Introdução
“Depois de 2020, a Educação jamais será a mesma.” Esta é uma frase que temos escutado com frequência, desde o início da pandemia da Covid-19, que nos impôs a necessidade de isolamento físico, restringindo o deslocamento no espaço geográfico, a fim de evitar aglomerações de pessoas e minimizar o contágio pelo vírus, uma entidade microscópica, não humana, que atua sobre nós e sobre o mundo provocando alterações significativas em diferentes domínios do nosso viver e conviver.
Essa nova condição de vida, no âmbito da educação, passou a impossibilitar o encontro presencial físico entre professores e estudantes em salas de aula no espaço geográfico das instituições educacionais, inviabilizando a continuidade dos processos de ensino e de aprendizagem na modalidade presencial-física. Diante dessa condição, o que fazer para que os estudantes pudessem continuar a ter acesso à educação formal?
A maneira encontrada para não parar a educação surge com as tecnologias digitais (TD) e a conectividade, novamente entidades não humanas que, ao agenciarem-se conosco, propiciam novas formas de encontro e de presença em novos espaços, numa “geografia” de redes digitais. Entretanto, é preciso compreender que a natureza e as propriedades do encontro e da presença nessa nova “geografia” que estamos denominando “econectografia” não são as mesmas. A econectografia é compreendida no Grupo de Pesquisa Educação Digital (GPe-dU) como uma ecologia de conexões transorgânicas, portanto, entre entidades humanas e não humanas, constituindo outros/novos espaços informacionais, interacionais, conectivos, em rede, em fluxo. A natureza e as propriedades deste encontro, desta presença, destes novos espaços que se constituem enquanto econectográficos, são digitais e conectivas, “matéria” feita de bits e, portanto, distinta qualitativamente da natureza e propriedades do encontro e da presença no espaço geográfico, constituído de matéria feita de átomos. Sendo distinta, é preciso compreender a sua virtualidade, entendida como potência para transubstanciar o habitar do ensinar e do aprender, o que exige novas epistemologias, novas teorias que possibilitem inventar novas metodologias e práticas pedagógicas.
Fato é que devido à emergência da situação, não houve tempo para que os professores e as instituições efetivamente se apropriassem e compreendessem a natureza e características própria da digitalidade e da conectividade dessa “matéria” feita de bits, que tem a potência de digitalizar e conectar tudo o que há no planeta, produzindo uma realidade hiperconectada. Ao ficarem restritos a um mero “uso” das tecnologias digitais e da conectividade enquanto ferramentas, recursos, apoios, meios, o que observamos foi a transposição da forma de operar a educação, quanto à gestão e os processos de ensino e de aprendizagem, de um espaço geográfico para o digital. Dessa forma, metodologias e práticas que muitas vezes já se mostravam ineficientes, do ponto de vista da aprendizagem (TODOS PELA EDUCAÇÃO; MODERNA, 2019), mesmo em contexto geográfico, presencial físico, foram transferidas para o digital.
Como consequência, a prática de transposição tem resultado em saturação, esgotamento, fadiga de professores e estudantes, que já não aguentam passar tantas horas seguidas sentados em frente ao computador. Assim, outras frases começaram a surgir: “Espero que tudo isso termine logo para que possamos voltar ao normal”; alguns falam até em um “novo normal”; e outros ainda em “nunca mais ter que usar as tecnologias digitais”. O que essas afirmações evidenciam? Que problematizações, preocupações, desafios e potências apresentam?
É preciso lembrar que a nova condição de vida no planeta vem transformando a sociedade nos mais diferentes campos, bem como as profissões, exigindo formas de (re)inventar a nossa convivência, a maneira como nos comunicamos, interagimos, trabalhamos, estudamos, nos divertimos, nos relacionamos.
Parece-nos que as afirmações anteriores, no campo da Educação, emergem da falta de compreensão da natureza e características próprias da digitalidade e da conectividade, portanto, de apropriação destas enquanto tecnologias da inteligência (LÉVY, 1993), ou, ainda, num nível superior, enquanto ecologias inteligentes (DI FELICE, 2017) que se produzem em atos conectivos transorgânicos que resultam em acoplamento enquanto agenciamento entre humanos, tecnologias, algoritmos, dados, lugares, coisas, florestas, biodiversidade, potencializando outras formas de operar a educação, (re)inventando-a, ou, ainda, transubstanciando-a (SCHLEMMER; DI FELICE; SERRA, 2020).
Com o objetivo de apresentar e discutir algumas das problematizações, preocupações, desafios e potência que essa nova realidade coloca para a educação, desenvolvemos a seguir duas sessões. A primeira denominamos “As abordagens e opções pedagógicas para a resolução de problemas em tempos de pandemia da Covid-19” e a segunda, “Para além da resolução de problemas, a invenção: a construção de um percurso na Educação Híbrida e a potência da Educação OnLIFE”.
As abordagens e opções pedagógicas para a resolução de problemas em tempos de pandemia da Covid-19
A incerteza é própria do viver humano, assim como a necessidade de ter um “lugar seguro” para o qual se possa retornar, bem como modelos que possam ser aplicados, ainda que tenhamos a ciência de que o mundo e tudo o que o constitui tenha uma natureza movente e, portanto, se modifica, se desenvolve, se transforma continuamente nas conexões que geram o movimento.
No âmbito da educação, é preciso problematizar: queremos um “novo”" modelo ou um “novo” normal? Precisamos de modelos? O que é considerado “normal”? Será emergencial distinto de emergente? O emergente responde a um modelo ou uma normalidade?
O contexto educacional que estamos vivendo, no movimento possível destes tempos incertos e na busca por um “lugar seguro”, que nos seja familiar, vem se desenvolvendo de forma emergencial, a partir do que se convencionou designar de Ensino Remoto Emergencial.
