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Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade

versão impressa ISSN 0104-7043versão On-line ISSN 2358-0194

Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade vol.30 no.63 Salvador jul./set 2021  Epub 09-Mar-2022

https://doi.org/10.21879/faeeba2358-0194.2021.v30.n63.p239-256 

DOSSIÊ TEMÁTICO 63

AIAS, GOVERNANTAS E PRECEPTORAS: MULHERES COM A ATRIBUIÇÃO DE EDUCAR

“AYAS”, GOVERNESSES AND PRECEPTORS: WOMEN WHOSE TASK WAS EDUCATING

AYAS, INSTITUTRICES Y PRECEPTORAS: MUJERES CON LA ATRIBUCIÓN DE EDUCAR

Maria Celi Chaves Vasconcelos*  Universidade do Estado do Rio de Janeiro
http://orcid.org/0000-0002-3624-4854

Ana Cristina B. López M. Francisco**  Universidade do Estado do Rio de Janeiro
http://orcid.org/0000-0002-1114-0565

*Pós-doutorado em Ciências da Educação pela Universidade do Minho (PT). Doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Professora Titular da Faculdade de Educação, atuando no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Proped/UERJ). E-mail: maria2.celi@gmail.com

**Pós-doutorado em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Proped/UERJ). Doutora em Educação pela Universidade Católica de Petrópolis (UCP). Mediadora do Curso de Pedagogia a Distância da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ/CONSÓRCIO CEDERJ). E-mail: acblmf@gmail.com


RESUMO

O presente estudo tem como objetivo geral analisar as atribuições destinadas às aias, governantas e preceptoras, assim denominadas as mulheres que se encarregavam da educação de crianças da aristocracia, no século XIX. Em um plano mais específico, pretende-se fazer uma distinção da nomenclatura em sua tradução para o português, comparando a utilização dos termos conforme a função ocupada. No que tange aos aspectos metodológicos, o estudo remonta a uma pesquisa histórico-documental que tem como fontes principais os manuscritos elaborados pelos imperadores D. Pedro I e D. Pedro II, sobre as atribuições das aias de suas filhas, documentos cujos originais se encontram no Arquivo do Museu Imperial em Petrópolis. A análise dos documentos evidencia as funções de aias, governantas e preceptoras como um dos únicos ofícios permitidos às mulheres naquele tempo e contexto, bem como envoltos em uma linha tênue entre simples empregadas e cortesãs muito próximas aos espaços de poder da aristocracia.

Palavras-chave: educação feminina; educação de crianças nobres; manuais de educação; funções de preceptoras; império do Brasil

ABSTRACT

The present study aims to analyze in a broad perspective, the attributions of “Ayas”, governesses and preceptors, as these women who oversaw the aristocracy children’s education were called in the 19th century. In a more specific frame, it is intended to establish a distinction of nomenclatures in their translations into Portuguese, when comparing the use of these words according to each of their functions. Concerning the methodological aspects, the study goes back to a historical-documentary research that has as main source, the manuscripts drawn up by the emperors D. Pedro I and D. Pedro II, on the duties of their daughters' “Ayas”. The original documents are found at the Imperial Museum archives in Petropolis (RJ - Brazil). The analysis of these documents highlights the assignments given to “Ayas, Governesses, and Tutors, as these were regarded as one of the few crafts which women were allowed to have at that time and in that context, thus drawing a fine line between simple servants and courtesans who were close to the aristocracy's power spaces.

Keywords: women's education; education of noble children; education manuals; roles of governesses; empire of Brazil

RESUMEN

El presente estudio tiene como objetivo general analizar las atribuciones destinadas a las ayas, institutrices y preceptoras, las llamadas mujeres encargadas de la educación de los hijos de la aristocracia en el siglo XIX. En un plano más específico, se pretende hacer una distinción de la nomenclatura en su traducción al portugués, comparando el uso de términos conforme a la función ocupada. En cuanto a los aspectos metodológicos, el estudio se remonta a una investigación histórico-documental en la que se utilizan como fuentes principales los manuscritos elaborados por los emperadores D. Pedro I y D. Pedro II, sobre los deberes de las doncellas de sus hijas, documentos cuyos originales se encuentran en el Archivo del Museo Imperial de Petrópolis. El análisis de los documentos destaca las funciones de sirvientas, amas de casa y preceptoras, como uno de los únicos trabajos permitidos a las mujeres en esa época y contexto, envueltos en una fina línea entre sirvientas sencillas y cortesanas muy cercanas a los espacios de poder de la aristocracia.

Palabras clave: educación de la mujer; educación de niños nobles; manuales de educación; funciones de las institutrices; imperio de Brasil

Introdução

A educação de reis, príncipes, nobres, fidalgos, cavalheiros e senhores era, na Europa, desde a Baixa Idade Média, uma das temáticas utilizadas para um tipo especial de literatura destinada a estabelecer regras que deveriam ser usadas na formação do governante ideal ou de nobres que iriam herdar vastos domínios. Essas orientações descreviam, minuciosamente, como educar crianças, em especial os meninos que, no futuro, governariam os demais, sendo centradas em torno de problemas éticos que focavam, principalmente, a formação moral e religiosa. De acordo com Vasconcelos (2006), tais obras constituíram-se nos primeiros “manuais” utilizados para a educação de crianças e jovens, teorizando e apresentando procedimentos, conteúdos e métodos mais adequados para se proceder à educação das elites. Um exemplo dessa prática é a obra De eruditione filiorum nobilium, escrita por Vicente de Beauvais, por volta do ano de 1246, a pedido da Rainha Margarida de França, esposa de São Luís, para a educação de seus filhos Luís e Isabel (VASCONCELOS, 2006).

Com a afirmação da imprensa, um dos temas mais recorrentes para a educação serão manuais de formação, principalmente dos príncipes e de crianças nobres. Muitas obras surgem com essa finalidade, enfocando, particularmente, como se deveria educar e que conhecimentos e princípios precisavam ser ensinados aos filhos ou pupilos. No entanto, nem sempre esses manuais de educação eram utilizados pelos próprios pais, mas sim por preceptores encarregados da educação das crianças e jovens a quem eles confiavam plenamente a formação dos filhos e filhas. Neste sentido, publicavam-se livros que pretendiam indicar ao mestre a melhor maneira de educar, não apenas futuros reis e nobres, mas com o propósito de se tornar um modelo a ser copiado para, através da educação das elites, alterar as posturas, os pensamentos e as relações existentes.

A maioria das obras destinava-se ao público masculino e aos mestres encarregados da educação de meninos, embora registrem-se algumas exceções como De l’éducation des filles de Fénelon, que se situa em um contexto bastante singular, como exemplifica Bastos (2012, p. 148):

De l’éducation des filles é escrita quando Fénelon tinha 27 anos, por solicitação do duque de Beauvilliers, da corte de Luís 14 e encarregado de organizar a educação do príncipe herdeiro, que tinha uma família numerosa e, essencialmente, composta de mulheres. Portanto, um tratado destinado a um uso particular. À primeira edição de 1687, seguem-se várias, reorganizadas e divididas em capítulos, até a última edição de 1696.

Bastos (2012, p. 151) assinala que “Fénelon foi inspiração para muitas outras do gênero”, citando o português Luis Antonio Verney (1746), que no seu Verdadeiro método de estudar, de 1746, “dedica um apêndice à educação da mulher e preconiza uma educação para o lar”. Se já eram raras as obras destinadas à educação de mulheres no século XVIII, o que dizer daquelas escritas por mulheres? Essas são reconhecidas por sua singularidade, em uma época que a educação da mulher não continha importância suficiente para ter redigido um manual.

