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Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade

versión impresa ISSN 0104-7043versión On-line ISSN 2358-0194

Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade vol.30 no.63 Salvador jul./sept 2021  Epub 09-Mar-2022

https://doi.org/10.21879/faeeba2358-0194.2021.v30.n63.p363-371 

Entrevista

PAULO FREIRE ONTEM, HOJE E “MAIS QUE NUNCA”: UMA CONVERSA COM WALTER KOHAN

PAULO FREIRE YESTERDAY, TODAY AND “MORE THAN EVER”: A CONVERSATION WITH WALTER KOHAN

PAULO FREIRE AYER, HOY Y “MÁS QUE NUNCA”: UNA CONVERSACIÓN CON WALTER KOHAN

Tiago Ribeiro*  Instituto Nacional de Educação de Surdos
http://orcid.org/0000-0001-7264-3388

Carmen Sanches Sampaio**  Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
http://orcid.org/0000-0001-8654-4428

Walter Kohan***  Universidade do Estado do Rio de Janeiro
http://orcid.org/0000-0002-2263-9732

*Doutor em Educação pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Professor do Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES). Rio de Janeiro. Brasil. Professor do Programa de Doutorado em Investigação Narrativa e (Auto)biográfica da Universidade Nacional de Rosário (UNR). Rosário. Argentina. E-mail: tribeiro@ines.gov.br

**Doutora em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Professora do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Rio de Janeiro. Brasil. E-mail: carmensanches.unirio@gmail.com

***Doutor em Filosofia pela Universidade Ibero-americana (UIA), México. Professor Titular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Rio de Janeiro. Brasil. Procientista do Estado do Rio de Janeiro. E-mail: wokohan@gmail.com


RESUMO

No ano de 2021 comemoramos o centenário de Paulo Freire, patrono da educação brasileira e um dos autores mais lidos e traduzidos em todo o mundo. Ao comemorar cem anos desse autor tão fundamental à área da Educação, reforçamos a crença e a aposta em uma educação libertadora, emancipadora, compromissada com o exercício da cidadania e do diálogo como modos de conhecer e se relacionar com os outros e com o mundo. Compreendemos a educação, em Freire, como resposta a forças liberais e conservadoras que pretendem fazer da escola mero espaço de reprodução de conteúdos e docilização de corpos e existências. Educação como “prática de liberdade”, tecida e vivida coletivamente, de modo a afirmar as potências de todos e de qualquer um. Em tempos de políticas de morte, de ódio, de violência e segregação, como a que vivemos no Brasil sob o bolsonarismo e sua fome irreparável em intensificar desigualdades e segregar ainda mais as classes menos favorecidas, reafirmar a atualidade e a importância de Paulo Freire é afirmar a educação como experiência de construção de mundos novos. Nesse sentido, conversamos com o filósofo e educador Walter Kohan, professor titular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e autor de diversos livros e artigos, entre eles, a obra “Paulo Freire mais que nunca”. Kohan nos fala da atualidade política e pedagógica de Paulo Freire em tempos tão difíceis e nos convida a perceber sua relação com a infância, com uma força criativa e afirmativa, tão necessária para a invenção de mundos im-possíveis.

Palavras-chave: Paulo Freire; Educação; Liberdade; Infância

ABSTRACT

In 2021 we celebrate the centenary of Paulo Freire, patron of Brazilian education and one of the most read and translated authors in the world. By commemorating one hundred years of this author, who is so fundamental to the field of Education, we reinforce the belief and commitment to a liberating, emancipatory education, committed to the exercise of citizenship and dialogue as ways of knowing and relating to others and to the world. We understand education, in Freire’s thought, as a response to liberal and conservative forces that intend to make the school a mere space for reproducing content and controlling bodies and existences. Education as a “practice of freedom”, woven and lived collectively, in order to assert the strengths of everyone and anyone. In times of death, hate, violence and segregation policies, such as the one we live in Brazil under bolsonarism and its irreparable hunger to intensify inequalities and further segregate the less favored classes, reaffirming the relevance and importance of Paulo Freire is affirm education as an experience of building new worlds. In this sense, we talked with the philosopher and educator Walter Kohan, professor at the University of the State of Rio de Janeiro (UERJ) and author of several books and articles, including the work “Paulo Freire more than ever”. Kohan tells us about Paulo Freire's political and pedagogical current in such difficult times and invites us to perceive his relationship with childhood, with a creative and affirmative force, so necessary for the invention of im-possible worlds.

