SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.30 número63EL CENTENARIO DE VIDA DE MARIA YEDDA LEITE LINHARES: RECUERDOS DE SU DESEMPEÑO EN LA EDUCACIÓN EN EL ESTADO DE RÍO DE JANEIROHILDA AGNES HÜBNER FLORES: HISTORIA DE LA EDUCACIÓN DE UN INTERIOR DESCENDENTE DE BOHEMIOS (1939-1955) índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
Home Pagelista alfabética de revistas  

Servicios Personalizados

Revista

Articulo

Compartir


Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade

versión impresa ISSN 0104-7043versión On-line ISSN 2358-0194

Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade vol.30 no.63 Salvador jul./sept 2021  Epub 09-Mar-2022

https://doi.org/10.21879/faeeba2358-0194.2021.v30.n63.p193-206 

DOSSIÊ TEMÁTICO 63

ENTRE O PROFESSORADO E A MILITÂNCIA POLÍTICA: O CASO DE MARIA CELESTE VIDAL (1929-1998)

BETWEEN TEACHING AND POLITICAL ACTIVISM: MISS VIDAL CASE (1929-1998)

ENTRE EL PROFESSORADO Y LA MILITANCIA POLÍTICA: EL CASO DE MARÍA CELESTE VIDAL (1929-1998)

Raylane Andreza Dias Navarro Barreto*  Universidade Federal de Pernambuco
http://orcid.org/0000-0002-5602-8534

Raquel Barreto Nascimento**  Universidade Federal de Pernambuco
http://orcid.org/0000-0003-3294-7257

*Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Professora titular do Programa de Pós-Graduação em Educação do Centro de Educação da Universidade Federal de Pernambuco (PPGEdu/UFPE). E-mail: raylane.navarro@ufpe.br

**Pós-graduanda em Educação pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Licenciada em História pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). E-mail: raquelbarreto.nasc@gmail.com


RESUMO

Este artigo, ancorado na abordagem da história vista de baixo e baseado na pesquisa documental, sobretudo em documentos escolares e da Secretaria de Segurança Pública de Pernambuco (Brasil), tem como proposta dar a ver a trajetória de vida da professora primária e presa política Maria Celeste Vidal (1929-1998). Por meio de suas atividades em prol dos trabalhadores rurais foi possível desvelar elementos relativos à formação da mulher em que a ação individual se associa ao habitus professoral, à militância política e às redes de relacionamentos nos enfrentamentos às violentas estruturas políticas e de gênero da década de 1960. Tais elementos são indicadores de uma formação que associa os processos de escolarização iniciado em uma escola primária no município de Água Branca, no estado da Paraíba, e no curso Pedagógico do Colégio Sagrado Coração, em Caruaru, no estado de Pernambuco, e se molda a partir da filiação às lutas trabalhistas em meio à convivência com líderes políticos simpatizantes das causas do Partido Comunista do Brasil, e com as experiências compartilhadas com trabalhadores rurais carentes de direitos.

Palavras-chave: ligas camponesas; mulher; militância; Pernambuco; regime civil-militar

ABSTRACT

This article is anchored in the history seen from below approach and based on documental research, mainly, it is based on scholar documents from Pernambuco Public Security Secretariat (Brazil). It aims to show the primary teacher and political prisoner Maria Celeste Vidal life trajectory. Through her experiences in favor of rural workers it was possible to unveil the formative elements of being a woman. Which individual action is associated with professorial habitus, political activism and relationship networks confronting fixed political and gender structures in the 1960s. Such elements are indicators of a training that congregates the schooling processes initiated in a primary school in Água Branca city located in Paraíba State and the Sagrado Coração School Pedagogical course, in Caruaru, Pernambuco State, and it molds as of labor struggles through sympathetical politicians’ interactions with the Brazilian Communist Party causes and with vulnerable agricultural workers experiences.

Keywords: peasant leagues; women; political activism; Pernambuco; civil military regime

RESUMEN

El presente artículo, anclado en el enfoque de la historia vista desde abajo y basado principalmente en la investigación de documentos escolares y de la Secretaría de Seguridad Pública de Pernambuco (Brasil), aspira a mostrar la trayectoria vital de la maestra de escuela primaria y prisionera política María Celeste Vidal (1929-1998). Merced a sus actividades a favor de los trabajadores rurales, fue posible revelar elementos relativos a la formación de la mujer en los que la acción individual se asocia con el habitus profesoral, la militancia política y las redes de relaciones para hacer frente a las violentas estructuras políticas y de género del decenio de 1960. Dichos elementos son indicadores de una formación que se asocia a los procesos de escolarización iniciados en una escuela primaria en el municipio de Agua Branca, en el estado de Paraíba, y en el curso Pedagógico del Colégio Sagrado Coração de Caruaru, en el Estado de Pernambuco, y se moldea a partir de la participación en las luchas obreras en medio de la convivencia con líderes políticos simpatizantes de las causas del Partido Comunista de Brasil y de las experiencias compartidas con los trabajadores rurales carentes de derechos.

Palabras clave: ligas campesinas; mujer; militancia; Pernambuco; régimen civil militar

Introdução1

Este artigo descende do projeto de investigação interinstitucional “A educação de mulheres no Brasil ao longo dos séculos XIX e XX”,2 que tem como propósito conhecer e compreender a educação de mulheres no período anunciado nas diferentes regiões do país, evidenciando, particularmente, seu funcionamento, seus agentes, suas práticas habituais, e os demais aspectos da trajetória de formação e profissionalização, além das singularidades e similitudes presentes na educação feminina. Ao estudar a trajetória de mulheres, objetivamos entender a sua composição e, para além das suas instâncias formativas, compreender as disparidades entre o que se viabiliza, em relação às oportunidades, para homens e mulheres nos séculos XIX e XX, atentando para suas classes sociais, poderes econômicos e aquisitivos e, acima de tudo, para como as relações de gênero se impõem neste recorte temporal. Neste sentido, debruçarmo-nos sobre o estudo da educação de mulheres nos permite entender os principais impasses postos, em detrimento de sua condição biológica.

O que nos une, para além do que propõe Louise A. Tilly (1994, p. 29-30), para quem é fundamental, para “modificar o quadro geral da história no seu conjunto”, a implicação de “escrever uma história analítica das mulheres e [...] vincular seus problemas àqueles das outras histórias”, é o pressuposto de que os estudos biográficos podem ser aliados à história das mulheres em razão de uma história da educação. Ter a biografia como escrita da história não somente corrobora com a virada epistemológica em direção aos sujeitos, como ratifica a importância dos estudos e pesquisas que contemplam as táticas e estratégias por eles(as) ativadas. Nesse sentido, ao invés de tecermos uma história vista de cima, o que nos propomos é, como sugeriu o historiador inglês Jim Sharpe (1992), uma “história vista de baixo” em que o olhar esteja menos nas regras e mais direcionado aos mecanismos de aplicação delas, a partir dos quais podemos entender as experiências, as escolhas e os processos formativos que alcançam além das condições sócio-econômicas-culturais limitantes ou potencializadoras de cada sujeito histórico.

