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Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade

versão impressa ISSN 0104-7043versão On-line ISSN 2358-0194

Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade vol.30 no.63 Salvador jul./set 2021  Epub 09-Mar-2022

https://doi.org/10.21879/faeeba2358-0194.2021.v30.n63.p290-308 

DOSSIÊ TEMÁTICO 63

EXPERIÊNCIAS DOCENTES: MEMÓRIAS E HISTÓRIAS FORMATIVAS EM CINCO PELES EXISTENCIAIS

TEACHING EXPERIENCES: MEMORIES AND FORMATIVE STORIES IN FIVE EXISTING SKINS

EXPERIENCIAS DIDÁCTICAS: RECUERDOS E HISTORIAS FORMATIVAS EN CINCO PIELES EXISTENTES

Liége Maria Queiroz Sitja*  Universidade do Estado da Bahia
http://orcid.org/0000-0002-4774-8388

Márcia Gerailde Almeida Macêdo de Oliveira**  Universidade do Estado da Bahia
http://orcid.org/0000-0003-1897-4113

*Doutora em Educação pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Professora titular da Universidade do Estado da Bahia (UNEB) e professora do Programa de Pós-Graduação em Educação e Contemporaneidade da Universidade do Estado da Bahia (PPGEduC/UNEB). E-mail: liegesitja@gmail.com.

**Mestra em Educação e Contemporaneidade pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Professora da Educação Básica das redes estadual e municipal de Feira de Santana, Bahia. Pesquisadora integrante do Grupo de Pesquisa Docência Universitária e Formação de Professores (DUFOP), vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Educação e Contemporaneidade da Universidade do Estado da Bahia (PPGEduC/UNEB). E-mail: mgerailde@gmail.com.


RESUMO

Professoras como renovadoras de peles! Renovar peles no sentido de produzir processos de subjetivação que se inscrevem nas memórias proporcionando ressonâncias no ser-docente. O presente artigo aborda o tema das memórias constituintes de experiências formativas e sua relevância na construção de ações pedagógicas. A partir das narrativas de seis professoras, construímos um mosaico de pigmentos simbólicos, como se fossem grafismos, que marcaram a construção do ser-docente dessas mulheres. Fazedoras de peles “inesquecíveis” é a metáfora que usamos para nos referir às professoras formadoras que produziram marcas em seis alunas, sujeitos de uma investigação sobre experiências existenciais de tornar-se docente. Marcas como os grafismos indígenas. O fenômeno do nosso interesse foi o impacto das experiências marcantes na formação dessas docentes e as maneiras como elas ressignificaram tais experiências para produzirem novas peles. A fenomenologia hermenêutica proposta por Max van Manen oportunizou o encontro com a essência do fenômeno em pauta. Como resultado, percebemos que as memórias foram ressignificadas e novos grafismos dérmicos surgiram na composição das subjetividades docentes, produzindo formas mais protagonistas de ser-professora.

Palavras-chave: memórias; experiências; formação docente; fenomenologia hermenêutica

ABSTRACT

Teachers as skin renewers! Renew skins in order to produce processes of subjectivation that are inscribed in memories, providing resonances in the being-professor. This article addresses the theme of memories that constitute formative experiences and their relevance in the construction of pedagogical actions. Based on the narratives of six teachers, we built a mosaic of symbolic pigments, as if they were graphics, which marked the construction of these women's professors. “Unforgettable” fur makers is the metaphor we use to refer to the teacher trainers who produced marks on six students, subjects of an investigation into the existential experiences of becoming a teacher. Brands such as indigenous graphics. The phenomenon of our interest was the impact of the outstanding experiences in the formation of these teachers and the ways in which they gave new meaning to such experiences to produce new skins. The hermeneutic phenomenology proposed by Max van Manen provided an opportunity to meet the essence of the phenomenon in question. As a result, we realize that memories were re-signified and new dermal graphics emerged in the composition of teachers' subjectivities, producing more protagonistic forms of being a teacher.

Keywords: memories; experiences; teacher training; hermeneutic phenomenology

RESUMEN

Los profesores como renovadores de la piel! Renovar las pieles con el fin de producir procesos de subjetivación que están inscritos en los recuerdos, proporcionando resonancias en el maestro-ser. En este artículo se aborda el tema de los recuerdos que constituyen experiencias formativas y su relevancia en la construcción de acciones pedagógicas. Sobre la base de las narrativas de seis maestros, hemos construido un mosaico de pigmentos simbólicos, como si fueran los gráficos, que marcó la construcción de los profesores de estas mujeres. “Unforgettable” fabricantes de piel es la metáfora que utilizamos para hacer referencia a los formadores de docentes que produjeron marcas en seis estudiantes, sujetos de una investigación sobre las experiencias existenciales de convertirse en un maestro. Marcas como gráficos indígenas. El fenómeno de nuestro interés fue el impacto de las experiencias destacadas en la formación de estos profesores y las formas en que se dio un nuevo significado a tales experiencias para producir nuevas pieles. La fenomenología hermenéutica propuesta por Max van Manen proporciona una oportunidad para conocer la esencia del fenómeno en cuestión. Como resultado, nos dimos cuenta de que los recuerdos fueron re-significado y nuevos gráficos dérmicos emergieron en la composición de las subjetividades de enseñanza, la producción de formas más protagónicos de ser un maestro.

Palabras clave: recuerdos; experiencias; formación de professores; fenomenología hermenéutica

Seres multiepidérmicos: peles de professoras

Este artigo aborda elementos de percursos existenciais na história formativa de seis mulheres docentes que identificam fortes marcas em suas práticas pedagógicas atuais produzidas por suas antigas professoras as quais qualificam como “mestras inesquecíveis”.1 Inesquecíveis no sentido de que continuam produzindo novas conexões em seus processos de subjetivação e mobilizando fazeres referenciados. As mestras inesquecíveis produziram linhas de forças, no sentido deleuziano, que permanecem fazendo história nas reconstruções subjetivas na história do tempo presente. As experiências vivenciadas com as mestras inesquecíveis produzem narrativas tecidas com fios do passado e do presente que expandem as teias nos movimentos da vida vivida pelos praticantes do cotidiano (CERTEAU, 2014).

Tomamos a teoria das cinco peles do artista/arquiteto Friedensreich Hundertwasser como inspiração metafórica para pensar as linhas constitutivas das experiências vividas, para compreender a complexidade de nossas formas de estar-no-mundo, para nelas incluir diversas dimensões, compreendidas como peles (RESTANY, 2003). Nossa escrita recorre às metáforas no sentido de sensibilizar conceitos na perspectiva da assunção de uma inteligibilidade ampliada e não dicotômica entre sentir/pensar/agir.

Hundertwasser inicialmente propõe sua teoria da compreensão do ser a partir de três peles: a epiderme, o vestuário e a casa. Mais tarde complementa sua teorização com mais duas peles, o meio social e a identidade e o meio global (ecologia e humanidade). Nessas cinco peles há atravessamentos e não sobreposições. Todas essas peles formam um corpo sem nítidas marcas fronteiriças, um corpo/pele que se expande na copertença com o mundo (RESTANY, 2003). Apropriamo-nos, para fins estéticos e metafóricos neste texto, das quatro primeiras peles.

Mobilizadas pela teoria das peles deste artista austríaco, exercitamos nosso imaginário e nossa criatividade para pensar sobre as peles formativas do ser-docente. A primeira pele é a epiderme e a partir dela possuímos as primeiras autopercepções. Nossas peles nos dão contornos dos nossos sentidos existenciais e nos lançam na possibilidade do tato/contato com o mundo. Traduzindo em termos epistemológicos a metáfora das peles,

O sentido tátil engloba o corpo em sua inteireza, espessura e superfície, ele emana da totalidade da pele, contrariamente aos outros sentidos mais estreitamente localizados [...]. Através de suas peles incontáveis, o mundo nos ensina sobre suas constituintes, seus volumes, suas texturas, seus contornos, seu peso, sua temperatura. (BRETON, 2016, p. 203).

O mundo/pele da docência, com suas demandas relacionais, é um mundo singular que nos convoca a irmos modificando nossa pele à medida que seguimos tateando o nosso processo de profissionalização que se dá pelo percorrer o currículo, pela autodescoberta das próprias motivações e das emoções e atitudes provocadas nas relações interpessoais. A presença do outro e a percepção da responsabilidade ética, tema fundante da filosofia de Emanuel Levinás (2009), significa que nossa pele é afetada pela alteridade irreduzível do outro.

