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Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade

versão impressa ISSN 0104-7043versão On-line ISSN 2358-0194

Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade vol.31 no.65 Salvador jan./mar 2022  Epub 25-Out-2022

https://doi.org/10.21879/faeeba2358-0194.2022.v31.n65.p243-260 

ESTUDOS

EDUCAÇÃO E TECNOLOGIAS CONTEMPORÂNEAS: NARRATIVAS DIGITAIS DE JOVENS EM VÍDEO-CARTAS

EDUCATION AND CONTEMPORARY TECHNOLOGIES: DIGITAL NARRATIVES FOR YOUNG PEOPLE IN VIDEO-LETTERS

EDUCACIÓN Y TECNOLOGÍAS CONTEMPORÁNEAS: NARRATIVAS DIGITALES DE JÓVENES EN VIDEOCARTAS

Ercilia Maria Angeli Teixeira de Paula*  Universidade Estadual de Maringá
http://orcid.org/0000-0002-8619-7558

Augusto Cesar Rios Leiro**  Universidade do Estado da Bahia
http://orcid.org/0000-0002-6075-5187

*Pós-Doutora pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB), Doutora em Educação pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), mestre em Educação pela Universidade de São Paulo (USP) e pedagoga pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). É professora da Universidade Estadual de Maringá e do Programa de Pós-Graduação em Educação desta universidade (UEM). É membro do Grupo de Estudos em Formação do Educador, Comunicação e Memória (FECOM) da UNEB e líder do Grupo de Estudos e Pesquisa de Educação Social em Saúde (GEPESS)- UEM. Maringá, Paraná, Brasil. E-mail: ematpaula@uem.br

**Doutor em Educação pela Universidade Federal da Bahia (UFBA)/Universidade de Lisboa (UL), mestre em Educação pela UFBA e licenciado em Educação Física pela Universidade Católica do Salvador (UCSal). Professor na Universidade do Estado da Bahia (UNEB) e Professor na Universidade Federal da Bahia (UFBA) da graduação e pós graduação em Educação. É líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Mídia/memória, Educação e Lazer (MEL) da UFBA e na UNEB, é líder do Grupo de Estudos em Formação do Educador, Comunicação e Memória (FECOM). Salvador, Bahia, Brasil. E-mail: cesarrleiro@gmail.com.


RESUMO

O artigo em revista é um recorte de uma pesquisa em curso e elege as narrativas digitais, as vídeo-cartas e as juventudes como categorias teóricas centrais. Intenta analisar as repercussões das vídeo-cartas produzidas por jovens no âmbito da educação. A escrita em tela inicialmente descreve quatro projetos de vídeo-cartas de jovens e discute suas formas de expressão mediadas pela tecnologia. A trilha metodológica contou com uma revisão de literatura sobre narrativas digitais, vídeo-cartas e projetos de vídeo-cartas. Os resultados da revisão de literatura deste artigo revelam que a produção acadêmica sobre narrativas digitais e vídeo-cartas são recentes no Brasil, como os estudos Kieling (2012), Rodrigues (2020), Ruiz (2009) e Dultra (2018). Quanto aos projetos analisados, as vídeo-cartas mostraram que as narrativas digitais dos jovens, tomados aqui como sujeitos históricos e singulares (LEIRO, 2004), trazem reflexões subjetivas sobre suas vidas, concorrem para ressignificação das cartas tradicionais e indicam novos tempos no entrecruzamento da educação com as tecnologias contemporâneas.

Palavras-chave: Educação; Comunicação; Juventudes

ABSTRACT

This article is an excerpt of an ongoing research and chooses the digital narratives, the video-letters and youth as central theoretical categories. The study intends to analyze the repercussions of video-letters produced by young people within the context of education. This work describes four video-letters projects made by young people and discusses their forms of expression mediated by technology. The methodology of this article is composed by the review of literature on digital narratives, video-letters and video-letters projects. The results of the review of literature of this article reveal that the academic production on digital narratives and video-letters are recent in Brazil, for instance the Kieling studies (2012), Rodrigues (2020), Ruiz (2009) and Dultra (2019). Regarding the analyzed projects, the video-letters show that the digital narratives of the young people, considered here as historical and singular subjects (LEIRO, 2004), bring subjective reflections about their lives, contribute to the redefinition of traditional letters and indicate new times in the intersecting of education with contemporary technologies.

Keywords: Education; Communication; Youth

RESUMEN

El artículo objeto de revisión es una sección de una investigación en curso y elige las narrativas digitales, las video cartas y la juventud como categorías teóricas centrales. Se propone analizar la repercusión de las video cartas producidas por los jóvenes en el ámbito de la educación. La escritura en pantalla describe inicialmente cuatro proyectos de video cartas de jóvenes y analiza sus formas de expresión mediada por la tecnología. La vía metodológica incluyó una revisión de la literatura sobre narrativas digitales, las vídeo cartas y proyectos de de videos cartas. Los resultados de la revisión bibliográfica de este artículo revelan que la producción académica sobre las narrativas digitales y las vídeos cartas son recientes en Brasil, como los estúdios de Kieling (2012), Rodrigues (2020), Ruiz (2009) y Dultra (2018). En cuanto a los proyectos analizados, las video cartas mostraron que las narrativas digitales de los jóvenes, tomados aquí como sujetos históricos y singulares, Leiro (2004), traen reflejos subjetivos sobre sus vidas, contribuyen a la resignificación de las letras tradicionales e indican nuevos tiempos en la encrucijada de la educación con las tecnologías contemporáneas.

Palabras clave: Educación; Comunicación; Jóvenes

Introdução1

Durante muitos anos, as cartas escritas à mão foram os recursos de comunicação mais utilizados em todo mundo. A entrega de cartas para as pessoas em suas casas e o longo período de espera por mensagens já não são mais situações vivenciadas em muitos locais, no Brasil e no mundo. As tecnologias abreviaram o tempo de espera das mensagens e encurtaram as distâncias geográficas. Com o avanço das tecnologias, a escrita e as trocas de cartas pelo correio foram desaparecendo. Os e-mails, as redes sociais e as vídeos-cartas postadas na internet trouxeram diferentes formas de comunicação, e as cartas assumiram características diversas. As comunicações pelas mídias inovaram a maneira de as pessoas interagirem e trouxeram novas formas de educar.

Na Educação Básica do Brasil, a maioria dos professores ensina o gênero textual carta na disciplina de língua portuguesa. Em relação ao Ensino Médio, os professores trabalham, predominantemente, com a produção de cartas para as redações dos exames de vestibular. Geralmente, as cartas são solicitadas para avaliar a capacidade de escrita dos estudantes e a forma como compreendem o mundo. Já no Ensino Superior, são raros os casos e as situações em que os professores trabalham a elaboração de cartas com seus alunos. Todavia, mesmo que incipientes, em algumas escolas existem projetos que têm buscado inserir as cartas no cotidiano do ensino, tanto as cartas escritas e enviadas pelo correio quanto as vídeo-cartas postadas na internet. Esses projetos configuram estratégias de comunicação e educação através da troca de correspondência entre escolas e estudantes.

A arte da escrita é um desafio para muitos estudantes e professores. O trabalho com jovens, que convivem desde o nascimento com as tecnologias, em diferentes contextos, faz com que seus professores necessitem se aproximar de seus interesses e desejos, a fim de discutir novas formas de trocar conhecimentos e pensar em estratégias didáticas diversas para a complexidade das juventudes.