Contudo é uma contemporânea de Verney que protagoniza uma mudança neste cenário. Trata-se de Madame Leprince de Beaumont, que escreve, em 1758, o livro Magasin des enfants ou Dialogue entre une sage gouvernante et plusieurs de ses élèves de grande distinction, traduzido para o português como Thesouro de meninas ou dialogos entre uma sabia aia e suas discipulas,1 conforme o exemplar anunciado pela Livraria Garnier, no Município Neutro da Corte, o Rio de Janeiro, em 1849. O livro de Madame Leprince de Beaumont foi muito conhecido e utilizado na educação de meninas em diversos países da Europa. A autora, Jeanne-Marie Leprince de Beaumont, era uma preceptora francesa, cujos escritos demonstravam os conteúdos e métodos considerados mais eficazes para a preparação de suas discípulas ensinadas em suas próprias casas.

O que se sabe sobre Jeanne-Marie Leprince de Beaumont é que ensinou durante dezessete anos em casas de várias jovens ladies, na Londres de 1748 a 1770. De acordo com Ana Maria Machado no seu prefácio de uma das edições do livro (BEAUMONT, 2008), Jeanne-Marie nasceu em Rouen, em 1711, filha de um escultor de imagens e altares, circunstâncias que teriam possibilitado a sua educação em um convento de freiras na Normandia. Casando-se com o marquês Grimard de Beaumont, ficou viúva muito cedo e, provavelmente, sem bens ou renda, “teve que ganhar a vida trabalhando como preceptora de crianças em casas de famílias aristocráticas” (VASCONCELOS, 2013, p. 241).

De acordo com o padre Joaquim Ignacio de Frias, tradutor da obra para o português em 1774, e autor do prólogo (BEAUMONT, 1883), o livro tinha uma dupla função pretendida pela autora: que as discípulas aprendessem o idioma francês, ao mesmo tempo em que “emendassem os seus defeitos, fizessem hábito de virtude e enriquecessem os seus entendimentos”, tornando-se “dóceis, obedientes e virtuosas” (BEAUMONT, 1758 apud VASCONCELOS, 2013, p. 234).

No prólogo, Frias ressalta, ainda, que a grande apreciação dessa obra estaria na forma da utilização dos contos de fadas, fábulas e histórias, que tornava os primeiros não “nocivos”, pois as crianças ficariam capacitadas para entender que um conto é “uma coisa fingida para entreter gente moça”, prevenindo-lhes “o mesmo dano que dos contos das amas, que só servem de perturbar-lhes a imaginação, e fazer-lhes conceber medo de coisas que de si são indiferentes” (FRIAS, 1883 apud VASCONCELOS, 2013, p. 234). Além dessas características, Mendes (2011, p. 90), em sua análise da obra de Madame Leprince de Beaumont, assinala:

Digna sucessora de Fénelon, a autora retoma e moderniza o conceito de ‘livro educativo’, unindo instrução e recreação. Mas Mme Leprince de Beaumont apresenta-se igualmente herdeira das ideias propostas por Locke, em Some thoughts concerning education, ao defender uma educação atenta e atraente, que não prejudicasse a natural inclinação infantil para os divertimentos. O Magasin des enfants conheceria um enorme sucesso na Europa, que se traduziu em várias edições e traduções, tornando-se, assim, num autêntico bestseller. Este sucesso fora do comum é devido, em grande parte, à originalidade da sua aproximação pedagógica: efectivamente, os escritos das aulas ministradas por precetoras tornaram-se mesmo uma moda no século XVIII, divulgando assim formas de planificação de sessões de educação.

É nesse mesmo intuito, de também ensinar a preceptoras e “aias” a educar meninas, que uma outra mulher, Joanna Rousseau de Villeneuve, igualmente francesa, mas residindo em Lisboa, onde exercia a “profissão de aia, ou mestra, em casa de pessoa grada n'esta capital” (SILVA, 1883, p. 144), que ela, provavelmente, decidiu seguir os passos de sua conterrânea, e, em 1767, publicou A aia vigilante, ou reflexões sobre a educação das meninas desde a infância até a adolescência (VILLENEUVE, 1767). Contudo, Joanna Rousseau de Villeneuve tinha uma característica diferenciada em relação ao lugar onde exercia o seu ofício de preceptora. De acordo com Santos (2018, p. 223), “esta mulher trabalhava como aia na segunda casa política de setecentos, precisamente a casa de Sebastião José de Carvalho e Mello, Secretário de Estado dos Negócios Interiores do Reino”, portanto, sua invisibilidade, nas parcas referências que possui como autora, deve-se a que “convinha resguardar do olhar público tudo o que pudesse transparecer a gestão da economia doméstica e a intimidade familiar” (SANTOS, 2018, p. 223). Como aia na casa do futuro marquês de Pombal,2 é explicável que se tenha poucos dados sobre ela, embora tenha sido uma importante escritora do período, a primeira do gênero em Portugal, que, além de exercer a profissão de aia, também se dispôs a escrever acerca do ofício, com o intuito de “reformar a educação doméstica de crianças da aristocracia portuguesa” (SANTOS, 2018, p. 223).

Vale notar que a condessa de Oeiras, segunda esposa do conde de Oeiras, futuro marquês de Pombal, era austríaca, nascida em Viena, onde Sebastião José de Carvalho e Mello a conheceu, quando foi ser embaixador plenipotenciário. Ao casar-se com ele em 1745, Maria Leonor Ernestina von Daun muda-se para Lisboa, e irá contratar, como o costume da época nas famílias aristocratas, uma preceptora francesa, Joanna Rousseau de Villeneuve, para educar cinco dos seus filhos e filhas: Teresa Violante (1746-1823), Henrique José (1748-1812), Maria Francisca (1751-1856), José Francisco (1756-1812), e Maria Amália (1756-1812). Dessa forma, é provável, que a preceptora, tratada por aia, tenha sido incentivada pela própria condessa de Oeiras a publicar o seu livro, considerando que na corte austríaca, de onde ela provinha, essa literatura era muito apreciada e havia um número bem maior de impressos à disposição dos leitores.

Assim, o livro de Joanna Rousseau de Villeneuve (1767) é bastante incomum, tanto por ser uma publicação portuguesa feminina sobre a atuação das aias ou governantas, quanto por se tratar da preceptora de uma das mais ilustres famílias de Portugal, além de ter resistido à censura a que estava submetida toda publicação impressa no Reino naquela época. Contudo, oferecido à condessa de Oeiras, conseguiu passar por todos os censores necessários à concessão das licenças do “Santo Ofício” e demais clérigos encarregados da função, entre eles o frei Manuel do Cenaculo e José Caetano de Mesquita, além do censor José Malaquias, que chama a este livro de “verdadeiramente de oiro”, embora não menores elogios lhe dispensem os outros censores, sendo a obra considerada “muito pouco vulgar” (SILVA, 1883, p. 144).

Em que pesem ambas as escritoras, Jeanne-Marie Leprince de Beaumont e Joanna Rousseau de Villeneuve, terem sido lidas por gerações que atravessaram desde o século XVIII até o século XIX, ensinando não somente às crianças e aos jovens, mas, principalmente, às aias, governantas e preceptoras a como se tornarem “boas” mestras para educar meninos e meninas sob a sua responsabilidade, outras figuras de destaque também decidiram elaborar seus próprios tratados de “atribuições da aia”. Tais escritos convertiam-se em manuais ou regulamentos que detalhavam as funções para as quais estavam encarregadas mulheres contratadas como governantas ou preceptoras para residir nas casas ensinando a crianças nobres, por vezes destinadas a governar. Entre os pais que se preocuparam em elaborar as regras para essas atribuições estão os dois imperadores brasileiros, D. Pedro I e D. Pedro II, cada um a seu tempo, durante a infância das filhas, fazendo eles próprios o estatuto daquilo que julgavam ser o mais apropriado para a educação a ser realizada pela aia das princesas.

O presente estudo tem como objetivo geral analisar as atribuições destinadas às aias, governantas e preceptoras, assim denominadas as mulheres que se encarregavam da educação de crianças da aristocracia, no século XIX. Em um plano mais específico, pretende-se fazer uma distinção dessa nomenclatura em sua tradução para o português, comparando a utilização dos termos conforme a função ocupada. Em outra perspectiva, também se evidencia esse ofício feminino como um dos únicos permitido às mulheres naquele tempo e contexto, bem como envolto em uma linha tênue entre simples empregadas e cortesãs muito próximas aos espaços de poder da aristocracia.