A segunda pele, o vestuário, são as peles que fazem parte das nossas escolhas. Vestimo-nos com peles adereços, peles fantasias, peles conceitos, peles arte! Somos apresentados a outras peles possíveis ao interagirmos com outras formas de ser! Vamos recompondo nossa pele a partir de novas experiências! A pele/casa, por sua vez, se conecta com o sentido heideggeriano de habitação, de tornar-se familiar, de construir moradia, ou seja, habitar é construir, edificar e cultivar (HEIDEGGER, 2007). Nesta associação metafórica, a pele/casa pode corresponder aos grupos aos quais passamos a fazer parte no nosso processo formativo. A quarta pele, o meio social ou identidade, é a pele que trazemos como temática deste texto! A pele da identidade é aquela que se forma na complexidade das interações humanas, particularmente no que se refere ao foco deste estudo, as interações que se dão nas relações professor(a)/aluno(a).

Intencionamos, neste texto, compreender os sentidos de ser-docente emergentes das narrativas de seis professoras da educação básica elaboradas a partir das experiências pedagógicas vivenciadas em seus processos educacionais formais produzidas no encontro com mestras que consideraram “inesquecíveis”, resgatando a historicidade de valores e atitudes em conexão com essas mestras. Inesquecíveis devido às marcas deixadas como grafismos simbólicos que ressoam nas práticas atuais. Marcas mais ou menos entranhadas, com traços ainda bem visíveis, ainda que em alguns casos preferissem tê-las apagado! Marcas que revelam experiências de prazer e conforto ou de tristeza e decepção! As indagações a que precisaram responder foram as que se seguem:

- Como, no presente, tais marcas permanecem ressignificando vivências em seus campos de referência na reflexão sobre sua profissionalidade docente?

- Essas memórias/rememorações instauram um movimento para deslocar e balizar concepções acerca de ensino, aprendizagem, avaliação, afeto, valores etc. na prática de sua docência?

Convidamos outro importante fenomenólogo da educação, Max van Manen (2010), para auxiliar-nos na abordagem da pele/identidade docente tomando de empréstimo conceitos construídos a partir de sua compreensão da essência da pedagogia. As interpretações acerca desses questionamentos estruturam o presente texto em três seções.

A primeira apresenta uma reflexão teórica sobre a memória como meio de reflexão das experiências pedagógicas, descrevendo os elos tecidos entre os acontecimentos do passado que se conectam com as práticas atuais criando novos sentidos existenciais para as praticantes cotidianas do fazer docente. A segunda apresenta a fenomenologia pedagógica de Max van Manen (2010) constituída essencialmente como relacional e, traduzida em linha espinoziana, como sensibilidade atenta e ativa.

Na terceira seção são apresentados excertos das narrativas das docentes que exteriorizam as marcas vivenciadas no decorrer de suas itinerâncias formativas, narrativas que, na ação de contar e de rememorar, transformam experiências e possibilitam outras formas criativas e intensivas de ser-professoras, ou seja, que criam aberturas para a potência de atuar.

Memórias epidérmicas de mulheres docentes

Memórias incrustadas na pele como grafismos! Grafismos são formas de expressão e de comunicação usadas por diferentes povos. Diversas culturas indígenas usam grafismos na produção e comunicação de sentidos:

Existe grafismo para o nascimento, para a passagem para a vida adulta, para o casamento, para a morte, etc. Por isso, os grafismos indígenas não podem ser confundidos com tatuagens. O corpo do indígena é uma grande tela ou livro onde são escritos conhecimentos fundamentais para a comunicação visual (pictoricidade) e oral de uma sociedade. (KAMBEBA, 2020, p. 14).

Compreender a subjetividade docente como uma tela pintada com diferentes tonalidades afetivas e seus desdobramentos formativos na construção da profissionalidade docente é nossa intencionalidade neste texto. Na construção subjetiva de nossas peles, os olhares alheios são significativos! O olhar produz inscrições na nossa pele: o “gelo” expresso no olhar do outro produz arrepios; o “calor” acolhedor produz tranquilidade! No toque sentimos a manifestação de emoções como carinho, repreensão, acolhimento, distanciamento etc. Enfim, como nos mostrou Husserl (1990), o pai da fenomenologia, o mundo humano se mostra no a priori das correlações. Na dimensão física do corpo são visíveis grafismos inscritos com pigmentos orgânicos ou sintéticos. Na dimensão subjetiva os grafismos são inscritos com emoções e sentimentos, que vão formando valores e atitudes que se inscrevem nas nossas memórias e criam cartografias existenciais cujos traçados podemos localizar nas memórias. As cartografias existenciais são compostas por diversos cotidianos (CERTEAU, 2014) que, nas artes de fazer da vida de cada um, criam ambiências próprias da vida-vivente! Tais ambiências envolvem sensibilidades educativas que, formal e informalmente, incorporamos em nossas lentes ontológicas e, por essa via, nas histórias que contamos sobre nós e sobre o mundo. A memória, assim como a história, tem uma dimensão de invenção! Não como ficção, mas como fricção da experiência na vida.

A memória estabelece diálogos complexos entre experiências vividas no passado e seus significados no presente, possuindo função essencial no processo de elaboração de narrativas, visto que o narrador faz um retorno às memórias para compartilhar experiências vivenciadas anteriormente. O ato de narrar, a partir das reflexões desenvolvidas por Ricoeur (1994) em Tempo e Narrativa, é constituído por uma história ou histórias entrelaçadas, pois as narrativas não abordam apenas as ações humanas, mas também seus significados e sentidos. Além disso, narrativas constituem-se de tramas que formam vários episódios que, interligados, estabelecem relações com o enredo mais amplo da vida vivida. As narrativas estão relacionadas não apenas com o tempo (RICOEUR, 1997), mas com conhecimentos adquiridos através de experiências:

[...] o desafio último tanto da identidade estrutural da função narrativa quanto da exigência de verdade de toda obra narrativa, é o caráter temporal da experiência humana. O mundo exibido por qualquer obra narrativa é sempre um mundo temporal. [...] O tempo torna-se tempo humano na medida em que está articulado de modo narrativo; em compensação, a narrativa é significativa na medida em que esboça os traços da experiência temporal. (RICOEUR, 1997, p. 15).

Assim, o narrar experiências vividas é uma ação que confere humanidade ao tempo e possibilidade de reconfiguração dos sentidos das experiências existenciais que se articulam na memória como vivências que resistem ao esquecimento pela densidade existencial, sempre aberta a novos sentidos, e não pela simples repetição do mesmo.

Nas interações cotidianas vivenciamos variadas experiências para as quais produzimos sentidos a partir de nossa subjetividade. Experiências, sentidos, imagens, tocar o outro, ser tocado pelo outro... Expressões que são costuradas na vida! Vivenciadas e sentidas, em diferentes espacialidades e que, quando trazidas através da memória para o presente, conduzem os “praticantes do cotidiano” (CERTEAU, 1994) a tecer novos sentidos para as experiências vivenciadas em diferentes espacialidades e temporalidades.

Em sua obra A invenção do cotidiano, Certeau (1994) reconhece a memória como produção e movimento, pois ela representa pluralidades de tempos e espaços, não estando restrita apenas ao passado, significando que a memória é:

Instruída por muitos acontecimentos onde circula sem possuí-los (cada um deles é passado, perda de lugar, mas brilho de tempo), ela suputa e prevê também ‘as vias múltiplas do futuro’ combinando as particularidades antecedentes e possíveis. Assim se introduz uma duração na relação de forças, capaz de modificá-la. (CERTEAU, 1994, p. 158).

Nesse sentido compreendemos que os tempos não são lineares, pois, para que os indivíduos ressignifiquem experiências cotidianas, vivenciadas em diferentes momentos de suas caminhadas, é necessária uma relação entre passado-presente-futuro, evidenciando o caráter de devir do espaço a partir das memórias, e a existência de um “momento oportuno” (kairós) que conduza a releitura da memória no tempo presente.

Hawlbachs (2006, p. 69) desenvolveu vários estudos articulando as memórias individuais e sociais, objetivando compreender os processos de subjetivação produzidos nos grupos de convívio de cada indivíduo, afirmando que “cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva, que este ponto de vista muda segundo o lugar que ali ocupo e que esse mesmo lugar muda segundo as relações que mantenho com outros ambientes”. Dessa forma, as experiências anteriores “alimentam” a memória do indivíduo.