O Ensino Remoto Emergencial tem seu foco no ensino realizado de forma remota, o que pressupõe um distanciamento físico de professores e estudantes da geografia física. Essa proposta foi adotada em caráter de emergência por diferentes instituições educacionais no mundo todo e nos mais variados níveis de ensino, em março de 2020, devido às restrições impostas pela pandemia da Covid-19, o que justifica o complemento “emergencial”. De acordo com Moreira e Schlemmer (2020, p. 9), no Ensino Remoto Emergencial, também denominado Aula Remota Emergencial,
[...] o ensino presencial físico (mesmos cursos, currículo, metodologias e práticas pedagógicas) é transposto para os meios digitais, em rede. O processo é centrado no conteúdo, que ministrado pelo mesmo professor da aula presencial física. Embora haja um distanciamento geográfico, privilegia-se o compartilhamento de um mesmo tempo, ou seja, a aula ocorre num tempo síncrono, seguindo princípios do ensino presencial. A comunicação é predominantemente bidirecional, do tipo um para muitos, no qual o professor protagoniza vídeo-aula ou realiza uma aula expositiva por meio de sistemas de webconferência. Dessa forma, a presença física do professor e do aluno no espaço da sala de aula geográfica são substituídas por uma presença digital numa sala de aula digital." (MOREIRA; SHCLEMMER, 2020, p. 9)
O foco está nas informações/conteúdos e nas formas de transmissão dessas informações/conteúdos pelo professor aos estudantes. Ainda segundo esses autores, “A lógica que predomina é a do controle, tudo o que é concebido e disponibilizado é registrado, gravado e pode ser acessado e revisto posteriormente” (MOREIRA; SHCLEMMER, 2020, p. 9). O Ensino Remoto Emergencial, em algumas variações, lembra o ensino a distância do século passado, realizado por correio, rádio ou TV, tendo agora o acréscimo de TD, em rede.
É importante salientar que esse Ensino Remoto Emergencial, ou Aula Remota Emergencial, foi proposto em um contexto de pandemia, em um cenário mundial de crise sanitária, tornando evidente problemáticas que apontam para outras crises no campo da Educação, tais como: a desigualdade social e econômica entre países, regiões, estados, cidades; a exclusão/emancipação digital de estudantes e professores; a crise na formação docente; e a crise nas aprendizagens. Para que possamos superar não somente a situação de pandemia, mas, especialmente, solucionar essas problemáticas, é preciso criar políticas públicas que garantam acesso às TD e à conectividade de qualidade, bem como promovam a capacitação docente, considerando novos elementos epistemológicos-teóricos-metodológicos-tecnológicos. Uma formação que, segundo Schlemmer (2020a, 2021) e Schlemmer, Kersch e Oliveira (2020), possibilite ao professor desenvolver as competências necessárias à docência na atualidade, as quais vão muito além das competências digitais trabalhadas de forma isolada, uma vez que implicam competências que emergem do entrelaçamento de: 1) competências da área específica do conhecimento, na qual o professor é formado; 2) competências didático-pedagógicas; 3) competências digitais; 4) competências socioemocionais; e 5) as nominadas como competências para o século XXI: comunicação, colaboração, criatividade, resolução de problemas, pensamento crítico, às quais acrescentamos; 6) cooperação, inventividade e invenção de problemas. Entendemos que uma formação dessa natureza pode potencializar a fluência técnico-didático-pedagógica necessária ao professor para que possa desenvolver os processos de ensino e de aprendizagem no âmbito de uma realidade hipercomplexa.
Durante esse processo, frente à emergência de um possível “retorno” dos estudantes e professores, ainda que em menor número devido à necessidade de respeitar as orientações de distanciamento físico, ao contexto da sala de aula física e das instituições geograficamente localizadas, surgem novas propostas, tais como as Aulas Simultâneas ou o Modelo Hybrid Flex.
As Aulas Simultâneas, conforme o próprio nome refere, consistem em aulas realizadas no contexto da sala de aula, geograficamente localizada, na qual um grupo de estudantes está fisicamente presente (ainda em número reduzido devido à necessidade de manter o distanciamento físico), as quais são simultaneamente transmitidas remotamente para diferentes pontos geográficos nos quais os demais estudantes se encontram, tendo estes uma presença digital. As Aulas Simultâneas ocorrem num tempo síncrono e, para que possam ser transmitidas simultaneamente de forma remota, é necessário um sistema que implica a instalação de câmeras digitais em pontos da sala de aula geográfica, boa qualidade de conectividade e software que permita a transmissão da aula, em rede, a fim de que ela possa chegar aos estudantes que se encontram geograficamente distantes. Dessa forma, a mesma aula “dada” na sala de aula geográfica é transmitida simultaneamente online. Novamente nos parece que o foco continua no ensino síncrono, centrado no professor e no conteúdo, transmitido remotamente por meio de um aparato tecnológico digital.
O Modelo Hybrid Flex ou HyFlex pressupõe um formato de curso, denominado híbrido (compreendido como a combinação de atividades de ensino e aprendizagem presenciais físicas e online) e flexível (os alunos podem escolher se querem ou não assistir às sessões presenciais físicas sem “déficit de aprendizagem”). De acordo com Beatty (2019), o modelo HyFlex possibilita experiência de aprendizagem multimodal centrada no aluno. É ele quem escolhe entre assistir e participar de aulas em sala de aula tradicional, geograficamente localizada e com uma presença física, ou em um ambiente online, podendo escolher entre participar de forma síncrona ou assíncrona, e ainda ambos. Beatty (2007) refere quatro dos elementos presentes no design de um curso HyFlex: 1) Escolha do aluno, disponibiliza modos alternativos de participação: o estudante escolhe como vai ser a sua participação diária, semanal ou por tópico; 2) Equivalência - disponibiliza atividades de aprendizagem em todos os modos alternativos de participação de forma a propiciar resultados de aprendizagem equivalentes; 3) Reutilização - faz uso de artefatos de atividades de aprendizagem em cada modo alternativo de participação, como objetos de aprendizagem disponibilizados para todos os estudantes; e 4) Acessibilidade - equipa os estudantes com habilidades tecnológicas digitais e acesso equitativo a todos os modos de participação.