No que tange aos aspectos metodológicos, o estudo remonta a uma pesquisa histórico-documental que tem como fontes principais os manuscritos elaborados pelos imperadores D. Pedro I e D. Pedro II sobre as atribuições das aias de suas filhas, documentos cujos originais se encontram no Arquivo do Museu Imperial em Petrópolis, reproduzidos no Anuário do Museu, publicado em 1946 por Lourenço Luís Lacombe, que se intitula “Chefe da Divisão de Documentação Histórica”. Segundo a apresentação de Lacombe (1946, p. 241), neste número do Anuário do Museu estariam copiados documentos que provinham “do opulento acervo conservado até pouco tempo no castelo d’Eu, pela família imperial brasileira, e agora recolhidos ao museu por doação do príncipe dom Pedro”.

Assim, o primeiro documento compilado por Lacombe e utilizado como fonte neste estudo é intitulado “Regulamento, que há de ser observado no quarto de minhas filhas, tanto por elas como pelas criadas,” que, segundo esse autor, deveria “ser observado no serviço das princesas, filhas de D. Pedro I, papel que, infelizmente, não traz data. Pela apresentação e conteúdo, porém, cremos poder situá-lo no período de 1822 a 25” (LACOMBE, 1946, p. 241).

Lacombe (1946) acreditava, ainda, com base nas caligrafias que tivera a oportunidade de ver em muitos documentos à sua disposição no Museu Imperial, que as anotações registradas no manuscrito haviam sido escritas por Francisco Gomes da Silva (o Chalaça), com emendas de D. Pedro I.

O segundo documento utilizado como fonte, também compilado por Lacombe (1946) e constante do Anuário do Museu Imperial, publicado em 1946, é a reprodução de uma minuta escrita por D. Pedro II (1857), intitulada Atribuições da aia, além de uma cópia de autoria da imperatriz, da qual foram aproveitadas as emendas introduzidas pelo marido. Ambos os documentos são analisados e anotados em suas semelhanças e distanciamentos.

As fontes elencadas são complementadas com as descrições provenientes das obras utilizadas entre os séculos XVIII e XIX para a educação de crianças e jovens da aristocracia, sobretudo meninas, e, em especial, os livros das preceptoras francesas Jeanne-Marie Leprince de Beaumont e Joanna Rousseau de Villeneuve (1767), considerando que eram leituras muito populares, ainda, na época de infância das duas gerações de princesas brasileiras, tendo em vista os seus permanentes anúncios nos catálogos das livrarias contemporâneas do período.

Diante do exposto, este artigo apresenta relevância na medida em que evidencia documentos pouco explorados pela historiografia, contribuindo para demonstrar o lugar social das mulheres na função de educadoras, o que amplia o escopo de estudos que se limitam à atuação feminina na casa e na vida doméstica, trazendo um aporte diferenciado ao campo do conhecimento em que está inserido.

Amas, retretas, açafatas, damas de quarto e aias: o reino feminino que cercava as crianças na intimidade

O quadro “Las meninas”, pintado por Diego Rodríguez de Silva y Velázquez, em 1656, retrata como seriam os aposentos íntimos de uma criança nobre nas cortes europeias dos séculos XVII e XVIII, reproduzindo a infanta Margarita de Áustria, de cinco ou seis anos de idade, cercada por suas “cuidadoras” no “Quarto do príncipe do Alcázar de Madrid” (GALÁN, 2018, p. 215). Nele aparecem, ainda, além da infanta, diversas meninas chamadas de “damas de quarto”. Embora o significado da obra seja exaltar a infanta, herdeira da coroa do império espanhol, também pode-se testemunhar um cotidiano comum nos espaços destinados às crianças nobres. Elas estavam sempre envoltas por um número significativo de outras mulheres, com papéis bem definidos e atribuições normatizadas por rigorosas regras, contendo qual era o ofício de cada uma junto à criança que seria cuidada e educada.

Michelle Perrot (2011, p. 111-112), em sua História dos quartos, conta que na época de Luís XV, mais precisamente em 1741, a ala dos príncipes apresentava “uma espécie de berçário”, onde as “embaladoras” atuavam até que eles tivessem três anos. Mais tarde, as crianças dormiam em “camas cercadas por uma balaustrada”, com cada quarto possuindo três camas, uma para a criança, “uma para a ama e outra para a governanta”. Segundo essa autora, “as mulheres reinam neste pequeno mundo principesco” (PERROT, 2011, p. 111). Com sete anos os meninos eram encaminhados para “os homens”, e, então, “a escolha do preceptor é uma questão de Estado” (PERROT, 2011, p. 112). Para as demais crianças da aristocracia, a arquitetura e a organização eram semelhantes, até porque tomavam a nobreza como modelo:

Entretanto, até o fim do século XVIII, os arquitetos ignoram quase completamente a infância, nas plantas, cada vez mais elaboradas, que dedicam ao hábitat doméstico. Delarue, em 1768, define a localização de um quarto ‘para duas crianças e um perceptor’ e de um quarto ‘para uma senhorita’, acompanhado de um boudoir, no mesmo andar que os pais, grande novidade. Le Camus de Mézières, em seu notável tratado de 1780, dedica três páginas (em 280), ‘ao alojamento das crianças da casa’, que ele situa no entressolho, na vizinhança dos criados, todos juntos até cinco anos com uma ‘governanta ou criada’. Separados em seguida, os meninos se reúnem ao seu preceptor. (PERROT, 2011, p. 112-113).

Dessa forma, percebe-se que as crianças estavam desde a hora de acordar até o deitar constantemente acompanhadas por uma hierarquia que ia de criados a preceptores, por vezes ocupando os mesmos espaços, mas com funções diferentes em relação aos meninos e meninas. As primeiras mulheres a atuarem junto aos recém-nascidos eram as “amas”, cujas atribuições iam muito além do aleitamento ou da atuação como “embaladoras”, eram elas que ficavam mais próximas das crianças e, portanto, as que acabavam por suprir as afeições e as necessidades infantis. Contudo, o comportamento das amas, que acabavam por substituir, em grande medida, os pais, era alvo das críticas dos preceptores e mestres que vinham a seguir.

É possível constatar que em Tesouro de Meninas ou diálogos entre uma sábia aia e suas discípulas, assim como no livro A aia vigilante, ou reflexões sobre a educação das meninas desde a infância até a adolescência, ambos escritos no mesmo período, embora em contextos de países diferentes, aproximam-se as percepções das autoras, Jeanne-Marie Leprince de Beaumont e Joanna Rousseau de Villeneuve, em relação aos acertos e aos erros que pais, mães e aias cometiam na educação das crianças, em relação à permissibilidade dada às amas. Para essas escritoras, as maiores culpadas da má educação e teimosia das crianças eram as amas complacentes, que permitiam e faziam todas as suas vontades. No Conto do príncipe Amado, Madame Leprince de Beaumont assim descrevia o personagem:

Tinha ele sido educado por uma néscia ama, que o tinha estragado, sendo ainda pequeno. Esta, se ele cobiçava qualquer coisa, vendo-o chorar, enraivecer-se, e bater o pé se a não conseguia, logo a dava ele; e deste modo a veio a fazer-se teimoso. Dizia-lhe ela também a cada instante, que havia de vir a ser rei, e que os reis viviam muito felizes, porque todos lhes deviam obedecer e respeitá-los, e que ninguém os podia impedir de fazer o que quisessem. (BEAUMONT, 2008, p. 48).