Walter Benjamin (2010), ao problematizar a memória nos processos históricos, apresenta uma importante discussão que vincula o conceito de memória ao sentido de consciência e de implicação, afirmando que o tempo não segue um fluxo contínuo, linear, e passado, presente e futuro atuam simultaneamente na construção de sentidos. Há, nesta perspectiva, ampliação do conceito de memória, ressaltando que a rememoração aparece à nossa mente a partir de imagens e salienta que o mais importante para o sujeito que rememora “não é o que ele viveu, mas o tecido de sua rememoração” (BENJAMIN, 2010, p. 37), ou seja, são as conexões entre os conhecimentos, as sensações e os conceitos no momento em que as lembranças do passado se atualizam no presente.

As reflexões mobilizadas pela memória pedagógica são de grande relevância, pois poderão tornar-se fatores de referência para o trabalho pedagógico. Além disso, a rememoração de um fenômeno vivenciado representa o que de mais significativo ficou retido na memória, tornando-se, assim, uma situação inesquecível para o indivíduo. Larrosa (1994, p. 41) nos lembra que “o homem é, sem dúvida, um animal que se auto interpreta”. Nesse sentido, a memória pedagógica torna-se um importante elemento para a compreensão da prática docente, fenômeno de estudo deste texto. As vivências no âmbito pedagógico emergem, irrompem, manifestam-se e movimentam-se sobre o cotidiano, produzindo novas conexões e novos fluxos de sentido.

Entretanto, de que forma as memórias das experiências pedagógicas produzem sentidos para a ação docente? Fenomenologicamente, a memória possibilita aos sujeitos novas vivências, através da lembrança, que já é em si um ato perceptivo. Uma vivência passada é revivida por meio de narrativas, e é elaborada com significados emergentes em novos contextos. À proporção que vivenciamos diversas experiências vamos ressignificando as antigas e produzindo para elas novos sentidos. Dessa forma, a memória é fundamental para a elaboração de novos significados em relação às nossas vivências, pois as marcas produzidas pelos acontecimentos existenciais promovem o ressignificar das experiências retidas na memória e, com isso, suscitam um encontro das pessoas com os processos de produção de sua subjetividade. Nossa intencionalidade está em estado de sobrevoo em relação aos planos existenciais sobre os quais iremos pousar!

As peles e o tato na formação docente: o tacto pedagógico de van Manen

A fenomenologia hermenêutica desenvolvida por van Manen (2010) tem contribuído significativamente para a compreensão do mundo-vivido da educação, pois possibilita a manifestação e compreensão das experiências educativas. O cotidiano escolar impregna-nos de experiências quando estamos sensíveis a produzir conexões intensas, e por conta de tal intensidade as vivências permanecem ressoando em nós, em nossos fazeres inventivos. O cotidiano é a ambiência em que produzimos novos sentidos, já que é na experiência do vivido que submetemos a abstração dos conceitos à vida-vivente, quando podemos partilhar o sensível. A partilha do sensível é um movimento existencial no qual se tem a experiência da simultaneidade da existência do comum e do singular como copertencimento das relações na alteridade que fundamenta uma convivência democrática que se atualiza sempre como acontecimento (RANCIÈRE, 2005). É nessa direção de pensamento que percebemos a convergência de sentidos entre a partilha do sensível de Ranciére (2005) e a experiência pedagógica como prática da sensibilidade ensinante em van Manen. Para van Manen (2010), a vida-vivente da experiência pedagógica se desenvolve a partir de quatro estruturas de significados: a situação, o momento, a ação e a relação. As situações pedagógicas são

Circunstâncias ou condições que constituem o lugar das ações pedagógicas e que possibilitam experiências pedagógicas entre adultos e crianças [...]; são constituídas por relações pedagógicas afetivas especiais entre adultos e crianças / jovens que tanto o adulto como a criança contribuem com os requisitos necessários. (MANEN, 2010, p. 94-95).

Diante desse conceito, é possível inferir que as situações pedagógicas desencadeiam fluxos afetivos promotores de vínculos de confiança e copertencimento. É necessário abrir-se para a dinamicidade do encontro pedagógico como movimento permanente de acolhimento e resistir à tentação de conceitualizações apriorísticas que limitam o inusitado que quer irromper a padrões e enquadramentos prévios.

Nas situações pedagógicas se desenrolam diversos movimentos nos quais podemos identificar a especificidade dos movimentos qualificados como “momentos pedagógicos”, ou seja, aqueles nos quais o professor se sente convocado na dimensão da sua profissionalidade ensinante, por outras palavras, suas habilidades e competências para os atos pedagógicos necessários para a efetivação do ensino. De acordo com van Manen (1990, p. 59, tradução nossa), a essência da atuação do professor no momento pedagógico está relacionada a dois principais aspectos:

  1. Sempre há aspectos da pedagogia que determinam os fatos de uma situação. Certamente, esses fatos geralmente envolvem julgamentos interpretativos. Eles geralmente incluem ou implicam julgamentos de valor.

  2. Há também sempre um aspecto ético-moral relacionado à pedagogia. A ação pedagógica pressupõe que se tente diferenciar entre o que é bom e o que não é bom para a criança. Por esse motivo, o estudo e a prática da pedagogia nunca podem ser objetivos no sentido científico. A educação ou ensino das crianças sempre envolve julgamentos de valor. Mas, às vezes, esses valores estão tão embutidos na cultura e na vida cotidiana que dificilmente podem ser reconhecidos.2

Desse modo, a educação não é resultado apenas da observação empírica e nem resultante de um processo dedutivo, pois os aspectos éticos e morais são fundamentais para a atuação do professor no momento pedagógico. Para van Manen (2010), a pedagogia está pautada em afetos, dessa forma é fundamental a preocupação com a qualidade da relação professor-aluno. Nesse entendimento, a relação pedagógica

É uma parte da própria vida, e não apenas um meio de amadurecer. Se fosse apenas por isso, a relação pedagógica não duraria muito. Em outras palavras, respeito, amor e afeto entre adultos e crianças encontram seu significado em seu próprio prazer e satisfação compartilhados no presente, e não em benefícios futuros.3 (VAN MANEN, 2010, p. 87, tradução nossa).

O pensamento pedagógico de Max van Manen (2010) problematiza as experiências educativas a partir das situações pedagógicas e evidencia a necessidade de os educadores perceberem o ato de educar como uma atitude ética e comprometida com o futuro dos estudantes.

Tato/contato de peles no encontro pedagógico: narrativas dos grafismos formativos

Através das memórias das experiências vivenciadas nos processos formativos das colaboradoras do estudo buscamos apreender marcas produzidas nas e pelas experiências que vivenciaram com suas “mestras inesquecíveis” e como as ressignificaram e incorporaram em suas próprias práticas, ou, contrariamente, tomaram consciência de ressignificar tais práticas como contraexemplo em seus repertórios de práticas.

As lembranças de terem sido afetadas pelas mestras estão relacionadas prioritariamente com a percepção do compromisso pedagógico delas com a aprendizagem. A intencionalidade docente da partilha do sensível ao criar um espaço/tempo comum da sala de aula como espaço de criação e de investimento no crescimento pessoal dos estudantes foi a justificativa mais frequente para terem as mestras como exemplo de profissional que buscaram tornar-se. No processo de rememoração, a lembrança das marcas formativas surgiu a partir da relação entre memória e tempo como um espaço de diálogos e reflexões sobre a vida e a profissionalidade.

Ao analisar aspectos relativos à individualidade da memória, Ricoeur (2007, p. 107) afirma: “[...] a memória é passado, e esse passado é o de minhas impressões; nesse sentido, esse passado é o meu passado.” Dessa maneira, o ato de rememorar as situações vivenciadas durante as itinerâncias formativas proporciona o relembrar e o ressignificar das experiências vivenciadas no passado, que são ativadas na memória como forças que mantêm sua potência pedagógica, vindo a compor os repertórios de conhecimentos empiricamente validados experiencialmente.

Ao recordarem situações marcantes em seus processos formativos, as docentes narraram, a partir de diferentes interpretações, os fenômenos pedagógicos por elas vivenciados que promoveram a construção da imagem de “mestras inesquecíveis”.