No ano de 2020, o mundo e o Brasil foram surpreendidos por uma situação inesperada. O vírus denominado SARS-CoV-2 pela Organização Mundial de Saúde (OMS) causou a epidemia de Covid-19, que atingiu todos os países de maneira devastadora, indistintamente, tornando necessária a adoção de diferentes medidas de isolamento social, a fim de evitar o contágio e a disseminação desta doença grave, cuja origem, até então, é desconhecida. Uma das medidas para evitar a disseminação da doença é o lockdown, palavra de origem inglesa que descreve um protocolo de confinamento das pessoas com vistas a impedir a circulação e evitar a disseminação da doença. No contexto da pandemia de coronavírus, no Brasil e no mundo, as Tecnologias Digitais da Informação e Comunicação (TDIC) possibilitaram outras formas de interação entre as pessoas. Nessa situação de isolamento social, foi possível observar um aumento da quantidade de vídeo-cartas disponíveis na internet. Entretanto, é preciso considerar que a produção e a troca de vídeo-cartas entre as juventudes, de diferentes cidades e países, já acontecia há alguns anos, em período anterior à pandemia. Existe uma multiplicidade de vídeo-cartas produzidas por diferentes grupos e faixa-etárias, como as vídeo-cartas produzidas por movimentos sociais, as vídeo-cartas poéticas, as vídeo-cartas de imigrantes, de artistas e, principalmente, de jovens.

Leiro (2004) considera que o conceito de juventudes é uma construção sociocultural polissêmica e historicamente situada. Portanto, é preciso refletir sobre as identidades que esses jovens constroem nas redes virtuais, em diferentes espaços e situações, a fim de compreendê-los nas suas pluralidades, nos seus itinerários de formação e nas condições sociais, políticas e econômicas em que vivem. Leiro (2004), em diálogo com o pesquisador português José Machado Pais, referência qualificada dos estudos sobre juventudes, discute as origens e a amplitude deste conceito:

no debate sobre as correntes teóricas é possível reconhecer “diferentes juventudes”. Pais propõe um agrupamento dual: a corrente geracional e a corrente classista. A primeira fundamenta-se nas “teorias da socialização desenvolvidas pelo funcionalismo e na teoria das gerações” (ibid., p.48) e entende a juventude como uma fase de vida constituída por um grupo etário homogêneo. A segunda corrente qualifica o olhar em torno da questão social, apresenta significado mais amplo às demandas relativas às relações de gênero e de etnia, por exemplo, presentes no interior do debate referente às classes sociais (LEIRO, 2004, p. 56).

A presente conceituação ganha ainda mais complexidade nesses tempos de pandemia de Covid-19, tempos em que muitas pessoas puderam ampliar as suas formas de comunicação através de diferentes plataformas tecnológicas. Portanto, não se pode deixar de considerar que nem todos os jovens no Brasil têm acesso às tecnologias. Para os jovens das classes populares, que já tinham condições precárias de vida, essas condições só foram agravadas com a pandemia do coronavírus, devido à ausência de políticas públicas para a garantia dos direitos básicos aos cidadãos brasileiros. Dessa maneira, são necessários esforços adicionais para que os todos os brasileiros tenham acesso à internet, inclusive os jovens, com o objetivo de lhes garantir o direito à educação e o direito de se expressarem livremente através das possibilidades de comunicação que as tecnologias nos trazem.

Prensky (2001) denominou os jovens nascidos após a década de 1980 de “nativos digitais”, pois já nasceram imersos no mundo das tecnologias, têm familiaridade com as mídias, lidam regularmente com esses recursos, conseguem realizar múltiplas tarefas ao mesmo tempo e processam informações de modo diferente das pessoas que nasceram nas décadas anteriores. É como se esses jovens, segundo o autor, fossem os “native speakers” (falantes nativos) da língua digital.

Já os professores foram intitulados por Prensky (2001) como os “imigrantes digitais”, pois têm outras formas de pensar, buscar informações e ensinar. O autor considera necessário que os professores caminhem em paralelo com os nativos digitais, revendo os currículos tradicionais, discutindo questões como ética, política e sociologia com esses jovens, bem como “[...] ‘learning new stuff’ or ‘learning new ways to do old stuff’” (PRENSKY, 2001, p. 4), ou seja, “aprendendo coisas novas” ou “aprendendo novas maneiras de fazer as coisas antigas”.

A modificação e o revisitar de coisas antigas, como a revisão dos modos de comunicar através das vídeo-cartas de jovens, foram os elementos que motivaram a pesquisa em curso, que tem como temática o estudo das narrativas digitais de jovens universitários sobre filmes relacionados a cartas e vídeo-cartas, assim como sobre as contribuições desses recursos para a formação de professores.

O presente artigo é um recorte desta pesquisa em curso. Elege as narrativas digitais, as vídeo-cartas e as juventudes como categorias teóricas centrais, assim como intenta analisar as repercussões das vídeo-cartas produzidas por jovens no âmbito da educação. Inicialmente, descreve quatro projetos de vídeo-cartas de jovens e discute suas formas de expressão mediadas pela tecnologia. A trilha metodológica contou com uma revisão de literatura sobre narrativas digitais, vídeo-cartas e projetos de vídeo-cartas.

Foram analisados quatro projetos de vídeo-cartas produzidos por jovens estudantes do Brasil, da Espanha e da Argentina. Dois projetos são referentes a produções de instituições escolares e os demais são referentes a concursos de vídeo-cartas promovidos por secretarias de educação para jovens estudantes. Os dois projetos brasileiros analisados foram o Projeto Amazônia Postal (TEASER..., 2018), do Instituto Federal do Amazonas, e o Projeto promovido pela Secretaria Municipal de Educação do Município de Capivari, São Paulo, referente à I Mostra de Vídeo-Cartas para o futuro (SÃO PAULO, 2020).

O projeto espanhol chama-se Acercando culturas - materiales comunicativos, reflexiones y aprendizajes (OLIVARI, 2019) e consistiu na troca de vídeo-cartas entre estudantes de diferentes escolas da Região de Andaluzia, na Espanha. Já o projeto do concurso de vídeo-cartas promovido pelo Governo da Província de Buenos Aires, Argentina, tem por título Video-cartas: correspondencia fílmica: las y los estudiantes dicen, hacen y comunican (BUENOS AIRES, 2020).

Foram realizadas pesquisas em diferentes sites de busca, como a Scientific Electronic Library Online (SciELO) e o Portal de Teses da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), além de vídeo-cartas disponibilizadas no YouTube. As palavras-chave utilizadas na busca foram: ‘vídeo-cartas’, ‘narrativas’ and ‘jovens’ and ‘vídeo-cartas’. A pesquisa de publicações acadêmicas foi circunscrita ao período de 2009 a 2019, e as vídeo-cartas são referentes ao período de 2018 a 2020. Quanto à revisão de literatura das produções acadêmicas a respeito das narrativas digitais, foram encontrados os artigos de Kieling (2012) e Rodrigues (2020). Em relação às produções acadêmicas sobre vídeo-cartas, foram encontradas a dissertação de Ruiz (2009), a tese e o artigo de Dultra (2018, 2019). Também foram encontradas informações sobre vídeo-cartas produzidas por Bergala (2007) e Reynoth (2020) em sites sobre vídeo-cartas. Os estudos das juventudes estão fundamentados em Leiro (2004).