Keywords: Paulo Freire; Education; Freedom; Childhood

RESUMEN

En 2021 celebramos el centenario de Paulo Freire, patrono de la educación brasileña y uno de los autores más leídos y traducidos del mundo. Al conmemorar los cien años de este autor, tan fundamental en el campo de la Educación, reforzamos la creencia y el compromiso con una educación liberadora, emancipadora, comprometida con el ejercicio de la ciudadanía y el diálogo como formas de conocer y relacionarse con los demás y con el mundo. Comprendemos la educación, en Freire, como una respuesta a las fuerzas liberales y conservadoras que pretender hacer de la escuela un mero espacio de reproducción de contenidos y de control de cuerpos y existencias. La educación como “práctica de la libertad”, tejida y vivida colectivamente, para afirmar las potencialidades de todos y de cualquiera. En tiempos de políticas de muerte, odio, violencia y segregación, como la que vivimos en Brasil bajo el bolsonarismo y su hambre irreparable de intensificar las desigualdades y segregar aún más a las clases menos favorecidas, reafirmar la actualidad e importancia de Paulo Freire es afirmar la educación como una experiencia de construir nuevos mundos. En este sentido, conversamos con el filósofo y educador Walter Kohan, profesor titular de la Universidad del Estado de Río de Janeiro (UERJ) y autor de varios libros y artículos, entre ellos la obra “Paulo Freire más que nunca”. Kohan nos habla de la actualidad política y pedagógica de Paulo Freire en tiempos tan difíciles y nos invita a comprender su relación con la infancia, con una fuerza creativa y afirmativa, tan necesaria para la invención de mundos imposibles.

Palabras clave: Paulo Freire; Educación; Libertad; Infancia

Iniciando a conversa1

No dia 19 de setembro de 2021, Paulo Freire, sempre presente e vivo entre nós, completa 100 anos. Seu centenário reacende a necessidade de afirmar o pensamento freireano enquanto convite a pensar-viver uma educação democrática e popular nesses tempos de tanto ódio, fascismo e silenciamentos cidadania é um princípio ético e político, constitutivo de uma prática pedagógica grávida de sentido e humanidade, e não objetivo, como se o outro não fosse ainda sujeito hoje. Nas suas proposições pedagógicas, a polifonia e o reconhecimento das múltiplas vozes que compõem a cena educativa são dimensões que não podem ser negligenciadas: através do reconhecimento e da escuta, poderíamos dialogar enxergando o outro como alguém que tem conhecimento, história, voz, saberes e cidadania hoje!

As Pedagogias de Freire, para nós, lançam convites em vez de receitas; apontam possibilidades em vez de obrigatoriedades. Seu pensamento permanece atual e necessário, uma vez que insta a perceber a humanidade no humano, qualquer que seja ele. E perceber humanidade e cidadania em todos e quaisquer um não é pouca coisa, porque impõe uma suspensão, uma pausa em nossos regimes de anormalização e negação do outro.

Para pensar sobre a atualidade de Freire, conversamos com Walter Kohan em torno do pensamento freireano e de sua leitura amorosa e generosa do educador brasileiro, publicada no livro Paulo Freire mais que nunca: uma biografia filosófica, já traduzido para espanhol e inglês, resultante de seus estudos doutorais em Vancouver, Canadá. Walter Kohan é filósofo, educador e professor da UERJ/ Proped. Tem muitos livros e artigos publicados em diversas línguas. No referido livro, traz um olhar que, em nossa leitura, renova e potencializa a radicalidade democrática presente em Freire, sobretudo, nesse contexto de discursos e práticas violentas que nos toca viver e enfrentar.