O primeiro fenômeno recordado foi sobre a importância do investimento das docentes em relações de reciprocidade junto às famílias, como demonstra a narrativa de Iracema:

Na escola primária eu tive uma professora que ela foi importante, foi quando naquele momento da história de vida dos camponeses, todos nós íamos para escola, mas sem perspectiva de continuidade dos estudos. Foi quando eu me destaquei enquanto estudante, e essa professora leiga também. Uma experiência formativa que ela teve na minha vida não foi exatamente na formação, mas foi na relação com a minha família, quando ela sinalizava aos meus pais que eu tinha a possibilidade de fazer a transformação social familiar por meio do estudo, porque ela apontava para os meus pais a minha vontade de estudar, a minha capacidade interpretativa, é... de estar sempre à frente em relação aos demais estudantes. Então essa professora, professora de turma multisseriada, ela sempre me deu esse incentivo, não só o incentivo, mas também fez trajeto com meus pais para mostrar a eles, àqueles camponeses que viviam da roça - para muitas famílias era interessante, era muito mais interessante ter um filho na roça do que na escola porque produzia mais do que na escola estudando -, que eu não deveria parar de estudar, que eu demostrava que eu tinha uma alta capacidade em relação aos demais estudantes daquele grupo. Então isso para mim foi muito importante, do meu pai acreditar na professora, de investir em mim, não só investir, mas de me dar as condições de tempo para eu... me permitir estudar, ou seja, me permitir, ele permitir que eu continuasse estudando. (OLIVEIRA, 2020, p. 82).

O papel de incentivadora da continuação dos estudos de Iracema, a implicação com o futuro da aluna exercido pela professora foi relevante para a vida/formação de Iracema, pois, como demonstra o relato, a atitude e a iniciativa da mestra foram fundamentais para que sua aluna pudesse dar continuidade aos estudos formais. A oportunidade de prosseguir os estudos foi um acontecimento marcante na existencialidade de Iracema como estudante, além do que gerou uma linha de força pedagógica que se atualiza em suas práticas atuais. A experiência de que as atitudes docentes têm a potência de qualificar uma vida constitui o princípio da responsabilidade ética como um valor profissional atemporal. Nessa narrativa se pode reconhecer, no âmbito da vida vivida, um importante elemento explicitado por van Manen (2010) como o principal componente da essência pedagógica, que é o sentimento de interesse pelo destino dos estudantes. A essência da pedagogia é seu direcionamento para movimentos existenciais condicionados pelo afeto e interesse em agir de acordo com a potencialização do melhor em cada estudante. Para tanto, são insuficientes somente conhecimentos teóricos, embora sejam necessários, se não estiverem a reboque dos atos pedagógicos. É na dinâmica do acontecimento pedagógico que os atos e os momentos pedagógicos convocam professores a se conhecerem e se transformarem, sempre em direção a atender aos processos de desenvolvimento dos seus estudantes. Iracema é doutora em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia (Faced/UFBA), professora da educação básica e do ensino superior. Van Manen (2010) afirma que nas experiências vivenciadas com os pais, em alguns casos, os filhos são influenciados pelas imagens por eles construídas e ressalta que

[...] as verdadeiras experiências da infância são sacrificadas pela imagem adulta de seu futuro. Esses tipos de cenas são bastante frequentes. Algumas crianças conseguem se adaptar às pressões dos pais e, finalmente, realizam os sonhos dos pais, outras são incapazes de atender a essas expectativas e podem gerar ódio pela atividade e pelo pai.4 (VAN MANEN, 2010, p. 88, tradução nossa).

As palavras de van Manen (2010) nos trazem a ideia de que, em alguns momentos, os pais transferem suas expectativas para os filhos e acabam influenciando-os, consciente ou inconscientemente, a seguir os seus passos. No caso de Iracema, seu pai desejava que fosse uma camponesa, ajudando-o nas lides rurais, vivendo na roça e criando raízes locais. As escolhas profissionais dos filhos muitas vezes são marcadas pela dependência financeira dos pais e pelos laços afetivos. Na vivência de Iracema, a iniciativa da sua mestra foi fundamental para que construísse uma história de vida diferente da história de sua família e da maioria dos estudantes filhos de camponeses, pois conseguiu mudar a herança cultural de classe através do estudo.

Também foram narradas construções das imagens de mestras que produziram marcas devido à postura profissional de valorização de cada passo no empenho das estudantes, na superação de dificuldades das mais diversas ordens (cognitivas, emocionais, sociais etc.), o que revela a valorização ontológica do sujeito da aprendizagem em detrimento da mera transmissão de conteúdos e por produzirem sentidos no processo formativo das alunas. As narrativas de Cecília, Iracema, Amália e Aurélia, respectivamente a seguir, explicitam as experiências formativas que contribuíram para a expansão de interesses pela busca de conhecimentos em áreas específicas, servindo de incentivo para suas escolhas profissionais.

[...] e uma outra professora, de Psicologia Educacional, também não consigo esquecer, nunca! O nome dela é Lívia, professora doce, calma, tranquila e que passava assim... uma certa tristeza no olhar, talvez uma frustração no olhar, é... eu não sei dizer por que, mas ela dava as aulas de Psicologia da Educação como se fosse uma psicóloga. Eu supunha que talvez essa questão com a Psicologia tivesse para ela como aquele lugar de desejo. Eu, lá dos meus 15 anos, conseguia ver isso. Ela também passava algumas atividades incríveis, teve uma especial relacionada com a questão do comportamento determinado da criança, tudo isso num livrinho que eu não me esqueço, de Psicologia Educacional de Nelson Piletti, um livrinho [...] que eu pedi a minha mãe para comprar, que eu era... eu comecei a me apaixonar pela Psicologia com essa professora, e ela me deu uma devolutiva por escrito com uma letra linda, nesse sentido de que esse... de que a Psicologia poderia ser um caminho para minha vida, que eu tinha uma inclinação muito grande, uma sensibilidade grande pra tá pensando nessas questões mais subjetivas da pessoa. E aquilo ficou marcado na minha cabeça, né, acho que trouxe para o consciente o que já tava pulsante no inconsciente. (OLIVEIRA, 2020, p. 84.).

No curso de magistério eu tive uma professora de nome professora Clara Machado. Ela era uma professora de Literatura e Língua Portuguesa, mas que contribuiu muito para minha formação. Quando ela veio trazer para sala de aula a materialidade concreta da prática social, não era uma literatura morta, ela trabalhava muito com a literatura a partir das lutas sociais, ela era ligada a comunidades eclesiais de base e falava muito das questões sociais e a literatura. Era muito abordando essa dinâmica populacional, esse processo de exclusão social, então talvez a professora Clara, professora de Literatura, ela me ajudou muito na escolha da minha profissão, de ser professora de Geografia... Essa professora também foi quem me apresentou Paulo Freire, então a minha primeira leitura crítica de realidade ela foi me dada nesse momento aí, a partir da obra de Freire. Foi a única oportunidade que eu tive no curso de Magistério para ter acesso a essa perspectiva. (OLIVEIRA, 2020, p. 84).

[...] na 8ª série ainda, eu lembro de uma professora, professora Lourdinha, assim a gente a chamava, né?! Professora Lourdinha era professora de História, e eu me apaixonei pelas aulas dela, pelo incentivo que ela dava até no processo de aprendizagem da gente. Ela trabalhou muito com a História do Brasil, principalmente período ditatorial, né, que foi de 1964 até 1985, mais ou menos. Ela trabalhou muito com a gente esse período e eu me apaixonei por História, então, assim, eu a partir dali desejei... E como sempre tirava notas boas em História, eu desejei fazer o curso de História na graduação. (OLIVEIRA, 2020, p. 84-85).

A professora que me marcou foi uma professora encontrada no Ensino Médio da escola pública, no Colégio Teixeira de Freitas, em Salvador, a professora de literatura. Eu tinha uma ideia já do que seguir profissionalmente, eu tinha muita vontade de fazer Odontologia, e nesse momento de conhecê-la eu mudei a minha perspectiva porque ela era uma professora apaixonante. Quando ela entrava na sala, primeiro pela maneira de se vestir, ela era muito elegante, é... a maneira dela se portar aos alunos com respeito, é... a paixão com que ela fazia. E eu sempre me questionava: ‘Se eu for entrar numa sala de aula, eu vou querer ser como ela.’ [...] uma das experiências em sala de aula que eu tenho boa lembrança é de um dos textos de Capitães de Areia, que ela passou um trabalho e você sabe que quando a gente gosta do professor a gente busca é... mergulhar para dar mais orgulho ainda àquele profissional [...] era muito bacana na hora do ato da correção de uma atividade ela elogiar, ela dizer que realmente a resposta tinha sido competente, tinha atingido os objetivos, e isso tudo fazia com que a gente realmente investisse naquele momento de aula. Então foi uma paixão particular que depois se transformou numa paixão coletiva na sala de aula. (OLIVEIRA, 2020, p. 85).