Joanna Rousseau de Villeneuve comungava do mesmo pensamento de sua contemporânea e julgava que as amas, se não fossem bem escolhidas, poderiam causar males irreparáveis no futuro adulto: “Tomando-se por Ama uma mulher viciosa, não pretendo que o menino contraia seus vícios, mas certamente o seu temperamento se estragará” (VILLENEUVE, 1767, p. 3). Para essa autora,

A primeira pessoa, a quem os grandes, e os ricos entregão a educação de seus filhos, logo que sahem dos braços da Ama, he a Aia, que foi escolhida para seu ensino. As impressões, que desta na infância recebem são mais importantes, e consideráveis do que se imagina; não sendo de pouca consequência aquellas que a Ama lhes infunde. A experiencia quotidiana mostra, que as primeiras impressões influem nas inclinações primeiras de hum menino: estas em seus primeiros costumes; e que se destes não dependerem algum dia as boas qualidades, ou defeitos do seu juizo, a elles ficarão quasi sempre sujeitos as virtudes, ou vicios do seu coração. Na eleição da Ama, pois, haja grande cautella. Além das qualidades fysicas, deve ser morigerada, e intelligente, ter o coração igualmente são, como o corpo. (VILLENEUVE, 1767, p. 2-3).

Tal costume de encarregar amas dos cuidados com as crianças e do acompanhamento da infância desde o nascimento estava enraizado nas sociedades, como observa Rogério Fernandes (1994, p. 200) em relação a Portugal: “[...] desde a primeira infância, na casa, enquanto as amas encarregavam-se das crianças na ‘primeira criação’, as aias ‘desempenhavam funções mais complexas’, ocupando-se da sua educação.” (VASCONCELOS, 2005, p. 7).

No Brasil, adiantado o século XIX, a utilização de amas era recorrente entre todas as camadas da população que pudessem pagar por esses serviços, como testemunham os anúncios nos jornais até o final do oitocentos, quando as famílias não possuíam entre as escravizadas aquelas que pudessem desempenhar essa função. No entanto, também eram vistas como mulheres cujo contato mais estreito com a criança, ao longo da infância, era o responsável pelos males de sua formação, como aponta o artigo intitulado “Educação”, escrito no jornal Album Litterario: periódico instructivo e recreativo, no exemplar publicado no dia 15 de agosto de 1860, pelo articulista que assina a matéria com as iniciais ou o pseudônimo IESY (1860), criticando o uso excessivo que no Brasil se fazia dos costumes da França, mas considerando alguns deles salutares, como a utilização de preceptores. Isso porque, segundo o articulista, seria muito mais “proveitoso” a utilização de uma preceptora, desde a mais tenra infância, do que de amas, uso “pernicioso” e até “perigoso”, adotado nas famílias brasileiras, que entregavam a criação dos filhos quase sempre a amas escravas, que gravariam as primeiras impressões nas crianças, causando nelas prejudiciais defeitos, que só muito mais tarde poderiam ser modificados. Entre os males causados, Vasconcelos (2005, p. 144) ressalta a “corrupção na linguagem e o comportamento na sociedade”, prejuízos que na França, na Inglaterra, na Alemanha e em outros países eram prevenidos na aquisição de “governantes”, entregando a “aias” a educação dos filhos, livrando-os da perniciosa influência que exerce nas crianças o contato e a convivência com “fâmulos” despidos de conhecimentos sociais, ignorantes de usos e de costumes que são princípios da civilização.

A’ medida que a criança, entregue aos cuidados da intelligente e virtuosa governante, recebe a educação doméstica, e por assim dizer, material, é que sua alma desenvolve-se á luz de sãos princípios e sua intelligencia illumina-se; á medida, dizemos, que assim essa criança recebe uma educação completa, as nossas, criadas e crescidas na communidade de amas inaptas e impróprias para essa delicada tarefa, ignorão o bom, sua intelligencia embota-se, e não conhecem mesmo os mais comezinhos princípios de moral. É, pois, incontestável que tão prejudicial é o uso adoptado em nosso paiz quanto proveitosa é a acquisição da preceptora. (IESY, 1860 apud VASCONCELOS, 2005, p. 145, grifo nosso).

Ainda assim, as amas tinham um lugar de destaque nas casas oitocentistas, como se vê no romance A Moreninha, escrito por Joaquim Manuel de Macedo, publicado em 1844. A “heroína” da história foi criada por uma ama, que ainda mora com ela, já completa a sua formação, e que tem o seu amor filial.

Morava com a Sr ª D. Ana uma pobre mulher, por nome Paula, muito estimada de todos, porque o era da despotazinha daquela ilha, de D. Carolina, a quem tinha servido de ama. Os desvelos e incômodo que tivera na criação da menina lhe eram sobejamente pagos pela gratidão e ternura da moça. (MACEDO, 1982, p. 82).

D. Carolina, a “moreninha”, apesar do gênio e de ser apresentada pelo autor como travessa e “somente capaz de brincar e ser estouvada” (MACEDO, 1982, p. 53), quando vê a ama caída demonstra imenso afeto pela mulher a quem considerava “mãe”.

Na Casa Imperial brasileira, as concepções que vigoravam em relação a esse tema eram as mesmas da Europa, no que diz respeito às atribuições de cada empregada de acordo com seu posto e lugar. No entanto, no início do século XIX, em um país recém-independente que ainda se adaptava e construía sua nova identidade, embora utilizando algumas das nomenclaturas oriundas das cortes europeias, na prática, muitas vezes, elas serviam apenas para endossar um séquito que acabava por duplicar atribuições.

Nesse contexto, faziam parte da corte das princesas brasileiras, além das amas, as açafatas, as retretas e as damas de quarto, segundo anotações dos documentos dos imperadores. De acordo com Tobias Monteiro3 (1946, p. 38), as retretas eram as senhoras que cuidavam dos aposentos da imperatriz e das princesas, realizando os serviços mais básicos, estando hierarquicamente acima apenas das criadas e das escravas. A açafata, por sua vez, já era uma fidalga a serviço das damas da família Imperial, que estava encarregada das roupas das princesas, a fim de prepará-las para o vestuário e o toucador (FRANCISCO, 2017). Por sua condição de fidalguia, possuía alguns privilégios, incluindo o acesso ao quarto das crianças nobres, às joias, ao vestuário e aos adornos, possivelmente gerando alguma intimidade com as mulheres a quem servia. As açafatas e aias, além das damas de companhia das princesas, constituíam-se em damas de quarto, com posições e funções diferenciadas.

A aia já estava em um patamar superior e desempenhava funções como uma espécie de governanta, que coordenava toda a educação, incluindo os outros mestres das crianças. Assim, a aia possuía um cargo com status de honra, sobretudo por ser o que estava mais em contato com os membros da realeza, ou seja, não somente os filhos, mas também os pais.

Ao aio de um príncipe era confiada a sua tutela, o governo, a criação, a educação e a instrução; lembrando-lhe sempre de que seu discípulo, um dia, havia de reger os destinos de uma nação. O aio acompanhava seu discípulo cerrando e abrindo as portas, despindo-o e vestindo-o, comendo com ele na mesma mesa, acompanhando-o nas jornadas ou passeios, assistindo, a seu lado, aos atos religiosos, estando junto com ele o tempo todo e em todos os lugares, nunca o perdia de vista, regulando todas as ações e os costumes de sua vida, tinha superintendência e voto na eleição de todos os mestres que iriam participar de sua educação, estipulava todas as obrigações e deveres, bem como marcava as horas para as lições e estudos, atuava como se fosse pai, considerando-se que os verdadeiros estavam constantemente ocupados, preenchia todos os afazeres destes, sendo dito como ‘segundo pai’, o que lhe dava prerrogativas para preceder a todos os outros cargos da Casa Real. (VASCONCELOS, 2005, p. 66).

Nos mesmos moldes da nobreza portuguesa, os preceptores ou aios, na Casa Imperial brasileira, usufruíam de status elevado e tinham a responsabilidade sobre a educação dos futuros senhores imperiais, que era ministrada por professores de diferentes disciplinas, coordenados por um diretor de estudos. Ao aio, também chamado, como na França, de preceptor, cabia a filosofia básica que norteava a educação dada aos príncipes.