O HyFlex é, então, uma abordagem instrucional que propõe a combinação de ensino na modalidade presencial física com ensino na modalidade online. Cada aula desenvolvida na sala de aula física, geograficamente localizada, é “oferecida” online de forma síncrona e assíncrona. Isso permite que os estudantes possam decidir como participar de cada aula ou atividade, se de forma presencial física, se deslocando geograficamente até a instituição (respeitando o distanciamento físico em contextos geograficamente delimitados), ou de forma presencial online, acessando a aula de forma síncrona ou assíncrona. Segundo Beatty (2019), o modelo HyFlex vem sendo desenvolvido desde 2006 com o objetivo de proporcionar aos estudantes uma educação de mesma qualidade, independente da sua participação ser de forma presencial física ou online, podendo, inclusive, alterar o tipo de participação a cada aula ou atividade. Segundo esse autor, para que esse modelo se efetive, os professores precisam construir um curso totalmente online com uma versão totalmente presencial física de forma a propiciar os mesmos resultados em termos de aprendizagem em ambos. Ou seja, o professor precisa encontrar formas de reunir as duas versões do curso (presencial físico e online) em uma única experiência de curso, possibilitando vários caminhos possíveis de participação presencial física e/ou online, conforme a escolha do estudante. Beatty (2019) entende que as interrupções em ofertas de ensino na modalidade presencial física, as quais exigem o compartilhamento de um mesmo espaço geográfico, serão cada vez mais presentes no futuro, seja devido a fenômenos da natureza, como furacões, incêndios, seja devido a pandemias, o que reforça a necessidade da construção de modelos educacionais híbridos e flexíveis. Salienta-se que a oferta desse tipo de proposta requer um elevado nível de fluência técnico-didático-pedagógica e também de gestão dos processos de ensino e de aprendizagem pelo professor, o que necessariamente implica em formação docente e em uma significativa dedicação de tempo.
Atualmente, existe uma variedade significativa de experiências que vão nesse caminho, no entanto, diferem-se entre si, entre elas Beatty (2019) cita: Mode-Neutral, de 2008; Multi-Access Learning, de 2009; FlexLearning, de 2012; Converged Learning, de 2012; Peirce Fit®, de 2014; Multi-Options, de 2014; Flexibly Accessible Learning Environment (FALE), de 2018; Blendflex, de 2016; Comodal, de 2016; Flexible Hybrid, de 2014; Synchronous Learning in Distributed Environments (SLIDE), de 2011; gxLearning, de 2011; Blendsync, de 2011; Remote Live Participation (RLP), de 2018).
A proposta do modelo HyFlex se difere daqueles modelos em que o professor cria os cursos de forma combinada, também denominados híbridos, os quais podem ser presenciais enriquecidos pelo digital, pela incorporação de elementos digitais nas aulas presenciais físicas ou, ainda, possibilitando que um aluno participe de uma aula presencial remotamente. Nesse caso, o professor é quem define quais aulas/atividades entende que seriam melhor desenvolvidas de forma presencial física e quais seriam melhor desenvolvidas de forma online.
A preocupação no âmbito do modelo HyFlex está justamente atrelada a situações em que câmeras são colocadas na sala de aula presencial física permitindo aos estudantes que estão online que somente escutem a aula, algo semelhante ao ensino a distância dos anos 1990. Também é importante diferenciar a abordagem “síncrona combinada” desenvolvida via Zoom, Meet, Teams, entre outros, daquelas abordagens desenvolvidas totalmente online e presencial física, conforme proposto por Beatty (2019).
O Ensino Remoto Emergencial, as Aulas Simultâneas e o Modelo Hybrid Flex são propostas que se desenvolvem no âmbito da solução/resolução de problemas e representam diferentes formas que as instituições educacionais, sejam elas públicas, comunitárias, confessionais ou privadas, encontraram para “garantir” a continuidade da oferta de educação formal, em diferentes níveis, preservando, assim, a sua própria existência e relevância social. O Ensino Remoto Emergencial como forma de propiciar a continuidade dos processos de ensino e de aprendizagem frente à necessidade de isolamento físico imposto pela pandemia da Covid-19. As Aulas Simultâneas e o Modelo Hybrid Flex como alternativas a um (in)certo retorno, respeitando as exigências de distanciamento físico em sala de aula geográfica, e a possibilidade de escolha do estudante em estar fisicamente presente na sala de aula geográfica ou estar digitalmente presente de forma síncrona, sendo que, no HyFlex, ainda há a possibilidade de participação também assíncrona que pode variar a cada aula/atividade, mês ou módulo. O objetivo principal, especialmente no que se refere ao Ensino Remoto Emergencial e o modelo de Aulas Simultâneas, segundo Moreira e Schlemmer (2020), não é (re)criar um ecossistema educacional online ou, ainda, híbrido robusto, mas fornecer acesso temporário e de maneira rápida durante um período de emergência ou crise.
Para além das propostas apresentadas até aqui, assim como o Ensino Híbrido e as Metodologias Ativas, as quais serão apresentadas a seguir e se desenvolvem no âmbito da solução/resolução de problemas, discutiremos a invenção de problemas e, nesse contexto, a Educação Híbrida, as Metodologias Inventivas e as Práticas Pedagógicas Simpoiéticas, Inventivas e Gamificadas, enquanto potência de uma Educação OnLIFE.
Para além da resolução de problemas, a invenção: a construção de um percurso na Educação Híbrida e a potência da Educação OnLIFE
A emergência de um (in)certo retorno aos espaços geográficos das instituições educacionais, onde os processos de ensino e de aprendizagem se desenvolvem exclusivamente nos espaços geográficos que compõem essas instituições, em salas de aulas, com a presença física de professores e estudantes, nos instiga a refletir sobre as vivências construídas na educação, neste tempo de pandemia da Covid-19, e sobre a potência que elas representam para (re)inventar a Educação.
Compreendemos, a partir dessas vivências, que não se trata de um retorno, de um regresso a um contexto e a uma determinada forma de operar a educação, tanto no âmbito pedagógico quanto no âmbito da gestão, desenvolvidas antes da pandemia da Covid-19, uma vez que já não somos os mesmos, e a educação e o mundo tampouco o são. Entendemos, ainda, que as aprendizagens desenvolvidas nesse tempo estão para além da proposição de um novo modelo ou um novo “normal”, uma vez que são potentes para nos instigar a um pensar diferente, divergente, disruptivo, reticular e conectivo na Educação.
Essas novas formas de pensar estão em diferentes contextos, os quais frente à impossibilidade de um mundo com deslocamentos físicos nos espaços geográficos não só buscaram formas de solucionar/resolver um problema imediato, mas (re)inventaram-se na potência da digitalidade e da conectividade.
Contudo, como a solução/resolução de problemas se diferencia da invenção de problemas? Como pensar a educação não somente a partir da resolução de problemas, mas da invenção? O que seria um pensar diferente, divergente, disruptivo, reticular e conectivo no âmbito da gestão das instituições educacionais e dos processos de ensino e de aprendizagem?