As interações formativas que se deram no ensino médio foram fundamentais para que as docentes, ao rememorarem suas trajetórias formativas no período em que eram adolescentes, percebessem a importância da ação docente de suas mestras como uma experiência que contribuiu para pensarem no caminho profissional a ser escolhido ao final da etapa formativa na educação básica. Cecília, em sua narrativa, demarca um elemento que a levou à escolha profissional pela Psicologia: uma atividade relativa à Psicologia Educacional da criança. Segundo ela, a devolutiva da mestra, afirmando que ela tinha uma sensibilidade e inclinação para pensar nas questões subjetivas, ressoou fortemente em suas experiências e foi um fator fundamental para que ela, após concluir o curso de Pedagogia, prestasse vestibular para Psicologia. Van Manen (2010, p. 166, tradução nossa), ao discorrer sobre o tato pedagógico, afirma que “às vezes, nós professores não percebemos como influenciamos nossos alunos, mesmo aqueles que menos imaginamos. A influência é tão sutil que, na rotina da vida cotidiana, não conseguimos percebê-la”.5

Da mesma maneira, Iracema sinaliza que as atividades desenvolvidas em seu processo formativo produziram marcas, pois abordavam as questões sociais e a literatura, além de a mestra ter promovido leituras críticas da realidade a partir da obra de Paulo Freire. Essas marcas foram tecendo os caminhos que a levaram a pensar na escolha profissional: ser professora de Geografia. Larrosa (2002, p. 24) sugere que para ocorrer a experiência é preciso que algo nos aconteça, e para isso é necessário “interrupção, parar para pensar, olhar, sentir, suspender a opinião [...] dar-se tempo e espaço”. O sentido promovido no indivíduo por uma vivência está relacionado à maneira como ele reage a acontecimentos ao longo da vida. No caso das docentes, a experiência vivenciada as tocou profundamente, o que promoveu tomada de decisão em relação à escolha profissional.

Amália traz na memória a experiência formativa com a professora de História durante a 8ª série, que atualmente corresponde ao 9º ano do Ensino Fundamental. Para ela, a experiência vivenciada com a mestra promoveu uma paixão pela História que a tocou de forma intensa e com isso Amália estabeleceu cursar a graduação em História como desejo a ser concretizado. Ao analisar a dimensão pedagógica do ensino, van Manen (2004) afirma que é constituída pelos sentidos moral, emocional e relacional, e depende do ambiente que é estabelecido e do desejo do professor de promover um espaço de crescimento e expectativas positivas para o estudante no decorrer de sua ação pedagógica.

A experiência vivenciada por Aurélia foi tão marcante no decorrer do seu processo formativo que ela desistiu de prestar vestibular para Odontologia e resolveu fazer Licenciatura em Letras. Segundo ela, a mestra, considerada “apaixonante” devido ao respeito que nutria em relação às alunas, também era sensível nas relações intrapessoais, pois sempre incentivava a turma, valorizando os seus avanços no processo de construção do conhecimento. Van Manen (2010), em suas reflexões sobre a essência da pedagogia, afirma que a sensibilidade pedagógica está relacionada à percepção do professor em relação às qualidades, às circunstâncias particulares de cada aluno, aos seus antecedentes e às suas histórias pessoais. Um dos fatores que levaram a turma a se sentir motivada pelas aulas de Literatura, na narrativa de Aurélia, foi o fato de que, numa turma na qual havia alunas com “carências múltiplas”, a mestra sempre valorizava os aspectos positivos e o desenvolvimento intelectual de forma singular. Ressalta ainda que a mestra desenvolveu um trabalho que produziu impacto positivo na turma em geral. Partindo da problematização e da curiosidade dos estudantes, o tema do trabalho foi escolhido por eles e os fez sentirem-se protagonistas no processo das próprias aprendizagens. O trabalho foi tão valorizado pelos estudantes que extrapolou as fronteiras da disciplina, sendo escolhido para representar o melhor trabalho por ocasião da finalização do ano letivo na escola.

Van Manen (2010) defende que o professor é o principal expoente na formação educacional e ressalta que é necessário que ele saiba avaliar as habilidades e possibilidades dos alunos. No entendimento de van Manen (2010, p. 106, tradução nossa), “[...] a compreensão educacional baseia-se no entendimento de como a criança experimenta o currículo e em uma avaliação dos pontos fortes e fracos de seu aprendizado”.6 Dessa forma, a sensibilidade das mestras ao sugerir atividades que promovessem o desenvolvimento cognitivo e a participação das alunas foi fundamental para que criassem uma imagem pautada no respeito, no reconhecimento enquanto profissionais competentes, e no desejo de tornarem-se também professoras.

Cecília e Aurélia também relatam a imagem de suas “mestras inesquecíveis” trazendo à tona sua admiração pela atuação docente, podendo ser percebida na afirmação de Cecília: “[...] e uma outra professora de Psicologia Educacional também não consigo esquecer, nunca! [...] professora doce, calma, tranquila” (OLIVEIRA, 2020, p. 84). A palavra “nunca” delimita a intensidade das marcas produzidas nas experiências formativas de Cecília por sua mestra. Essa narrativa de Cecília é expressa através da memória presentificação,7 que, de acordo com Ricoeur (2007), é um ato da consciência que traz de volta algo que está ausente. A narrativa de Cecília aponta para o fato de que a emoção vivenciada na experiência com a mestra foi um elemento fecundo para a produção da memória. Ela também menciona a tranquilidade da mestra em sala, o que indica que a postura da professora foi um dos elementos formadores da imagem de “mestra inesquecível”. Aurélia ressalta as marcas produzidas nas experiências formativas vivenciadas com a professora de Literatura e expressa ter nutrido um fascínio pela docente. A expressão “professora apaixonante” revela o carisma da professora: “[...] ela era uma professora apaixonante [...] quando ela entrava na sala, primeiro pela maneira de se vestir, ela era muito elegante, é... a maneira dela se portar aos alunos com respeito é... a paixão com que ela fazia... [...] Se eu for entrar numa sala de aula, eu vou querer ser como ela” (OLIVEIRA, 2020, p. 85). A última frase revela a potência da memória em relação à postura e a atuação docente como elemento formativo para a ação docente de Aurélia.

Sem cair na armadilha da idealização, obviamente experiências negativas também deixam marcas, e, não raras vezes, marcas profundas. O reconhecimento de que as marcas negativas também compõem o repertório formativo trouxe a lembrança de situações de completo despreparo profissional da mestra protagonista da experiência narrada a seguir por Amália:

[...] no Ensino Médio eu tive uma professora de História que matou os meus sonhos, não só os meus sonhos, mas pelo menos de quase metade da turma que queria fazer História. Essa professora nos acompanhou durante os três anos do Ensino Médio. Ela passava seminários, passava o conteúdo das provas. Então a gente fazia as provas, dava até para tirar uma pontuação razoável, mas a gente nunca conseguia atingir o máximo. E os seminários, ela passava para a gente e a gente se organizava em grupos, né, e fazíamos o seminário, e elaborávamos os cartazes com papel laminado, papel sanfonado, sabe?! Então a gente trabalhava, confeccionava, tirava xérox, colorida às vezes, para organizar o cartaz e tal, né?! Os cartazes, o seminário, mas mesmo valendo de 0 a 10, nenhum grupo conseguia tirar mais do que 3. E foram assim todos os anos, todos os três anos [...] ela chegava sisuda, né, com rosto com aparência sisuda, ela mal dava boa tarde a gente, e ela entrava, adentrava a sala, colocava o material dela e iniciava a chamada; e se algum aluno, mesmo estando na sala, não respondesse, ela dava falta; e se respondesse baixo e ela não ouvisse, ela também dava falta. E, assim, ela não abria espaço para a gente discutir o conteúdo, ela normalmente... ela lia o conteúdo em sala, ela lia, eu me lembro disso, ela lia o conteúdo pra gente, a gente ficar em silêncio ouvindo e fazendo as anotações. E ela não interagia com a gente. [...] Só transmitia os conteúdos e quando olhava pra gente, olhava por baixo dos óculos. Ela não olhava a gente assim... sabe?! Com a postura de frente, não, ela olhava por baixo dos óculos. E aí a gente ficava todo mundo aterrorizado, né? Porque a gente, quando ela fazia isso, a gente já imaginava: ‘Meu Deus, ela vai fazer alguma coisa, vai pedir alguma coisa e que talvez a gente não esteja preparado.’ Então foi assim, né, durante os três anos de Ensino Médio. (OLIVEIRA, 2020, p. 88-89).