Neste artigo nos dedicamos ao estudo da trajetória de uma das várias mulheres que foram presas durante o regime civil-militar (1964-1978) e que, assim como tantas outras, tem suas ações, trajetórias e sobretudo seu exemplo dissociado da história tradicional que dá a ver sujeitos com mandatos políticos, com altos cargos, líderes homens e despreza os e as sujeitos simples. Nossa intenção, ao tratar da trajetória formativa de uma mulher comum - professora primária e militante da causa agrária no Brasil -, é desmistificar o pressuposto de uma História das mulheres submissas, passivas, e contribuir, assim como fez Perrot (2017), com uma história das mulheres ativas.

Sobre o objeto e a implicação teórica

Eu MÉRCIA DE ALBUQUERQUE FERREIRA, brasileira. casada, advogada, inscrita na OAB-PE, n0 2079, portadora da carteira de identidade Rg. n0 388.849 SSP-PE, inscrita no CPF/MF sob n0 006.227.258-68, a fim de cumprir exigência do Dr. GILSON ROBERTO DE MELO BARBOSA no processo n.º 259/01-OG que tem como objeto Indenização (anistia) DECLARO que MARIA CELESTE VIDAL BASTOS, professora, poetisa, membro do Sindicato Rural de Vitória de Santo Antão, membro da Diretoria das Ligas Camponesas liderou ao lado de JOÂO ALFREDO, JOÃO ZEFERINO, JOÃO VIRGINIO, VENTANIA e tantos outros a invasão de terras, foi presa no dia 10 de abril de 1964, conduzida na carroceria de um caminhão aonde foi estuprada varias vezes, entregue no IV Exército, sendo ali torturada, e apresentada a GREGORIO BEZERRA, com chacotas, posteriormente levada a Secretaria de Segurança Pública naquele local teve as partes pudendas queimadas com ponta de cigarro, as coxas perfuradas com agulhas de crochet. Quando fui visitá-la acabava de ser esbofeteada por MOACIR SALES quando cheguei, ela abraçou-me, e ouvi pacientemente as ameaças de MOACIR assacadas contra mim, com ajuda do Desembargador AGAMENON DUARTE, CELESTE foi transferida para a Colônia Penal do Bom Pastor. MÉRCIA DE ALBUQUERQUE FERREIRA - Declarante. (PROJETO DHNET, 2019).

A cidadã referida neste depoimento que aqui serve de epígrafe é Maria Celeste Vidal, que passou a ser conhecida na história pernambucana como uma das principais líderes das ligas camponesas no Brasil. Professora, poetisa e militante política durante o regime civil-militar, liderou a tomada de terras no interior pernambucano junto com João Alfredo, João Zeferino, João Virgínio, Ventania e outros militantes da causa da distribuição de terras aos menos afortunados no nordeste do Brasil. Maria Celeste representa um coletivo de mulheres que, por suas questões ideológicas, foi presa, torturada e vilipendiada em seus direitos de mulher, mãe e cidadã no período de 1964 a 1967, tal qual ratificou a advogada Mércia de Albuquerque Ferreira na declaração prestada durante a solicitação do pedido indenizatório, em favor dos seus 3 filhos, tendo em vista o seu processo de anistia em 26 de maio de 2001.

Era 1º de abril de 1964, quando, a partir da tomada de poder dos militares, o Brasil ficou sob um regime político marcado pelo autoritarismo, que incluía a privação de liberdade e o enfrentamento a qualquer atividade que fosse de encontro ao instituído. Nesse dia, Maria Celeste estava na emissora da Rádio Jurema, da cidade de Vitória de Santo Antão - segundo o auto do processo no qual consta a acusação de subversiva, mediante o que pregava a Lei de Segurança Nacional instituída em 1953 -, convocando trabalhadores do Município a, reunidos, irem até a cidade do Recife “lutar” em prol da liberdade do governador eleito e deposto pelos militares, Miguel Arraes. Este foi um importante apoiador da causa da reforma agrária no estado de Pernambuco e seu governo em muito contribuiu para a melhoria da qualidade de vida do povo pobre, uma vez que instituiu políticas públicas de melhoria do saneamento, água encanada, dentre outras ações no estado.

Miguel Arraes representava, sobretudo para o rurícola, a tentativa de cumprimento do Estatuto do Trabalhador Rural (ETR), de 2 de março de 1963, que determinava, dentre outras coisas, a equiparação trabalhista ao trabalhador urbano e a institucionalização de seus sindicatos e confederações, além de assegurar o direito à greve e ao pagamento do salário mínimo aos(às) assalariados(as) agrícolas (RUSSOMANO, 1965). Nesta perspectiva, a atuação sindical é primordial para entendermos o processo de luta dos trabalhadores porque se constitui como peça fundamental para os desafios da vida no campo no pré-64, que, mesmo com a solidificação da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) em 1946, esteve marcada pela pressão dos proprietários rurais por meio da Confederação Rural Brasileira (MONTENEGRO, 2004). Foi na defesa deste personagem que Celeste fora presa nas condições declaradas acima pela advogada Mércia Albuquerque, embora seu primeiro advogado tenha sido Boris Marques Trindade. Sua prisão se efetuou mediante embasamento nos artigos 9º, 11º, letras a e b, 12º e 15º da Lei nº 1.802, de 05 de janeiro de 1953 (BRASIL, 1953, grifo nosso), que instituíram como crimes de subversão e de atentados contra a pátria as tentativas de:

Art. 9º Reorganizar ou tentar reorganizar, de fato ou de direito, pondo logo em funcionamento efetivo, ainda que sob falso nome ou forma simulada, partido político ou associação dissolvidos por fôrça de disposição legal ou fazê-lo funcionar nas mesmas condições quando legalmente suspenso. Art. 11. Fazer públicamente propaganda: a) de processos violentos para a subversão da ordem política ou social; b) de ódio de raça, de religião ou de classe; c) de guerra; Art. 12. Incitar diretamente e de ânimo deliberado as classes sociais à luta pela violência. Art. 15. Incitar públicamente ou preparar atentado contra pessoa ou bens, por motivos políticos, sociais ou religiosos.

A acusação à professora Celeste como precursora desses crimes se apresentara como uma ferramenta para conseguir a consolidação de sua sentença. Em depoimento prestado pela acusada em 02 de abril de 1964, ela afirma categoricamente não estar envolvida em quaisquer movimentos de ligação internacional, tendo apenas conhecimento de que o camponês João Virgínio teria, a convite do deputado Francisco Julião, passado uma temporada em Cuba, a fim de conhecer como funcionava a Reforma Agrária, e não para ter contato com as guerrilhas.