A solução/resolução de problemas trabalha com um nível de atenção à vida pragmática, ao cotidiano, utilitária, àquilo que nos acontece no dia a dia (KASTRUP, 2015). Frequentemente, numa perspectiva de “apagar incêndio”, como se fala corriqueiramente. Nesse contexto, a busca por formas de solucionar/resolver um dado problema pode seguir um percurso mais ou menos criativo, dependendo do conjunto de competências, habilidades e conhecimentos que um indivíduo, grupo ou instituição envolvida com o problema tem desenvolvido. No âmbito da solução/resolução de problemas está parte significativa das propostas/modelos, metodologias e práticas pedagógicas até então desenvolvidas no contexto da Educação, tais como os modelos apresentados no ponto anterior e o modelo de ensino híbrido, as metodologias ativas e as práticas que delas derivam.
O Ensino Híbrido, conceito inicialmente apresentado por Christensen, Horn e Staker (2013), vem ganhando força nos últimos anos, especialmente agora, quando se faz necessário pensar a Educação pós-pandemia. A perspectiva trazida por esses autores e seus seguidores se desenvolve a partir de uma visão de mundo antropocêntrica, fundamentada na teoria da ação do humano e na perspectiva de ensino orientando docentes por meio de técnicas, ora tratado como modelo, método ou ainda metodologia, centrados na solução/resolução de problemas. Na mesma linha, Horn e Staker (2015) propõem o modelo de ensino híbrido disruptivo, citando o modelo flex, o modelo à la carte, o modelo virtual enriquecido. No modelo flex, predomina a modalidade de ensino online com alguns encontros presenciais físicos. No modelo à la carte, a modalidade de ensino é totalmente online, e os alunos escolhem o que desejam cursar. No modelo virtual enriquecido, a modalidade de ensino presencial é obrigatória, podendo ser complementada pela modalidade online. Opera-se na lógica da divisão de encontros presenciais e online, tendo variabilidade no percentual de ambos conforme o progresso do aluno.
As metodologias ativas, fundamentadas especialmente nos estudos de John Dewey, têm como foco a aprendizagem ativa dos alunos e, nesse sentido, igualmente se desenvolvem a partir de uma visão de mundo antropocêntrica, fundamentada na teoria da ação do humano. Na literatura, são definidas ora como estratégias de ensino, ora como ferramentas didáticas de solução/resolução de problemas centradas no aluno, ou seja, na sua ação/atividade na construção da aprendizagem de forma flexível, interligada e híbrida buscando a personalização do ensino. Dentre as principais metodologias ativas citadas por diferentes autores da área estão: aprendizagem baseada em problemas, aprendizagem baseada em projetos, aprendizagem em pares, estudo de caso, design thinking, webquest, sendo que alguns autores referem o ensino híbrido também como uma metodologia ativa.
Enquanto a solução/resolução de problemas trabalha, conforme apresentado acima, com um nível de atenção à vida pragmática, ao cotidiano, àquilo que nos acontece no dia a dia (KASTRUP, 2015), a invenção de problemas trabalha com um nível de atenção suplementar à duração, ao percurso (KASTRUP, 2015). Dessa forma, implica um certo jogo entre a atenção e a desatenção, uma atenção por vezes flutuante (FREUD, 2017), que instiga um certo flâneur (BENJAMIN, 1989).
A palavra invenção, de origem latina - invenire -, significa compor com restos arqueológicos, garimpar, tendo como resultado o imprevisível, a problematização. Pensar a invenção, segundo Kastrup (2019), implica compreendê-la não como um processo cognitivo especial, como são a memória, o raciocínio, a percepção, a linguagem, a aprendizagem, mas entendê-la como certo modo de colocar o problema da cognição. Dessa forma, segundo essa autora, é possível falar de uma percepção inventiva, de uma memória inventiva, de uma linguagem inventiva, de uma aprendizagem inventiva. A invenção é, então, um certo modo de colocar o problema que vai se desdobrar em diferentes processos, e não um processo cognitivo em si mesmo. É a potência que a cognição tem de diferir de si mesma. Esse processo de diferenciação de si é o que ocorre durante a aprendizagem, em qualquer idade, é também o que acontece durante um processo de pesquisa, quanto estamos inventando um problema de investigação. A perspectiva da invenção questiona, problematiza a concepção, o modelo da representação, a ideia de que o conhecimento é uma relação entre sujeito e objeto, sendo ambos previamente existentes. Na perspectiva da invenção, conhecer é um processo de invenção de si e do mundo e, portanto, distinto da compreensão de conhecimento enquanto representação.
Conhecer é inventar um mundo e inventar-se a si mesmo. Uma atividade criadora sempre em devir e não uma adaptação a um ambiente dado, um adequar-se, tampouco é a obtenção de um saber. Conhecer é experimentação, agenciamento com o mundo e, assim, invenção de si e do mundo. É o que se dá no acoplamento direto, eliminando o intermediário da representação. Ora, se conhecer é o que se dá no acoplamento direto, isso significa dizer que, para além de ação (teoria da ação), é ato conectivo entre entidades distintas, humanas e não humanas. O conhecer, nesse contexto, seria não somente a variação da ontogenia do humano em congruência com as variações do meio, mas a variação da ontogenia do humano em ato conectivo com diferentes entidades não humanas em movimento, o que nos permite falar em ecologias inteligentes.
Nesse contexto, aprendizagem não é um processo que se dá por acúmulo ou perdas, mas por redes conectivas que se constituem por atos conectivos transorgânicos, portanto entre entidades humanas e não humanas. O que pode ser compreendido, a partir de Kastrup (2015), como uma aprendizagem por cultivo - atualização de uma virtualidade ganhando sentido de virtualização -, cognição inventiva. Cultivo esse que, a partir de Di Felice (2017), pode ser compreendido como resultante de atos conectivos transorgânicos, constituindo ecologias de redes. Aprender seria, então, eliminar distâncias, o que põe fim ao dualismo sujeito-objeto, a um suposto determinismo do sujeito (indivíduo) e do objeto (ambiente). Aprender é antes de tudo ser capaz de problematizar, ser sensível às variações materiais que tem lugar em nossa cognição presente (KASTRUP, 2015). Há aprendizagem quando o conhecimento se corporifica na ação: “A corporificação do conhecimento inclui, portanto, acoplamentos sociais, inclusive linguísticos, o que significa que o corpo não é apenas uma entidade biológica, mas é capaz de se inscrever e se marcar histórica e culturalmente” (KASTRUP, 2015, p. 103). A partir de Di Felice (2020), problematizamos a compreensão de uma teoria da ação, uma vez que compreendemos que numa realidade hiperconectada, no lugar da ação, atribuída somente ao humano, o que temos é o ato conectivo, constituído entre entidades humanas e não humanas, portanto, não centralizado em um ator/entidade, mas rede.