A narrativa de Amália, carregada de expressividade, evidencia a importância da prática pautada no diálogo, na atenção e na interação qualificada, fundamentais nos processos formativos qualificados. Inspiradas em van Manen (2010), pensamos na ideia de uma “pedagogia da atenção”, para a qual o olhar observador e comprometido do docente busca compreender os processos de humanização (cognitivos, sociais, éticos, estéticos) de cada estudante. Van Manen (2010), com a sensibilidade pedagógica que lhe é própria, nos ajuda a aprofundar a ideia de pedagogia da atenção quando afirma que, para desenvolver uma compreensão e percepção pedagógica,

Devemos tomar como ponto de partida a solicitação da criança que, acima de tudo, a entendemos a partir da subjetividade de sua experiência. Fica imediatamente claro que o entendimento pedagógico não é uma habilidade simples para nós, uma vez que a estreiteza do entendimento pedagógico é complexa e contém elementos reflexivos e interativos.8 (VAN MANEN, 2010, p. 98, tradução nossa).

Fenomenologicamente, podemos dizer que a estrutura aberta e cambiante da compreensão pedagógica inicia pela atenção! A atenção dispara o movimento da escuta atenta e de uma disposição comprometida com o diálogo. Não se trata, entretanto, de um diálogo modelado, regrado e ortopédico, para usar um termo da concepção disciplinadora de Michel Foucault (1989). Trata-se de um diálogo comprometido com a alteridade. Nessa perspectiva:

A fala docente comprometida com a expansão da vitalidade dos estudantes valoriza o tocar como processo vital, compreendendo que temos e somos um corpo, não apenas cognição e mente. Assim como o caminhar se dá pelo toque dos pés com o chão, a fala pode se constituir em um toque sensível e atento aos outros, aos movimentos e encontros. Usualmente usamos o termo ‘ter tato’ com a conotação de cuidar das coisas que dizemos ou fazemos ao outro. Ter tato ao falar se refere a uma fala sensível, atenta, produtora de presenças que se dão no instante mesmo de sua enunciação, autorizando-se diante do discurso instrumentalizador e normatizador. Tato. Contato. Duas palavras que evocam sentidos da relação de proximidade que precisam ser melhor compreendidas como articuladoras do ato formativo. (SITJA; REIS, 2019, p. 94-95).

Na narrativa de Amália citada anteriormente há o relato de que quando concluiu a 8ª série estava apaixonada por História e certa de que seria o curso escolhido para a sua Graduação. Entretanto, ao chegar no Ensino Médio, teve uma mestra que promoveu o seu desinteresse, devido às posturas adotadas em relação à turma e aos conteúdos trabalhados. Esse desinteresse expresso por Amália nos leva a refletir sobre os impactos negativos promovidos por práticas docentes. Em alguns momentos, os docentes não percebem que suas ações estão promovendo a falta de estímulo nos estudantes. Esse é um aspecto relevante a ser analisado fenomenologicamente, a partir das reflexões de van Manen (2010, p. 164-165, tradução nossa):

Mas um professor que vive a experiência da criança de perto pode não estar ciente de que o aluno ainda está tentando entender as coisas ‘do outro lado da rua’. Muitos professores simplesmente esperam que os alunos passem para onde ele está. Estes são os professores que ficam na frente da classe explicando as coisas; a atitude deles é que cabe aos alunos ‘obter’ as explicações. Se eles não os pegarem, bem, azar! No entanto, os alunos podem ter dificuldades, falta de interesse ou simplesmente não saberem como passar para o lado do professor. O professor parece ter uma certa perspectiva, paixão, concepção do assunto e parece esperar que o aluno tenha a mesma experiência. Mas o que o professor esquece é que o aprendizado é sempre uma questão individual e pessoal.9

Através de sua narrativa, Amália leva-nos a perceber que as atitudes de sua mestra revelaram falta de sensibilidade em relação ao processo de construção do conhecimento de cada estudante. A afirmação “[...] eu tive uma professora de História que matou os meus sonhos, não só os meus sonhos, mas pelo menos de quase metade da turma que queria fazer História” (OLIVEIRA, 2020, p. 88-89) manifesta decepção por parte da entrevistada, tanto que, nesse momento da narrativa, Amália baixou o olhar com fisionomia de tristeza, o que denotou decepção por ter encontrado nos três anos do Ensino Médio uma professora que abordou o ensino de História em uma perspectiva epistemológica factual, positivista, pautada nos ideais da educação tradicional. A fala de Amália leva-nos a pensar na falta de sensibilidade e tato pedagógico da mestra, pois os professores que possuem essas qualidades estão atentos aos estudantes e promovem a interação na turma, escutando-os e levando em consideração suas opiniões. Van Manen (2010) considera que a percepção do tato como uma forma de interação profícua entre as pessoas também é um aspecto relevante para a pedagogia.

A falta de sensibilidade e de tato pedagógico da mestra desconstruiu a concepção de História que vinha sendo construída por Amália durante o Ensino Fundamental, como ressaltada na sua afirmação: “[...] ela não abria espaço para a gente discutir o conteúdo, ela normalmente, ela lia o conteúdo em sala, ela lia, eu me lembro disso, ela lia o conteúdo pra gente, a gente ficava em silêncio ouvindo e fazendo as anotações e ela não interagia com a gente” (OLIVEIRA, 2020, p. 88-89). Esse excerto narrativo nos convoca a refletir sobre a ação da mestra pautada na negação da alteridade, pois não há o reconhecimento da singularidade e subjetividade dos estudantes, que eram silenciados e não tinham abertura para expressar-se. Van Manen (2010, p. 150, tradução nossa), ao refletir sobre a alteridade, afirma que “[...] para exercitar o tato, é preciso ser capaz de superar uma maneira de ver o mundo que parece natural para os seres humanos: a atitude de se considerar o centro de todas as coisas”.10 Assim, a ação pedagógica também deve pautar-se na prática da alteridade, pois “[...] a experiência do outro é a quebra do silêncio do meu mundo, centrado no eu. A voz do outro causa a morte de meu universo”11 (VAN MANEN, 2010, p. 152, tradução nossa). Outro aspecto a considerar na postura da mestra refere-se à atitude de superioridade em relação aos estudantes, percebida através da falta de interação e na transmissão de conteúdos, compreendendo os estudantes como receptores de um conhecimento pronto e acabado, que deveriam ser silenciados e passivos no processo de construção do conhecimento. Nesse aspecto, Freire (1998) sugere que a cultura da alteridade deve ser um processo coletivo, pautado na aceitação e no respeito ao outro, no respeito à diferença, na escuta do outro, e afirma que, “se me sinto superior ao diferente, não importa quem seja, recuso-me [a] escutá-lo ou escutá-la” (FREIRE, 1998, p. 136).

Além disso, outra postura ressaltada por Amália foi a ausência de diálogo da mestra com a turma. Segundo essa narradora, “[...] não era uma professora de diálogo, era uma pessoa muito sisuda, muito fechada” (OLIVEIRA, 2020, p. 89). A postura da mestra promoveu o afastamento da turma e, como demonstrado na narrativa de Amália, “[...] só transmitia os conteúdos e quando olhava pra a gente, olhava por baixo dos óculos” (OLIVEIRA, 2020, p. 89), foi outro fator que contribuiu para que ela e a turma passassem a perceber a disciplina como entediante e sem significados. Ao analisar a concepção bancária e antidialógica de educação, Freire (1987, p. 78-79) afirma que “[...] educação padece da doença da narração. O professor fala da realidade como se esta fosse sem movimento, estática, separada em compartimentos e previsível”. A educação antidialógica inibe a criatividade dos estudantes e os transforma em sujeitos passivos, estando oposta à proposta de Freire (1987), que sugere uma educação que tenha como pressuposto o diálogo e a busca pela igualdade.