Neste artigo, são apresentados inicialmente os apontamentos sobre as pesquisas que discutem as narrativas digitais. Na sequência, descrevem-se as características, semelhanças e diferenças entre as cartas e as vídeo-cartas. Posteriormente, apresentam-se os projetos de vídeo-cartas escolhidos para análise. Para finalizar, são realizadas reflexões sobre este trabalho, que tomaram a educação e a contemporaneidade como binômio dialógico, as vídeo-cartas como linguagem e os filmes como inspiração para pensar a vida cotidiana.

Estudo das narrativas digitais: tempos mediados pelas tecnologias

Na educação, nas últimas décadas, as pesquisas das narrativas vêm trazendo diferentes significados para as histórias vivenciadas por professores e estudantes, as quais comunicam os múltiplos sentidos das suas existências, de seus saberes e das suas ações sobre o mundo. Os estudos das narrativas na educação são compostos por relatos ou registros, escritos por meio de diferentes instrumentos: diários de aula, memoriais, entrevistas narrativas, diários de campo e cartas. Dessa maneira, é preciso destacar os trabalhos de pesquisadores que estudam as narrativas, como Josso (2007 2020), Souza (2006), Passeggi (2011), Mariani et al. (2012), Nóvoa (2012), Passeggi et al. (2016), Souza e Cabral (2015) e Suarez (2016). Mais recentemente, surgiram os estudos de narrativas digitais. Neste artigo, também são apresentadas as reflexões de estudiosos deste tema, como Kieling (2012) e Rodrigues (2020).

Josso (2020) problematiza os estudos auto(biográficos) na contemporaneidade através das análises das mudanças sociais, que estão em movimento e produzem novos territórios de existência humana e de narrativas. Ao analisar o contexto das pesquisas sobre as narrativas dos imigrantes a respeito de suas vulnerabilidades, Josso (2020, p. 49) defende a necessidade de novos estudos, principalmente pelas juventudes: “Acredito que nossos jovens atuais e aqueles que os seguirão terão que estar prontos para esses chamados compromissos humanitários, os quais estão se tornando cada vez mais raros”. Ao concluir seu texto, Josso (2020, p. 51) defende o investimento em estudos sobre as narrativas apoiadas nas tecnologias:

Espero ter conseguido mostrar o enorme potencial dessas práticas de pesquisa, formação e práticas sociais. E, em particular, ter destacado o papel principal que o paradigma biográfico poderia, se não deveria, desempenhar nos próximos anos para acompanhar as gigantescas turbulências em nossa biosfera de que a humanidade já começou a viver e que continua amplificar exponencialmente, [perceptíveis] se acompanharmos de perto o trabalho de nossos especialistas nesses assuntos. E não esqueçamos de acrescentar este (auto)biográfico que está escrito em toda parte na “web” (WEB), que continua sendo um enorme campo de pesquisa e que também pode desempenhar um papel muito promissor nas práticas de histórias de vida, em formas que ainda precisam ser inventadas. Boa sorte com o paradigma biográfico e com aqueles que são seus pesquisadores ou atores praticantes!

Portanto, as narrativas disponibilizadas na web são elementos expressivos para inovações nos estudos das narrativas contemporâneas mediadas pelas tecnologias.

Com a expansão da educação audiovisual, surgiram as pesquisas a respeito das narrativas digitais, que discutem as atualizações dos papéis narrativos e as convergências entre mídias. Kieling (2012), ao estudar as narrativas digitais interativas, descreve que a evolução das TDICs trouxe a convergência midiática e o uso da interatividade, ambos aspectos característicos das atuais formas de comunicação entre as pessoas. Nesse processo, também são modificadas as maneiras de narrar, bem como os processos de recepção e emissão, pois são possibilitadas múltiplas interpretações dessas narrativas às pessoas.

Com isso, as narrativas, diante das possibilidades ofertadas pelas tecnologias digitais, deixam de se restringir à relação produção-recepção para ganhar novos âmbitos e lógicas operativas de construção de sentido, que inclui a participação das audiências e das próprias tecnologias na construção dos roteiros e/ou desenvolvimento das histórias, sejam elas de cunho ficcional, factual ou híbridas. Essa aproximação confere um novo estatuto classificatório à narratologia, particularmente aquela audiovisual, introduzindo uma noção de narrativa digital. (KIELING, 2012, p. 740).

A partir da afirmativa da autora, é possível concluir que, nas mídias digitais, as narrativas não são destinadas a uma única pessoa. Elas são voltadas a diferentes pessoas, em vários locais do mundo, e têm audiências amplificadas. A maneira de narrar também assume novos formatos.

As narrativas digitais disponíveis na web são praticamente atemporais, pois, embora os momentos de suas produções sejam datados, as imagens, os sons e as próprias narrativas permanecem nas plataformas digitais, exceto se forem excluídas por algum motivo especial. Nos espaços virtuais, as tecnologias dão outra dimensão ao espaço-tempo nos encontros entre as pessoas, em razão de as interconexões em redes terem rompido os espaços formais e as fronteiras.

Rodrigues (2020) considera que a educação precisa investigar de maneira mais aprofundada as narrativas digitais e compreender as suas especificidades em uma perspectiva humanista, rompendo com a ideia de tecnologias desumanizadas. Para a autora, a “textualidade eletrônica é multimidiática”. Sendo assim, Rodrigues (2020) discute o fato de que os recursos tecnológicos promovem várias possibilidades narrativas:

[...] a narrativa digital possibilita a articulação, na história narrada, de diferentes contextos por meio da utilização de recursos hipermidiáticos que permitem associar objetividade e subjetividade, potencializando a hibridização de mídias (som, vídeo, texto, imagens etc.) para representar fatos encadeados num todo narrativo. Essa hibridização permitiria, ao autor da narrativa, representar mais amplamente as múltiplas facetas da experiência narrada e compartilhada/publicizada experienciando, assim, também uma outra forma de constituição autoral (RODRIGUES, 2020, p. 697).

A partir desse excerto da autora, é possível observar a riqueza de possibilidades que as narrativas digitais oportunizam para a comunicação entre as pessoas, através da hibridização de recursos antigos e novos nas interações sociais.

Rodrigues (2020), discute as múltiplas oportunidades que a edição, a reescrita das narrativas digitais e as reflexões sobre o material produzido promovem ao envolverem diferentes mídias:

Além disso, a facilidade de reelaboração permanente da narrativa (decorrente também das características da digitalidade) possibilita e pode até mesmo estimular a reflexão constante sobre a experiência e a ressignificação desta. O caráter digital da narrativa pode, ainda, auxiliar a construção de novas formas de aprender, de ensinar e de construir o currículo nos múltiplos espaços educacionais e níveis de ensino, uma vez que as mídias digitais e os hiperlinks propiciam a abertura do currículo a diferentes contextos - que podem compor a narrativa digital como elementos de constituição da experiência. Da mesma forma que as diferentes linguagens (áudio, imagens, animações, textos escritos etc.) possíveis nas narrativas digitais ampliam as formas pelas quais o conhecimento pode ser acessado e, principalmente, representado pelos sujeitos aprendentes (RODRIGUES, 2020, p. 708).

Essas narrativas digitais rompem com os conteúdos curriculares prescritos, articulam-se com as histórias das pessoas e podem também ser construídas em redes colaborativas. Elas também promovem o entendimento das tecnologias digitais de comunicação e informação não somente na perspectiva instrumental mas também como elementos integrados ao currículo e envolvidos nas práticas pedagógicas a partir das vidas, dos saberes e dos desejos das pessoas (RODRIGUES, 2020).