Apesar do seu esclarecimento em depoimento, acusaram-na de manter ligações internacionais com as guerrilhas - movimentos armados que deram luz à Revolução Cubana em 1959. Neste sentido, “cubanização do país” fora a nomenclatura utilizada para deter qualquer tipo de manifestação que fosse de encontro à ordem vigente e que favorecesse as causas coletivas. O status de “comunista”, por sua vez, se apresentava como o pior adjetivo a ser empregado a um brasileiro ou brasileira, e “traidor(a) da pátria” era a caracterização atribuída ao cidadão e cidadã que priorizasse a igualdade de direitos e a socialização dos bens. A personagem aqui evidenciada recebeu tais denominações e assim fora justificada a sua prisão.

Se considerarmos que nossa proposta vai ao encontro do que propõe Michelle Perrot (1995, p. 11), para quem a “história das mulheres se inscreve em uma genealogia das representações e da linguagem” que revela símbolos e uma longa duração de sistemas de valores masculinos, algumas perguntas se fazem imperativas, como: Como o estudo da trajetória de vida de uma professora primária do interior da zona da mata do estado de Pernambuco pode contribuir com a história da educação no Brasil? O que tem a trajetória formativa da professora primária e militante da causa agrária Maria Celeste Vidal (1928-1998) a revelar sobre o lugar da mulher nessa história? Antes de responder a tais questões, convém deixar claro, como já insinuado, que fazemos parte daqueles e daquelas que primam por entender a história vista de baixo. Vamos de encontro àqueles que a entendem apenas pelo viés dos heróis, das rainhas, dos líderes, dos intelectuais que defenderam suas causas, dos “homens públicos”, dentre outros personagens históricos, cujo entendimento de suas trajetórias muito contribuem com a compreensão do fenômeno educativo e, consequentemente, para a história da educação, mas não de maneira justa com todos os personagens envolvidos. Temos como pressuposto que a História é plural e, portanto, repleta de versões, versões estas que contemplam as narrativas das pessoas simples, “os de baixo”, como poderia dizer qualquer um dos membros da History from bellow.

No artigo “A História vista de baixo”, Jim Sharpe (1992), membro do grupo de historiadores ingleses, que, dentre outros, contou com Christophe Hill, Edward Palmer Thompson e Natalie Davis, deixa claro a que se presta essa abordagem: primeiro, servir de corretivo à história oficial, unilateral e por vezes partidária, e, segundo, abrir possibilidades de compreensão histórica mais justa, uma vez que esta passa a contar com distintas versões, algumas vezes complementares, outras antitéticas, o que deixa o historiador senão atento às filigranas dos fatos, cioso pela metodologia que o oriente o mais cientificamente possível.

No caso da história da educação brasileira, não são raros os trabalhos tecidos a partir de uma ótica vista de cima, em que são destacados, para além de fontes oficiais, personagens cujos status social, econômico e sobretudo intelectual são indiscutíveis, cujos produtos confundem-se em alguma medida com uma história das ideias ou mesmo das mentalidades. Não se pode negar, todavia, que a história da educação no Brasil já vem sendo tecida, também, considerando personagens simples, homens e mulheres comuns, professores, inspetores, diretores, dentre outros sujeitos escolares que dão tônus às narrativas construídas e que vêm, de certo modo, alargando as possibilidades de compreensão histórica. De modo que, aos poucos, vamos abrindo, no país, vários leques de possibilidades, o que inclui a “história vista de baixo”, as fontes orais, as fontes não oficiais, dentre outros elementos que vão desde literatura como fontes até trajetórias de pessoas comuns como objeto de estudo.

É de Eric Hobsbawm (1998) a ideia singular de “pessoas extraordinárias”, pessoas que de tão simples, são comuns, e por serem comuns não podem ser desconsideradas quando a ideia é a compreensão de um tempo, de um fenômeno, de um espaço. Afinal as pessoas comuns são comuns por sua vida e presença serem normatizadas nos ambientes, suas figuras serem reconhecidas como prosaicas, mas sobretudo por serem presentes, por fazerem parte de algo de forma entranhada, tão incrustada que às vezes parecem ser invisíveis, como foram os casos do cavaleiro da idade média Guilherme Marechal ou o Melhor Cavaleiro do Mundo, cuja trajetória foi fundamental para Georges Duby (1993) tratar da vida social na Idade Média; de Domenico Scandella, um moleiro amordaçado pela Igreja Católica, cuja vida foi tratada Carlo Guinsburg (2006) em O queijo e os vermes, ou mesmo cada uma das professoras sem nenhuma formação pedagógica que ensinou a ler toda uma geração de alunos moradores da zona rural como aquelas estudadas por Barreto, Mesquita e Santos (2015) ou Barreto (2018), que buscaram entender a formação professoral na décadas de 1930 a 1960, dentre tantos outros personagens históricos que hoje constam na historiografia mundial por revelarem nuances antes não consideradas e contempladas na escrita da História.

Maria Celeste Vidal e o capítulo crucial de sua história

Inteligente, viva e perspicaz, conhecendo muito bem a legislação social entre nós vigente, se quizesse, se fosse o seu desejo e a sua intenção ajudar desinteressada e por espirito humano àqueles, teria buscado o caminho da lei e recorrido à justiça especializada para derimir dúvidas por acaso existentes e pugnar pelo império da lei e do direito. Recorrendo, aos processos que noticiam os autos incorreu nas sanções penais da lei já citada (lei de segurança nacional) e nas penas nela cominadas. Jose Albino de Aguiar, Juiz de Direito. In José Aragão Bezerra Cavalcanti, escrivão. 10 de março de 1965. (BRASIL, 1965).

Este texto é parte da sentença de nossa personagem e sobre ela é importante perguntar: O que fez o juiz de direito presumir, neste trecho da sentença contra Maria Celeste, que a então professora primária, formada no curso Pedagógico, e que estava detida, sabia de legislação e era inteligente, e que optou por combater as normativas legais? O fato é que, por seu tirocínio e grau de conhecimento, a pena foi acrescida de mais 1/3, como determinava o parágrafo único do artigo 34 da Lei nº 1.802/1953: “Constitui agravante, ou atenuante, respectivamente, a maior ou menor importância da cooperação do agente do crime, e seu maior ou menor grau de discernimento ou educação.” (BRASIL, 1953). Este fato remete a um aspecto significativo sobre sua formação e por isso buscamos entender em que se apoiava o juiz para proferir tal sentença.

No que tange à sua formação, Maria Celeste realizou o ensino primário em uma Escola Pública de Água Branca, município do estado da Paraíba, e o exame de admissão ao curso normal oficial, aprovado pela Lei nº 136, de 29 de janeiro de 1935 (BRASIL, 1935), no Colégio do Sagrado Coração, na cidade de Caruaru, estado de Pernambuco, onde realizou 3 anos de estudos secundários e 2 anos de estudos pedagógicos, formando-se professora em 1945. O Colégio foi fundado em 1920 pelas Irmãs Beneditinas e ficou conhecido por “Colégio das freiras”, como o próprio nome e alcunha demonstram, e é, ainda hoje, com quase 100 anos, uma instituição que prima pelos anseios católicos.