O assunto era considerado uma questão de Estado e possuía tamanha importância que, em 1838, o marquês de Itanhaém, então tutor de D. Pedro II em sua menoridade, compôs um documento contendo doze artigos que estabeleciam aspectos necessários à formação de um governante, cujo texto, segundo ele, “instrui os mestres para ministrarem uma educação de acordo com o gênio natural dos filhos do país” (MAUAD, 2000, p. 151).

As atribuições e os privilégios das mulheres que trabalhavam na Casa Imperial: de serviçais à intimidade nos palácios

No Regulamento encontrado no Arquivo do Museu Imperial, intitulado “Regulamento, que há de ser observado no quarto de minhas filhas, tanto por elas como pelas criadas” (D. PEDRO I, [18--]), que trata sobre os serviços a serem realizados na ocupação das princesas, filhas de D. Pedro I, não é informada a data em que ele foi elaborado. O documento é constituído por um enumerado de disposições, distribuídas em artigos, escritos com a caligrafia de Francisco Gomes da Silva (o Chalaça), acrescido de emendas do próprio imperador D. Pedro I.

Vale notar no Regulamento a interferência de D. Pedro I nos pormenores da vida das princesas e a menção constante à figura da imperatriz, em que pese a sua pequena influência na educação das filhas. Maria Graham (2010), em seus registros4 relativos ao pouco tempo que atuou como preceptora da princesa Maria da Glória a convite da imperatriz Leopoldina, fala sobre as dificuldades que a soberana demonstrava para exercer as mais elementares ações na formação de sua primogênita. Na descrição da preceptora inglesa, assim era o comportamento da imperatriz diante das ordens de D. Pedro I:

Tinha passado as iguarias imperiais à preta Ana e estava sentada em frente a uma rosca e um copo de vinho, meditando numa carta à Imperatriz, pedindo-lhe que me fosse dado o prometido auxílio do Padre..., e algumas regras escritas para as criadas da princesa, a fim de evitar a renovação da loucura daquele dia, quando, de repente, ouvi na minha escada o ruído das botazinhas de montaria da Imperatriz, subindo com violenta pressa. Seus olhos estavam vermelhos de chorar e após me ter beijado, com muito afeto, e de me ter chamado ‘caríssima amiga’, pôs-me na mão um papel escrito pelo próprio Imperador - a tinta ainda estava úmida - ordenando-me que me confinasse no meu próprio apartamento, a não ser quando fosse chamada a dar a lição de inglês à princesa, ou a passear com as irmãs pelo jardim. (GRAHAM, 2010, p. 133-134).

O desfecho desse episódio, contado pela própria protagonista, é o pedido de demissão de Maria Graham do cargo de “Governante das Imperiais Princesas”, como ela mesma se intitula em carta enviada ao imperador, motivada pelas intrigas de uma das mais antigas damas do Paço, insuflada por todas as outras mulheres que serviam no palácio e eram declaradamente hostis a Maria Graham, considerada estrangeira e com hábitos muito diferentes dos praticados no Brasil. Assim, quando se sentiram com as queixas sobre a “estrangeira” suficientemente elaboradas, as damas do palácio escolheram a mais antiga delas para expô-las a D. Pedro I, o qual foi acordado em meio a sua sesta, o que, por si só, já contaria com uma profunda irritação do soberano, que ouviu a seguinte narrativa:

[...] ela e todas as antigas damas, inclusive sua velha ama, haviam decidido deixar o Paço imediatamente e voltar a Lisboa, desde que percebiam que só os estrangeiros podiam ser tolerados no Paço da Boa Vista. Sua Majestade perguntou a razão dessa estranha resolução. Respondeu que não podiam nem queriam admitir que qualquer pessoa pudesse insultar a Casa de Bragança! Que a governante inglesa havia tomado a si tiranizar a herdeira dessa nobre Casa, pois havia até se sentado no lugar de honra numa das carruagens imperiais e os preceitos que ela inculcava à princesa eram destinados a fazê-la esquecer a diferença entre seu sangue real e o mais desprezível dos súditos. O Imperador, não tendo tido tempo de cair em si, exclamou logo: ‘Que ela saia do Paço, imediatamente! Não quero minha família abalada, nem meus velhos aderentes afrontados, nem os herdeiros de minha casa insultados!’ (GRAHAM, 2010, p. 142-143).

Após esses acontecimentos, com a consequente saída da preceptora do Paço, pouco tempo depois, D. Pedro I foi tomado por um suposto pesar em relação a sua atitude, e, na opinião de Graham (2010, p. 140), “estava então, em parte, arrependido da decisão apaixonada que a cabala havia obtido para realizar seus objetivos”. Maria Graham iniciou os trabalhos no Paço no dia 5 de setembro de 1824, e o dia fatídico da carta de demissão ocorreu em 12 de outubro de 1824, portanto, seu período como preceptora durou menos de dois meses (GRAHAM, 2010). Diante da constatação de que as damas haviam exagerado na dramatização para conseguirem o seu intento, o imperador, provavelmente, concluiu que era preciso pôr ordem nas criadas, açafatas e damas de quarto de suas filhas.

Dessa forma, as circunstâncias levaram, possivelmente, um arrependido D. Pedro I a tomar uma medida em relação às mulheres que provocaram todo o infortúnio da inglesa, e assim ele rascunha e envia ao Chalaça o manuscrito daquele que viria a ser o “Regulamento, que há de ser observado no quarto de minhas filhas, tanto por elas como pelas criadas”. Nessa linha de pensamento, embora Lourenço Luís Lacombe (1946), por sua apresentação e conteúdo, acredite que o Regulamento tenha sido elaborado entre os anos de 1822 e 1825, achamos mais provável que tenha ocorrido após partida da preceptora inglesa, por tratar, essencialmente, de pôr ordem e limitações às demais criadas e damas de quarto e conter aspectos que Maria Graham havia se esforçado para implantar no cotidiano de educação das crianças no Paço, incluindo o que se referia à decência dos hábitos, além da proibição de “ajuntamento de pessoas”, situação que foi o pivô da hostilidade contra Graham, como é descrito no prólogo explicativo de sua publicação:

Do barbeiro Plácido (Plácido Antônio Pereira de Abreu, factótum do imperador, seu confidente, além de mordomo e tesoureiro da casa imperial, diretor da cozinha e almoxarife da casa das obras, que com todos esses empregos figura na lista dos criados do Paço), teve desde o princípio surda oposição, agravada depois pelo fato de não ter consentido que, à noite, ele e outros amigos subissem pelas escadas particulares à antecâmara da princesa, quando ela estivesse na cama, para ali poderem jogar cartas confortavelmente. (GRAHAM, 2010, p. 29).

A proibição de Maria Graham a uma reunião noturna dos servidores do palácio nos aposentos da princesa foi o início do fim de sua estada no Paço e, a partir daí, ela não era mais sequer servida pelas criadas. Corroborando o fato de o Regulamento ter sido escrito posteriormente à partida de Maria Graham, verifica-se que D. Pedro I previa, logo no início dos artigos, aquilo que ele julgava serem as principais questões que precisavam ser observadas nos aposentos de suas filhas, as quais se assemelham às posturas repreendidas por Graham enquanto preceptora no Paço.

Art. 1º. Será governanta do quarto em que não houver dama, a açafata mais antiga. A mim, ou à imperatriz a governanta é responsável pela execução do presente regulamento. 2º. A governanta vigiará sobre tudo, quer seja guarda-roupa, quer jantar, etc. em suma será a fiscal do quarto e todos os meses apresentará os pedidos e as contas para serem examinadas, e pagas uma vez aprovados. 3º. Cuidará em que tudo ande bem arranjado e asseado, fazendo poupar o que for possível, e compatível com a decência de nossas augustas filhas. 4º. Não consentirá no seu respectivo quarto ajuntamento, ainda que eles sejam de criadas, e vigiará, que não hajam conversas indecentes em ocasião alguma. (LACOMBE, 1946, p. 243, grifo nosso).