Tiago Ribeiro e Carmen Sanches:

Walter, neste ano de 2021, celebramos o centenário do educador pernambucano Paulo Freire. Seu legado é em defesa da educação pública popular, da educação como forma de diálogo, de escuta e de partilha. Vivemos, também hoje, tempos sombrios, em que uns vociferam por uma neutralidade na educação ao mesmo tempo em que a tratam como mera mercadoria para geração de lucros. Outros, ainda, querem fazer dela um dispositivo de produção de sujeitos apáticos, desvitalizados, silenciados e silenciosos. Perguntamos-te: por que Paulo Freire e por que mais do que nunca?

Walter Kohan:

Tiago e Carmen, antes de tudo, obrigado pela oportunidade da conversa e pela pergunta. Em parte, vocês mesmos já responderam à pergunta: pelas vozes sombrias que hoje pretendem falar alto... Penso que há duas vozes diferentes que vocês mencionam... Essas vozes já falavam durante a vida de Paulo Freire e ele respondeu, muitas vezes, alertando contra elas... Por um lado, temos os que defendem o império do mercado ou as pretensões de submeter a educação a uma lógica economicista. Num país como Brasil, a educação deveria seguir prioridades políticas relativas ao direito a ela historicamente negado às classes excluídas. A educação é um direito, não pode ser submetida às leis do tal mercado. Por outro lado, há os que defendem uma formação pacata, apática, de sujeitos silenciados e silenciosos, como vocês dizem. Nesse caso, são os que defendem uma educação que seja insensível ao estado de coisas, que contribua a manter uma ordem secularmente injusta, excludente, opressiva. Se os primeiros são os liberais, esses últimos são os conservadores. Somados, fazem uma combinação explosiva e têm levado o Brasil a ser uma das sociedades mais desiguais do mundo.

Então, digamos que Paulo Freire mais do que nunca porque sua voz precisa ser escutada contra as vozes liberais e conservadoras, que reprimem as forças emancipadoras da educação. Contudo, esse seria um argumento que apenas coloca Paulo Freire como uma força reativa perante os ataques a uma educação transformadora. E Paulo Freire tem um valor afirmativo, muito maior que esse. Paulo Freire pode ajudar a pensar a politicidade da educação de uma forma nova, inspiradora, contemporânea. Tenho tentado explicitar isso no meu livro Paulo Freire mais do que nunca, em que desdobro a politicidade da educação a partir de conceitos outros, como vida, igualdade, amor, errância e infância. Basicamente, são conceitos que nos ajudam a desdobrar a politicidade da educação em relação à vida que afirmamos, à igualdade da qual partimos, ao amor como uma confiança no permanente nascimento do mundo, na errância que faz da educação uma viagem com destino aberto e, da infância, uma força afirmativa que precisamos manter viva para educar as pessoas de todas as idades.

Tiago:

Carmen e Walter, tão lindas e polinizadoras essas palavras! Tocam-me em uma manhã cinzenta e ensolaram o riso. Coloco-me a pensar, a partir da proposição de Walter - em especial dessa politicidade afirmativa, alegre e viva que Paulo Freire pode polinizar, à qual Walter nos chama a atenção -, que pulsa aí, também, a potência dos gestos. Os gestos, por minúsculos que sejam, como algo que guarda um pouco dessa politicidade afirmativa, infantil. E guardar no sentido de Antonio Cícero, poeta brasileiro: dar a ver, compartilhar, chamar à percepção e à experienciação poética do mundo e de si como potência afirmativa. Como você enxerga essa questão? Poderia falar um pouco mais dessa politicidade alegre e viva que enxerga filosoficamente em Freire e em sua vida?

Walter:

Pois é, Tiago, esse sentido de guardar é tão bonito... Como em italiano, que ainda conserva o sentido de “olhar” e mostra a importância de uma relação sensível com os outros, as outras, os outres que habitam o mundo e com o próprio mundo que habitamos! E mesmo que a vista tenha sido o sentido mais privilegiado em certa forma de contar a história de nossa cultura, cada vez mais necessariamente atenta para o valor de uma percepção aberta, polissêmica, cuidada, há toda uma poética pedagógica na forma como nos relacionamos com os outres e o mundo... E há também uma politicidade que se manifesta, em especial, quando ocupamos o lugar de quem educa, ensina, ou como queiramos chamarmo-nos enquanto educadores.