Com diploma na mão, Maria Celeste começou a profissão docente, sendo nomeada em 16 de setembro de 1947 para a docência da Pré-Orientação Profissional, na cadeira n. 01 do Grupo Escolar Dom Luiz de Brito, em Afogados da Ingazeira, sertão do estado, começando a lecionar no dia 13 de outubro de 1947. Em 1954 ela já estava na recém-criada cidade de Tabira, no sertão pernambucano, lecionando no Grupo Escolar Carlota Breckenfeld. Sobre esse período, depôs, durante o processo que a condenou por subversão, Maria Erotildes Pires Ferreira Veras, diretora da referida escola:

Declaro que a professora Maria Celeste Vidal Bastos, exerceu suas funções no Grupo Escolar ‘Carlota Breckenfeld’, da sede do município de Tabira, durante o período de 1954 a 1957, cujo Educandário estava sob minha responsabilidade, cumprindo, a referida professora com os seus deveres, inclusive ministrando aulas de catecismo e desempenhando nas festas cívicas o papel de oradora, nunca externando ideias políticas contrárias aos princípios cristãos, nada constando que desabonasse sua conduta. (PERNAMBUCO, 1964).

Como pode ser identificado, para além de professora polivalente, ela também estava habilitada para o ensino religioso católico e se apresentava como alguém com quem se podia contar nos eventos que exigiam oratória e conhecimento da simbologia e aparato cívicos, o que demonstra, para além de um capital cultural, um capital simbólico que fora sendo cada vez mais reconhecido, à medida que ela ia alargando sua rede de sociabilidade, valendo-se de suas experiências. De acordo com Thompson (1981, p. 182),

Os homens e as mulheres retornam como sujeitos, dentro desse termo (experiência) - não como sujeitos autônomos, indivíduos livres, mas como pessoas que experimentam suas situações e relações produtivas determinadas como necessidades e interesses e como antagonismos, e em seguida ‘tratam’ essa experiência em sua consciência e sua cultura [...] das mais complexas maneiras (sim, relativamente autônomas) e em seguida (muitas vezes, mas nem sempre, através das estruturas de classe resultantes) agem, por sua vez, sobre sua situação determinada.

Foi nessa perspectiva que suas experiências formativas foram sendo decisivas para a cidadã que se forjava em meio a um contexto histórico que exigia conhecimento escolar, profissional, mas também político, que por sua vez foi sendo adquirido à medida que ela foi experienciando a cultura local, como poderia prever Thompson (1981) ao tratar da consciência afetiva e moral. À medida que trabalhava, ela aprendia, e à medida que aprendia, ela se implicava politicamente. Essa implicação se deu de várias formas, como revelam documentos disponíveis na Secretaria de Segurança Pública: ora alfabetizando crianças, ora ensinando-as religião, ora trabalhando com meninos em situação de vulnerabilidade, como aconteceu no final da década de 1950, quando ela passou a exercer a docência no Município de Vitória de Santo Antão, desta feita no antigo Instituto Profissional de Pacas, a Fundação do Bem Estar do Menor (FEBEM), na “reeducação de menores delinquentes”. Acerca do período que lá trabalhou, afirma Targélia de Albuquerque Peixoto, supervisora da 2a. região:

Declaro para os devidos fins, que a professora Maria Celeste Vidal Bastos, serviu como professora na cidade de Vitória de Santo Antão, durante o período de 1959 a 1964 sob minha responsabilidade, cumprindo a referida professora com os seus deveres profissionais, nunca externando para, com colegas e alunos quaisquer ideias políticas, nada constante que desabonasse sua conduta. (PERNAMBUCO, 1964).

Tais depoimentos e condutas expressas pelas depoentes não foram suficientes para que Maria Celeste não fosse presa, porém revelam como a nossa personagem agia na profissão e como tais experiências foram compondo sua consciência política. O que nos leva a entender que quando se pensa a experiência dela, não dá para reduzi-la aos motivos da sua prisão ou mesmo às torturas a que fora acometida no período (SANTOS, 2016), mas a um conjunto de dispositivos e táticas formativas e autoformativas que a compuseram e moldaram sua consciência, e que a forjaram mulher fruto de um tempo, de um lugar e de circunstâncias políticas que, pelo exposto, contribuíram significativamente para o aumento de sua pena.

Tal tipo de experiência formativa muito tem a revelar sobre a atuação professoral no interior nordestino, que vai desde os tipos de escolas existentes, o modo como, e sob que circunstancias, os cursos normais rurais podiam ser oferecidos, até o currículo do curso pedagógico, passando pelo ofício de ensinar propriamente dito. De modo que tal qual propõe Duby (1993), quando considera que o destino de uma vida pode servir de fio condutor para a narrativa histórica, nós, por meio da história de vida de Maria Celeste Vidal, pudemos entender ao menos uma das inúmeras condições do ser mulher. E nesse sentido a investigação encontrou elementos formativos do período histórico em que a ação individual se associa ao habitus professoral,3à militância política, à tradição política partidária e às redes de relacionamentos no enfrentamento às violentas estruturas política e de gênero da década de 1960.

A mulher e as suas circunstâncias

A relação de Celeste com as Ligas Camponesas começa com o exemplo da criação da Sociedade Agrícola e Pecuária dos Plantadores de Pernambuco (SAPPP) no engenho Galielia, em 1955, considerado, na história brasileira, a primeira célula das Ligas Camponesas no país. Apostava, junto com outros moradores da cidade, em tal tipo de organização civil como um meio de alcançar a tão almejada distribuição de terras e o justo pagamento ao trabalhador rural. E como já apontado, foi justamente nessa busca de direitos que Maria Celeste compôs o seu lado militante. De modo mais pragmático, foi sua atuação junto aos camponeses que a forjou politicamente. Foi visitando sítios e propriedades visando perceber os interesses dos munícipes que se envolveu nas discussões acerca da propriedade da terra. Ademais, por estabelecer redes de comunicações com advogados, buscava aconselhar os camponeses a agirem dentro dos dispositivos legais, inclusive levando advogados a terem contato direto com os trabalhadores. Em decorrência desta atuação, foi convidada a ingressar no Partido Comunista Brasileiro (PCB), ainda em 1961, o que refletiu na possibilidade de melhor interpretar a realidade agrária e, assim, lutar coletivamente pela consolidação das Reformas de Base e pela consolidação das Leis Trabalhistas garantidas pelo Estatuto do Trabalhador Rural (PERNAMBUCO, 1964).