Para Kastrup (1999), não há distinção conceitual significativa entre criação e invenção, mas há profunda diferença entre os conceitos de invenção e de criatividade. A criatividade é uma função da inteligência. Trata-se, portanto, de uma habilidade e de um desempenho e visa à invenção de soluções originais para problemas existentes. A invenção não é solução de problemas, mas “invenção de problemas”, o que implica na experiência de problematização como parte do processo de conhecer. A invenção de problemas se constrói a partir dos rastros e pistas num percurso inventivo. Enquanto a criatividade é a capacidade de produzir soluções originais para problemas existentes, portanto uma habilidade cognitiva que pode ser desenvolvida, a invenção é a potência da cognição, portanto, sempre invenção do novo, dotada de imprevisibilidade.
No âmbito da invenção de problemas pensamos não em modelos, mas em diferentes desenhos educacionais que se constituem no contexto da Educação Híbrida, em metodologias inventivas, em práticas pedagógicas simpoiéticas, inventivas e gamificadas.
A Educação Híbrida é um conceito que vem sendo construído, desde 2005, ao longo do movimento da tríade pesquisa-desenvolvimento-formação, desenvolvido pelo Grupo de Pesquisa Educação Digital (GPe-dU) em diferentes contextos, desde a Educação Básica até a Pós-graduação Stricto Sensu. O conceito emerge mais especificamente do entrecruzamento da tecnologia-conceito espaço de convivência (ensino e aprendizagem) híbridos e multimodais (ECHIM) (SCHLEMMER, 2014), entendendo o híbrido a partir de Latour (1994, 2012) e da cognição inventiva (KASTRUP, 2015), na perspectiva das epistemologias reticulares e conectivas, num habitar atópico (DI FELICE, 2012). Relaciona-se, portanto, às transformações digitais e novas abordagens das ciências cognitivas, desde uma perspectiva epistemológica reticular e conectiva, na qual a teoria da ação dá lugar ao ato conectivo, transformando as condições habitativas - que se constituem enquanto atópicas e a própria compreensão do humano.
O termo “híbrido”, do grego hybris, significa miscigenação ou mistura, algo que ultrapassa fronteiras e que viola as leis naturais. Do latim hybrida ou híbrida, significa o resultado do cruzamento entre espécies, raças, variedades ou gêneros distintos. Esse resultado é um terceiro que emerge deste cruzamento ou entrecruzamento, que pode ter as características de cada elemento inicial reforçadas ou reduzidas. No contexto da biologia, especificamente na genética, o híbrido resulta em um terceiro que normalmente é estéril. Também é compreendido como híbrido o que participa de dois ou mais conjuntos, gêneros ou estilos. O híbrido ganhou destaque a partir de Darwin, em 1859, e desde então vem sendo apropriado e ressignificado por diferentes campos do saber, em uma polifonia de significados.
A compreensão de híbrido no âmbito da educação é elaborada por Schlemmer e outros (2006), vinculada à tecnologia-conceito Espaço de Convivência Digital Virtual (ECODI).1 Naquele momento, o híbrido significava a mistura de diferentes tecnologias digitais (TD) - AVA, Mundo Virtual em 3D, Agente Comunicativa e Tecnologias da Web 2.0) -, as quais potencializavam a mistura de distintas formas de comunicação, por meio das linguagens textual, oral, gestual e gráfica, na constituição de um espaço de convivência que emergia do fluxo de comunicação e interação entre os sujeitos presentes naquele espaço, e do fluxo de interação entre os sujeitos e o meio, ou seja, o próprio espaço tecnológico digital hibridizado. Um ECODI pressupunha, então, um tipo de possibilidade de interação entre os habitantes (considerando sua ontogenia) em congruência com aquele espaço, configurando-se de forma colaborativa e cooperativa, por meio do viver e conviver.
Conforme a tríade pesquisa-desenvolvimento-formação foi se desenvolvendo, o conceito também foi se modificando e, em 2014, se amplia para tecnologia-conceito Espaço de Convivência (Ensino e Aprendizagem) Híbrido e Multimodal (ECHIM).2 Nesse contexto, a compreensão de híbrido se amplia, contemplando, além das tecnologias digitais, as analógicas; diferentes tipos de presença (física, telepresença, presença digital - por perfil, prop, avatar e personagem); espaços (geográfico e digital), tempos (síncrono e assíncrono), culturas (pré-digitais e digitais), num contexto multimodal no qual a modalidade presencial física se hibridiza com a modalidade online, podendo contemplar o mobile learning, o immersive learning e o gamification learning. Segundo Schlemmer (2014), estudantes que participaram da pesquisa referiram que o melhor espaço/ambiente para a aprendizagem seria aquele que pudesse reunir/integrar experiências como as que vivenciaram no “Laboratório de Anatomia Humana 3D - LAH3D”, tecnologias móveis, o laboratório de anatomia humana e a sala de aula (espaços geográficos) com os diferentes materiais que já faziam uso, tais como atlas, livros e outros (tecnologias analógicas). Outro resultado importante da pesquisa se refere ao engajamento dos estudantes, que foi atribuído por eles à possibilidade de diferentes formas de estar presente e à imersão nos diferentes sistemas do corpo humano modelados em 3D, aos quais estavam associados mapas sensitivos e desafios, levando-os a uma comparação com o que acontece nos jogos. Esse retorno fornecido pelos estudantes apontou para a ampliação do conceito de híbrido quanto à presença e à multimodalidade, bem como para o potencial dos games e da gamificação na educação, exigindo novos elementos teóricos. A necessidade de ampliar a compreensão do conceito de híbrido nos levou a Latour (1994, 2012). Segundo esse autor, o híbrido se constitui por múltiplas matrizes, misturas em que uma matriz não pode ser explicada sem a outra. O híbrido pressupõe a não-separação entre natureza, técnica e cultura, entre humano e não-humano, os quais são explicados por meio das relações; os híbridos emergem como intermediários entre elementos heterogêneos, sendo objetivos e subjetivos, individuais e coletivos. São formas que “se conectam ao mesmo tempo à natureza das coisas e ao contexto social, sem, contudo, reduzir-se nem a uma coisa nem a outra” (LATOUR, 1994, p. 11). Ora, se uma matriz não pode ser explicada sem a outra, se o híbrido pressupõe a não separação entre natureza, técnica e cultura, entre humanos e não humanos, isso significa dizer que não se trata de uma simples mistura por adição ou justaposição, mas, sim, de algo novo que emerge no/do coengendramento, no/do acoplamento, enquanto agenciamento entre diferentes elementos e entidades humanas e não humanas.