No caso de Paulo Freire, no meu livro, busquei atentar para alguns aspectos de sua obra e vida que não são usualmente destacados. Um deles é, justamente, a infância. Até alguns anos atrás, quase não existiam trabalhos sobre Paulo Freire e a infância; talvez porque ele efetivamente dedicou-se mais à alfabetização de jovens e adultos do que a crianças cronológicas. Nos últimos anos, vários trabalhos têm começado a destacar como a sua relação com a infância é extraordinária e politicamente importante: ela diz respeito a outra política que se manifesta em nossa relação com a infância.

A infância usualmente é colocada como aquela que deve ser educada; uma fase que precisa ser superada, formada. Algo pequeno, menor, que um dia vai crescer... Paulo Freire pensa que a infância é também algo que precisamos cuidar, escutar, manter viva em nós para educar as pessoas de qualquer idade. Uma espécie de infância educadora, uma força, uma curiosidade, uma inquietação, um querer sempre começar... Uma nova vida, um novo mundo, uma nova maneira de habitar a educação. Há muita alegria e potência meninas na forma como Paulo Freire afirma uma pedagogia da pergunta, que é algo assim como uma infância da educação: em vez de nos preocupar - os que vivemos educando e educando-nos - em responder perguntas, seria como manter viva a curiosidade e inquietação que dá vida a um perguntar que nos abre caminhos permanentemente no pensamento e na vida... É muito potente isso, não acham?

Carmen:

Sim, Walter, muito potente o perguntar! Um perguntar(-se) atento pelo mundo; um perguntar curioso, inventivo, de mãos dadas com a iniciativa e o risco... Um perguntar, como já te ouvi dizer, que “nos abre a força do não saber, não em seu caráter de ausência, mas de presença, de força afirmativa”. Perguntar, como insistia Paulo Freire, para não perder a capacidade de assombrar-se, de espantar-se... Lembro-me da primeira vez que li Por uma pedagogia da pergunta e do quanto me tocou pensar o aprender-ensinar como perguntar, interrogando um ensinar-aprender como resposta.

À época, trabalhava com crianças pequenas e, com Paulo Freire, o convite para com as crianças viver um perguntar crianceiro, no qual duvidar, ainda não saber, querer saber, ousar e inventar fazem morada... Uma época passada e tão presente, por me provocar a não esquecer de “viver na infância”, como você mesmo destaca no seu livro, já presente em nossa conversa. Um livro onde a pergunta sobre Paulo Freire e a infância nos apresenta “muitas infâncias em Paulo Freire”. Você afirma: “há uma força extraordinariamente menina-infantil na sua palavra e na sua vida”. E é sobre essa força que gostaria de te ouvir um pouco mais. O que pode essa força extraordinariamente menina-infantil presente na palavra e na vida desse professor-filósofo-educador popular no pensar a educação e a escola?

Walter:

Carmen, obrigado pela pergunta menina, infantil, inquieta, curiosa, afirmativa... É interessante o exercício que estamos fazendo, porque estamos elogiando a pergunta e sua força e, de repente, percebo agora que estou respondendo e tenho que responder uma pergunta tão bonita... Sinto-me um pouco constrangido, como num paradoxo... ou melhor, num desafio: como responder sem responder? Como responder cuidando e respeitando a força curiosa e inquieta que alimenta cada pergunta? Como recriar uma pedagogia menina da pergunta num exercício de perguntas e respostas como o que estamos ensaiando?

Lindo desafio, então... Menino... Potente... Porque talvez nos ajude a pensar no que estamos falando e fazendo... E, então, a forma e o conteúdo se darão as mãos e nos ajudarão a pensar, por exemplo, que talvez não seja tanto uma questão de perguntar ou de responder, mas de como nos relacionamos com o perguntar e o responder, ou com as perguntas e as respostas... Porque não é que responder não possa ser interessante... e inclusive o perguntar desinteressante...