Os demais artigos regulavam os passeios, atribuíam à governanta a “educação física” das meninas, assim como a incumbência de lhes dar bons conselhos e exemplos, chamando atenção para o fato de que o imperador registrava que se devia explicar-lhes “a razão porque lhes nega certas coisas, ou lhas proíbe, não consentirá que se lhe meta medos com coisa alguma, só sim lhe infundirá temor de Deus [...]” (LACOMBE, 1946, p. 244). Nos aspectos citados, as ideias do imperador demonstram uma certa proximidade com os conselhos às aias, tanto de Madame Leprince de Beaumont, quanto de Joanna Rousseau de Villeneuve.

Às princesas devia ser ensinado “respeito, e amor a seu pai e mãe, e humanidade para com seu próximo” (LACOMBE, 1946, p. 244), não fazer mal aos animais, a rezar, a ouvir missa, a coser, a bordar, e todas as demais prendas femininas. No Regulamento também era dada autoridade à governanta para prender a menina no quarto “por aquele tempo, que lhe parecer ou de não a deixar ir passear de tarde” (LACOMBE, 1946, p. 244), quando esta não lhe obedecer, bem como a governanta deveria chamar os pais “imediatamente” se alguma das meninas se sentisse incomodada, ou seja, doente.

A ordem do imperador era que “todas as criadas farão a sua obrigação à risca, sem dela se poder dispensar”, além de que “nunca as meninas estarão sem ser acompanhadas duma açafata” (LACOMBE, 1946, p. 245), pois somente a governanta, as açafatas ou as damas podiam acompanhá-las nos passeios. Para contar com a presença de outras pessoas era preciso que “a governanta nos peça primeiro licença” (LACOMBE, 1946, p. 245). As retretas e moças do quarto somente podiam estar presentes nas ocasiões de serviço, ou quando para este fossem chamadas. Além disso, o imperador recomendava o pudor em relação às próprias criadas: “Quando as meninas se vestirem, terão todo o cuidado, que elas se não descomponham, fazendo-lhes conhecer que elas não só devem ter pudor de si, mas vergonha das suas próprias criadas” (LACOMBE, 1946, p. 245). A esse aspecto registrado por D. Pedro I, cabe associar as memórias de Maria Graham, enquanto preceptora no Paço, na seguinte passagem:

Em primeiro lugar, quando fui para os apartamentos da princesa, [referia-se à d. Maria da Glória, sua pupila] encontrei as criadas lavando-a, não no banheiro, mas numa sala aberta, por onde passavam os escravos, homens e mulheres, e, onde a guarda da imperatriz sempre estacionava. (LACOMBE, 1946, p. 245).

No artigo 17º, o imperador estabelecia que “as meninas serão obedientes às suas criadas, e executarão o que elas lhes ordenarem, e com especialidade a governanta, e se lhes parecer mal nos representarão para decidirmos à vista também do que a governanta expuser” (LACOMBE, 1946, p. 245). O imperador finalizava o Regulamento determinando, no artigo 36º, que: “Este regulamento será lido, logo que for recebido, perante todas as criadas do quarto, e logo que houver qualquer falha na execução a governanta o tornará a ler da mesma maneira.” (LACOMBE, 1946, p. 248).

Ao comparar as narrativas de Maria Graham com o “Regulamento, que há de ser observado no quarto de minhas filhas, tanto por elas como pelas criadas”, parece que, de alguma maneira, não foram em vão os poucos dias que a inglesa exerceu a preceptoria na Casa Imperial do primeiro Reinado brasileiro. Também é possível constatar que a própria imperatriz Leopoldina conhecia bem as disputas que ocorriam entre as aias e amas que tratavam das princesas, e não era a primeira vez que se deparava com esses comportamentos, tendo em vista que em seu diário, escrito ainda em Viena, registrava:

Palácio de Hofburg, 10 de dezembro de 1814.

Às vezes não aguento mais ouvir os sermões de Lazansky5 sobre a disciplina e o cumprimento do dever. Amanhã vou me livrar dela por algumas horas, porque vou ao asilo de velhos com a minha querida Annony [...] Lasansky faz pouco caso da querida Annony. Vejo isso claramente. As duas são minhas amas e governantas, mas, como Lasansky é responsável pelo meu programa de estudo em todas as disciplinas e pelo meu comportamento em sociedade, ela acha que está acima de Annony em hierarquia e importância. Os deveres de Annony são cuidar da minha roupa, da minha instrução religiosa e da minha conduta com pobres e doentes - e para Lasansky isso conta menos, embora seja exatamente o contrário. (KAISER, 2005, p. 14).

Quando abdicou do trono em 1831, D. Pedro I deixou seus filhos aos cuidados do tutor José Bonifácio de Andrada e Silva, entre eles o futuro D. Pedro II, que contava com apenas cinco anos de idade. Ainda criança e depois adolescente, D. Pedro II teve a oportunidade de vivenciar as inúmeras intrigas palacianas que se sucederam à sua volta, envolvendo o tutor, sua aia Mariana Carlota de Verna Magalhães Coutinho, além das açafatas e damas de quarto, partidárias de um ou do outro (REZZUTTI, 2015), o que acabou levando à queda de José Bonifácio e à nomeação de Manuel Inácio de Andrade Souto Maior Pinto Coelho, o marquês de Itanhaém, como o próximo tutor.

Ciente dessas intrigas que assolaram a sua infância e juventude, era natural que o segundo imperador quisesse que o ambiente de educação de suas filhas tivesse uma maior tranquilidade, a começar por uma rígida hierarquia e organização. Nesse sentido, ao escolher a condessa de Barral como aia de suas filhas, Isabel e Leopoldina, o monarca já demonstra sua disposição para recebê-la e acomodá-la o mais breve possível, e de modo que sua posição estivesse, desde o início, demarcada, como expõe no bilhete que envia a Paulo Barbosa, mordomo do Paço:

A aia para as Princezas é cada vez mais precisa, para sua conveniente educação; a Viscondessa de Barral é quem reúne a maior parte das condições desejadas para semelhante cargo, e portanto estou pelas condições propostas, ficando bem claro que ella hade morar nos lugares determinados no papel, que mandei de Petropolis. Quanto á despeza da passagem deverá ser feita ao menos em parte pela Casa Imperial por isso que há limites no contrato com a companhia de vapores a respeito dos favores de passagem gratuita, que pode o Governo fazer, e além d’isto não quero que se diga que pessoas talvez em más circunstancias pecuniárias são privadas d’esse socorro por causa do meu serviço particular. Trate de aprontar os quartos que foram da Condessa de Belmonte e a sege. (D. PEDRO II, [18--]).

Ao chegar ao Paço de São Cristóvão para assumir suas funções de aia, a condessa de Barral foi logo testada em sua autoridade e começou a sofrer hostilidades entre as mulheres que reinavam naquele “pequeno mundo principesco”, nas palavras de Perrot (2011, p. 111). A condessa, com os “seus dotes de espírito e cultura”, se destacava entre as demais damas do palácio (FRANCISCO, 2017, p. 155). Por isso, “[...] os ciúmes não tardaram a se manifestar e a envolvê-la, provocando restrições por parte das outras senhoras, damas do palácio, visto que a Condessa fora investida no cargo de principal Dama da Casa Imperial, a serviço da Imperatriz” (BARRAL E DA PEDRA BRANCA, 1977, p. 21).