A educação audiovisual faz parte das escolas, assim como dos mais diversos contextos formativos, e apresenta uma infinidade de possibilidades de conhecimentos, significados, mediações, além de dimensões emocionais, éticas e estéticas. Os jovens nativos digitais têm muita familiaridade com as mídias, o que faz com que, em muitos momentos, nos contextos educacionais, eles auxiliem os professores na utilização dos instrumentos tecnológicos e compartilhem seus conhecimentos. Portanto, as interações sociais entre professores e alunos assumem outros formatos com os novos tempos, principalmente em tempos de pandemia de coronavírus, quando as tecnologias passaram a assumir um papel expressivo na educação e nas formas de comunicação entre as pessoas.

Na próxima seção, antes do conceito de vídeo-cartas, serão apresentadas as características das cartas e das vídeo-cartas, bem como suas semelhanças, diferenças e seus hibridismos.

Cartas e Vídeo-cartas: conceitos e problematizações

A escrita de cartas nos moldes tradicionais, à mão, não é comum para os jovens, que convivem desde muito cedo com o universo midiático. Há algumas décadas, os jovens têm produzido outras maneiras de ressignificar as cartas e apresentado diferentes formas e linguagens para expressar suas emoções e sentimentos, bem para compartilhar conhecimentos, a exemplo das vídeo-cartas.

Para Souto Maior (2001), a carta escrita é um gênero textual que apresenta uma variedade de estruturas e usos diferenciados. Alguns aspectos são comuns na estrutura dos textos das cartas, como a seção de contato (lugar, tempo, destinatário, remetente e saudação), o núcleo da carta (conteúdo) e a despedida. Entretanto, essas estruturas não são rígidas, pois a cada configuração de carta corresponde uma forma de texto específico. Souto Maior (2001, p. 11) afirma que,

Considerando a carta um produto cultural, social e histórico, existente nas práticas sociais, nota-se uma grande variedade quanto à forma de realização de acordo com o uso e a função que desta são feitos, função primeira de comunicar algo a alguém, conservando os elementos estruturais - remetente/destinatário - comum a outras cartas, que recebem diversos substantivos agrupados ao nome carta (que as fazem ser nomeadas diferentemente), os quais designam a finalidade do texto escrito. Por isso, acreditamos que a carta, independente do meio por que é enviada (correio, fax ou e-mail), faz parte de uma constelação que agrupa diversos textos.

As cartas escritas para familiares ou amigos, assim como as cartas de amor, encerram em si muitas subjetividades. Também existem as cartas-documento e as cartas comerciais de cobrança, que apresentam outros objetivos, assim como as cartas jornalísticas, que são destinadas aos leitores da imprensa, as cartas de denúncias, as cartas de protesto, as cartas de associações em defesa de direitos, as cartas-respostas, as cartas institucionais nas universidades, as cartas de intimação da justiça, as cartas publicitárias, as cartas de solicitação de desejos, as cartas para argumentação de ideias, bem como as cartas solicitadas em exames de vestibular e concursos no Brasil.

Nos novos tempos, as cartas escritas à mão continuam existindo, mas com características distintas. Souto Maior (2001) considera a necessidade de as cartas se adaptarem às tecnologias atuais:

Desta forma, a carta, gênero textual que evolui, adapta-se às novas exigências tecnológicas (já há sua estrutura-modelo presente em programas de computadores) e, ao mesmo tempo, nos conta histórias (cartas bíblicas e cartas de épocas coloniais). Assim, nunca desaparecerá, mas se modificará sempre que necessário, servindo aos mais diversos fins (SOUTO MAIOR, 2001, p. 11).

Na educação, entre as décadas de 1930 a 1960, uma das principais referências no trabalho com trocas de cartas entre alunos e professores foi o educador francês Célestin Freinet (1896-1966). Kanamaru (2014), pesquisador de Freinet, descreve e analisa a originalidade e o potencial crítico, político e criativo do seu trabalho a partir dos fundamentos teórico-metodológicos que permitiam a autonomia dos estudantes, baseados no cooperacionismo internacional, na escola democrática e na autogestão. Nesses processos, a troca de correspondências, denominada de correios interescolares, foi considerada um dos marcos significativos da sua maneira de educar:

Em contraposição à escola nova, a escola moderna de Freinet se baseou distintamente no efetivo trabalho livre e cooperado, a partir de técnicas concretas e da relação de ensino e aprendizagem aberta no vilarejo em torno da escola. Mais do que o raio geográfico montanhoso e provinciano da escola, Freinet agiu radicalmente para torná-la uma internacional, por meio da técnica de correios interescolares (KANAMARU, 2014, p. 778).

No Brasil, há muitas décadas, Paulo Freire, o patrono da educação que em 2021 celebramos o seu centenário, buscava reinventar a maneira de escrever e dialogar coletivamente com seus amigos, estudantes, professores e leitores através dos seus livros-cartas e das cartas pedagógicas. A proposta de escrita acadêmica de livros-cartas, de uma maneira ‘não convencional’, surgiu quando Paulo Freire, no período da Ditadura Militar, estava exilado em Genebra e recebeu a solicitação de sua sobrinha Cristina, que desejava receber notícias de seu tio, conhecer sobre sua infância, suas ideias sobre o mundo e como se tornara educador. No livro Cartas a Cristina, Freire (1994) descreve como a proposta desta jovem o motivou a escrever cartas e livros-cartas:

Me lembro ainda de quanto a leitura daquela carta me desafiou e começou a me fazer pensar em como responder a Cristina. No fundo, tinha, em frente a mim, na minha mesa de trabalho, na carta inteligente de minha sobrinha, a proposta de um projeto não só viável, mas interessante. Interessante, sobretudo, pensava, se, ao escrever as cartas solicitadas, me alongasse na análise de assuntos sobre cuja compreensão ensaiasse minha posição. Foi então que surgiu em mim a ideia de, no futuro, juntando minhas cartas, publicá-las em um livro. Livro em que não poderiam faltar referências várias a momentos de minha prática ao longo da vida (FREIRE, 1994, p. 36).

Paulo Freire escreveu vários livros-cartas para a educação, dentre os quais alguns foram organizados por sua mulher, Anita Maria Araújo Freire, após sua morte. Os principais livros-cartas de Freire são: Professora sim, tia não: cartas a quem ousa ensinar (1993), Cartas a Cristina (1994), Pedagogia da Indignação: cartas pedagógicas e outros escritos (2000) e Cartas à Guiné-Bissau: registros de uma experiência em processo (2011). Paulo Freire também inovou a educação a partir da escrita das cartas pedagógicas.

Vieira (2010) afirma que Paulo Freire gostava muito de escrever cartas. Era uma forma de o educador sistematizar um diálogo mais íntimo com seus leitores, de exercer sua autonomia e de refletir rigorosa e humanamente a respeito das questões pertinente à educação. Outros estudiosos, fundamentados em Freire, também têm pesquisado e difundido as cartas pedagógicas, como Soligo (2007, 2015) e Paula (2018, 2019).

Bauman (2011), no livro 44 cartas sobre o mundo líquido moderno, discute, através de 44 cartas, vários aspectos da contemporaneidade: o fenômeno da globalização e as contradições das sociedades atuais no que diz respeito às interações virtuais e suas características. Para tanto, o autor partiu das influências dos meios digitais sobre a forma com que crianças, jovens, adultos e pessoas da terceira idade se relacionam. Nas suas cartas, através de narrativas escritas, ele problematiza as contradições inerente às aproximações, aos distanciamentos e ao isolamento das pessoas na era digital.