Perguntar e responder não são valores absolutos... O que importa é como nos relacionamos com um e outro e, também, com as respostas, assim como de que maneira nos relacionamos com as perguntas... O próprio Paulo Freire alerta, em Por uma pedagogia da pergunta, que o perguntar pode ser apenas um “mero jogo intelectual”, de modo que também temos que cuidar muito do perguntar e das perguntas: o que fazemos e não fazemos com elas, o que deixamos e não deixamos que elas façam conosco e com os e as outras...

Você acaba de escrever coisas muito lindas sobre a relação do perguntar com o não saber, o perigo e o risco... E é muito bonito que você use o infinitivo mais do que o substantivo, porque dá a ideia de uma prática viva, latente, pulsante do perguntar..., de modo que espero que as minhas respostas avivem o fogo que está no perguntar de vocês... E, sim, “há uma força extraordinariamente menina-infantil na palavra e na vida” de Paulo Freire. Como você sugere, Paulo Freire é aqui uma figura que ilustra um(a) professor(a)-filósofo(a)-educador(a) popular... Digo um(a) no sentido de qualquer, todes... Porque se trata de algo que queremos para qualquer educador(a) que se disponha a viver os riscos e perigos, mas também as forças, oportunidades e sentidos do perguntar infantil... Porque, podemos dizê-lo, o perguntar é algo infantil... Infantil não no sentido de uma idade, mas de um tempo e, como diz tão belamente Mia Couto, em Quebrar Armadilhas, um tempo no qual nunca é demasiado tarde, um tempo de surpresa e encantamento ou, como diz Paulo Freire, em Por uma pedagogia da pergunta, de curiosidade e inquietude, um tempo em que não se teme sonhar e se querer criar e transformar...

E Paulo Freire fez questão de mostrar que essa infância é algo de que precisamos, em todas as idades, para educar as pessoas de todas as idades... Justamente porque ela não é uma idade, porém uma força de vida: você se imagina em uma vida sem curiosidade, inquietação, surpresa, encantamento, ou seja, sem infância? Ou uma vida que pensa que já é tarde demais para viver outras vidas ou outros mundos?

Infelizmente, esse pensamento virou mais habitual do que o desejado, porque dele se alimentam os conservadores, os autoritários e os que querem que esse mundo perverso em que vivemos se perpetue ou ainda se aprofunde, como pretendem agora no Brasil. E, por isso, muitas pessoas escutam, desde idade muito pequena, que elas não podem, que para elas já é demasiado tarde, que não tem jeito, que não vão conseguir ou, como disse esta semana, tão cheio de sua habitual infelicidade, o Ministro da Educação, “que a universidade é para poucos”. É um pensamento nojento e, para relacioná-lo com sua pergunta, completamente afastado da infância. Está como as antípodas de um pensamento e uma vida como a de Paulo Freire: amorosa, preocupada com outros e outras e, permanentemente, abrindo caminhos e se perguntando que outros mundos podemos habitar... Porque nunca é tarde demais para perguntar e sonhar com outros mundos..., de modo que a infância, assim entendida, é uma força para educar, uma força de que precisamos cuidar, escutar, alimentar para afirmarmos uma pedagogia menina da pergunta em nossas vidas educadoras...

Carmen:

Walter, leio-te e escuto a sua voz, vejo seus olhos carinhosos e curiosos olhando os meus, de modo atento à nossa conversa e à lembrança de tantos encontros presencialmente vividos. Isso me invade e me alegra! Penso que essas lembranças ganham vida através do convite que nos faz: o de pensar que, talvez, a questão de perguntar ou de responder não deveria ser a questão, mas, sim, atentarmo-nos para os modos como nos relacionamos com o perguntar e com o responder e, não necessariamente, com as perguntas e as respostas em si. Lembro-me, também, das vezes em que ouvi Paulo Freire. Falava manso, sem pressa, devagar... No momento do debate, muitas perguntas e ele, parecendo respirar mais demoradamente, colocava-se no movimento de pensar com quem havia perguntado...

