, sua função como mestre e sua vida particular misturavam-se, confundindo-se, de modo que não podiam fugir ou exigir que sua postura fora da sala de aula não viesse a custar sua cadeira. Sob essa perspectiva, a ideia de que os alunos se guiavam e orientavam pelo modelo de conduta externados pelos mestres, reforçava a fiscalização sobre suas vidas por parte de toda a comunidade. Quando se tratava de apresentar bons antecedentes de conduta e moral, seus anseios pessoais deveriam ser postos de lado para não incorrer no risco de serem denunciados, como aconteceu com professoras acusadas de criarem filhos sem o auxílio da figura masculina do marido, ou seja, fora do matrimônio e no concubinato.

A postura de Francisca Clotilde frente às questões educacionais, especialmente a formação de professores, era reflexo das tradições do catolicismo de base conservadora que elevava a disciplina e a moral cristã, baseada no sentimento de culpa e castigo, como principais requisitos sempre prontos a julgar o descumprimento das normas estabelecidas pela religião para a vida dos sujeitos. Embora reconhecendo a escola como lugar por excelência para a educação, sobretudo concernente à dimensão moral, que se acreditava formar o caráter, vê-se que a formação das crianças começaria no ambiente doméstico, continuando posteriormente na escola. Apesar de seus referenciais pedagógicos terem como norte e orientação as ideias de Pestalozzi, pedagogo suíço do século XVIII, que compreendia a escola como lugar mais adequado à garantia do desenvolvimento e progresso da “nação”, esta instituição ainda era vista por Clotilde como uma extensão do lar, devendo os mestres reunirem virtudes cristãs, quase como a ampliação do sentimento de maternidade.

Ao passo que, nos regulamentos da Instrução Pública, as virtudes católicas são identificadas como principal aspecto por meio do qual seria garantida a “aptidão” à função de professor primário, no “A educação moral das crianças na escola”, Francisca Clotilde corrobora tal questão, de modo que às “elevadas virtudes” e à vocação deveriam juntar a instrução completa, ou seja, a soma dos conhecimentos das demais matérias do programa escolar primário. Ainda que compreendendo o exercício dessa função como “vocação”, Clotilde parecia desconsiderar - assim levam a crer suas ações junto às autoridades responsáveis pelo ensino público na Província - a ideia do magistério como um “sacerdócio”, que tudo deveria suportar sem nada esperar em troca, discurso produzido, sobretudo, pela estrutura político-administrativa, que relacionava o ofício de ensinar com a ideia de “missão”. Por meio de correspondências enviadas às autoridades responsáveis pela instrução pública, Francisca Clotilde reivindicava, por exemplo, aumento de ordenados entendendo a labuta dos professores como dimensão merecedora de reconhecimento e de ações que garantissem melhorias no cumprimento de seus deveres. Naquele momento, o órgão Instrução Pública se mostrava alheio às necessidades do ensino primário, alegando frequentemente a falta recursos em seu orçamento.

Além de se inserir no cenário letrado como a primeira professora da Escola Normal, dividindo bancas examinadoras com as principais figuras da estrutura político-administrativa e educacional da Província, Clotilde garantiu, para além da função de professora, a direção do curso feminino anexo à Escola Normal, numa conjuntura em que os cargos de administração eram ocupados por homens. Na função de inspetores e diretores, esses sujeitos produziram a legislação educacional, bem como a escolha dos métodos e propostas pedagógicas, inclusive a admissão e adoção dos livros a serem utilizados nas aulas primárias.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante das problemáticas em análise, pode-se concluir que os escritos de Francisca Clotilde, mais especificamente os dois artigos publicados, em 1887, na revista A Quinzena, “A educação moral das crianças na escola” e “A mulher na família”, constituem fontes historiográficas imprescindíveis ao estudo dos conflitos que envolvem, no século XIX, as relações entre religião6 e o ensino oficial, assim como suas reverberações nas experiências femininas. Detido a esses escritos, observa-se que os papéis sociais das mulheres da época não se restringiam ao ambiente doméstico, como esposas, mães e donas de casa. Por vezes, extrapolavam o espaço do lar, como professoras e escritoras. Vida particular e pública, portanto, misturavam-se e alimentavam-se uma à outra, como foi o caso da trajetória de Francisca Clotilde.

Nessa investigação, partiu-se da análise dos escritos dessa professora e escritora, sempre em associação à sua participação na cena pública e privada, pois acredita-se que, por meio desse trânsito, do espaço letrado ao do lar, da função de mãe à professora, à escritora e à colaboradora de periódicos, é possível levantar questões pertinentes à História das Mulheres e da Educação, especialmente por se tratar de uma dinâmica conflitual que continua ocupando lugar de destaque na conjuntura educacional e no cenário político-social atual.

As relações entre religião e ensino, nessa época, motivaram debates, especialmente, entre figuras do universo letrado ou daquele mais diretamente vinculado à Instrução Pública com especificidades e demandas próprias de sua ambiência. Nesse movimento, o lugar reservado à dimensão religiosa na instrução primária está claramente associado às funções maternais. A satisfação e o vigor materno, características “naturais” ao “ser feminino” na sociedade oitocentista, seriam correspondidas pelo dever quase sagrado de conduzir a infância pelas sendas da religião.

O cumprimento dessa tarefa, aparentemente, não gerava insatisfações entre as mulheres, como se vê pela postura de Francisca Clotilde, quando, inclusive, compreende o ensino religioso como a matéria mais importante do currículo escolar primário. Mais do que “vozes dissonantes”, essas mulheres professoras presas ao conservadorismo católico constituíram, por suas ações, sujeitos que ao atender às exigências de uma sociedade patriarcal e paternalista, puseram em destaque a importância dos papéis que lhes foram designados como sendo de caráter “natural” ou religioso (“vocação”), por meio dos quais suas ações eram silenciadas na dimensão da experiência, do fazer cotidiano.

Essas mulheres, esposas, mães, professoras, escritoras, donas de casa, católicas e muito mais, foram modificando suas posturas, embora ainda tivessem seus ideais fortemente arraigados no catolicismo de matriz conservadora, baseado na obediência às autoridades constituídas e à organização social vigente como dimensão do dever do ser cristão. Para Francisca Clotilde, os tempos não teriam mudado, porém, parecia não se admitir mais lugar para conformismos ou silenciamentos. Definindo e redefinindo suas práticas, seus projetos seriam o horizonte a ser perseguido, pois reconhecia estar ali em jogo sua felicidade, a dizer suas realizações e propósitos. Optou, portanto, por seguir seus desejos baseados em suas experiências e formas de agir e pensar em determinadas condições, mesmo quando o discurso da época, efetivado na legislação educacional, familiar e matrimonial afirmava o contrário.

REFERÊNCIAS

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1Órgão do Governo da Província responsável pelo ensino público e particular.

2Amaro Cavalcanti ocupava o cargo de Inspetor Geral da Instrução Pública.

3Em junho 1882, com exatos 20 anos de idade, Francisca Clotilde entra para o magistério público cearense, exercendo a função de professora primária, como é possível acompanhar nas correspondências produzidas pela Instrução Pública, órgão responsável pelo ensino público e privado na Província, e trocadas entre professores, inspetores, diretores e presidente.

4Termo utilizado na época.

5Termo usado pelos professores que compunham as bancas de avaliadores nos Exames de Capacidade Profissional.

6Nesse caso, a religião é representada pela Instrução Moral e Religiosa, matéria pertencente ao programa escolar primário.

Recebido: 20 de Março de 2021; Aceito: 12 de Julho de 2021

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