Pesquisadores das juventudes, Esteves, Nunes, Farah Neto e Abramovay (2005) foram convidados pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) e pelo Ministério da Educação (MEC) para realizar um trabalho com jovens brasileiros, cuja proposta era fazer com que escrevessem cartas sobre as escolas em que estudavam e as trocassem com estudantes de outras cidades e Estados. O objetivo era obter uma compreensão melhor sobre os saberes que os jovens possuíam a respeito da escola e as perspectivas de mudança dentro e fora dessa instituição a partir dos olhares desse público. O resultado deste trabalho culminou no livro Estar no papel: cartas de jovens do Ensino Médio, escrito por Esteves et al. (2005), que contou com a colaboração de 1.777 alunos de escolas públicas e privadas do Brasil. A obra apresenta cartas escritas bem interessantes, divididas e analisadas a partir dos sentidos que os jovens atribuíram às suas escolas, no que diz respeito aos papéis sociais dessas instituições e ao que esperavam delas. Os estudantes fazem uma série de apontamentos sobre o ambiente escolar, sua infraestrutura e seus equipamentos, sobre as suas expectativas quanto aos conteúdos e às aprendizagens e sobre sua participação na escola. Os autores descrevem que as cartas foram redigidas de forma crítica e bem-humorada pelos estudantes, que fizeram denúncias das condições precárias das escolas e também anunciaram perspectivas esperançosas para a educação:

Os estudantes discorrem sobre praticamente todas as questões que envolvem o cotidiano escolar, a maior parte deles com plena consciência de que os vários problemas relatados não serão resolvidos durante seu percurso discente. Entretanto, tal fato não impede que manifestem seu compromisso e sua aposta no futuro, tanto da escola quanto dos outros jovens que os sucederão (que podem até vir a ser seus filhos, como alguns relatam), expressando seus anseios como herança para o caminho das futuras gerações. (ESTEVES et al., 2005, p. 119).

A análise das cartas, segundo os autores, pôs em escrutínio, de maneira profunda, o sistema educacional brasileiro, mais especificamente o Ensino Médio e as condições das escolas, dos currículos e do trabalho docente.

Na educação, as pesquisas com a educação audiovisual e a produção de vídeos com jovens nas escolas também permitem a promoção destes diálogos, além de reflexões críticas sobre este contexto. Existe uma infinidade de trabalhos e pesquisas nessa área. Destacamos aqui as pesquisas de Leiro e Ribeiro (2013) e Miranda et al. (2017), que produziram vídeos com jovens em escolas públicas no Brasil e utilizaram essas mídias em suas pesquisas não somente de maneira conteudista e instrumental mas também como possibilidade de diálogos criativos com as culturas dos jovens. O uso do vídeo como dispositivo de pesquisa, em ambas as pesquisas, contribuiu para o compartilhamento de questões técnicas e para o aprendizado de conhecimentos éticos, estéticos e políticos. As pesquisas também valorizaram o processo de produção dos vídeos e a autoria dos jovens, bem como discutiram a facilidade de aproximação com os jovens na pesquisa através das propostas de trabalhos com as mídias.

No que diz respeito ao conceito de vídeo-cartas, existem múltiplas interpretações, assim como diferentes modos de produção desses materiais. Não existe um padrão único, pois a abertura às possibilidades é a tônica da criação artística desses recursos. A pesquisadora Ruiz (2009) considera as vídeo-cartas como dispositivos ou recursos audiovisuais para o compartilhamento de narrativas. Já a pesquisadora Dultra (2018) discute o conceito das vídeo-cartas na perspectiva da filosofia; em sua tese de doutorado, rompe paradigmas e discute a perspectiva das vídeo-cartas não filosóficas e seus significados. Também não existe uma única genealogia definida sobre as vídeo-cartas, pois pesquisadores como Bergala (2007), Reynoth (2020), Ruiz (2009) e Dultra (2018) trazem diferentes referências quanto às suas origens.

Bergala (2007), crítico de cinema francês, publicou no site Biblioteca Diplô um texto jornalístico sobre as origens das vídeo-cartas. Elas teriam surgido a partir da exposição itinerante Correspondências, que reúne dez vídeo-cartas filmadas e trocadas entre o cineasta espanhol Victor Erice e o cineasta iraniano Abbas Kiarostami sobre suas obras cinematográficas no período de 2005 até 2007. Para Bergala (2007), esses cineastas foram revolucionários, pois não se submetiam às leis do cinema e da indústria do mercado, ou ao que ela denominou “modismo do mercado”. Essas vídeo-cartas foram expostas em diferentes museus na Europa:

Só faltava a todas essas correspondências objetivas entre os dois homens e suas obras a possibilidade de estarem dispostas em uma exposição. Esta, Erice Kiarostami - Correspondências, nasceu no Centro de Cultura Contemporânea de Barcelona, passou pela Casa Encendida, em Madri, e chega agora ao Centro Pompidou, em Paris. Mas a mostra não se limitou a constatar essas correspondências. Tornou-se o motivo de uma correspondência filmada entre os dois homens. Ela dura hoje mais de dois anos e conta com dez cartas-filmes que são uma novidade histórica no cinema e passaram a fazer parte de uma filmografia cruzada (BERGALA, 2007, p. 2, tradução nossa).

A proposta de apresentar as vídeo-cartas em um museu foi uma atitude inovadora. Bergala (2007, p. 2) indaga sobre o potencial da exposição a partir das seguintes questões: “Como expor o cinema? Como articulá-lo com outras formas de arte? Como nos tornar intermediadores privilegiados entre as obras e os visitantes?” Para ela, essa forma de exposição do cinema tornou os museus espaços de produção e diálogos de criação.

Reynoth (2020, p. 2), no site Correspondências Cine, analisa os modos de produção dessas vídeo-cartas de Victor Erice e Abbas Kiarostami: “Com nada mais que câmeras digitais, MiniDvs, uma duração entre cinco e dez minutos, apareceram os enredos com características de uma obra-prima, que não passaram pelo excesso de técnicas e efeitos”. Sobre as características das exposições das vídeo-cartas em museus, descreveu:

Os cineastas discutiram a noção de cinema e a relação com a indústria. As Correspondências, apresentadas nos espaços dos museus em diferentes países, discutiam a sala de cinema versus o museu como espaço para guardar a memória e lugar de intercâmbio estético, uma montagem, um sentido sintagmático dos segmentos, relacionado com a direção do olhar do espectador e as experiências da fragmentação - característica própria do cinema contemporâneo -, da reinterpretação cartográfico-cinematográfica e da ontologia das imagens. (REYNOTH, 2020, p. 2, tradução nossa).

Outra definição das origens das vídeo-cartas também foi encontrada no regulamento do concurso de vídeo-cartas argentino Video-Cartas: correspondencia fílmica: las y los estudiantes dicen, hacen y comunican, produzido pelo Governo da Província de Buenos Aires (2020). Neste documento, procede-se a uma breve contextualização das origens das vídeo-cartas a partir da obra dos cineastas Victor Erice e Abbas Kiarostami, que são considerados os precursores desses dispositivos. Os cineastas só haviam se encontrado uma única vez, mas possuíam um aspecto comum - a paixão pelos filmes:

O diretor iraniano e o espanhol só haviam se visto uma só vez na vida e se conheciam somente através de seus filmes. Não eram amigos, nem sequer conhecidos, mas tinham um espaço comum: a paixão pelo cinema. Devido a isso, decidiram se corresponder através de planos e sequências em que a palavra é um componente a mais para expressar algo. Segundo Erice, elegeram o formato das cartas devido ao fato de que uma carta era, em princípio, simples de produzir, pois poderia abordar todas as questões, das mais gerais as mais íntimas, e também gerava uma relação de movimento de ida e volta, na medida em que implicava uma resposta. (BUENOS AIRES, 2020, p. 4-5, tradução nossa).