Desse modo, um tempo aión, da duração do vivido e da intensidade, suspendia o tempo do relógio, esse tempo chrónos tão fortemente presente em nós, no nosso mundo. E as respostas, nesse processo, já nem mais importavam..., mas o pensar junto... E uma conversa menina e infantil, como um bordado bonito e colorido, ia sendo tecida. Era difícil finalizar um encontro com Paulo Freire! Acho que o abandono de uma lógica da explicação, vivenciado por ele, de uma lógica que insiste em demonstrar quem tem razão, quem está falando, apegada à “verdade”, terminando por subjugar e ignorar a potência do outro, abria possibilidades para uma conversação que movimentava e interrogava o pensamento.

Para mim, ao ouvi-lo, algo acontecia... E ler seus textos era dar continuidade a essa e outras conversas... E com você, Walter, reafirmo: uma conversa menina-infantil onde a curiosidade, a amorosidade e a esperança, tão presentes nas falas, escritas e ações de Paulo Freire, ao longo de sua vida, cotidianamente nos fortalece para resistirmos e existirmos nesse tempo pandêmico e tão fortemente marcado, neste nosso Brasil, por políticas autoritárias, racistas, homofóbicas, sexistas que têm provocado, cada vez mais e mais, desigualdades, exclusão e morte.

Paulo Freire, em Pedagogia da Autonomia, afirma uma ideia que o acompanhou por toda a sua vida: “Ninguém é superior a ninguém”. Uma ideia que, para mim, afirma a igualdade entre as pessoas, nas relações vividas, nas escolas e fora delas. Você, Walter, no seu livro, lembra-nos de que Paulo Freire dizia que afirmar a igualdade era “uma das raras certezas de que estou certo”. Tão potentemente lindo, não? E você, no movimento de se perguntar perguntando-nos e de pensar convidando-nos a pensar sobre “sentidos da afirmação da igualdade”, coloca em conversação ideias de Paulo Freire e de Joseph Jacotot, um pedagogo francês do século XIX (1770-1840), que nos é apresentado por Jacques Rancière, em seu livro O mestre ignorante. Uma conversação que me faz pensar na educação e na escola que temos e que cotidianamente inventamos. E o desejo de te ouvir sobre esse princípio - o da igualdade - defendido e praticado durante suas vidas por Freire e Jacotot, me leva a te perguntar, perguntando-me: que escola podemos encontrar ao assumirmos o desafio de viver a igualdade como ponto de partida e exercício cotidiano, e não como algo a ser alcançado, no futuro?

Walter:

Carmen, grato pelas lembranças desse teu começo agora, que nos traz lembranças amorosas de tantos encontros tidos (e lembranças e saudades do passado e do futuro!). Também me sinto muito contente que o tempo desta conversa tenha te provocado lembrar teus encontros com Paulo Freire... Porque, sim, é esse mesmo tempo aión que penso ser o tempo da educação. Se esta conversa nos faz sentir algo assim, tanto a nós quanto a nossas e nossos leitores, então só por isso já terá valido a pena conversar...

E claro que tem muito mais numa conversa... Será? O que tem dentro de uma conversa? Quantas potências, enigmas, caminhos, vidas e mundos podem ser acolhidos e provocados numa conversa? Quantos afetos, quanta amorosidade, quantas e quantas infâncias cabem numa conversa?

Sim, a igualdade é um tema complexo e importante... E penso que tanto Freire quanto Jacotot/Rancière ajudam a pensá-lo, em particular, em sociedades tão desiguais quanto as nossas e nas quais a pandemia foi utilizada, pelo menos no Brasil, para aprofundar as desigualdades e plano de sufoco e extermínio contra a população mais pobre. Nesse contexto, acho que o movimento de Jacotot/Rancière é muito potente: deixar de ver a igualdade - pelo menos a intelectual, cognitiva - como algo a ser alcançado e colocá-la no início, para - quem sabe? - dar lugar a outros tipos de relações cognitivas, intelectuais, de pensamento entre as diferentes atrizes e atores educacionais. Porque, como dizes, quem não parte dessa igualdade, posterga-a até o infinito, embrutecendo aos que considera inferiores ou superiores.