Todavia, o imperador foi enérgico na condução da questão e tratou logo de cortar “o mal pela raiz”. Pinho (1959, p. 176-v) descreve o teor de uma nota do imperador com determinações decisivas na defesa da preceptora das princesas, em relação à oposição palaciana que sofria. A nota, sem data, é escrita a próprio punho e entregue ao mordomo Paulo Barbosa, com o seguinte teor:

O Imperador espera que a dama e a açafata do quarto de S.A.I. não continuarão a contrariar por seus actos e palavras a influência que deve a Condessa de Barral ter sobre a educação de S.S.A.A. que por S.M. Imperador lhe foi commettida, evitando assim que o mesmo Augusto Senhor se veja obrigado a tomar alguma medida severa. (PINHO, 1959 apud FRANCISCO, 2017, p. 155).

Reiterando suas preocupações, o imperador escreve, entre os anos de 1856 e 1857, mas, certamente, a partir da chegada da preceptora escolhida para educar suas filhas, a condessa de Barral, um documento intitulado Atribuições da aia (D. PEDRO II, 1857), no qual eram normatizados cargos e funções, especificando as atribuições que deveriam ser observadas tanto pelas princesas, quanto pelas damas e criadas dos Paços.

Atribuições da Aia foi redigido com tinta ferrogálica em folha dupla, o estado de conservação é ruim, há perda de suporte, o que não comprometeu a leitura e a compreensão. O documento foi elaborado a partir da chegada da preceptora Condessa de Barral entre os anos de 1856 e 1857. Tudo indica que ao construí-lo, D. Pedro II consultou, e até mesmo se inspirou, no regulamento produzido por seu pai, D. Pedro I, que estabeleceu regras para a educação de suas irmãs, as Princesas Maria da Glória, Januária, Paula e Francisca. Em alguns trechos é possível encontrar proximidade entre os dois regulamentos [...] (AGUIAR, 2020, p. 129).

Assim, Atribuições da aia (D. PEDRO II, 1857) é praticamente um tratado para reforçar a autoridade da aia, nesse caso, a condessa de Barral, recém-chegada para se encarregar da educação das princesas Isabel e Leopoldina, únicas filhas de D. Pedro II, que ele temia que acabasse tendo o mesmo fim das damas que viu passarem pela sua infância e juventude, levadas pela torrente de intrigas e mexericos palacianos. Cumprindo sua finalidade, o documento já começava estabelecendo, em relação à aia, que:

Só ela poderá intervir direta, ou indiretamente na educação de minhas filhas, lembrando-me a mim e à imperatriz, tudo o que puder facilitar o preenchimento deste dever do seu cargo, e a nossa direção superior exercer-se-á quando as circunstâncias o consentirem, por intermédio dela, para que não fique prejudicada a força moral de sua autoridade. Inspecionará o ensino dos diferentes mestres, e fará a mim só as reflexões que lhe parecerem acertadas, quando o caso permitir demora, assim como me proporá tudo o que for a bem da instrução de minhas filhas, mesmo relativamente ao que se acha disposto neste regulamento. (LACOMBE, 1946, p. 250).

Caberia à aia, também, impor castigos leves, mesmo sem o conhecimento do imperador, “sendo o maior deles a reclusão em um dos quartos dos respectivos aposentos” (LACOMBE, 1946, p. 250).

A seguir, o imperador intitula uma sessão: “Das senhoras e outras pessoas dos quartos”. Nesse tópico fica clara a subordinação de todas à aia: “as criadas de honra e de serviço dos quartos terão as atribuições e deveres que indicam suas respectivas denominações e velarão sobre as pessoas de minhas filhas assim como a aia que poderá acompanhá-las sempre” (LACOMBE, 1946, p. 251). As senhoras que trabalhavam “nos quartos” às quais o Imperador se refere em suas anotações e documentos, possivelmente, eram as damas das princesas que, apesar de as acompanharem em tudo, não eram encarregadas da educação delas: “As senhoras dos seus respectivos quartos ainda que muito cuidadosas (honra lhes seja feita) não possuem o grau d’educação que, mesmo na sociedade ordinária, se requer” (D. PEDRO II, 1853).

Quanto às “obrigações” propriamente da aia, elas estavam detalhadamente expostas:

Obrigações da aia. Deverá acompanhar, quanto lhe for possível, as minhas filhas desde as 9 horas da manhã até 8 da noite com a exceção adiante permitida, inspecionando os mestres; guiando-as no preparo das lições, lendo com elas, e aproveitando até o tempo de descanso e de recreio para aumentar-lhes a instrução. A língua francesa e depois a inglesa, deve ser empregada utilmente nas explicações, conversa e em qualquer outra ocasião. Não receberá visitas durante as horas do exercício efetivo do seu cargo. (LACOMBE, 1946, p. 251).

A aia deveria acompanhar as princesas desde as nove horas da manhã até as oito da noite, supervisionando os mestres, orientando as lições, lendo com as meninas e aproveitando até o tempo de descanso e de recreio para aumentar-lhes a instrução. A língua francesa, e depois a inglesa, deveriam ser empregadas nas explicações, conversas e em qualquer outra ocasião, e as leituras instrutivas deveriam guardar relação com as matérias ensinadas, sendo ora em português, ora em qualquer das outras línguas. Assim como suas pupilas, a aia não receberia visitas durante as horas do exercício efetivo do seu cargo. As visitas para as princesas seriam recebidas unicamente nos domingos, nas festas de guarda e nacionais, nos dias dos seus aniversários e nos aniversários dos imperadores, ou em ocasiões determinadas pelo imperador.

O imperador estabeleceu, a princípio, que só haveria férias em Petrópolis, onde talvez fosse alterada a distribuição do tempo. No entanto, as pesquisas demonstram que as aulas transcorriam também em Petrópolis, com adequação da hora-aula ao clima, de acordo com o tempo e a idade das meninas.

Para resolver definitivamente os problemas entre as mulheres a serviço da Casa Imperial, D. Pedro II estabelece a hierarquia na educação das princesas:

A condessa de Barral e Mademoiselle Templier, sob a direção da primeira são as encarregadas da educação de minhas filhas; mas escuso lembrar quanto todas as pessoas que cercam minhas filhas, sobretudo as pessoas de seu imediato serviço podem e devem concorrer pas (sic) acordo com as duas senhoras, que propriamente se acham incumbidas dessa missão. (LACOMBE, 1946, p. 252).

Depois de deixar absolutamente claro que não pretendia ver a condessa de Barral passar por nada parecido ao que ocorreu com Maria Graham em seus poucos dias palacianos, o imperador finaliza os seus estatutos dando também prerrogativas à aia para comer com as princesas, sair para resolver questões particulares e chamar o médico da semana quando julgasse preciso. Além disso, ao contrário das outras damas que orbitavam naquele mundo principesco onde “as mulheres reinavam”, ela podia receber em seus aposentos as pessoas de sua família e suas visitas.

Considerações finais

Elizabeth Gaskell (2001), em seu livro biográfico Vida de Charlotte Brontë, que além de escritora atuou, durante alguns anos, como preceptora ou “institutriz”, descreve que a autora inglesa teve dificuldades na Inglaterra dos anos de 1840 em conseguir esses empregos, tendo que fazer algumas concessões, embora tivesse estudado em colégios e internatos que a prepararam para a educação de crianças. Gaskell (2001) narra a experiência da escritora em uma dessas ocasiões, quando a senhorita Brontë conseguiu seu segundo e último emprego como “institutriz”, no início de março de 1841. Segundo a biógrafa (GASKELL, 2001, p. 235), nessa ocasião, Charlotte Brontë se considerava afortunada por ser “membro de uma família bondosa e amável”. Todavia, como seus conhecimentos específicos acerca das tarefas femininas a serem ensinadas eram poucos, ela tinha que complementá-los, dedicando seu tempo livre à costura, considerando que seu posto, portanto, “era o de bonne ou aya” GASKELL, 2001, p. 235), estando sujeita a repetidas e intermináveis demandas de seu tempo, não atuando somente como uma preceptora ou “institutriz”. As experiências da escritora Charlotte Brontë como governanta, aia ou “institutriz”, notadamente, foram aquelas que a levaram a dedicar muitas páginas de seus livros a histórias que envolviam preceptoras na Inglaterra do século XIX.