Como é possível observar, as vídeo-cartas trocadas por esses cineastas representam uma forma de aproximação virtual e de produção de novos sentidos para as cartas tradicionais e também para o cinema.

Na área acadêmica, no Portal da Capes e em outros sites de busca, utilizando-se a palavra-chave ‘vídeo-cartas’, foram encontradas a dissertação de mestrado de Ruiz (2009), Documentário-dispositivo e vídeo-cartas: aproximações, defendida no Programa de Pós- Graduação em Artes da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), e a tese de doutorado de Dultra (2018), intitulada Vídeo-cartas não filosóficas: percurso da aparição de um corpo imagem, defendida no Programa de Doutorado Multi-institucional e Multidisciplinar em Difusão do Conhecimento da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Esses trabalhos são referências para os estudos de vídeo-cartas, bem como para o aprofundamento dos debates e das problematizações sobre as origens e os conceitos de vídeo-cartas no contexto nacional e internacional. As autoras também produziram vídeo-cartas expressivas, que são citadas em seus trabalhos e estão disponíveis na internet.

Dultra (2019) escreveu um artigo em que traz outras referências a respeito das origens das vídeo-cartas, como as vídeo-cartas trocadas pelos artistas japoneses Shuntarõ Tanikawa e Shûji Terayama no período de 1982 a 1983. A autora afirma que foram dezesseis vídeo-cartas trocadas em um período de nove meses, nas quais eles discutiram a filosofia da linguagem no campo das artes visuais. Neste mesmo texto, Dultra (2019) cita outros exemplos de vídeo-cartas no Brasil, na década de 1980, como as vídeo-cartas produzidas por Fernando Gabeira na TV Bandeirantes, que continham uma série de denúncias sobre problemas do país, e o filme Elena, de Petra Costa.

Na sua dissertação de mestrado sobre vídeo-cartas, Ruiz (2009, p. 8) buscou “[...] compreender como a troca de mensagens videográficas entre pessoas transformadas em personagens no e pelo filme - considerando que o documentarista também pode se tornar um deles - pode se configurar como estratégia de realização de documentários”. Este trabalho foi decorrência das análises de vários documentários e vídeo-cartas produzidos por ela, desde o período de graduação até a pós-graduação, pois, além de pesquisadora, é documentarista. Na sua dissertação, ela questiona e discute se as vídeo-cartas são vídeos ou cinema:

Investigando as possibilidades do uso das vídeo-cartas como dispositivo documental, consideramos que, por um lado, as experiências são decorrentes do uso da tecnologia do vídeo: custos baixos, rapidez de processamento e edição, leveza de equipamentos. Assim, podemos dizer que a troca de vídeo-cartas é descendente do campo do vídeo. Por outro lado, consideramos que ao nos apoiarmos no conceito de dispositivo documental estamos no terreno da crítica cinematográfica sobre documentário, que vem de longa tradição, fundada em todas as experiências relevantes que constituem a genealogia deste âmbito, então podemos dizer que a troca de vídeo-cartas é descendente do cinema. (RUIZ, 2009, p. 22-23).

Ruiz (2009) discute a necessidade de não dicotomizar vídeo e cinema, pois considera que as vídeo-cartas e o cinema são perspectivas híbridas - já que o vídeo potencializa o cinema e vice-versa, ambos são complementares:

É vídeo porque as características técnicas do digital são elemento estrutural fundamental para que a troca de vídeo-cartas se configure como um dispositivo documental, como é proposto aqui, e é cinema, na medida em que toda discussão acerca do documentário dispositivo levanta questões que há muitos anos, antes do advento do vídeo, fazem parte da história do documentário. (RUIZ, 2009, p. 23).

Dultra (2019) afirma que as vídeo-cartas estão inseridas nos campos das artes, das letras e da filosofia, nos processos de investigação das ciências sociais e na metodologia que ela denomina de vídeo-cartAgrafiOs. Advinda do campo da filosofia, a pesquisadora problematiza esses campos e as fronteiras disciplinares, bem como produz vídeo-cartas (não) filosóficas como forma de ruptura disciplinar. Dultra (2019, p. 282) também discute os diferentes significados atribuídos às vídeo-cartas: “Ainda hoje, o gênero é cercado de indefinições, assim como outras derivações do vídeo, a começar pela denominação: vídeo-carta ou videocarta?”.

Esses conceitos de vídeo-cartas são referentes aos campos das artes e da filosofia. Na área da educação, durante a pesquisa de revisão de literatura, foi possível observar que não existem trabalhos acadêmicos sobre essa temática. Os trabalhos encontrados estão relacionados às práticas educativas de vídeo-cartas produzidas com jovens em escolas e em concursos. Esses projetos de vídeo-cartas apresentam características específicas. As questões técnicas estão presentes, como as preocupações com os roteiros das vídeo-cartas, os conteúdos, as formas de produção, as imagens, a qualidade do som, mas esses aspectos não são centrais nos trabalhos. A preocupação maior é fazer com que os jovens se envolvam em projetos motivadores de produção de materiais audiovisuais, desenvolvam a criatividade, possam ter diferentes olhares sobre si mesmos e sobre o mundo e busquem diferentes formas de se comunicar e expressar. Quanto a esta questão, no regulamento do concurso de vídeo-cartas da Argentina, afirma-se:

Estamos longe de querer formar cineastas ou artistas visuais, mas sim estimular um processo criativo em que os estudantes utilizem diversas formas de expressão e fortaleçam seus vínculos através de suas produções e suas próprias mensagens. (BUENOS AIRES, 2020, p. 5, tradução nossa).

Na educação, a proposta desses projetos de vídeo-cartas com jovens não é formar cineastas, mas sim estimular diferentes ações e modos de educar. Isso não significa dizer que a qualidade técnica ou as questões éticas e estéticas das vídeo-cartas são deixadas de lado, porém existe uma adequação das produções à realidade das escolas e às condições dos jovens e de seus contextos de produção desses materiais.

A seguir, são descritos os projetos de vídeo-cartas encontrados durante a pesquisa no YouTube, que se destacam por terem sido produzidos por jovens.

Os projetos de vídeo-cartas com jovens em diferentes países

Nesta seção, são apresentados, em um primeiro momento, os projetos de vídeo-cartas brasileiros Amazônia Postal (TEASER..., 2018) e I Mostra de Vídeo-Cartas para o futuro, da cidade de Capivari (SÃO PAULO, 2020). Posteriormente, serão apresentados os trabalhos da Espanha (OLIVARI, 2019) e da Argentina (BUENOS AIRES, 2020). É preciso destacar que os links com acesso às vídeo-cartas no YouTube estão disponíveis nas referências finais do texto, conforme as cidades, os Estados e os países em que foram produzidas.