Van Manen (2010, p. 63, tradução nossa) considera que “[...] os professores que têm sensibilidade pedagógica em relação as crianças pelas quais são responsáveis ​​também tendem a ser sensíveis a seus antecedentes, suas histórias pessoais e qualidades e circunstâncias particulares”.12 Nas opacidades narrativas de Amália, a questão da sensibilidade docente merece ser lembrada, visto que a narradora ressalta que

Ela não olhava a gente, assim... sabe?! Com a postura de frente, não, ela olhava por baixo dos óculos. E aí a gente ficava todo mundo aterrorizado, né? Porque a gente, quando ela fazia isso, a gente já imaginava: ‘Meu Deus, ela vai fazer alguma coisa, vai pedir alguma coisa e que talvez a gente não esteja preparado.’ [...] E os seminários, ela passava para a gente e a gente se organizava em grupos, né, e fazíamos o seminário, e elaborávamos os cartazes com papel laminado, papel sanfonado, sabe?! Então a gente trabalhava, confeccionava, tirava xérox, colorida às vezes, para organizar o cartaz e tal, né?! Os cartazes, o seminário, mas mesmo valendo de 0 a 10, nenhum grupo conseguia tirar mais do que 3. E foram assim todos os anos, todos os três anos [...] (OLIVEIRA, 2020, p. 88).

O distanciamento da mestra e a cobrança, talvez excessiva, para o nível dos alunos, sem reconhecer os conhecimentos prévios e o estágio de desenvolvimento cognitivo deles, são elementos que produziram marcas em Amália. As experiências vivenciadas que originaram marcas na memória dos indivíduos são exteriorizadas através da narração. Ricoeur (1996, p. 28) sinaliza que

Um acontecimento que pertence a uma corrente de consciência não pode transferir-se como tal para outra corrente de consciência. E, no entanto, algo se passa de mim para vocês, algo se transfere de uma esfera de vida para outra. Este algo não é a experiência enquanto experienciada, mas a sua significação.

As palavras de Ricoeur (1996) levam-nos a perceber que cada indivíduo tem suas próprias experiências, não podendo transferi-las a outros indivíduos. Cada indivíduo que vivencia uma experiência é tocado de modo próprio e singularmente, de acordo com a sua subjetividade. Dessa forma, ao narrarem, as docentes revelam os sentidos das experiências vivenciadas durante seus processos formativos e expressam os impactos produzidos em seu ser-sendo-docente. Essas experiências propiciaram o surgimento de marcas que nem sempre foram consideradas positivas, porém continuam presente nas suas memórias e trouxeram reflexões para sua vida-formação, como narra Carolina.

[...] a gente tem a personalidade forte e consegue até fazer a leitura, era uma criança de 06/07 anos... Eu me lembro a cena, eu estou vendo a sala... [momento de silêncio por emoção], desculpa! [...] tava na sala, [em tom choroso], aí briguei com a colegui... assim, a coleguinha tinha uma condição boa, rica né?! E eu estudava numa escola particular, e aí a professora... ninguém nunca me abraçou, eu nunca recebi nenhum abraço e eu via as outras meninas todas sendo abraçadas. Aquela japonesa, coitada, que ela nem sabe que eu odeio tanto ela [risos], mas é porque era aquele abraço, assim, porque era bonita, porque era linda... e eu, assim, com aquele cabelo enroladinho, né, morena, e aí eu olhava e sabia que era diferente, né, eu olhava e sabia que era diferente. [...] aí, um belo dia, estávamos sentadas, eu tô vendo até a fila aqui, a filinha do lado, e aí minha colega, assim, ela tava escrevendo, né, aí eu falei assim: ‘Pró!’ aí é... ela disse assim: ‘Pró!’. Eu disse: ‘Pró, ela tá me falando que eu sou... que ela é rica.’ Nesse diálogo, falou assim: ‘Eu sou rica, e você não é rica.’ Aí eu falei assim: ‘Oh, pró, ela tá dizendo, ela tá dizendo que ela é rica.’ Aí ela... aí ela disse, aí a professora: ‘Que ela é rica?!, ela é rica.’ Aí eu disse: ‘Sim, oh, pró, ela tá dizendo que ela é rica e eu não sou,’ Aí a professora falou para mim [voz em tom agressivo]: ‘Cale a boca que ela é rica!’ Aí... eu guardei isso para mim, a cena é muito forte, quando eu revivo, aí me coloco naquele lugar, eu não sofri, mas cicatrizou, eu não sofri, mas cicatrizou. Eu vi aquilo ali, eu sou... ‘Ela é rica, cale a boca!’, nunca me abraçou, nunca que chegou perto de mim, e eu via os abraços, né, o aconchego com as outras crianças [...] eu não tenho nenhuma memória positiva dela de sala de aula, de... desses momentos assim, de inclusão, porque não existia isso, não existia isso. Mas eu sentia que eu era excluída, muito! E depois dessa fala, essa fala para mim foi muito gritante, aí dentro dessa linha de rejeição... Indiferente! Indiferente! De abraço?! A japonesa até hoje eu vejo a cena, aquela japonesinha com aquela... toda com aquele penteadozinho [sic] do Japão e todo mundo ‘nhem nhem nhem’, e beija e abraça, e eu olhava... assim, a criança olha, não sabe até no que tá pensando, mas olha assim... aquela coisa: ‘Por que não me abraça também, só abraça os bonitinhos?! E as feinhas?!’ [risos] [...] mas a menina também, eu acho que... a vida dela era uma condição melhor, né, meu pai sempre, como pobre, lutava e botava na escola particular, então não tinha... eu não via diferença, a diferença é quando toca na nossa ferida, né, quando toca... porque eu olhava assim e percebia as coisas, nunca... eu sou muito esperta, eu faço a leitura rápida, eu olhei assim... ‘Por que ela não me abraça, ela nunca me abraça, nunca fez...?!’ Eu não lembro de um toque, de um abraço em mim, não, eu não lembro, não teve. (OLIVEIRA, 2020, p. 96).

A narrativa de Carolina é reveladora e convoca a pensar sobre três marcas que emergem a partir da experiência narrada: a invisibilidade, o preconceito e a exclusão. A primeira marca, a invisibilidade, produziu cicatrizes tão profundas que, no decorrer da entrevista, Carolina abordou várias vezes a indiferença da mestra em relação a ela, ao afirmar: “[...] eu estudava numa escola particular, e aí a professora... ninguém nunca me abraçou, eu nunca recebi nenhum abraço e eu via as outras meninas todas sendo abraçadas” (OLIVEIRA, 2020, p. 96). Além da invisibilidade, Carolina deixa transparecer outras atitudes de sua mestra, como o preconceito.

Ao narrar sua experiência com a “mestra inesquecível”, Carolina afirma que a beleza física era um dos fatores que levavam à aceitação e à atenção da mestra em relação às alunas: “[...] mas é porque era aquele abraço assim, porque era bonita, porque era linda... e eu, assim, com aquele cabelo enroladinho, né, morena” (OLIVEIRA, 2020, p. 96). A atitude da mestra produziu questionamentos em Carolina: “[...] por que não me abraça também, só abraça os bonitinhos?! E as feinhas?!” (OLIVEIRA, 2020, p. 96). O fato de perceber-se como “feinha” demonstra um dos efeitos do preconceito, que muitas vezes pode levar a pessoa tocada à negação de sua cor. Por fim, a terceira marca narrada por Carolina foi a da exclusão. Filha de trabalhador que se esforçava para mantê-la em escola particular, ao discutir com a colega ela simplesmente foi silenciada pela mestra, pois a colega era rica, como expressa Carolina: “cale a boca que ela é rica” (OLIVEIRA, 2020, p. 96). Para uma criança de sete anos, a cena é muito forte e impactante, ela teria que silenciar e simplesmente aceitar a ofensa porque seu pai não tinha o mesmo poder aquisitivo do pai da colega. Carolina, ao rememorar esta atitude de sua mestra, começou a entrevista chorando e, em vários momentos durante a entrevista, retomou a frase pronunciada pela mestra. Neste sentido, van Manen (2010, p. 74, tradução nossa) pontua que, “as crianças interpretam continuamente suas próprias vidas e fazem sua própria interpretação do que significa crescer neste mundo”13 Dessa forma, a reflexão e a atuação por parte dos professores e das crianças são elementos que compõem a vida pedagógica. À medida que as docentes rememoravam e narravam os fenômenos pedagógicos vivenciados com as mestras, ressignificavam os impactos destes fenômenos em seus processos de subjetivação e também produziam um devir em relação às suas práticas pedagógicas, o que as conduziram a produzir novos significados em relação às suas atuações docentes.