Sobre sua filiação ao partido comunista, se deu quando Maria Celeste, já casada com o dono de caminhão e motorista Esaú Damasceno Bastos e mãe de 3 filhos (Marcia Maria, Murilo Cesar e Paulo Max), estava lecionando no Grupo Escolar Oliveira Lima, no município de Vitória de Santo Antão, zona da mata pernambucana, e decidiu, a convite da militante política Adalgisa Rodriguês Cavalcanti, filiar-se. Foi nesse contexto que ela, junto com José Sobreira de França, o trabalhador braçal José Soares, o barbeiro de codinome João Ribeiro, o comerciante ambulante Oliveira Lins, bem como “Severina”, “Zefinha” e “Chiquinha”, membros do Comitê do partido na cidade, revolveram lutar em prol das reformas agrária, tributária, bancária, bem como da regulamentação da remessa de lucro, dentre tantos outros temas afins com

[...] o objetivo de se esclarecer ao povo através de um movimento de massa com métodos pacíficos, exigir do governo a realização das citadas reformas objetivando com isso a constituição de um governo democrata e nacionalista, para garantir as liberdades democráticas e bem estar do povo. (PERNAMBUCO, 1964).

Foram muitas as reuniões com líderes das causas, a exemplo do advogado Francisco Julião, de quem, como já ressaltado, a causa sempre teve apoio e com quem ela partilhava ideias e ações.

Uma evidência desse tipo de reunião, e que fora utilizada como base de interpretação para acusação de agitadora no Processo de Investigação Sumária empreendido contra a professora, é uma fotografia retratando Maria Celeste ao lado do jurista Francisco Julião em um comício realizado em Vitória de Santo Antão, sendo destacada como prova do envolvimento desta com as agitações que envolviam o campo, mas que hoje podemos interpretar como fruto de um tipo de aprendizado/formação que ela e todos os outros tiveram a partir dessa militância. Isto porque é, em tal tipo de “reunião”, que podemos considerar os estudos em conjunto, os ensinamentos dos mais esclarecidos para os menos estudados, os microcosmos criados em razão de pautas comuns, a solidariedade que fora sendo ratificada, a legislação que tivera que ser aprendida e apreendida em razão da construção de argumentos de defesa e exigências, bem como o conhecimento de direitos e deveres tão caros à cidadania e à causa da reforma agrária e dos direitos do trabalhador rural naquele tempo.

Há que se ressaltar que Maria Celeste, a essa altura, não mais estava em sala de aula, pois fora nomeada membro da Secretaria Assistente do Governo, tendo por função mediar as relações governo-trabalhador rural, o que vinha sendo feito a contento. E, talvez por isso, seu perfil não era bem recebido pelos empregadores locais. Nesse ofício também revelou seu habitus professoral quando ensinava os trabalhadores a ler e os orientava sobre as Leis Trabalhistas (baseada na lei, reivindicava 13º, férias, repouso remunerado) visando à possibilidade destes não serem ludibriados por seus empregadores, bem como quando atuava na organização dos estatutos e/ou liderava reuniões no Sindicato Rural que tinham por objetivo articular, junto aos trabalhadores, a atuação conjunta destes nos limites da legalidade (PERNAMBUCO, 1964). Somada a essas ações, várias outras podem ser listadas em prol dos trabalhadores e da Reforma Agrária, a exemplo de sua participação ativa na campanha política do irmão de Inácio de Lemos, Otácio de Lemos, para a prefeitura de Vitória de Santo Antão, bem como de vários outros candidatos, inclusive Miguel Arraes, para governador de Pernambuco.

Outra circunstancia que fez Maria Celeste alargar suas redes de relacionamentos esteve atrelada às visitas às propriedades, mostrando o seu interesse pela causa agrária, inclusive se envolvendo nos problemas dos camponeses, solicitando a propriedade de terra para famílias trabalhadoras, bem como os conduzindo para que buscassem condições legais de trabalho (sendo, por isso, acusada de incitar greves). Concomitantemente às suas ações com os trabalhadores rurais, tinha contato com advogados e engenheiro, tendo participação independente em assuntos políticos nevrálgicos, como foi o caso de seu apoio a Francisco Julião, quando o consenso era votar em Gilberto Azevedo e Cícero Dantas para deputados estaduais. Ainda no tocante à sua rede de sociabilidade, ela também foi membro de agremiações outras, como a Sociedade Beneficente Amor e Trabalho, do Sindicato Rural que funcionava em uma Igreja local (PERNAMBUCO, 1964).

Maria Celeste também presidiu a Diretoria das Ligas Urbanas, que tinha por objetivo lutar pelas normas referentes à locação (Lei do inquilinato), solucionar problemas de saúde (operações, ambulâncias), casamento civil e religioso, registro civil, custeio de enterro, dentre outros (PERNAMBUCO, 1964). Ela também apoiou o Movimento de Educação de Bases (MEB), que tinha por missão educar visando à conscientização e vivência da cidadania e participação social, a fim de que fosse promovida a participação popular e comunitária nas políticas públicas voltadas para as necessidades das populações mais pobres e excluídas e que fosse mantido o compromisso com a educação de jovens e adultos. Tais ações lhe renderam 248 votos na campanha para vereadora da cidade de Vitória de Santo Antão, não sendo eleita por causa da legenda do partido, ficando como suplente.

Expostas tais circunstâncias e motivações que a forjaram militante da causa do trabalhador e trabalhadora rural e, consequentemente, as dimensões que a tornam uma presa política tão logo se deu a implantação do regime ditatorial que prendeu e exilou vários líderes políticos brasileiros, há também que se ressaltar que sua condução à Casa de Detenção da cidade do Recife, onde respondeu pelos crimes de subversão, sob o estigma de comunista, foi outra circunstância da sua vida que a constituiu e que deve ser analisada. Isto porque foi nesta prisão, eminentemente masculina, que ela ficou até ser concluído o relatório policial alegando sua participação efetiva nas atividades subversivas, quando foi transferida para o presídio feminino Bom Pastor.

Na prisão ela consegue dar vazão ao sentimento que a acompanhava em forma de poema, aliás, a literatura também a compõe como mulher, uma vez que são partes de sua trajetória e frutos de suas experiências sensíveis os três livros e folhetos de cordel que compõem a sua bibliografia. São eles: Água Branca meu amor: poemas (LIMA, 1984); Metade sol metade sombra (1994b) e Literatura de cordel (1994a). Seus versos refletem suas experiências da infância à vida adulta, sobretudo no que concerne à sua militância política em prol das minorias, sem deixar de expor as consequências de suas escolhas, como as torturas que sofreu durante sua prisão. São muitos, são vários e são inquestionavelmente repletos de sensibilidades.

Como exemplo está o poema a seguir, a partir no qual ela expressou seus sonhos de liberdade e verdadeira democracia − interrompidos em decorrência de sua prisão:

MEU SONHO É MAIOR QUE A VIDA. A vida para viver é tão pequena que não cabe meu sonho. Aqueles que sonhei e sonho. São poucas as horas que se juntam em dias. São poucos os dias que se juntam em meses. São poucos os meses que fazem um ano. São poucos os anos que fazem uma vida. Mas, se o tempo de viver é tão pequeno, não hei de desistir do sonho que só sonha amor, nem hei de desistir do amor que trás felicidade, nem hei de desistir do abraço que diz fraternidade. E eu diria mais que este sonho é a minha própria vida em Holocausto, oferenda. Pega o meu sonho, devagar, para não acordá-lo. (VIDAL, 1994a).