O primeiro projeto a ser descrito é o Amazônia Postal (TEASER..., 2018), transmitido no Canal Futura, que traz uma série de vídeo-cartas produzidas por jovens estudantes do Ensino Médio no Instituto Federal do Amazonas (Ifam). Este projeto foi dirigido por Gonçalves (2019), um pesquisador que estuda a Amazônia no cinema, e o roteiro foi escrito pela Rizoma Audiovisual, com apoio da Agência Nacional de Cinema (Ancine). O roteiro das vídeo-cartas, assim como sua qualidade técnica e estética, é de alto padrão cinematográfico. O Projeto Amazônia Postal, de acordo com o site da TV Brasil, é uma

Série que apresenta trocas de vídeo cartas produzidas por jovens moradores de diferentes cidades do Amazonas. Os jovens de Manaus se correspondem com jovens de cidades pertencentes às quatro mesorregiões do Estado: Parintins, na mesorregião do Centro; São Gabriel da Cachoeira, na mesorregião Norte; Tabatinga, na mesorregião Sudoeste e Lábrea, na mesorregião do Sul. A partir dessas vídeos-cartas, escritas e filmadas em primeira pessoa, temos um grande mosaico sobre a vida na Amazônia hoje. (AMAZÔNIA..., 2018).

De acordo com dados e informações disponíveis em texto jornalístico sobre o Projeto Amazonia Postal veiculado da TV Brasil (AMAZÔNIA..., 2018), ao todo foram produzidas cinco vídeo-cartas, nas quais os jovens apresentam as suas narrativas sobre diferentes cidades do Amazonas, de Manaus até as cidades ribeirinhas. Eles filmaram as cidades a partir de seus olhares, destacando os aspectos positivos e negativos. Também problematizaram as desigualdades sociais e as questões geográficas, econômicas e culturais das cidades com brilhantismo. Essas vídeos-cartas são uma espécie de ‘cartão de visitas’ virtual de suas cidades. No YouTube, atualmente, só está disponível o teaser dessas vídeo-cartas.

O segundo projeto foi realizado em 2020 pela Diretoria de Ensino de Capivari, interior de São Paulo, sob o título de I Mostra de Vídeo-Cartas para o futuro (SÃO PAULO, 2020), que contou com a participação de 38 escolas da cidade. O regulamento e a chamada para o concurso estão disponíveis no site da Diretoria de Ensino, no qual uma professora, através de um vídeo, informa como será o concurso e o tema da carta para o futuro, apresentando um texto motivador, para estimular a participação dos estudantes no concurso.

Neste site (SÃO PAULO, 2020) são apresentadas as quatro vídeo-cartas vencedoras do concurso. Os estudantes são de escolas públicas estaduais desta cidade do interior de São Paulo. Os nomes dos estudantes e das escolas estão disponibilizados nas vídeo-cartas. A primeira vídeo-carta, considerada a vídeo-carta destaque, é de João Pedro da Costa, aluno da 8ª série A da Escola Estadual Professora Jeni Aprilante (SÃO PAULO, 2020). O estudante, que tem Síndrome de Down, aparece no vídeo conversando com a sua professora. Ele narra como são as dificuldades da pandemia do coronavírus e diz que sente saudades da escola e da professora. Na vídeo-carta, anda pela escola e descreve o vazio e os silêncios da instituição durante a pandemia do coronavírus.

A vídeo-carta que conquistou o primeiro lugar é de Izabela Thais da Silva, estudante do 3º ano do Ensino Médio da Escola Estadual Bispo Dom Mateus, que teve a professora Karine Melo como orientadora (SÃO PAULO, 2020). Isabela traz um texto muito reflexivo e criativo sobre a situação de pandemia. Ela estabeleceu um diálogo em que narra o texto em forma de carta para si mesma enquanto passeia pela casa. Seu texto é como se fosse uma carta para o futuro contando como é ser jovem, ter ficado doente com Covid-19 e isolada. Ela conversa com ela mesma e com os destinatários, as pessoas que visualizam a vídeo-carta. Narra como é ser jovem hoje e o que espera para amanhã. O texto é muito bem estruturado.

A carta que ficou em segundo lugar é de Suellen Araújo da Silva, aluna do 1º ano do Ensino Médio da Escola Estadual Cônego Cyríaco Scaranello Pires (SÃO PAULO, 2020). Ela também fez um texto de análise crítica sobre a pandemia do coronavírus, as dificuldades e incertezas da vida em meio ao cotidiano da pandemia e sobre suas condições emocionais. Cita um texto do Papa Francisco: “Das grandes provas da humanidade, e entre elas a pandemia, se sai melhor ou pior, não se sai da mesma forma”. Questiona as razões dessa situação, argumenta sobre a esperança e termina dizendo que vamos sair melhores desta situação.

A vídeo-carta que conquistou o terceiro lugar no concurso foi produzida por Lucas Wendel Queiroz dos Santos, aluno da 6ª série da Escola Estadual Aurora Scodro Groff, sob orientação da professora Vera Roman (SÃO PAULO, 2020). Ele escreveu uma carta para o futuro, com o título Do Lucas do presente para o Lucas do futuro. Também narra como é viver na pandemia e apresenta sua rotina. Conta, no começo da vídeo-carta, que “parecia férias”, mas depois passou a ter aulas em casa, e o seu quarto “virou escola”. Também afirma que acredita no futuro, que a pandemia vai passar, que espera sair de casa e visitar seus amigos e parentes, além de desejar que tudo volte ao normal.

Também foram encontrados outros projetos de vídeo-cartas produzidos na Espanha (OLIVARI, 2019) e na Argentina (BUENOS AIRES, 2020). O projeto espanhol, Acercando culturas - materiales comunicativos, reflexiones y aprendizajes, é um documento de registro de vídeo-cartas trocadas durante o período de 2017 e 2018 entre escolas de diferentes países, como Espanha, Argentina e México.

Esse material foi disponibilizado em 2019 com todos os registros do trabalho e as vídeo-cartas produzidas e trocadas entre as crianças e os adolescentes. Neste projeto, foram produzidos muitos materiais, que podem ser acessados por meio do link que acompanha a referência do trabalho ao final deste artigo. Os objetivos e as intenções das vídeo-cartas intentaram estimular as crianças, os adolescentes e os jovens a se comunicarem com seus pares, conhecerem outras realidades, outras cidades, Estados e países, bem como produzirem materiais audiovisuais significativos para suas vidas. No projeto, os princípios e objetivos estão descritos no início do material:

Abordando culturas para o bem comum, propõe o jogo e o audiovisual como elementos criativos, a partir dos quais meninos e meninas recriam e transformam seu entorno. Pretende, através de diversas ações educativas, favorecer os espaços de participação infantil e promover estratégias que possibilitem que as crianças compartilhem e conheçam como vivem as crianças em outros lugares, como são seus entornos, quais são seus interesses e prioridades, que problemas os afetam e como caminhamos para o bem comum. (OLIVARI, 2019, p. 1, tradução nossa).

Este projeto teve como temática o ‘bem comum’, que inspirou a produção de diferentes vídeo-cartas, de diferentes cidades e escolas: Colegio de Educación Infantil y Primaria (CEIP) Elena Luque, de Santa Cruz; CEIP Miguel de Cervantes, de Sotomayor; CEIP Luis de Góngora, de Almodóvar del Rio; CEIP Gallego Burín, de Granada; CEIP Norena, de Córdoba; CEIP Ma. Del Mar Romera, de Málaga; e CEIP Professor Gálvez, de Cádiz. Todas as escolas produziram diferentes vídeo-cartas sobre os significados do bem comum, envolvendo temas como cooperação, sustentabilidade ambiental e equidade de gênero. Houve uma preparação cuidadosa com os estudantes para a produção dessas vídeo-cartas. Foram realizadas oficinas sobre a produção de vídeo, nas quais se discutiu sobre as temáticas e técnicas, e os estudantes também participaram de uma amostra de cinema. Em 2018, também foi realizado um encontro denominado Enlazando Culturas, na cidade de Córdoba, na Espanha, com 250 crianças, que participaram de diferentes atividades, com jogos, música, teatro e circo, ao longo das quais discutiram diferentes propostas para o meio ambiente e para a atuação das organizações internacionais.