No presente estudo, interessa perceber que, adiantado o século XIX, ainda não havia uma distinção formal ou delimitada entre as funções de aias, governantas ou preceptoras, embora todas se incumbissem da educação de crianças e jovens e fossem bastante solicitadas até as décadas finais do oitocentos. Certo é que ocupavam uma posição hierárquica com status superior às amas, retretas, açafatas, damas de companhia e demais mulheres que exerciam outras funções nas casas aristocráticas.

No entanto, organizar o reino das mulheres “neste pequeno mundo principesco” (PERROT, 2011, p. 111) não era tarefa fácil mesmo para os soberanos, que acabaram tendo que se valer da escrita de regulamentos para colocar ordem nos paços imperiais, onde conviviam criadas, retretas, açafatas, amas, damas de quarto, governantas e aias, envoltas em um dia a dia marcado por espaços de poder, nos quais eram inseridos ambientes de educação e formação dos futuros soberanos.

Quanto à postura e ao comportamento mais adequado a uma aia, assim como às mulheres que compartilhavam da intimidade dos soberanos educando seus filhos e filhas, os manuais de Jeanne-Marie Leprince de Beaumont e Joanna Rousseau de Villeneuve (1767) foram aqueles que, durante os dois séculos em que estiveram disponíveis, serviram como um tratado a ser seguido não só na educação doméstica, mas na própria formatação daquilo que viria a ser a origem dos programas de habilitação das primeiras professoras. Os escritos dessas duas mulheres que viveram no século XVIII instituíram fórmulas que foram usadas durante muito tempo e acreditadas como a melhor educação para crianças e jovens.

O que se constata é que em um universo onde o diferencial era o saber letrado para ocupação dos postos mais elevados, também no caso das mulheres que se candidatavam a preceptoras de crianças da aristocracia as vaidades e as intrigas estabelecidas entre o séquito que acompanhava essas crianças demandava a implementação de estatutos para que fossem contidas as disputas em agradar aos patrões.

Contudo, nem toda a ilustração e o conhecimento foram suficientes, por exemplo, para garantir a permanência de Maria Graham no seu posto de preceptora na corte de D. Pedro I, que valorizava outras habilidades e outros comportamentos, diferentes daqueles que em Londres ela, baseada nos livros de Madame Leprince de Beaumont, julgava os mais acertados.

Quanto à condessa de Barral, tinha no imperador D. Pedro II um aliado, portanto, desde o princípio ele cuidou para que ela não passasse pelas agruras de suas antecessoras nas gerações anteriores da família, fazendo com que sua autoridade fosse respeitada e limitando qualquer comportamento que afrontasse a sua autonomia e liderança, mesmo que este fosse da imperatriz Tereza Cristina, que, segundo Aguiar (2012), nutria ciúmes da preceptora, tendo em vista a afeição demonstrada por suas filhas a ela. A Imperatriz registrou estes sentimentos em seu diário, quando a condessa lhe confidenciou que sua filha Leopoldina lhe contava tudo aquilo que ela lhe dizia como mãe. “A Condessa disse que aproveitava e fazia um julgamento de mim e disse que eu era muito falsa. Paciência, tudo se deve suportar nesse mundo. Mas é bem triste para o coração de uma mãe que não pode ter confidências com uma filha” (AGUIAR, 2012, p. 177-178).

Destarte, o que se percebe é que essas mulheres eram singulares para a época em que viveram, tanto as escritoras que elaboraram manuais para auxiliar na ocupação das aias, governantas e preceptoras, quanto as protagonistas daqueles escritos que conviviam em ambientes nos quais necessitavam de extrema sensibilidade e inteligência, além de precisarem, a cada dia, garantir a sua permanência e seu sustento nas casas em que atuavam. Rara foi aquela que, como Madame de Maintenon,6 de preceptora chegou à posição de consorte do rei de França. O mais comum era que o fim das aias, governantas e preceptoras fosse semelhante ao do romance de Joaquim Manuel de Macedo (1982), no qual as mulheres que criavam e educavam as crianças acabavam por permanecer na casa dos patrões, morando com seus pupilos até a velhice, ou, ainda, abrigadas em casa de parentes que as acolhiam quando não mais podiam educar, não possuíam posses e não haviam amealhado economias durante o exercício da função.

Casos diferentes ocorriam, certamente, com as preceptoras dos príncipes, que, ao forjarem uma amizade muito próxima com os soberanos, adquiriam títulos e rendas que lhes permitiam uma vida e velhice confortáveis com posses e status na sociedade, como aconteceu com a condessa de Barral, que conviveu com a família imperial até o fim de seus dias, assim como os abrigou no exílio.

Ao fim e ao cabo, na análise de manuais como Thesouro de meninas ou dialogos entre uma sabia aia e suas discipulas e A aia vigilante, ou reflexões sobre a educação das meninas desde a infância até a adolescência, o que se constata é que sua originalidade também é consequência das dificuldades de se publicar um livro em Portugal de setecentos, com uma imprensa submetida a diversos censores e a burocracia que envolvia fazê-los conceder as licenças para publicação.

Dessa forma, é possível que outras mulheres, aias, governantas e preceptoras tenham tentado escrever suas memórias ou seus tratados sobre a atribuição de educar. No entanto, possivelmente não contaram com a influência da condessa de Oeiras, como no caso de Joanna Rousseau de Villeneuve, para estimular e permitir a realização de seus intentos, deixando de oferecer ao devir importantes testemunhos da educação oitocentista.

REFERÊNCIAS

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AGUIAR, Jaqueline Vieira de. Mulheres educadas para governar: o cotidiano das “lições” nas cartas das Princesas Isabel e Leopoldina. 2012. 286 f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Programa de Pós-graduação em Educação, Universidade Católica de Petrópolis (UCP), Petrópolis, RJ, 2012. [ Links ]

BARRAL E DA PEDRA BRANCA, Condessa de. Luísa Margarida Portugal de Barros. Cartas a Suas Majestades, 1859-1890. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1977. (Série Publicações Históricas, 83). [ Links ]

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1Constante do catálogo de GARNIER IRMÃOS, livreiros, rua do Ouvidor, n. 69, anunciado como: “têm a honra de participar que acabão de receber um completo sortimento de livros classicos adoptados nas aulas deste imperio, os quais vendem por preços muito commodos.” (CATÁLOGO..., 1849, p. 2).

2Elevado a esse título em 1769, pela Lei dos Senhorios; concedido pelo rei d. José I.

3Tobias do Rego Monteiro (1866-1952) foi considerado um dos maiores historiadores da sua época, concentrando seus estudos na Família Imperial.

4Maria Graham escreveu Escorço Biográfico de Dom Pedro I, em Londres, quando D. Pedro I já havia morrido e Maria Graham passara a se chamar lady Callcott, por ter se casado em segundas núpcias com o pintor inglês sir Augustus Callcott. Os originais em inglês desse texto foram comprados na Inglaterra por Rodolfo Garcia, então diretor da Biblioteca Nacional, em 1938, e, neste mesmo ano, traduzidos por Américo Jacobina Lacombe e publicados nos Anais da Biblioteca Nacional, v. 60, com introdução e notas do próprio Rodolfo Garcia. Conforme Anais da Biblioteca Nacional, trad. de Américo Jacobina Lacombe, vol. LX, p. 126-127.

5Como suas irmãs, Leopoldina foi educada por aias e, posteriormente, pela preceptora condessa Lazansky. Era ela, a condessa, quem escolhia os professores, que cuidavam da formação moral, humanística, científica e artística das princesas.

6Françoise d’Aubigné (1635-1719) era governanta dos filhos do rei Luís XIV da França e Navarra e de sua amante, Madame de Montespan. Após o convívio contínuo com o rei em visita aos seus filhos, acabou tendo um romance com ele, tornando-se marquesa de Maintenon e casando-se secretamente com o monarca.

Recebido: 04 de Março de 2021; Aceito: 02 de Agosto de 2021

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