Interpretando os fatos

[...] a instrução secundária dos trabalhadores assumiu muitas formas, e o estudo solitário individual era apenas uma delas. Em particular os artesãos não viviam tão enraizados em comunidades ignorantes, como poderia facilmente imaginar. Perambulavam livremente pelo país, em busca de trabalho; a parte das viagens impostas pelas Guerras, muitos artífices trabalhavam no exterior, e a relativa com que milhares e milhares emigraram para os Estados Unidos e as colônias (movidos não só pela miséria, mas também pelo desejo de novas oportunidades ou de liberdade política) sugere uma fluidez geral na vida social. Nas cidades, uma cultura plebeia sólida e indecorosa coexistia, entre artesãos, com tradições mais polidas. (THOMPSON, 1987, p. 330).

Por certo o caso dos operários ingleses em muito se diferencia dos homens e mulheres do campo no Brasil, em especial dos nordestinos, entretanto a interpretação que Thompson (1987) faz de suas experiências formativas inspiradoras para nós, ao analisarmos o caso de Maria Celeste Vidal. Isto porque não foi apenas nos bancos escolares que esta se formou. Utilizamos formou porque também partilhamos da ideia desse autor quando ele entende o sujeito como fazedor de si. Para Thompson (1987), a ideia de formação contempla as experiências que em muito podem estar nos bancos escolares, mas também no contato com os amigos, com o trabalho, com os espaços por onde se anda, com as filiações que se estabelece ao longo da vida, nas mobilizações que fazem, tal qual esse autor deixa claro na citação anterior.

E assim como Thompson (1987), ao tratar dos operários ingleses, opta por entendê-los a partir de suas experiências, também optamos, de igual modo, por entender a formação de Maria Celeste Vidal. Isto porque investigar apenas a sua formação escolar não seria suficiente para extrair sua “consciência afetiva e moral”, captada pelos sentimentos e, consequentemente, cultura, uma vez que é a partir dos sentimentos que lidamos com “[...] as normas, as obrigações familiares e de parentesco, e reciprocidade, como valores [...]” (THOMPSON, 1981, p. 189). De modo que foi nosso compasso entender as tensões produzidas entre “[...] processo e estrutura, indivíduo e determinação histórica, ideologia e cultura, ser e consciência sociais, tão negligenciados por tanto tempo na produção brasileira sobre os problemas da educação”, como afiançam Bertucci, Faria Filho e Oliveira (2010, p. 67) ao tratar da “formação como fazer-se, um legado thompsoniano”. E por isso, sobre sua vida, alguns elementos foram aqui destacados com o intuito de interpretar, mais e melhor, suas experiências e o seu fazer-se.

Sobre a acusação de “Agitação”, há que se registrar que esta descende de um status quo ameaçado num regime autoritário, ditatorial, intransigente a pautas populares. Deve-se considerar que na década de 1960, no campo, as relações sociais tinham delimitações específicas, ou seja, cada sujeito em sua ordem social tinha um papel a cumprir dentro daquela sociedade. Isto porque a formação do Brasil e a sua política tem suas raízes firmadas no patriarcalismo, cuja organização social centra-se na família. Dentro do núcleo familiar, o pai é tido como a figura central e tal representação sobressai do âmbito privado e perpassa o público, sendo o dono das terras o centro da sociedade rural, exercendo tutela sobre os trabalhadores rurais. Tal tradição nos faz entender que a desorganização desta estrutura, enquanto fruto das reivindicações da causa agrária, protagonizadas, dentre outros, pela mulher Maria Celeste, afeta a organização patriarcal e androcêntrica já instituída, incomodando os proprietários, que requerem do poder público a intervenção deste processo, em que o peso dos depoimentos e sentença masculinos foram determinantes. As documentações arroladas nesta pesquisa nos revelam que, em relação às denúncias, pouco bastava para acusar, prender e torturar uma mulher neste período, valorizando-se fortemente a palavra do gênero masculino, da classe abastada que, durante o regime civil-militar, exercia influências e foi decisiva na sociedade, como o depoimento prestado pelo comerciante local Joaquim Bosco Tenório Medeiros, que declarou em 05 de abril de 1964 que:

[...] a sociedade local vivia ultimamente verdadeiro constrangimento face a atuação ostensiva de agitadores, acobertados pelo oficialismo pregado em praça pública, a luta de classes, jogando empregados contra patrões e, camponeses contra proprietários; que, entre esses agitadores, tinha papel saliente a professora MARIA CELESTE VIDAL BASTOS. (PERNAMBUCO, 1964).

Outro elemento que constituiu Maria Celeste e que recai no que Thompson (1981) poderia denominar de consciência afetiva e moral esteve condicionado ao que ocorria nas reuniões nas quais se discutia leis, direitos e deveres trabalhistas, finanças, alternativas legais, táticas políticas, o conceito de liberdade, dentre tantas outras pautas que faziam parte do cotidiano do homem e da mulher pobre do campo reunidos e que priorizavam, assim como os operários ingleses analisados por Thompson (1981), o desejo de oportunidades e de liberdade política. Esse tipo de sociabilidade foi elemento inspirador às críticas sociais tecidas por Maria Celeste, bem como dos poemas escritos por ela, como revela em “Maria rainha dos camelôs”:

Parei, pedi duas cocadas. Dei 5,00 por uma. Maria de um olhar assustado foi dizendo: moça, suma! Lá vem a turma do ‘rapa’, polícia da prefeitura, que cai que nem carcará em cima de nós criatura. Sem um trabalho fichado, sem lei e sem proteção, dos camelôs levam tudo, inda ameaçam prisão. O crime que a gente tem é ser pobre mas decente. Ladrão é esse governo que leva os trecos da gente [...] Nesse regime injusto, só resta ao Camelô, se UNIR, formar um só bloco pra dizer ao seu doutô [...] Camelô não tenha medo, você é trabalhador. A UNIÃO de vocês faz soprar vento à favor. (VIDAL, 2021).

Nesses versos, Maria Celeste destaca as relações conflituosas estabelecidas entre os vendedores ambulantes, conhecidos como “camelôs”, e a ação policial e estatal. Atentando para as condições de vida e trabalho desta parcela da sociedade, no poema ela enfatiza a pauta dos direitos coletivos, que poderiam ser obtidos mediante união da classe. Apesar de referir-se em seus versos aos camelôs, sua perspectiva e experiência, abrange todos os trabalhadores, sobre os quais, a partir de sua união e mediante o conhecimento de seus direitos, deveriam fazer “soprar o vento a favor”.