Só há conversa, diálogo, pensamento entre os que se pensam igualmente pensadores. Isso é muito interessante e importante a todas as idades e em todas as classes sociais, mas especialmente naquelas que têm escutado a vida inteira que não são igualmente capazes, que não podem, que mesmo que se esforcem estão sempre atrás quanto à sua capacidade. É com essas classes que Paulo Freire, justamente, mais se preocupou e em quem concentrou seu trabalho. Penso que talvez essa seja uma das razões, inclusive, dele ter se ocupado de trabalhar muito mais com jovens e adultos que com crianças pequenas: o dano e o que a educação precisa reparar é muito maior, pelo tempo roubado e pelo discurso embrutecedor tantas vezes repetido. Desse modo, penso que tanto Jacotot/Rancière quanto Paulo Freire ajudam muito a pensar o lugar da igualdade das capacidades e das inteligências como um princípio necessário numa educação atenta às classes mais castigadas.

E na tua pergunta, Carmen, acrescentaste algo muito importante que ambos têm, de fato, praticado: não se trata apenas de enunciar a igualdade, mas de vivê-la, de atualizá-la, porque é a partir da vivência dela que percebemos já não querermos um mundo desigual em nenhum sentido. E, às vezes, confunde-se a desigualdade com a diferença, que também é um princípio de vida desejável e tem, na igualdade, sua condição mais do que seu contrário. Tudo isto não significa que, entre Jacotot/Rancière e Paulo Freire, não existam pontos importantes de desencontro: o próprio Rancière tem apontado alguns (por exemplo, em “A Atualidade do Mestre Ignorante”, uma entrevista que está num dossiê que organizamos, com Jorge Larrosa, na revista Educação & Sociedade, v. 24, n. 82, 2003)... E claro que existem muitos outros, mas quanto à igualdade das inteligências / capacidades, acredito que os dois coincidiriam em que qualquer um/a pode ou é igualmente capaz de aprender qualquer coisa, sempre que lhe sejam oferecidas as condições para isso.

Tiago:

Walter e Carmen, ler essas perguntas-respostas ou respostas-perguntas tão meninas, estando em João Pessoa, no nordeste, me alumia. Em mim cresce um sentimento buliçoso que corre, brinca e dá saltos. Escuto as vozes de vocês entre sorrir, responder e perguntar. Tudo junto e misturado, como as infâncias e sua meninice, que apontam nascedouros de vida.

Achei muito pulsante a observação de Walter, de que o que torna a educação, a filosofia e a vida experiências meninas são a relação e as formas como nos colocamos em relação - com outres, com o mundo e conosco. Sinto também este convite em Freire: que possamos assumir o educar(nos) como uma poética do encontro, da conversação, do estar junto e do conversar escutando-nos, com o corpo todo. Que possamos assumir a infância como força que dobra o mundo em tantos possíveis quanto sejamos capazes de inventar e enxergar.

Essa mesma poética também me faz lembrar de Simon Rodríguez, tão generosamente apresentado no Mestre Inventor, de Walter. A partir dessas presenças, indago, se poderia ser o educar um convite a ressuscitar os vivos, essa potência menina que está presente na vida, nos corpos e existências de todes e qualquer um. Ressuscitar os vivos como ressuscitar essa meninice crianceira em nós, que engravida as horas com perguntas simples, capazes de alterar a rota do tempo e o fluxo das certezas.

Aprendi com vocês, Carmen e Walter, que o que há de mais bonito no educar é a multiplicidade de vozes que constituem os cotidianos vividos e encarnados, as polifonias e pluralidades de gentes que nos habitam. As ideias e pensamentos que, não sendo originalmente nossos, também nos são. Além de perguntas, esta nossa conversa com e a partir de Freire me gera desejos. Sinto-me grávido de vontade de estar em sala se aula, de vencer a pandemia, de abraçar, de escutar, de presencialidade, de conversar em roda, de pensar coletivamente, de não ter resposta para as perguntas que surgem e ganham vida nos encontros com as infâncias, independentemente de sua idade cronológica. E vocês, que desejos essa conversação lhes inspira? Que desejos sentir-pensar-viver-conversar a educação com Freire faz nascer em vocês?