Associada à necessidade de ampliar o conceito de hibridismo estava a necessidade de melhor entender a potência dos games e da gamificação na educação. Assim, a tecnologia-conceito ECHIM foi sendo aprofundada e modificada em pesquisas posteriores (SCHLEMMER, 2016, 2017), as quais deram origem ao desenvolvimento do Alternate Reality Game (ARG) Fantasma no Museu, do Mobile-Ubiquitous-Pervasive Extended Reality Game (MUP-ERG) In Vino Veritas®, entre outros. Destes surgiram novas problematizações, principalmente relacionadas à potencialidade que a Realidade Aumentada, marcadores, geolocalização aportavam para o contexto dos jogos e da gamficação na educação, ampliando ainda mais a nossa compreensão de hibridismo, especialmente no âmbito da multimodalidade, acrescentando às anteriormente citadas o gamed based learning, o pervasive learning e o ubiquitous learning.
É importante mencionar que as pesquisas até então desenvolvidas se ocupavam em criar ambientes digitais virtuais e mundos digitais virtuais em 3D (metaversos), ou, ainda, hibridizar diferentes TD atores não humanos (ANH), nas quais os atores humanos (AH), representados por perfis, personagens e/ou avatares (ANH) tinham uma forma de presença e, portanto, podiam e-habitar esses espaços. Já as pesquisas posteriores, que deram origem ao ARG Fantasma no Museu, MUP-ERG In Vino Veritas®, conforme referido anteriormente, possibilitaram o movimento contrário: no lugar de criar um ambiente sintético (ANH) e colocar o sujeitos (AH) nesse contexto, representados por avatar, personagem, perfil (ANH), se ocuparam de imputar TD (ANH) no mundo natural, geograficamente localizado, por meio de Realidade Misturada, Realidade Aumentada, tecnologias de geolocalização, tecnologias de identificação e sensores, ampliando, assim, o mundo natural dos sujeitos (AH). Essas duas possibilidades coengendradas potencializam o acoplamento,3 enquanto agenciamento4 entre AH e ANH numa condição habitativa atópica,5 potenciando a cognição inventiva.6
Tanto o Fantasma no Museu, em um contexto de mobilidade restrito geograficamente a um Museu, quanto o do In Vino Veritas®, em um contexto de mobilidade ampliada para a cidade, forneceram pistas sobre a potência do hibridismo, principalmente relacionados ao espaço-tecnologias-modalidades para a Educação. Dessa forma, as pesquisas-desenvolvimento-formação que se sucederam (SCHLEMMER, 2020b 2020c), o que inclui o MUP-ERG Ágora do Saber, contribuíram para a construção do conceito de Educação Híbrida e Multimodal. Esse conceito sofreu alterações, uma vez que a multimodalidade passou a ser compreendida, também, como um dos elementos do hibridismo, sendo, então, subsumida no conceito de Educação Híbrida.
A Educação Híbrida, conceito que vai se construindo ao longo da tríade pesquisa-desenvolvimento-formação, que envolve elaborações epistemológicas-teóricas-metodológicas e tecnológicas, conforme referido anteriormente, consiste então em processos de ensino e de aprendizagem constituídos por atos conectivos transorgânicos (DI FELICE, 2017) que tecem redes entre entidades humanas e não humanas, numa perspectiva simpoiética (HARAWAY, 2016) (cocriação, de cotransformação). Esse movimento constitui a potência de um terceiro elemento, algo novo, um híbrido que emerge no/do imbricamento/acoplamento/coengendramento, enquanto agenciamento, entre diferentes elementos e entidades que o compõem. Essa compreensão implica na superação de uma teoria da ação, herdada de uma visão de mundo antropocêntrica, sujeitocêntrica e dualista, bem como da superação da compreensão de híbrido enquanto simples mistura por adição ou justaposição. No âmbito da Educação Híbrida, o processo educativo vai se construindo então nesse imbricamento/acoplamento/coengendramento de:
- espaços (geográficos e digitais), incluindo o próprio espaço híbrido;
- tecnologias (analógicas e digitais) que juntas favoreçam a presença, a comunicação e o ato conectivo entre entidades humanas e não humanas;
- presenças (física, digital - perfil, personagem, avatar, prop, por webcam ou ainda por holograma), com presenças digitais de entidades não humanas, tais como: autômatos, agentes comunicativos, NPC, dentre outros, portanto, presenças plurais;
- linguagens (textual, oral, gestual, gráfica, computacional, metafórica);
- tempos (síncronos e assíncronos);
- modalidades presencial física e online, podendo hibridizar Electronic Learning, Mobile Learning, Pervasive Learning, Ubiquous Learning, Immersive Learning, Gamification Learning e Game Based Learning. Dessa forma, constitui uma outra forma de pensar e fazer educação e;
- culturas (digitais, pré-digitais, tribais, eruditas, dentre outras).
O processo desse imbricamento/acoplamento/coengendramento constitui-se enquanto fenômeno indissociável, uma rede que interliga naturezas, técnicas e culturas, produzida na hibridização do mundo biológico, do mundo físico e do digital, em uma realidade hiperconectada. Desse processo que constitui o hibridismo emergem as metodologias inventivas (SCHLEMMER, 2018) e as práticas pedagógicas simpoiéticas, inventivas e gamificadas (SCHLEMMER, 2020d), cocriadas em um percurso que implica também em desenvolvimento tecnológico-digital.7
As metodologias inventivas são construídas, segundo Schlemmer (2018, 2020d), a partir de elementos teóricos presentes na Epistemologia Reticular e Conectiva, em um habitar atópico (DI FELICE, 2009, 2012, 2017), na Cognição Inventiva proposta por Kastrup, Tedesco e Passos (2015) e no método cartográfico de pesquisa-intervenção proposto por Passos, Kastrup e Escóssia (2009) e por Passos, Kastrup e Tedesco (2014). O termo metodologia, nesse contexto, é compreendido, a partir do grego, como investigação científica, modo de perguntar de instigar, ato de ir em busca. Segundo Passos e Barros (2015, p. 17), “primado do caminhar que traça, no percurso, suas metas”, entendendo meta como reflexão, raciocínio. Trata-se, no percurso, das pistas que podem orientar o ato de ir em busca. É a partir dessa compreensão que entendemos que uma metodologia pode ser inventiva.