Telas epidérmicas: considerações provisórias

As peles, deslocadas do campo das ciências naturais e da sua dimensão orgânica expressam metaforicamente provocações questionadoras dos limites entre interno/externo, subjetivo e objetivo, inato e construído, compreendendo que a pele é formada também por elementos extracorpóreos (RESTANY, 2003). Peles/grafismos que expressam modos de ser, refletidos nos modos de atribuir sentidos às experiências e às decorrências nos modos de habitar/sentir/agir como entes copertencentes ao mundo. O ser-docente também constitui suas peles/grafismos! Como as cobras, podem chegar a trocar totalmente de pele! As cobras livram-se das antigas peles quando estas passam a dificultar seu crescimento pela rigidez que adquirem e necessitam fabricar nova pele, mais adequada ao tamanho atual. Docentes também se expandem ontológica e epistemologicamente ao ponto de não caberem mais em suas peles originais!

O reconhecimento da complexidade da atividade docente nos desafiou a refletir sobre a importância e o papel das múltiplas dimensões que compõem os saberes e conhecimentos docentes, dentre eles os que emergem das experiências significativas e passam a compor repertórios que acionamos nas tomadas de decisões. Argumentamos sobre a importância do caráter educativo dessas experiências marcantes ao privilegiar a articulação entre o vivido e o formativo, tomando como referência empírica os percursos existenciais de seis professoras que identificaram influências pedagógicas significativas de suas antigas mestras no ser-professoras que se tornaram. A qualificação de “inesquecíveis” é expressa por elas no sentido de que as experiências oportunizadas pelas mestras foram de tamanha potência que permitiram elaborar princípios pedagógicos para fundamentação de suas práticas e atuaram ativamente nos processos de subjetivação da construção de suas profissionalidades. Ao tomar a metáfora das peles de Hundertwasser (RESTANY, 2003) para aprofundar os sentidos formativos das memórias existenciais, acreditamos que as metáforas abrem clareiras para a manifestação do pensar em ato, da ampliação dos sentidos da prática, que chegam antes do conceito, uma vez que estão profundamente enraizadas no vivido.

A metáfora das cinco peles do artista/arquiteto Hundertwasser nos auxiliou na compreensão da complexidade de nossas formas de estar-no-mundo, para nelas incluir diversas dimensões, compreendidas como peles. Assim como a pele é formada por camadas coexistentes com diferentes funções no nosso organismo que interagem de forma diversa com o ambiente, as experiências que temos com e no mundo se dão metaforicamente também em camadas coexistentes, com sentidos e significados singulares relativos aos acontecimentos vividos. Dessa forma, nos apropriamos da metáfora das peles como lentes de aumento para abordar nas relações pedagógicas as marcas atemporais, as que se inscrevem nas memórias e passam a compor repertórios de ação pela densidade formativa que contiveram na interação com estudantes em formação. Conhecer o mundo/pele da profissionalidade docente para nele interferir não significa estar nos limites de uma epistemologia moderna e instrumental, que separa o conhecer do sentir/agir. A metáfora das peles como métodos/instâncias de conhecimento busca realçar as práticas concretas no mundo como forças formadoras. De que forma práticas docentes transformam-se em forças formativas? Essas indagações acionaram nas memórias das seis professoras sujeitas da investigação que gerou este artigo experiências significativas reveladoras de que atitudes e valores concorrem fortemente para a emergência de linhas afetivo-cognitivas que são condições importantes para a aprendizagem significativa.

Essas afirmações convergem com a perspectiva teórica do fenomenólogo da educação com o qual dialogamos e tomamos de empréstimo categorias teóricas da ação pedagógica, momentos pedagógicos e situação pedagógica. O propósito deste texto foi trazer à reflexão a potência do a priori das relações como eixo formativo na profissionalidade docente, como foi explicitado nos depoimentos apresentados. Esperamos que o campo epistemológico da formação docente reconheça as experiências marcantes como uma das linhas de força na construção da subjetividade docente. Contemporaneamente se vive forças opressoras da necropolítica atuando tanto nos espaços macroestruturais, quando o estado assume políticas de morte, como microssociais, quando as pessoas assumem valores neoliberais e produzem relações de extermínio daqueles que constroem territórios existenciais de resistências. A colonização simbólica produz subjetividades individualizantes e meritocráticas, resistentes à formação de vínculos e a compromissos coletivos. É neste contexto de luta por mundos possíveis que a formação docente se constitui como força de resistência para construir subjetividades profissionais que possam enfrentar as novas pautas e lutar por uma sociedade mais democrática, igualitária e humana.

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1Este artigo se baseia na dissertação apresentada no ano de 2020 no Programa de Pós-Graduação em Educação e Contemporaneidade (OLIVEIRA, 2020).

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1. Siempre hay aspectos en la pedagogía que determinan los hechos de una situación. Por supuesto, estos denominados hechos normalmente suponen juicios interpretativos. A menudo incluyen o implican juicios de valor.”

2. “También hay siempre un aspecto ético-moral que está relacionado con la pedagogía. La acción pedagógica presupone que uno trata de diferenciar entre lo que es bueno y lo que no es bueno para el niño. Poresta razón, el estudio y la práctica de la pedagogía no pueden ser nunca objetivos en un sentido científico. La educación o la enseñanza de los niños implica siempre juicios de valor. Pero, algunas veces, estos valores están tan imbricados en la cultura y en la vida cotidiana que apenas se pueden reconocer.”

3Es una parte de la vida misma, y no simplemente un medio para madurar. Si fuera sólo por eso, la relación pedagógica no duraría demasiado tiempo. Dicho de otra forma, el respeto, el amor y el afecto entre adulto y el niño en-cuentran su significado en el propio disfrute y satisfacción compartidos en el presente, y no en los beneficios futuros.”

4“[...] las verdaderas experiencias de la infancia de la niña se sacrifican por la imagen que tiene el adulto de su futuro. Esse tipo de escenas es bastante frecuente. Alguns niños son capaces de adaptarse a las presiones paternas y al final cumplen los sueños de su padres, otros no son capaces de cumplir esas expectativas y pueden generar odio hacia la actividad y hacia el padre.”

5“[...] algunas veces, los profesores no nos damos cuenta de cómo influimos en nuestros alumnos, incluso en aquellos que menos imaginamos. La influencia es tan sutil que en la rutina de la vida diaria no llegamos a notarlo.”

6“[...] la compresión educativa se basa em la comprensión de cómo experimenta el niño el currículo, y em uma evaluación de las fuerzas y debilidades em el aprendizage del niño.”

7Ricoeur (2007), em sua obra A memória, a história, o esquecimento, ao abordar as questões relativas à memória presentificação, afirma que a representação presente de uma coisa ausente é marcada pela distância temporal.

8“[...] debemos tomar como punto de partida la petición del niño de que, por encima de todo mar como punto de partida de la petición del nino de que, por encima de todo, le comprendamos desde la subjetividad de su experiencia. Quede claro inmediatamente que la comprensión pedagógica nos es una simple habilidad, ya que la estrectura de la comprensión pedagógica es compleja, y contiene elementos reflexivos e interactivos”.

9“Pero un professor que vive de cerca la experiencia del niño puede no ser consciente de que el estudiante está todavía ententando comprender las cosas ‘desde el otro lado de la calle’. Muchos professores esperan simplemente que los estudiantes crucen hasta donde el se encuentra. Estos son los professores que se sitúan frente a su clase explicando cosas; su actidud es la de que depende de los alumnos ‘captar’ las explicaciones. Si no las captan, pues mala suerte! Sin embargo, los estudiantes pueden tener dificultades, falta de interés, o sencillamente pueden non saber cómo cruzar al lado del professor. El profesor parece tener una cierta perspectiva, pasión, concepción de la materia, y parece esperar que el estudiante tenga idéntica experiencia. Pero lo que el profesor olvida es que el aprendizage es siempre una cuestión individual y personal.”

10“[...] para ejercer el tacto uno debe ser capaz de superar una forma de ver el mundo que parece natural en los seres humanos: la actitud de considerarse a sí mismo el centro de todas las cosas.”

11“[...] la experiencia del otro es la rotura del silencio de mi mundo, que está centrado en el yo. La voz del otro descentra mi universo.”

12“[...] los professores que tienen sensibilidad pedagogica respecto a los niños de los que son responsabeles, tambien suellen ser sensibiles a sus antecedentes, a sus historias personales, y a sus cualidades y circunstancias particulares.”

13“[...] los niños quienes continuamente interpretan sus propias vidas y hacen su propria interpretación de lo que significa crecer en este mundo.”

Recebido: 30 de Março de 2021; Aceito: 02 de Agosto de 2021

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