Walter:

Obrigado, Tiago. Fazes-me pensar que precisamos pensar tanto na infância, infantil ou meninamente... Começar outra vez... Habitar outro tempo... Ou, como diz o poeta moçambicano Mia Couto, não esquecer de que a infância é quando ainda não é demasiado tarde... E essa lembrança da infância é especialmente necessária no momento atual, em que cada dia parece um pouco pior que o anterior... E que estamos retrocedendo décadas em poucos anos... E então, a cada dia, parece que recuperar o que está sendo destruído será mais e mais difícil... Alguém pode, distraída e adultamente, pensar: “será que já é tarde demais?”.

Então, lembramos desse sentimento infantil... e dessa infância, a do tempo presente, em que sempre há tempo para todos e para todes, como uma condição para a educação de todas as idades... Viver na infância é viver num tempo presente ou de sonho, de utopia, um tempo impossível, diferente do tempo cronológico adulto, o qual só tem passado e futuro, pois, nele, o presente é apenas uma dobradiça, um limite, um agora fugidio que nunca podemos encontrar. Já o aión infantil é puro presente; um presente utópico, sonhado, impossível... A infância vive mesmo no impossível...

No entanto, o que é o impossível? Usualmente, é entendido como a negação do possível. Ele é acompanhado de uma carga negativa: “isso é impossível”; costuma querer dizer que não há como tornar algo possível... Contudo, prefiro entendê-lo, ao contrário, como a mais sentida afirmação do possível, a soma dos possíveis reunidos, a afirmação de todos eles. Algo é impossível porque significa que incorpora a mais absoluta afirmação do possível... Não há possível fora do impossível... E penso que a educação tem mais a ver com o impossível que com o possível... Por isso, muito mais a ver com o presente que com o passado e o futuro, com a infância do que com a adultez, esse tempo que hoje parece impossível e é mais necessário do que nunca.

E nossa conversação, Tiago, me faz querer me empequenecer, e descer até a infância, estar “à sua baixura” (e não à sua altura), porque a infância está também perto da terra e me faz também sentir a necessidade de viajar pelos sendeiros nordestinos de Paulo Freire, encontrar seu povo, escutá-lo, recriar uma pedagogia menina da pergunta errante... E nessa viagem errante estou embarcando... com a boa companhia da palavra e da escuta de vocês, amigo e amiga queridas...

Tiago e Carmen:

Gratidão, Walter, por tanto... Como você, também ficamos com “a pureza da resposta das crianças”, como canta a música. E essa pureza, para nós, tem a ver com essa meninice indomável que nos convida ao chão, à infância que é puro sonho e devaneio e, por isso mesmo, condição de produção de realidades (plurais).

Essa nossa conversação não começou aqui tampouco terminará, porque uma conversa sempre continua... Seus ecos reverberam em nossos corpos. Há muito chão sobre o qual nos empequenecer, à baixura das crianças e dos olhos capazes de captar o minúsculo, o mínimo, o pequeno, o detalhe, o íntimo.

E, modos de ser e de se fazer professoras e professores, vividos cotidianamente, encharcados da boniteza do pensamento de Paulo Freire, esse mestre-menino, tão querido por nós e que, entre nós, se faz presente, insiste em nos alertar sobre a importância da esperança, mesmo sabendo que “ela, só, não ganha a luta, mas sem ela a luta fraqueja e titubeia” (FREIRE, 2013, p. 38). Seguimos...

REFERÊNCIAS

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996. [ Links ]

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Esperança: um reencontro com a Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2013. [ Links ]

FREIRE, Paulo; FAUNDEZ, Antonio. Por uma pedagogia da pergunta. 8. Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2017 [1985]. [ Links ]

KOHAN, Walter. O mestre inventor: relatos de um viajante educador. Belo Horizonte: Autêntica, 2013. [ Links ]

KOHAN, Walter. Paulo Freire mais do que nunca: uma biografia filosófica. Belo Horizonte: Vestígio, 2019. [ Links ]

RANCIÈRE, Jacques. O mestre ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual. 3ª ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2011. [ Links ]

1Artigo revisado por Juliana Fonseca Mirna (PUC-RJ).

Recebido: 02 de Setembro de 2021; Aceito: 22 de Setembro de 2021

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