Ao nos referirmos às metodologias como inventivas, estabelecemos uma diferenciação em relação à compreensão de metodologia ativa, na qual a ideia de sujeito ativo é frequentemente reduzida a um método que provoca a atividade do sujeito, no entanto, muitas vezes restrito à forma reativa, como se o movimento, a atividade, bastasse. Essa diferenciação também se apresenta em relação às metodologias ativas problematizadoras (SCHLEMMER, 2002), ao considerar que embora sejam problematizadoras, nem sempre conseguem ativar o sujeito, no sentido de inquietar, de instigar, de provocar a pergunta, uma vez que trabalham no nível da resolução de problemas, o que pode acionar a criatividade, no sentido de buscar soluções inovadoras para um problema já existente (ativa a atenção pragmática, relacionada ao que ocorre no dia a dia), mas não, necessariamente, a inventividade, que consiste, sobretudo, em inventar problemas (ativa a atenção suplementar, relacionada à duração, ao percurso). É importante considerar ainda que tanto as metodologias ativas quanto as metodologias ativas problematizadoras têm como pressuposto uma teoria da ação e, portanto, se assentam sobre uma visão antropocêntrica e sujeitocêntrica, o que é qualitativamente distinto do pressuposto do ato conectivo (DI FELICE, 2013). “Em lugar da ação de sujeitos e atores humanos, o ato realiza-se por meio da conectividade fértil de diversos actantes e interagentes, humanos e não” (DI FELICE, 2013, p. 68).
Dessa forma, as metodologias inventivas diferenciam-se significativamente das demais, ao se desenvolverem enquanto percurso investigativo, orientado por pistas, num processo inventivo que vai se constituindo por atos conectivos transorgânicos. Papert (1980, p. 143), em 1980, referia que “a descoberta não pode ser preparada; a invenção não pode ser planejada”. Talvez a palavra que mais se adapte ao que estamos vivendo seja “bricolage”, que Papert (1994) pega emprestado do antropólogo Lévi-Strauss para se referir a uma metodologia para a atividade intelectual que tem como princípios: use o que você tem, improvise, vire-se. Entre as metodologias inventivas desenvolvidas pelo GPe-dU estão os Projetos de Aprendizagem Gamificados (SCHLEMMER, 2018) e o Relicário Ecológico, em desenvolvimento.
As Práticas Pedagógicas Simpoiéticas, Inventivas e Gamificadas são construídas, segundo Schlemmer (2020d), a partir do entendimento de prática pedagógica como um saber-fazer que compreende toda a ação docente que tem intencionalidade pedagógica, uma ação consciente, reflexiva, que se constitui na participação discente, emergindo da multidimensionalidade do ato educativo. Portanto consiste em práticas sociais que se desenvolvem na conexão dos processos de ensino e de aprendizagem, efetivando-os.
Essas práticas pedagógicas podem ser denominadas simpoiéticas na medida em que se desenvolvem dentro de uma rede de conexões, enquanto processos de cocriação, um fazer-com, o que implica cotransformação das diferentes entidades que se engendram, se agenciam, se inventam. De acordo com Haraway (2016a, p. 58), “sympoiesis é uma palavra própria para sistemas históricos complexos, dinâmicos, responsivos, situados”. Significa produzir-mundo-com, um comundo, em companhia. “Nada faz a si mesmo; nada é realmente autopoiético ou auto-organizado. Nas palavras do ‘jogo mundial’ de computador inupiat,8 seres da terra nunca estão sozinhos. Esta é a implicação radical da simpoiese. Simpoiese envolve a autopoiese e generativamente a desdobra e estende” (HARAWAY, 2016a, p. 58). Haraway (2016b) refere que o conceito de simpoieses não exclui o conceito de autopoieses. Enquanto simpoieses tem o foco na produção coletiva, a autopoiese tem o foco na autoprodução, ou seja, trata-se de formas distintas e complementares de abordar os seres vivos.
Nessa perspectiva de produzir-mundo-com está a invenção, conforme explicitada anteriormente, que se vincula, também, com a gamificação. Dessa forma, uma prática pedagógica simpoiética, inventiva e gamificada refere-se à qualidade conectiva e não autocentrada de todas as entidades. São práticas desenvolvidas em rede, que implicam num habitar atópico e que, a partir da experiência da problematização, instiga a inventividade, trazendo também elementos presentes nos games (gamificação) de forma a provocar a imersão, o engajamento, a fim de produzir algum tipo de intervenção em contexto. Entre as práticas pedagógicas simpoiéticas, inventivas e gamificiadas, muitas têm como característica serem também imersivas e intervencionistas, no sentido de provocar uma imersão e uma intervenção no contexto da qual se originam; é possível citar: o Mobile/Ubiquitous/Pervasive Extended Reality Gamification (MUP-ERG), Contextual Hybrid Escape (CHE), Rastros Urbanos e Pós-Urbanos (RuPu), Escape, Computational Thinking and Traces (EsC-Traces), Competences Power Hybrid Card Game, A Máquina do Sr. Nindberg, iMERGE (Inventive iMmERsive Gamification Experience), MoveOnCibricity, Aventuras de Dom Quixote, Lá e de Volta Outra Vez: A Sociedade Cíbrida do Conhecimento, Missão Sherlock Holmes e Missão MacGyver e ConectaKaTChing.
Foi no experienciar da Educação Híbrida, no âmbito das metodologias inventivas e das práticas pedagógicas simpoiéticas, inventivas e gamificadas, desenvolvidas e validadas em diferentes contextos e níveis educacionais, as quais demandaram novos elementos teóricos, que o conceito de Educação OnLIFE foi se constituindo.
Esses novos elementos teóricos e/ou aprofundamento de elementos já presentes no conceito de Educação Híbrida, segundo Schlemmer (2021), referem-se especialmente ao conceito de simbiota e aprendizagem enquanto mestiçagem, invenção (SERRES, 1990a, 1990b, 1993, 1999, 2013, 2015, 2017), o qual compõe com o conceito de cognição inventiva (KASTRUP, 2015); ato conectivo transorgânico, transubstanciação e habitar atópico (DI FELICE, 2009, 2017); sociedade onlife (FLORIDI, 2015); hipercomplexidade (MORIN, 1998) e simpoiesis (HARAWAY, 2014, 2015, 2016a, 2016b). Esses conceitos, articulados às construções anteriores, têm contribuído para que possamos melhor compreender os novos habitares do ensinar e do aprender numa realidade hiperconectada.