União aquela que foi ponto de pauta de muitos dos encontros produzidos por Celeste e cujo poder de ressonância foi motivo para, tal qual a força policial que foi empregada contra Maria, mãe de seis filhos, a “rainha dos camelôs”, cujo trono eram as calçadas onde monta sua barraca, ser empregada contra Maria Celeste Vidal, a professora da zona rural que vislumbrou a possibilidade de dias melhores para aqueles e aquelas que, tais quais os camelôs, não eram contemplados pelos direitos trabalhistas.

Seu lado poetiza também ressaltou os efeitos da prisão no seu corpo. Isto porque o encarceramento não significou o silêncio do seu pensamento e da sua crítica política e social. Ao contrário, aguçou seus sentimentos e a sua “consciência afetiva e moral”, fazendo-a versar seus poemas sobre abusos sofridos por ela, sobre a preocupação com companheiros e companheiras que militavam pela causa do trabalhador rural, bem como sobre aqueles cujas trajetórias serviam de exemplo de luta e resistência, como exposto nos poemas “Raio Leste” e “Nordeste da Silva”, respectivamente.

RAIO LESTE

Casa de Detenção. Atenção! Cuidado companheiros de justiça órfãos, Aqui é o Raio Leste peste, escrevo nas trevas para causas mortas. Mortas? Há treva nas celas, há treva nos campos, há treva nas fábricas, nas mentes doentes, nas mentes dementes, nos versos e reversos. A caneta desliza ao som do toque marcial: Direita. Volver! Estremeço. O choque elétrico passeia triturando minha carne, os nervos. Êxtase. A idéia sobrevive, agride e grava nos olhos dos tiranos, por mil anos, a imagem do meu corpo em chagas vivas. É tempo dos covardes opressores, traidores. (VIDAL, 1994a, p. 52-53).

NORDESTE DA SILVA

Esqueceu que sou é gente

Conselheiro, Lampião, Lamarca e Fidel Castro

Na Mata, Agreste, Sertão.

O Nordeste não esquece o que a elite esqueceu...

Esqueceu que sou é gente Chico Mendes, Chico Rei,

Que sou mulher Margarida

Com essa massa sofrida um país livre farei.

(VIDAL, 1994b, p. 64).

Há que se assinalar que, no período, a tortura foi utilizada como a principal prática de coação, sendo ela uma das principais estabelecidas pela polícia. Como interpreta Ana Colling (1997) em A resistência da mulher à ditadura militar no Brasil, o sentido da tortura residia na tentativa de docilizar o corpo da mulher a fim de fragilizá-lo, fazendo-a entender a sua posição de inferioridade absoluta ao poder instituído. Deste modo, a tortura evidenciava o uso da força pelo Estado na tentativa de garantir a submissão dos(as) militantes, que, frágeis, entregariam suas redes de relacionamentos e desmontariam os organismos da causa. Nesse caso, como já ressaltado, a causa defendida por ela era a bandeira erguida pelas Ligas Camponesas no interior pernambucano, os anseios pela consolidação da Reforma Agrária, que deveria vir acompanhada de condições para o cultivo da terra e instrução ao camponês. Isto é o que buscava e por isso foi torturada.

O estudo de sua trajetória nos revela também o pouco destaque historiográfico que tem recebido esse tipo de personagem histórica, cujas trajetórias estão longe dos sucessos e dos lugares de destaque e de uma hierarquia econômica ou mesmo educacional, mas que, como sustentam os historiadores da “história vista de baixo”, não podem deixar de constar nas suas páginas, sob pena de a história não ser justa. Afinal, como explica Thompson (1981, p. 182), o estudo das ações de sujeitos simples expõe como a experiência e a cultura são articuladas, como a ação humana se relaciona com a estrutura determinada, em suma, elas revelam “[...] o processo mediante o qual seres humanos fazem sua história”.

Considerações finais

Ao expor a experiência individual de Maria Celeste Vidal, aventamos a possibilidade de se conhecer outras mulheres as quais, de algum ou de vários modos, ela representa. Isto porque, como sugeriu Ferrarotti (1983, p. 51), “Se nós somos, se cada indivíduo representa a reapropriação singular do universo social e histórico que o rodeia, podemos conhecer o social partindo da especificidade irredutível de uma práxis individual.” E por isso, a partir de sua trajetória podemos apreciar diversos coletivos de mulheres que em momentos de suas vidas foram professoras, mães, esposas, presas políticas, torturadas, militantes da causa agrária, líderes políticas, dentre outras atribuições que fizeram de Maria Celeste Vidal e todas as outras Marias sujeitos históricos.

O que aqui trouxemos nada mais são do que momentos esparsos da vida de uma mulher simples que fez história. O que revelamos foi a trajetória de uma mulher que, valendo-se de saberes e de um capital simbólico adquirido pelas experiências de professora, apoiadora da causa agrária e mediadora entre governo e o “povo”, pôde congregar os trabalhadores rurais e ter sobre eles certo comando. Por certo, tais vinculações, considerando as circunstâncias políticas, a colocaram em uma situação difícil, levando-a à prisão, consequentemente, afastando-a dos filhos, à mercê de tortura, ao estigma de comunista e depois ex-presidiária, dentre tantos outros condicionantes de uma vida sofrida, marcada por lutas e perdas.

Por fim, há que se ressaltar que quando evidenciamos esse tipo de história determinada por variáveis distintas, conseguimos demonstrar como a história de Pernambuco e do Brasil não pode ser tecida sem as páginas dedicadas às mulheres. E se, no século XIX, iniciamos uma escrita da história da mulher a partir de “mulheres excepcionais”: santas, rainhas e cortesãs, hoje, conseguimos contemplar mulheres simples, como é o caso da professora nordestina Maria Celeste Vidal, cujo trajeto tem muito a revelar sobre um tempo, um regime político, uma causa social e o oficio professoral, afinal, como narra a própria Maria Celeste em seu poema “Abelha operaria” (1994b, p. 12), dedicado às “mulheres que se organizam”, “A liberdade não é no singular é soma de tudo, de todos, é plural, a começar assim: por mim, por nós. Liberdade eu sou, mas não foi fácil, não é fácil, nem vai ser facilmente.”