O projeto da Espanha (OLIVARI, 2019) promoveu a participação infantil, a troca de conhecimentos entre estudantes de diferentes escolas, o envolvimento das famílias e comunidades, bem como discussões críticas sobre temas que envolvem a humanidade, como a solidariedade, a convivência e o respeito ao meio ambiente. Quanto ao papel inovador das vídeo-cartas nas tecnologias, o projeto descreve:

O uso das tecnologias é um elemento motivador para a infância. Através das vídeo-cartas, eles foram capazes de aprofundar conhecimentos em seus próprios contextos e conhecer, em primeira mão, outras realidades. O processo permite compreender como essas ações podem contribuir para o conhecimento e a conservação dos bens comuns. É importante ter em mente que o bom uso dessas tecnologias implica tempo, recursos e grupos mais reduzidos. (OLIVARI, 2019, p. 13, tradução nossa).

Com relação às vídeo-cartas, elas foram produzidas individualmente e em grupos, com diferentes recursos, como as imagens das escolas dos estudantes e dos passeios por suas cidades, os desenhos, as contações de histórias e as narrativas sobre diferentes temáticas ligadas ao bem comum.

O outro projeto analisado foi o concurso de vídeo-cartas realizado na Argentina (BUENOS AIRES, 2020), denominado Video-cartas: correspondencia fílmica: las y los estudiantes dicen, hacen y comunican, produzido pelo Governo da Província de Buenos Aires. Neste projeto, o regulamento apresenta os conceitos de vídeo-cartas e um texto convidando os estudantes de Ensino Médio argentinos a participarem de um concurso sobre vídeo-cartas neste país. A descrição da vídeo-carta é dada nos seguintes termos:

Vídeo-cartas se inserem em uma série de dispositivos pensados para a continuidade pedagógica. É uma maneira de correspondência mediada pelas tecnologias que tem a potencialidade de oportunizar uma gama de recursos artísticos, multimídias, de ensaio e reflexão. Trata-se de gerar laços entre jovens de Buenos Aires com realidades geográficas e sociais distintas, que estão cursando a escola secundária, e assim os estudantes narram, fazem e comunicam. (BUENOS AIRES, 2020, p. 1, tradução nossa).

Também se afirma que as vídeo-cartas apresentam características inovadoras. Pede-se que as cartas não sejam lembradas com características nostálgicas, mas que sejam construídas com humor e, por meio delas, que os jovens possam se expressar e compartilhar informações:

Uma comunicação epistolar supõe o ato de compartilhar, de dizer algo para outra pessoa que não está no mesmo espaço físico. Desde contar uma anedota, um estado de ânimo, uma solicitação, ou mesmo um pedido urgente de ajuda. Não queremos utilizar a frase de que tudo no passado era melhor, muito menos nos tornar nostálgicos, mas nos interessa recuperar uma cerimônia que pressupõe esse tipo de comunicação, diz o texto do projeto. (BUENOS AIRES, 2020, p. 1, tradução nossa).

No regulamento, descrevem-se os objetivos da produção do projeto de vídeo-cartas com jovens, a saber:

  • - Possibilitar um espaço que fomente a expressão, a produção pessoal e o intercâmbio entre estudantes;

  • - Valorizar a construção identitária dos estudantes, a escola, o bairro e a cidade através da produção narrada em forma de vídeo;

  • - Fortalecer e tornar visíveis os centros de estudantes e suas formas de comunicação e organização;

  • - Acompanhar o fortalecimento dos vínculos intra e interescolares dos estudantes do último ano da escola secundária;

  • - Desenvolver encontros comunicacionais em que os estudantes sejam produtores de diversas narrativas de suas experiências, conhecimentos e cultura. (BUENOS AIRES, 2020, p. 2, tradução nossa).

As vídeo-cartas vencedoras do concurso não estão disponíveis no site, entretanto existe uma vídeo-carta com jovens convidando os estudantes para participarem do concurso, com exemplos curtos de vídeo-cartas, disponível no link que acompanha a referência do projeto (BUENOS AIRES, 2020).

Os projetos de vídeo-cartas apresentados buscaram mostrar as potencialidades desses recursos para a produção de narrativas digitais criativas com jovens na educação, bem como descrever as expressões das suas ideias e dos seus sentimentos com razão e sensibilidade.

Palavras e cenas finais

As cartas escritas à mão, os registros em diários de campo e os filmes sobre cartas há muitos anos emocionam os espectadores que gostam de cinema, por diferentes motivos: pelos roteiros bem estruturados, pelas cenas, fotografias e imagens poéticas, pelas trilhas sonoras arrebatadoras e, fundamentalmente, pelas narrativas, que contam histórias, em sua maioria verídicas, mescladas com a ficção. Um desses filmes que inspiram as juventudes de diferentes gerações é Diários de Motocicleta (2004), dirigido por Walter Salles, que apresenta a viagem dos jovens Ernesto Rafael Guevara de La Serna, o Che Guevara, e seu amigo Alberto Granado. Nos anos de 1951 a 1952, os jovens percorreram vários países da América do Sul com a motocicleta La Poderosa e registraram as desigualdades sociais de vários países da América Latina. Este filme é uma adaptação dos diários escritos por Che Guevara e de várias cartas que escrevera para sua mãe durante a viagem. No filme, através das narrativas de Che, é possível ‘viajar com eles’ nesse continente latino-americano, cheio de nuances.

Batista e Oliveira (2019, p. 332) afirmam em Diários de Motocicleta: um diário de imagens cifradas, artigo em que analisam os registros de Che: “Durante esse trajeto, Ernesto fez anotações sobre o que viu e viveu. Ou, como ele assegura, ‘sua boca narra o que foi contado aos seus olhos’”. As histórias narradas em cartas, no cinema e nas vídeo-cartas eternizam as vidas das pessoas, seus sentimentos, suas observações, seus conhecimentos e olhares sobre o mundo. Por isso a importância de estudá-las na essência e compartilhá-las.

As vídeo-cartas ainda são pouco conhecidas no Brasil. Elas mantêm alguns aspectos da escrita das cartas tradicionais, como a estrutura do texto, que é adaptada e transposta para a estrutura do vídeo. Com o envolvimento dos jovens, os roteiros e as narrativas das vídeo-cartas ganham novos contornos, com a associação e o complemento das narrativas digitais, acompanhadas de imagens, sons, movimentos e diferentes modos de narrar a vida e o cotidiano. Os dados da revisão de literatura revelaram a necessidade de estudos sobre vídeo-cartas na educação. Quanto aos projetos analisados, as vídeo-cartas mostraram que as narrativas digitais dos jovens trazem reflexões subjetivas sobre suas vidas, têm ressignificado as cartas tradicionais e demonstram novos tempos na educação e nas tecnologias.

As vídeo-cartas possibilitam uma infinidade de aprendizagens para todos que participam do processo de construção desses trabalhos e para os que as assistem, pois franqueiam o acesso a outras culturas e realidades sociais, além de reflexões sobre nós mesmos e sobre o mundo. Portanto, como é possível observar, a integração da cultura digital na educação, mesclada com experiências metodológicas criativas, produz resultados inovadores. As vídeos-cartas revelam como os jovens vêm ressignificando a leitura de mundo através dos textos escritos e imagéticos.

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1Texto revisado e normalizado por Mariana Aparecida Vicentini.

Recebido: 25 de Abril de 2021; Aceito: 16 de Setembro de 2021

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