Assim, de acordo com Schlemmer (2021), a produção no âmbito da tríade pesquisa-desenvolvimento-formação do GPe-dU, aliada a: 1) as experiências educacionais vivenciadas durante a pandemia; 2) os questionamentos que se originam dessas vivências; e 3) o crescente processo de hibridização do mundo físico, do mundo biológico e do mundo digital, provocaram a emersão de uma realidade educacional hiperconectada, potencializaram a emergência do conceito de educação OnLIFE.
Uma educação que se faz ligada, conectada (On) na vida (LIFE), portanto, que se desenvolve a partir das problematizações do mundo presente, em um contexto de inventividade nesse hibridismo do mundo físico, do mundo biológico e do mundo digital, que potencia a emergência de realidades hiperconectadas. Nesse contexto, a digitalidade e a conectividade, para além de se constituírem enquanto tecnologias da inteligência (LÉVY, 1999), passam a ser compreendidas enquanto forças ambientais (FLORIDI, 2015) e, ainda, enquanto potências, que pelo ato conectivo transorgânico, conectam inteligências diversas (DI FELICE, 2017).
A partir dessa compreensão, a digitalidade e a conectividade provocam a emergência de novos elementos epsitemológicos-teóricos-metodológicos que precisam ser traduzidos na arquitetura educacional, envolvendo as pedagogias, o currículo, os conteúdos, as metodologias, práticas, os quais têm rebatimento na estrutura física e espaço-temporal. Dessa forma, conforme Schlemmer (2021), a digitalidade e a conectividade têm a potência de provocar alteração, qualitativamente, do estatuto da natureza e da condição habitativa dos processos de ensinar e de aprender. A educação sofreria, então, um processo de transubstanciação (DI FELICE, 2017) e não de transposição (transferir, mudar de lugar), como temos observado durante o período de pandemia, com o ensino remoto emergencial; e de simultaneidade e de mistura, como propõem as Aulas Simultâneas ou o Modelo Hybrid Flex. Ambas as propostas operam a partir de uma visão antropocêntrica do mundo, na lógica ora sujeitocêntrica, ora objetocêntrica, vinculada ao binômio sujeito-objeto e à centralidade, algumas no conteúdo e no professor, outras no estudante, priorizando a personalização do ensino, em uma proposta de solução/resolução de problemas. O que predomina, em todas elas, é a concepção sociotécnica, sendo “sócio” entendido como reunião/agregação exclusivamente humana e “técnica” como algo separado, que então se agrega ao “sócio”. Como nos chama atenção Di Felice (2017, 2020), não estamos mais numa interação somente entre humanos e técnica, mas entre inteligências, por isso não mais sociotécnica, mas um habitar redes, conectivo, atópico, numa perspectiva ecológica complexa.
Entende-se, por Educação OnLIFE, uma educação transubstanciada e cibricidadã,9 ligada, conectada (On) na vida (LIFE), a partir de problematizações que emergem do tempo presente, nessa realidade hiperconectada. Implica, portanto, uma perspectiva ecológica complexa e conectiva, na qual a própria substância das materialidades de espaços, conteúdos, práticas e sujeitos é alterada, para dados.10 Isso não significa, no entanto, que esses elementos percam suas substâncias originais, mas sim, que pela digitalização, sofrem um processo de transubstanciação, que nos instiga a inventividade, em composições híbridas para o desenvolvimento sustentável e transformação social. (SCHLEMMER, 2021 p. 21).
Dessa forma, conforme referem Schlemmer (2021), o habitar do ensinar e do aprender na contemporaneidade está ligado ao infovíduo (DI FELICE, 2016), à infoterritorialidade, conectada por inúmeras superfícies (IoT) que habitam o nosso habitar enquanto informações (analógicas e digitais) e, portanto, participam das nossas escolhas, produções, criações, do viver e do conviver.
Considerações Finais
O processo pelo qual a Educação está passando com o Ensino Remoto Emergencial e, mais recentemente, com as Aulas Simultâneas ou o Modelo Hybrid Flex parece indicar uma forte vinculação à digitalização, que mantém a forma de operar pré-digital. A digitalização é observada quando, por exemplo, um mesmo texto, imagem produzida em átomo, é convertido em bit (digital), quando planos de aula, chamadas, tarefas, testes e provas são “transferidas” para o digital. Isso parece justificar a proposta trazida pelo Modelo Hybrid Flex, que propõe que o mesmo curso ofertado na modalidade presencial física seja simultaneamente ofertado na modalidade online, podendo o estudante escolher a forma de participação, que pode ser ora presencial física, ora online síncrono ou, ainda, online assíncrono, podendo variar de aula para aula, mês ou módulo. No campo da educação, a digitalização é evidenciada pelas transposições didático-pedagógicas. Nesse contexto, antigas práticas e metodologias, bem como a organização dos currículos e cursos, se perpetuam no digital. O processo de digitalidade, por outro lado, implica nova forma de operar que emerge de um pensar digital, em rede, portanto, de outra natureza, conectiva e reticular, o que instiga a invenção. A digitalidade implica em pensar, criar, inventar, não pressupondo modelos a serem seguidos, mas instigando a criação de desenhos distintos, a partir da natureza específica que é transorgânica e, portanto, possibilita a transubstanciação. Para além disso, o Ensino Emergencial Remoto, as Aulas Simultâneas ou o Modelo Hybrid Flex são propostas que se desenvolvem no nível da resolução de problemas, o que corresponde a um nível de atenção à vida pragmática. Entretanto, compreendemos que o que precisamos na educação não é transmitir online a forma costumeira de operar o ensino ou, ainda, misturar espaços, tecnologias, metodologias e práticas, mas, justamente, pelo processo de hibridização, transformar, fazer emergir um terceiro, inventar novas formas de operar, criar novos desenhos, metodologias, práticas, ou seja, precisamos de um processo de transubstanciação na Educação, e isso exige mais do que trabalhar no nível da resolução de problemas, implica invenção.
Dessa forma, precisamos compreender que a pandemia da Covid-19, enquanto problematização do tempo presente, para além de instigar a resolução de problemas, o que resultou nas proposições de Ensino Emergencial Remoto, Aulas Simultâneas e Modelo Hybrid Flex, implicou na invenção de problemas, potencializando, assim, a emergência da Educação Híbrida e Multimodal e da Educação OnLIFE.