REFERÊNCIAS

BARRETO, Raylane A. Dias Navarro. A educação em nível primário da professora Isabel Doraci Cardoso (1940-1944): uma história da educação vista de baixo. Cadernos de História da Educação, v. 17, n. 2, p. 309-327, 2018. Disponível em: http://www.seer.ufu.br/index.php/che/article/view/43286/22589. Acesso em: 19 ago. 2021. [ Links ]

BARRETO, Raylane A. Dias Navarro; MESQUITA, Ilka Miglio de; SANTOS, Laísa Dias. Por uma história da educação vista por sujeitos simples: cultura e práticas da escola primária no sul sergipano (1930-1960). Educação, Porto Alegre, v. 38, n. 2, p. 249-262, 2015. [ Links ]

BERTUCCI, Liane; FARIA FILHO, Luciano; OLIVEIRA, Marcus Taborda de. Edward Thompson: história e formação. Belo Horizonte: UFMG, 2010. [ Links ]

BRASIL. Lei n° 136, de 14 de dezembro de 1935. Modifica vários dispositivos da Lei n° 38, de 04 de abril de 1935 e define novos crimes contra a ordem político social. Diário Oficial da União: seção 1, Rio de Janeiro, p. 26990, 14 jan. 1935. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1930-1939/lei-136-14-dezembro-1935-398009-publicacaooriginal-1-pl.html Acesso em 24 ago. 2021. [ Links ]

BRASIL. Lei nº 1.802, de 05 de janeiro de 1953. Define os crimes contra o Estado e a Ordem Política e Social, e dá outras providências. Diário Oficial da União: seção 1, Rio de Janeiro, p. 273, 07 jan. 1953. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1950-1959/lei-1802-5-janeiro-1953-367324- publicacaooriginal-1-pl.html. Acesso em: 19 ago. 2021. [ Links ]

BRASIL. Juízo do Direito da Comarca de Vitória de Santo Antão. Relator: José Aragão Bezerra Cavalcanti, 10/03/1965. Sentença do processo crime protocolado contra Maria Celeste Vidal Bastos. Vitória de Santo Antão, PE, 1965. Disponível em: https://www.comissaodaverdade.pe.gov.br/uploads/r/arquivo-publico-estadual-jordao-emerenciano/c/c/d/ccd1cdd3a7475610c4c58fec10d649f42ac1edd159566e64a8244933c11fc0eb/bc2eb5ca-64cb-459f-9b86-59b854ed80bf-Maria_Celeste_Vidal_Bastos.pdf. Acesso em: 24 ago. 2021. [ Links ]

COLLING, Ana Maria. A resistência da mulher à ditadura militar no Brasil. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1997. [ Links ]

DUBY, Georges. Guilherme Marechal ou o melhor cavaleiro do mundo. Paz e Terra: 1993. [ Links ]

FERRAROTTI, Franco. Autonomia do método biográfico. In: NOVOA, Antonio (org.). Um método autobiográfico e a formação. Natal: Editora da UFRN, 1983. p. 171-177. [ Links ]

GUINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes. São Paulo: Companhia de Bolso, 2006. [ Links ]

HOBSBAWM, Eric. Pessoas extraordinárias: resistência, rebelião e jazz. Tradução Irene Hirsch. São Paulo: Paz e Terra, 1998. [ Links ]

LIMA, Maria Celeste Vidal de. Água Branca meu amor. In: LIMA, Maria Celeste Vidal de. Água Branca meu amor: poemas. [Sl.], 1984. p. 1-11. [ Links ]

MONTENEGRO, Antônio Torres. As Ligas Camponesas às vésperas do golpe de 1964. Projeto História: Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados de História, São Paulo, v. 29, n. 2, p. 391-416, 2004. [ Links ]

PERNAMBUCO. Secretaria de Segurança Pública. Departamento de Ordem Política e Social. Arquivo Público do Estado de Pernambuco. Prontuário individual nº 14042. Fundo: SSP/DOPS/Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano (APEJE). Recife, 1964. Não paginado. [ Links ]

PERROT, Michelle. Escrever uma história das mulheres: relato de uma experiência. Cadernos Pagu, Campinas, SP, n. 4, p. 9-28, 1995. [ Links ]

PERROT, Michelle. Os excluídos da história: operários, mulheres e prisioneiros. 4. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2017. [ Links ]

PROJETO DHnet. Declaração. Disponível em: http://www.dhnet.org.br/memoria/mercia/juridica/declaracoes/09_mariaceleste.htm. Acesso em: 03 set. 2019. [ Links ]

RUSSOMANO, Mozart Victor. Linhas gerais do Estatuto do Trabalhador Rural. Revista da Faculdade de Direito de Pelotas, Porto Alegre, v. 10, n. 13, p. 105-118, set. 1965. [ Links ]

SANTOS, Thayana de Oliveira. Já ofereci toda tortura, calúnias, injustiças, abandono, pelo Brasil, pelos brasileiros e sinto-me recompensada: a prisão e julgamento de Maria Celeste Vidal. Cadernos de História UFPE, Recife, v. 11, n. 11, p. 101-114, 2016. [ Links ]

SHARPE, Jim. A história vista de baixo. In: BURKE, Peter (org.). A escrita da História: novas perspectivas. Tradução Magda Lopes. São Paulo: Editora UNESP, 1992. p. 39-64. [ Links ]

TEIVE, Gladys Mary Ghizoni. “Uma vez normalista sempre normalista”: cultura escolar e produção de um habitus pedagógico (Escola Normal Catarinense - 1911-1935). Florianópolis: Insular, 2008. [ Links ]

THOMPSON, Edward Palmer. A formação da classe operária inglesa. Trad. Denise Bottmann, Renato Busatto Neto e Cláudia Rocha de Almeida. São Paulo: Paz e Terra, 1987. 3v. [ Links ]

THOMPSON, Edward Palmer. A miséria da teoria ou um planetário de erros: uma crítica ao pensamento de Althusser. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1981. [ Links ]

TILLY, Louise A. Gênero, história das mulheres e história social. Cadernos Pagu, n. 3, p. 28-62, 1994. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/article/view/1722. Acesso em: 30 mar. 2020. [ Links ]

VIDAL, Maria Celeste. Literatura de cordel. Recife: Bagaço, 1994a. [ Links ]

VIDAL, Maria Celeste. Metade sol metade sombra. Recife: Bagaço, 1994b. [ Links ]

VIDAL, Maria Celeste. Maria rainha dos camelôs. Disponível em: https://fadd8de4- c14c-4655-b5df5c1691a7e2dd.filesusr.com/ugd/4a73ea_222935acafa04ce4ac0f8d7e2ddf3bb6.pdf. Acesso em: 18 ago. 2021. [ Links ]

1Este artigo tem concepção, pesquisa, análise e interpretação dos dados feito em parceria por ambas as pesquisadoras e segue os procedimentos éticos da pesquisa em Ciências Humanas.

2Financiado por meio do edital da Chamada Universal MCTIC/CNPq 2018.

3O termo habitus professoral aqui utilizado vai ao encontro do habitus pedagógico trabalho por Teive (2008, p. 39), que com base na teoria de Pierre Bourdieu entende que o habitus “[...] é o produto do trabalho de inculcação e de apropriação necessário para que as estruturas objetivas consigam reproduzir-se, sob a forma de disposições duráveis, em todos os indivíduos submetidos aos mesmos condicionamentos, colocados, portanto, nas mesmas condições de existência”.

Recebido: 02 de Fevereiro de 2021; Aceito: 03 de Agosto de 2021

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons