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Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade

versión impresa ISSN 0104-7043versión On-line ISSN 2358-0194

Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade vol.31 no.65 Salvador ene./mar 2022  Epub 25-Oct-2022

https://doi.org/10.21879/faeeba2358-0194.2022.v31.n65.p261-280 

ESTUDOS

CULTURA DIGITAL E ENSINO DE LITERATURA: POTÊNCIAS E PONDERAÇÕES

DIGITAL CULTURE AND THE TEACHING OF LITERATURE: POSSIBILITIES AND CONSIDERATIONS

CULTURA DIGITAL Y ENSEÑANZA DE LITERATURA: POTENCIAS Y PONDERACIONES

Nataniel Mendes*  Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Maranhão
http://orcid.org/0000-0002-7360-2702

Elizabeth Corrêa da Silva**  Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Maranhão
http://orcid.org/0000-0001-5906-4103

*Doutorando em Ciências da Educação pela Universidade do Minho. Professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Maranhão, Campus São Luís - Centro Histórico. São Luís, Maranhão, Brasil. Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa e ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico do Maranhão. E-mail: nataniel@ifma.edu.br

**Mestra em Cultura e Sociedade pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Maranhão, Campus São Luís - Centro Histórico. São Luís, Maranhão, Brasil. E-mail: elizacorrea@ifma.edu.br


RESUMO

Neste trabalho objetivamos refletir criticamente sobre as interseções entre cultura digital e o ensino de literatura. Por meio da netnografia e da revisão bibliográfica, apresentamos algumas possibilidades para o trabalho em torno dos textos literários. Essas possibilidades são cotejadas com a análise de enunciados presentes na Netflix, YouTube e Twitter. Esse movimento resulta em ponderações necessárias ao exercício da docência, que são discutidas nesta investigação a partir do conceito de reificação.

Palavras-chave: cultura digital; ensino-aprendizagem; literatura

ABSTRACT

In this paper, we aim to critically reflect on the intersections between digital culture and literature teaching. Through netnography and literature review, we present some possibilities for working with literary texts. These possibilities are contrasted with the analysis of statements present on Netflix, YouTube, and Twitter. This movement results in necessary ponderings for the exercise of teaching, which are discussed in this investigation based on the concept of reification.

Keywords: digital culture; teaching-learning; literature

RESUMEN

En el presente trabajo buscamos reflexionar críticamente sobre las intersecciones entre cultura digital y enseñanza de literatura. Por medio de la Netnografía y de la revisión bibliográfica, presentamos algunas posibilidades para el trabajo con los textos literarios. Esas posibilidades son cotejadas con el análisis de enunciados presentes en YouTube, Twitter y Netflix. Ese movimiento resulta en ponderaciones necesarias al labor docente, que son discutidas en esta investigación a partir del concepto de reificación.

Palabras clave: cultura digital; enseñanza-aprendizaje; literatura

INTRODUÇÃO

Nas últimas décadas, o surgimento de novos cenários de informação, comunicação e construção de conhecimentos, possibilitados pelo atravessamento de inovações técnicas e uso de tecnologias digitais da sociedade em rede (CASTELLS, 1999), desencadeou mudanças nas dinâmicas de nossas atividades cotidianas e de nossas interações sociais em relações familiares e laborais por nós estabelecidas.

A educação, por sua vez, também é atravessada por tais mudanças. Há autores, como Schlemmer, Felice e Serra (2020, p. 17), que entendem que, para além de um atravessamento, o que temos na era hiperconectada que vivemos consiste num “espaço-tempo de interações ecossistêmicas de inovação”, na qual a educação ocorre por meio de diferentes agentes humanos e não humanos, numa complexidade que nos convoca a repensar nossas formas de ensinar e aprender, não sendo mais possível pensar em dissociações entre o real e o virtual.

O interesse na investigação em torno da cultura digital e ensino de literatura provém também da necessidade observada na própria sala de aula. Entendemos que a escola não pode estar alheia às mudanças que vivenciamos na contemporaneidade, nas quais as tecnologias digitais e a cultura por elas engendrada perpassam as mais diferentes atividades sociais que realizamos.

Nessa perspectiva, buscamos aliar pesquisa e possibilidades em práticas pedagógicas no intento de investigar o que existe em potência na cultura digital para o ensino de literatura com base em uma análise netnográfica, sem perder de vista as ponderações que se fazem necessárias à aproximação proposta.

Delimitamos como questões de pesquisa as seguintes perguntas: quais interseções podem ser estabelecidas entre elementos da cultura digital e o ensino de literatura? Que possibilidades podem ser vislumbradas em investigações acadêmico-científicas para o trabalho em torno dos textos literários? Que ponderações se fazem necessárias ao pensarmos a cultura digital e o contato com a leitura literária no espaço da sala de aula?

Para conduzir essa reflexão, este artigo está organizado em quatro seções: na Introdução há uma contextualização do estudo e definição das questões de investigação. Em seguida, em Procedimentos metodológicos, apresentamos pressupostos da netnografia que orientaram a pesquisa. Na seção Cultura digital é potência discutimos algumas implicações da cultura digital para educação, especialmente para o ensino de literatura. A discussão é permeada pelo levantamento de pesquisas empíricas e pela análise de enunciados correntes nos meios digitais. Nesta seção fazemos uma aproximação entre o que existe em potência para o ensino de literatura a partir de produções audiovisuais contemporâneas. Na seção Ponderar é premente, discutimos, a partir do conceito de reificação e da análise de alguns enunciados, ponderações que julgamos necessárias quando da aproximação proposta na seção anterior. Por fim, retomamos o que foi discutido, apontando os contributos e os limites da pesquisa, bem como sugestões para trabalhos futuros.

PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

A Netnografia encontra-se intrinsecamente ligada à Etnografia. Essa última, fortemente adotada nas pesquisas de diferentes campos das ciências sociais, tem na observação participante, na descrição e na busca pelos significados do aspecto da vida social em estudo elementos primordiais que delineiam tal metodologia (KOZINETS, 2014).

Nessa perspectiva, a Netnografia assenta-se no trabalho de campo realizado em ambiente social on-line e pauta-se na observação e participação diante de um fenômeno cultural situado nas comunicações mediadas por computador, nas interações entre os partícipes de uma comunidade ou cultura on-line (KOZINETS, 2014).

A presente pesquisa, de cunho qualitativo e de abordagem netnográfica, sustenta-se nos princípios propostos por Kozinets (2014). A coleta de dados culturais deu-se de modo inteiramente on-line, os quais foram capturados a partir dos registros de membros das comunidades on-line em foco (sem intervenção direta dos pesquisadores) e das anotações dos pesquisadores mediante as observações das comunidades selecionadas e de suas interações.

A etapa de planejamento desta pesquisa ocorreu a partir de encontros em ambiente on-line, por meio de reuniões realizadas no Google Meet e as produções acadêmicas concernentes ao referencial teórico adotado foram compartilhadas em uma pasta no Google drive. A escrita, realizada colaborativamente, efetivou-se com o uso da ferramenta One drive. Ao longo do processo e considerando a necessidade de alinhamento das ideias e de ajustes, também foram necessárias interações entre os pesquisadores por meio do WhatsApp.

A investigação netnográfica foi norteada pelas etapas de seleção das plataformas e comunidades virtuais, nas quais identificamos e exploramos a análise de enunciados presentes na Netflix, YouTube e Twitter. A seleção desses websites deu-se em razão dos seguintes critérios: relação com o foco da pesquisa; produções, publicações e postagens recentes e com fluxo de comunicação que acompanhassem as discussões atuais e com interação regulares; heterogeneidade dos usuários e participantes, o que abrange o público-alvo das potencialidades e ponderações a serem realizadas frente aos enunciados focalizados nessas plataformas e redes (KOZINETS, 2014).

Cabe ressaltar que os pesquisadores são usuários das três plataformas anteriormente mencionadas, já estando, portanto, imersos nas comunidades investigadas, que compõem a cibercultura. Procedemos, posteriormente, à coleta de dados. Nessa etapa realizamos a visualização, leitura e seleção dos vídeos e publicações. Destacamos ainda que todos os materiais coletados em rede eram de caráter público.

Desse modo, utilizamos para a análise registros textuais e audiovisuais por meio da captura de tela. Não fizemos uso de softwares de análise de dados por se tratar de uma investigação em menor escala, que priorizou a descrição e cujo foco não se concentrou na frequência de ocorrências de dados quantitativos, mas no aspecto analítico-interpretativo. Para tanto, optamos pelo método de interpretação de sentidos que, segundo Gomes (2013, p. 105), consiste em:

[...] uma tentativa de avançarmos mais na interpretação, caminhando além dos conteúdos de textos, nas direções de seus contextos e revelando as lógicas e as explicações mais abrangentes presentes numa determinada cultura, acerca de um determinado tema. Nesse método, é de fundamental importância que estabeleçamos confrontos entre: dimensão subjetiva e posicionamentos de grupos; texto e subtexto, texto e contexto; falas e ações mais amplas [...]

Nesses termos, orientando-nos a partir de Gomes (2013), realizamos a leitura compreensiva do material selecionado; distribuímos o material de pesquisa a partir das categorias reificação e consumo, apoiando-nos no referencial teórico de nosso estudo; e procedemos à exploração do material. Nessa etapa nos detivemos na identificação e problematização das ideias presentes nos filmes, vídeos e tweet; buscamos os sentidos socioculturais mais amplos atribuídos às ideias subjacentes ao material investigado, procurando estabelecer diálogos entre cada uma das ideias problematizadas. Por fim, na última etapa, realizamos a síntese interpretativa de cada registro em foco, articulando ao nosso objetivo de pesquisa e ao suporte teórico adotado.

CULTURA DIGITAL É POTÊNCIA

As mudanças em nossas práticas sociais, as conexões que passaram a permear o espaço urbano e as novas formas de produzir e fazer circular informações configuram a cultura atual ou cibercultura, que se desenvolve nos anos 1970, com a microinformática, passa pela popularização da internet e a era do computador em rede e, posteriormente, acentua-se pelo seu caráter de mobilidade (LEMOS, 2018a).

Lemos (2003), ao apontar as transformações técnicas que seguiram em curso para a compreensão em torno da dinâmica da cibercultura, destaca a conexão generalizada por meio das redes móveis e do Wi-Fi. Se antes tínhamos o computador pessoal estendendo-se para a coletividade e possibilitando interconexões entre indivíduos em diferentes espaços e tempos, vivemos na contemporaneidade uma estrutura marcada e permeada pela conectividade e ubiquidade.

Ao tratar da cibercultura e suas relações com o imaginário da época, Lemos (2003) ressalta a necessidade de evitar determinismos que sobrelevem discursos nos quais as estruturas sociais tradicionais e da contemporaneidade são tratadas de modo polarizado ou pautadas por uma perspectiva excludente. O que se percebe na sociedade contemporânea é a existência de reconfigurações de expressões, modulações e espaços em lugar de uma mera substituição de culturas antecedentes.

Sobre esse aspecto, Ribeiro (2018) nos acena para a compreensão de espaços de tensão e diálogos entre as culturas e práticas digitais e as tradicionalmente consolidadas. Para essa autora, a tensão concentra-se especialmente nos olhares que observam as convivências entre culturas e menos em investigações de base empírica em torno de um cenário de hibridizações e acomodações.

O excesso de informações na sociedade contemporânea relaciona-se diretamente com a abertura para a expressão e produção, antes limitada pela edição em mídias massivas e, posteriormente, possibilitadas pela liberação do polo de emissão na cibercultura. Tal característica permitiu o surgimento de diferentes modalidades midiáticas e, sobretudo, de novas formas de estar, interagir e relacionar-se em rede (LEMOS, 2003).

É nesse sentido, como afirmam Santos e Santos (2012), que importa pensar os desafios da educação em meio aos fenômenos propiciados pelas tecnologias em rede, entre eles pensar as situações de aprendizagem que emergem ou podem emergir no cenário da cibercultura. De acordo com essas autoras, as experiências em redes educativas demonstram as potencialidades das “mídias e redes sociais como estruturantes de novas formas de pensamento, como instrumentos culturais de aprendizagem, mediando novos processos tecnológicos, comunicacionais e pedagógicos” (SANTOS; SANTOS, 2012, p. 180).

Cabe ressaltar que as potencialidades que podem emergir no processo educativo, a partir dos elementos da cultura digital, resultam de objetivos bem definidos e de um planejamento delineado, que considera os efeitos do uso de recursos digitais numa perspectiva na qual o paradigma de ensino e aprendizagem não está amparado na ideia de “mais do mesmo” com uma nova roupagem. Como nos lembra Ribeiro (2018), é fundamental pensar a pertinência no uso de um recurso tecnológico e o que ele poderá potenciar na forma de ensinar e nos modos de aprender.

Especialmente no contexto do ensino de literatura, as relações entre textos consagrados e as tecnologias digitais e práticas da web não são apenas possíveis como devem, no nosso entendimento, permear os currículos escolares, permitindo contatos entre diferentes esferas da cultura de massa, do impresso e da cultura digital. Ao mencionar temas que poderão fazer parte da esfera artístico-literária, em um currículo na hipermodernidade, Rojo e Barbosa (2015) sugerem o trabalho com o cânone e hibridismos, em hipermídias de base escrita, de áudio, vídeo, foto e design, contemplando, desse modo, a formação de um usuário criador de sentidos e analista crítico-transformador.

Recorrendo aos documentos oficiais, apontamos nesta investigação a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), na qual se reconhece a necessidade da promoção de atividades em torno de práticas da cultura digital, dos gêneros oriundos dessas práticas e das ações que demandam o desenvolvimento de novas habilidades no cenário de convergência de mídias e de novas formas de ler e produzir sentidos (BRASIL, 2017).

Ainda que o documento afirme que a leitura do texto literário deva ocupar um espaço nuclear no Ensino Médio, no que concerne à literatura, e dar continuidade ao trabalho de formação literária realizado no Ensino Fundamental, há um tímido espaço destinado a explorar as nuances desse trabalho na etapa final da Educação Básica além de limitações epistemológicas, conforme já apontado por outros pesquisadores (DALVI, 2019; FONTES, 2018; MENDES, 2020).

Do que é possível vislumbrar no documento, destacamos a necessidade de compreender o protagonismo que deve assumir a leitura do texto literário no trabalho com literatura, no lugar da ênfase em biografias e características dos movimentos literários. Esse entendimento não implica na dissolução de propostas que contemplem outros gêneros discursivos que dialoguem ou sejam oriundos de adaptações de obras literárias, mas na ideia de que tais gêneros não substituem o contato e as experiências possíveis com a literatura.

Ressaltamos ainda da BNCC (BRASIL, 2017), a partir do âmbito dos campos de atuação social que contextualizam as práticas de linguagem, o campo artístico-literário. Nesse campo, a ênfase na formação do leitor literário contempla desde textos considerados marginais aos textos clássicos e objetiva a ampliação do repertório de leitura do aluno, mas sem desconsiderar as possíveis associações com as diferentes produções artístico-culturais e práticas da contemporaneidade. No que tange ao trabalho com a escrita literária, tem-se como parâmetro a aproximação de mídias, formatos híbridos, ferramentas e ambientes digitais para a criação de efeitos de sentido diversos na produção de textos e no diálogo com aqueles que circulem em outras esferas.

Pensando nisso, destacamos a seguir algumas pesquisas, realizadas no intervalo dos últimos cinco anos, situadas em torno de práticas no ensino de literatura e elementos da cibercultura. Para tanto, organizamos no Quadro 1 dados das investigações, focalizando posteriormente potencialidades dessas experiências centradas na integração do trabalho com o texto literário e as linguagens da cultura digital.

Quadro 1 Pesquisas sobre ensino de literatura 

Título, autor(a) e ano Objetivos Procedimentos Principais resultados
Práticas de ensino de literatura: do cânone ao contemporâneo - Artur Emílio Arlarcon Vaz (2017).
Propor reflexões acerca da leitura literária e práticas culturais da juventude que permitam a criação de redes intertextuais entre textos clássicos e contemporâneos, adotando o YouTube como ponto de partida. Visualização da paródia intitulada “Selfie” e a contextualização sobre o grupo de rock The Beatles; discussão sobre o que trata o vídeo e os diálogos que podem ser estabelecidos com o conto machadiano e outros cânones literários, bem como com ações entre os jovens na contemporaneidade; trabalho com os aspectos linguísticos e com outras redes intertextuais; encaminhamentos para realização de pesquisa. - Incentivo à leitura e aproximação de temas e práticas culturais da juventude;
- Relações com a realidade do aluno e identificação com os temas propostos;
- Trabalho com diálogos intertextuais e a interface arte e tecnologia.
Podcast: um recurso de mobile learning para aprendizagem de literatura portuguesa e da língua francesa - Adelina Moura (2016).
Apresentar possibilidades de integração do Podcast na aprendizagem, por meio de dispositivos móveis, de literatura portuguesa e de língua francesa. Gravação dos ficheiros de áudio pela professora a partir do programa multiplataforma Audacity e do portal Podomatic; produção de podcasts por meio dos próprios dispositivos móveis dos alunos. - Personalização da aprendizagem dos alunos com maiores dificuldades;
- Acompanhamento das aulas no ritmo dos alunos
- Utilização das tecnologias móveis no contexto de ensino-aprendizagem.
Felicidade clandestina na fanfic: uma proposta de abordagem do texto literário no ensino fundamental II - Margarida da Silveira Corsi, Greice Aparecida Facioli de Bitencourt, Solange Aparecida Boreggio (2020). Promover o letramento literário por meio de oficina com alunos do último ano do Ensino Fundamental, de modo a ampliar a compreensão do conto Felicidade Clandestina a partir da reescritura em fanfics. A investigação propõe o desenvolvimento de uma oficina e utiliza para a abordagem do conto literário Felicidade Clandestina as etapas de sensibilização, antecipação, leitura, análise, interpretação e expansão, a partir das perspectivas de Micheletti (2000) e Corsi (2015). - Contribuição para o letramento literário de alunos da fase final do Ensino Fundamental;
- Ampliação da leitura por meio da produção de um gênero discursivo da esfera midiática - fanfictions.
- Socialização dos textos produzidos em contextos reais de circulação.

Fonte: Elaborado pelos autores deste artigo.

Experiências como as de Vaz (2017) nos mostram as relações possíveis entre diferentes expressões artísticas da cultura de massa e textos literários, adotando como ponto de partida um vídeo paródia disponível no YouTube. Esse autor nos apresenta uma paródia de uma canção dos Beatles, com críticas ao comportamento atual do intenso registro de selfies, e nos remete ao narcisismo, egocentrismo e à possibilidade de diálogos com a obra machadiana, por exemplo.

Para tanto, Vaz (2017) situa o conto O Espelho e nos mostra como o professor pode propor aos seus alunos o trânsito entre textos clássicos e contemporâneos, fazendo-os perceber a atemporalidade de temas, sentimentos e elementos inerentes à condição humana presentes na literatura. O mesmo vídeo-paródia do YouTube possibilita, segundo Vaz (20017), relações intertextuais com outros contos de Machado de Assis, bem como com o romance O Retrato de Dorian Grey, de Oscar Wilde, o mito de Narciso, o quadro de Caravaggio, Narcissus ou o Auto-retrato aos 56 anos, de Graciliano Ramos. A partir das seleções dos textos os próximos encaminhamentos podem dar lugar a reflexões em sala, debates e discussões, pesquisas, produções dos alunos, mostra dessas produções na comunidade escolar ou socialização em meios digitais.

Outro elemento que destacamos do Quadro 1 é, na perspectiva de Moura (2016), um relevante meio para favorecer a aprendizagem dentro e fora da sala de aula e engajar os alunos na realização de suas tarefas escolares a partir da utilização de seus próprios dispositivos móveis: trata-se do Podcast. Especialmente no ensino de literatura, Moura (2016) é pioneira na produção de Podcast em língua portuguesa voltado para o trabalho com obras e poemas de literatura portuguesa. Produzido há mais de uma década, seu Podcast Em Discurso Directo segue on-line e ainda recebe feedbacks e solicitações de novas gravações ou de análises específicas do público ouvinte.

Para além das próprias gravações dessa autora, há lugar para o protagonismo dos alunos, que avaliam positivamente o uso do Podcast em propostas nas quais são convocados a recontar um episódio, “fazer uma pesquisa e expor o resultado através de gravação; gravar resumos de assuntos variados da aula; gravar uma opinião; gravar explicações sobre a utilização de determinadas expressões no texto; gravar debates etc.” (MOURA, 2016, p. 154). Destacam-se entre os fatores positivos da utilização desse recurso o baixo custo, a criação de conteúdos mais envolventes, a viabilidade da mobilidade, a personalização da aprendizagem aos discentes com maiores dificuldades e a flexibilidade de escuta das aulas ao ritmo do aluno, considerando seu tempo e espaço

Já a investigação de Corsi, Facioli de Bitencourt e Boreggio (2020) busca apresentar uma proposta de letramento literário a partir do trabalho com o conto Felicidade Clandestina, de Clarice Lispector, e da produção de fanfictions. Por meio da realização de uma oficina, essas autoras propõem para o processo de leitura do texto literário as etapas de sensibilização, antecipação, leitura, análise, interpretação e expansão. A fanfiction é sugerida como recurso para interpretação e expansão da leitura do conto.

A partir de duas perguntas orientadoras, os alunos são solicitados incialmente a planejar seu texto, tendo como ponto de partida um roteiro prévio. Posteriormente são orientados para a etapa de produção, na qual serão apresentados à página de Fanfics que será utilizada e realizarão seu cadastro na página. A partir desse ponto poderão dar início às suas produções, bem como interagir com as produções dos colegas. Corsi, Facioli de Bitencourt e Boreggio (2020, p. 102) reforçam que trabalhar com esse gênero dá aos alunos um ambiente real de circulação de seus textos e, nessa proposta em especial, “dá voz aos ideais de felicidade clandestina que todos os indivíduos, principalmente o público ao qual esta proposta se destina, guardam secretamente dentro de si”.

Além das potencialidades elencadas por essas pesquisas, é possível encontrar na cultura digital outros elementos da contemporaneidade que podem ser incorporados aos processos de ensino e aprendizagem. A despeito de todas as tensões, problemas e contradições da industrial cultural e sua massificação, que tem a diversão como método de controle de consumidores (ADORNO; HORKHEIMER, 1985), programas de TV, filmes, séries, jogos e outros produtos que fazem parte do cotidiano dos alunos podem ser tomados como objetos de reflexão e, por conseguinte, expansão da experiência ordinária e o desenvolvimento de um olhar mais investigativo.

Nessa perspectiva, o cotidiano é ponto de partida para que, pela mediação docente, seja problematizado, questionado, investigado, ressignificado. Isso significa lançar um olhar para as tecnologias digitais e para a cultura construída a partir delas que não as diviniza nem as diaboliza, mas as espreita criticamente (FREIRE, 2000). O fato de um determinado produto pertencer à indústria cultural massificada, por si só, não é motivo para a escola ignorá-lo ou assumir uma postura de distanciamento.

No campo acadêmico, por exemplo, há interessantes trabalhos de pesquisa que recorrem a produções da indústria cultural como ponto de partida para análises de natureza política, social, filosófica etc., como em Lemos (2018b) e Rodrigues (2011), que analisam, respectivamente, a série Black Mirror e os “rituais de sofrimento” em reality shows brasileiros, especialmente o Big Brother.

Assim como a Academia, espaço de construção do saber, da crítica, da transformação da realidade, a escola, que goza dessas mesmas prerrogativas, pode tirar partido dessas produções midiáticas. Esse exercício deve ser realizado não para reproduzir, no ambiente escolar, o cotidiano, com suas modas, tendências ou domesticação do comportamento (FOUCAULT, 1987), mas para compreendê-lo, tensioná-lo, estabelecer relações entre enunciados, situando-os historicamente e investigando os propósitos e referências subjacentes ao que é produzido na cultura digital.

No que tange ao ensino de literatura, objeto de nossa reflexão, mesmo aquilo que pareça mais trivial, ordinário e exemplar da cultura massificada e do desrespeito à dignidade humana, como o caso do programa de TV Big Brother Brasil, classificado por Minerbo (2007) como gladiatura pós-moderna, pode fornecer elementos para um diálogo produtivo em torno da leitura de um texto literário. Quantos alunos do ensino médio brasileiro, especialmente da rede pública, conhecem o significado/inspiração da expressão Big Brother, que nomeia o programa?

Ao supormos um número provavelmente pequeno como resposta e o conhecimento dos alunos sobre o programa televisivo, em uma situação concreta de aprendizagem, seria uma ótima oportunidade para a criação de um roteiro de leitura da obra 1984, ou pelo menos parte dela, que fomentasse o diálogo sobre temas passados, presentes e futuros. O livro, cuja autoria é de George Orwell (2009), foi publicado em 1949 (AARONOVITCH, 2013) e tem como um dos personagens o Grande Irmão, que tudo vê, a qualquer hora, por meio das teletelas, e faz questão de deixar isso muito claro para a população por meio de cartazes com a inscrição “O Grande Irmão está de olho em você”.

A vigilância e controle prenunciados na ficção materializam-se de várias maneiras na contemporaneidade. Aliás, é próprio da arte/literatura ora acompanhar o movimento da sociedade, ora precedê-lo (COMPAGNON, 2001). Atualmente, as câmeras espalhadas pelas cidades e os algoritmos computacionais que mapeiam os usos e preferências de usuários na rede são algumas dessas materialidades.

Além dessas, o programa televisivo, ou melhor, transmidiático (JENKINS, 2008), Big Brother, seja pelo nome homônimo a uma das personagens da obra, seja pela evidente e propagandeada vigilância, talvez seja, no presente, o produto da indústria cultural que mais carregue semelhança com o livro 1984, embora este privilegie uma dimensão política do fenômeno e aquele, o entretenimento. O livro de Orwell (2009) configura-se como um clássico, uma vez que nunca terminou de dizer o que tem para dizer e a cada (re)leitura se revela novo (CALVINO, 1993) e pode, portanto, ser lido e confrontado com a realidade de hoje.

Esse paralelo entre a obra em questão, o programa televisivo e a realidade que se desnuda no cotidiano poderia fornecer, em um contexto de aprendizagem na escola, interessantes temas para reflexão, como formas de controle em ditaduras e democracias, distopias, duplipensamento, servidão forçada e servidão voluntária e tantos outros quanto delimitados pelo planejamento docente, diante de suas condições reais de trabalho.

Na sequência, selecionamos para análise duas produções espanholas da Netflix, plataforma de streaming de vídeo, com filmes, séries e documentários. O intuito é promover um diálogo entre esses exemplares da cultura digital e o ensino de literatura e refletirmos como essa aproximação, a partir da ação do(a) professor(a), pode gerar oportunidades para leitura de um clássico da literatura espanhola e universal. A Figura 1, elaborada a partir de recortes de cenas da série La casa de papel e do filme O poço, introduz nossa análise.

Fonte: Elaborada pelos autores deste artigo.

Figura 1 Cenas da série La casa de papel e do filme O poço (Netflix

A parte superior da figura corresponde a uma cena da série La casa de papel, lançada em 2017, que conta a história de dois assaltos que uma quadrilha realiza à Casa da Moeda e ao Banco Central espanhóis. A cena que selecionamos faz parte do segundo episódio da quarta temporada. Nela, o personagem “professor”, como é chamado o mentor do assalto, e seu ajudante/comparsa aparecem montados em suas motocicletas em um cenário com moinhos de vento justapostos. Na mesma cena, a narradora assim enuncia: “O cavaleiro e seu escudeiro na direção de uma batalha de loucos nesta guerra invencível” (LA CASA DE PAPEL, 2020).

A série não gira em torno de uma obra literária, mas nesta cena específica, pela composição semiótica, há uma clara referência à obra Dom Quixote de La Mancha, do escritor espanhol Miguel de Cervantes, publicada em 1605. A cena alude, em especial, ao memorável capítulo VIII da primeira parte da obra de Cervantes, que narra a luta que o nobre cavaleiro trava contra moinhos de vento, ou seriam gigantes?

Essa clara referência a um clássico da literatura espanhola e mundial, possivelmente, passou despercebida para muitos jovens que assistiram à série. Em uma situação real de aprendizagem, confrontar a cena com a leitura da obra ou, pelo menos, do capítulo VIII do primeiro livro poderia ser mote para a atualização da recepção do texto em torno de debates, por exemplo, sobre quem são os gigantes contra os quais “loucos” e “sãos” (as fronteiras entre essas dimensões nunca foram muito claras ou rígidas ao longo da história da humanidade) lutam na contemporaneidade e a legitimidade ou não dessas batalhas.

Além dessa série, outra produção espanhola da mesma plataforma de streaming faz referência à obra de Cervantes. Trata-se do filme O poço, lançado em 2017 e ambientado em uma prisão vertical onde os prisioneiros vivem sob grande privação de alimentos. A cena ilustrada na parte inferior da Figura 1 mostra a capa do livro Dom Quixote, item escolhido pelo personagem Goreng para acompanhá-lo na prisão.

Afora a evidente alusão ao livro, como observamos na figura, o enredo do filme estabelece um forte diálogo com a obra de Miguel de Cervantes. Há várias cenas em que Goreng lê trechos da obra para seu companheiro de cela, o personagem Trimagasi. Na produção da Netflix, o protagonista, que se assemelha a um herói medieval, diante de situações que considera injustas, arregimenta um parceiro/escudeiro (personagem Baharat) para lutar, sob condições muito adversas, contra inimigos praticamente invencíveis.

Na saga, a fusão entre situações que parecem reais e outras que, aparentemente, são absurdas poderia servir, em uma situação formal de aprendizagem, como elemento de aproximação com a leitura da obra primeira, na qual o cavaleiro de La Mancha também se vê, em várias passagens, com o olhar fundido entre o real e o imaginário. Outro ponto que poderia ser explorado é o fato de o protagonista ter escolhido um livro para levar para a prisão, ao passo que seu primeiro companheiro de cela ter escolhido uma faca. Questões orientadas a partir da leitura da obra poderiam introduzir uma discussão sobre arte e pragmatismo ou, ainda, sobre valor e função da produção artística elaborada pela e para a humanidade.

Na mesma produção, há ainda uma referência a outro clássico da literatura universal, A divina comédia, do escritor italiano Dante Alighieri. Segundo Machuca (2020, p. 192), “A analogia com o épico de Dante também é evidente, sobretudo porque nos andares inferiores, onde o alimento é escasso ou nulo, há a despersonalização dos personagens, em uma clara intertextualidade com os círculos do inferno dantesco”. Essa aproximação também poderia favorecer a leitura do clássico de Dante e a criação de um espaço para a produção de outros enunciados em torno das obras lidas.

Quando nos referimos a esses diálogos como claros ou evidentes, temos a consciência de que essa clareza não está dada a priori para todos; mas pode, em contexto escolar, ser construída no estímulo a uma leitura crítica da “palavramundo” na qual o movimento do mundo à palavra e da palavra ao mundo está sempre presente (FREIRE, 1989). Esse movimento pedagógico intencional descortina a realidade que a mera contemplação do cotidiano não consegue captar.

As breves análises nesta investigação de alguns enunciados não têm o propósito de fornecer receitas, esquemas, sequências didáticas etc. Também não atuam como uma recomendação para que essas produções sejam veiculadas na escola, até por conta da classificação etária e de algumas cenas de violência gratuita, como no caso do filme O poço. As análises compõem nosso argumento de que a cultura digital e o cotidiano dos alunos apresentam pontos de interseção com a literatura que podem ser explorados em contextos de aprendizagem. Contextos que partem da prática social e, por meio da ação pedagógica sistemática e intencional, transformam um olhar sincrético e desorganizado em uma síntese, um saber mais elaborado (SAVIANI, 1999).

As interseções entre cultura digital e literatura tornam-se potências quando submetidas ao trabalho sistemático de professores, bibliotecários, pedagogos e demais profissionais que atuam para a formação de leitores críticos. E essa formação não prescinde, obviamente, da leitura dos textos. Não se trata, portanto, da propositura de uma simples identificação nessas produções de referências a obras literárias, mas de possíveis criações de situações de aprendizagem nas quais alunos possam ressignificar o olhar que destinam ao cotidiano, por meio da leitura de textos literários que desconfinam a experiência circunscrita na ordinariedade da vida (GAMBOA, 2016).

Aliás, os textos com os quais essas produções dialogam (1984, Dom Quixote e A divina comédia), na qualidade de clássicos, carregam consigo “as marcas das leituras que precederam a nossa e atrás de si os traços que deixaram na cultura ou nas culturas que atravessaram (ou mais simplesmente na linguagem ou nos costumes)” (CALVINO, 1993, p. 11). Indubitavelmente, esses textos conseguiram sobreviver ao tempo e continuam a deixar suas marcas na cultura de seus países de origem, bem como do restante do planeta.

No caso de Dom Quixote, por exemplo, não nos parece uma mera coincidência o fato de que produções espanholas contemporâneas da Netflix façam referência à obra do mais ilustre escritor daquele país. A presença desse clássico na cultura digital contemporânea pode suscitar, inclusive, debates e pesquisas entre professores e pesquisadores da área.

Na Espanha, a propósito, o documento que define a estrutura curricular do Bachillerato, etapa de preparação para o ingresso no ensino superior, cita expressamente Petrarca, Boccaccio, Baudelaire e Cervantes como autores importantes para o desenvolvimento do senso crítico, amadurecimento intelectual, estético e emocional dos jovens (ESPAÑA, 2007). Dessa forma, não é de se estranhar que cineastas espanhóis repercutam um clássico que fez e faz parte da formação escolar/humana do país.

Nessa aproximação teórica entre cultura digital e possibilidades para o ensino de literatura, observamos que a mesma indústria cultural, marcada pela oferta de entretenimento descartável, abriga o clássico e, mesmo, o questionamento e reflexão sobre a realidade posta. No mundo contemporâneo, marcado pela hibridização cultural, descolecionamento, desterritorialização e formação de espaços/culturas fronteiriços (CANCLINI, 1989), parece-nos, no mínimo, ingênua, reducionista e incompatível com o exercício reflexivo da docência a crença de que tudo o que é produzido na cultura digital é de má qualidade e deve, portanto, ser ignorado pela escola.

Isso não significa, claro, que os profissionais da educação devam incorporar de forma acrítica tudo o que é produzido e difundido massivamente nos meios digitais sob o simples pretexto de contemplar o cotidiano dos alunos, especialmente no que concerne ao ensino de literatura, conforme passamos a discutir na seção seguinte.

PONDERAR É PREMENTE

Esta seção não se coloca, do ponto de vista enunciativo, como contraponto à anterior, visto que a assunção da cultura digital como potência pedagógica não se opõe à reflexão crítica; ao contrário, engendra maior cuidado, sob pena de distorções e esvaziamentos do papel da escola.

Como já referimos, a cultura digital, com todos os seus recursos e potências pedagógicas, abriga hibridizações. No ciberespaço habitam, concomitantemente, as últimas descobertas científicas, propagação de discursos de ódio, bibliotecas digitais de várias partes do globo, disseminação de falsas notícias que alardeiam a população e elegem governantes etc.

Quando o escritor e filósofo Umberto Eco (AS REDES..., 2015) afirmou que as redes sociais deram voz a uma legião de imbecis que antes ficavam circunscritos a espaços mais limitados e que, assim, não prejudicavam a coletividade, ele não estava errado. No entanto, dado o caráter híbrido da cibercultura, essas mesmas redes possibilitam a disseminação de ideias e reivindicações de grupos que estão, lamentavelmente, à margem dos centros de poder e decisão, como é caso da população negra, das mulheres, índios, quilombolas etc., para citar alguns exemplos.

Então, assumir a cultura digital como potência para o ensino-aprendizagem é percorrer caminhos que exigem dos(as) docentes, e da educação como um todo, um olhar crítico e reflexivo sobre as fronteiras entre o supérfluo e o essencial. Caso contrário, reproduziremos, na escola, práticas que têm como horizonte apenas o consumo e o entretenimento e que têm como corolário a reificação do cotidiano, tema sobre o qual passamos agora a refletir junto às suas relações com o ensino de literatura e com o papel da escola.

REIFICAÇÃO DO COTIDIANO

A palavra de origem latina que nomeia esta subseção tem como tradução mais simples a coisificação, uma vez que res, do latim, significa coisa. Reificação seria, portanto, o ato de coisificar, de tornar tudo (e todos) em objetos. No entanto, o conceito é muito mais profundo e tem no seu cerne a reflexão filosófica e sociológica, desenvolvida por autores como Karl Marx, Georg Lukács, Theodor Adorno e outros, sobre o modo de produção capitalista e seus desdobramentos.

Não é nosso intento desenvolver o tema em profundidade, mas situá-lo, apontando suas reverberações no presente na cultura digital e o que isso implica para o ensino de literatura. Apontamos inicialmente o conceito de reificação, em seguida apresentamos uma situação hipotética e concluímos com a análise de um enunciado do Twitter.

Segundo Bottomore (2001, p. 314), à luz do pensamento marxista, a reificação é:

[...] o ato (ou resultado do ato) de transformação das propriedades, relações e ações humanas em propriedades, relações e ações de coisas produzidas pelo homem, que se tornaram independentes (e que são imaginadas como originalmente independentes) do homem e governam a sua vida. Significa igualmente a transformação dos seres humanos em seres semelhantes a coisas, que não se comportam de forma humana, mas de acordo com as leis do mundo das coisas.

Esse fenômeno não está circunscrito apenas às relações econômicas estabelecidas no capitalismo, estende-se às relações sociais forjadas nesse sistema (LUKÁCS, 2003). Assim, uma vez que relações humanas são transformadas em coisas, objetos ou reduzidas a mercadorias, tende-se, inevitavelmente, a uma estagnação do pensamento, ao automatismo do olhar e ao confinamento e repetição de experiências (consumo). Para melhor esclarecer essas ideias e, ao mesmo tempo, relacioná-las à leitura literária, à cultura digital e ao papel da escola, convidamos o(a) leitor(a) a um rápido exercício de imaginação expresso na situação a seguir: Suponhamos que um jovem youtuber ou influenciador digital com milhões de seguidores lance um livro autobiográfico e utilize sua influência nos meios digitais para divulgar seu produto. Por sua vez, um jovem de 14 anos que acompanha o canal e admira o youtuber, diante do apelo e de sua identificação com o influenciador, muito provavelmente vai se interessar pelo livro anunciado e, por meio dos pais, irá adquiri-lo. Poderá ainda o ler e o apreciar bastante este e outros livros de grande apelo comercial que, na situação apresentada, apenas repetiria o que já era conhecido, aliás, o que é contado constantemente, a vida cotidiana de pessoas que são consideradas celebridades.

Esse tipo de leitura, por si só, não oferece grandes problemas. Pode inclusive incentivar a formação de jovens leitores. O problema acontece, no nosso entendimento, se a escola, em nome do respeito a uma suposta liberdade de escolha do aluno, incorpora e legitima no fazer pedagógico essas leituras que a própria vivência do dia a dia já lhe “oferece”. Ao agir dessa forma, a escola sepulta qualquer possibilidade de emancipação intelectual, visto que, no geral, esses textos apenas repetem o que há de mais trivial na existência humana, numa espécie de reiteração “perpétua” do cotidiano.

É, no mínimo, ingênua a crença de que os jovens, ou mesmo os adultos, são livres para escolherem seus livros. A “escolha” começa quando há aqueles e não outros livros na prateleira ou na página inicial do site de vendas. Começa quando o seu youtuber favorito lança um livro. Começa quando os algoritmos mapeiam as preferências dos usuários da internet e sugerem produtos. Começa quando grandes corporações comerciais e a indústria cultural pautam o que vai estar nas telas dos cinemas. Nesse contexto, parece-nos desarrazoada a ideia de que quando a escola indica uma obra, desrespeita ou violenta a liberdade dos alunos.

Cabe-nos questionar se, em razão da suposta liberdade de escolha do aluno, não estaríamos privando-o de um bem seu por direito e subestimando as chances de que ele amplie seus conhecimentos para além do seu próprio repertório, se a possibilidade de escolha se limita ao que está em voga na atualidade e favorece ou não uma ampliação progressiva do nível dos alunos em termos de proficiência linguística e qualidade literária das produções atemporais (PERRONE-MOISÉS, 2016).

A situação, aqui tomada como hipotética, é perfeitamente factível. Em uma pesquisa desenvolvida por Loureiro, Ramalhete e Sten (2020), que analisou a lista dos livros infantojuvenis mais vendidos no Brasil entre 2014 e 2018, os investigadores concluíram que a maior parte dos livros reproduzem a superficialidade da vida ordinária, seja na forma de expressão ou no conteúdo, e demandam pouca reflexão.

A pesquisa mostra, ainda, que muitos livros desse ranking têm como autores grandes (aqueles que têm milhões de seguidores nas redes sociais) youtubers e influenciadores digitais, como é o caso de Felipe Neto, Lucas Neto, Christian Figueiredo e Larissa Manoela. Esses autores publicaram livros com histórias da infância, ou a rotina de um(a) youtuber ou sua trajetória de sucesso. De modo geral, o mercado editorial hegemônico, exemplificado nessas obras, oferece ao público “um mundo de diversão, cores, jogos e distração” (LOUREIRO; RAMALHETE; STEN, 2020, p. 10).

E esse mundo materializado e reificado nesses livros colabora para a construção contínua de um olhar limitado, automático e repetitivo. Isso vai de encontro ao convite que a literatura faz a cada leitor, que é mergulhar em um universo que violenta e questiona a linguagem trivial e fossilizada (LARROSA, 2003). Violenta um mundo que, geralmente, nos é apresentado como dado e não como construção histórica.

Duas dimensões muito evidentes desse mundo que nos é dado e que afetam as subjetividades de todos, especialmente dos jovens, dizem respeito às necessidades de consumo e de diversão. Sibilia (2012) trata em seu livro Redes ou paredes: a escola em tempos de dispersão de alguns pontos de colisão entre a escola, uma instituição de controle criada na modernidade, e as subjetividades forjadas nas dispersões da contemporaneidade.

No que diz respeito ao consumo, essa estudiosa argumenta que a escola, ao incorporar a lógica de mercado, se tornou, ao longo do tempo, uma espécie de empresa que presta um serviço que mais se preocupa em capacitar clientes do que formar cidadãos. Pensando na educação contemporânea, Sibilia (2012, p. 118) apresenta uma questão que nos parece fundamental: “o que significaria educar, quando as subjetividades envolvidas nesse processo já não são as do professor e do aluno, mas as de consumidores imersos em plena era midiática?”

Essa lógica mercantil da educação materializa-se no cotidiano das escolas de formas variadas: desde o aluno/consumidor que exige que suas vontades sejam satisfeitas (definição de datas de entrega de atividades, seleção de livros para leitura, indicação de atividades que sejam divertidas etc.) até, em casos mais extremos, especialmente na rede privada, de alunos que alegam que pagam os salários dos professores e que, portanto, têm o direto de ditarem como devem ocorrer as aulas.

Essa lógica pode ser incorporada, inclusive, por meio de ações pedagógicas muito bem-intencionadas, mas pouco refletidas, que recorrem às potencialidades da cultura digital para os processos de ensino e de aprendizagem. Os mesmos exemplos e situações que apresentamos na seção anterior como potências, e com os quais concordamos, caso estivessem eivados de adesão acrítica e descontextualizada, apenas reproduziriam subjetividades marcadas pelo consumo, lazer e reificação, tudo o que, na qualidade de educadores, definitivamente, não queremos. Daí a importância da ação pedagógica planejada e refletida. Pensando no ensino de literatura, tomemos para reflexão um recurso que apresentamos com potência na seção anterior: o YouTube.

A plataforma YouTube abriga milhões de vídeos com os mais diversos tipos de conteúdo e serviços. De tutoriais que ensinam a melhor forma para descascar um coco a aulas e debates entre pesquisadores das melhores universidades do mundo. Há de tudo, o que confirma o caráter híbrido da rede. Dentro desse manancial de informações, há uma comunidade de leitores de obras literárias “que transformam seu contato com os livros em relatos registrados em formato audiovisual” (CARPINTÉRO, 2018, p. 585), os booktubers.

Os conteúdos produzidos por esses leitores nessa plataforma e a cultura por eles engendrada trazem, para o campo da leitura literária e para o ensino, alguns deslocamentos de papéis antes consagrados e muitas possibilidades para o trabalho pedagógico. Um desses deslocamentos, como observado por Jeffman (2017), diz respeito ao poder de influência dos críticos literários. Se antes estes tinham um poder maior de influenciar o gosto e as preferências dos leitores, “no YouTube são os próprios leitores que elaboram suas listas de melhores livros de acordo com seus gostos. Os leitores que compõem a comunidade de interesse pautam-se essencialmente pela opinião de outros leitores” (JEFFMAN, 2017, p. 109). A formação de uma comunidade em torno dos textos literários é, para o ensino de literatura, um tema muito caro e amplamente discutido (JOVER, 2007; PETIT, 2008, 2020). Então, poder ampliar essa comunidade, via tecnologias digitais, é uma estratégia que pode favorecer os processos de ensino e aprendizagem.

Para isso, é importante compreendermos que, embora o trabalho dos booktubers possa ser uma potência para formação de leitores e, pelo menos nesse aspecto, se aproxime do trabalho do professor de literatura, esses profissionais desempenham papéis distintos. Carpintéro (2018) apresenta no Manifesto Booktube, construído a partir de um olhar “de dentro para fora”, visto que essa autora também é produtora de conteúdo, algumas características dessa comunidade. No manifesto, Carpintéro (2018) destaca que embora muitos dos booktubers tenham vários “diplomas na parede”, não se apresentam como especialistas, e sim como influenciadores que falam a partir de suas experiências, sentimentos e impressões.

Então, poder tocar outros leitores e formar uma comunidade que conversa sobre determinadas obras e compartilha suas interpretações pode, sem dúvida, favorecer a formação de jovens leitores e potencializar processos pedagógicos. No referido manifesto, Carpintéro (2018, p. 587) fala sobre o desejo de encontrar/tocar outros leitores:



Se leio um livro que me comove, corro para ligar a câmera e compartilhar minha experiência de leitura. Seja para encontrar nas redes quem já tenha lido o livro e queira discutir comigo ou então para convencer outros amigos leitores a ter contato com essa história que me comoveu e que merece ser lida.

Por seu turno, o professor Carlos Ceia (2002, p. 21, grifo do autor), no livro O que é ser professor de literatura?, aponta como desafio pedagógico a seguinte questão: “como é que posso ensinar aos outros aquilo que a experiência do literário me ensinou a mim?”. Interessante observamos que a ideia de partilha de experiência/conhecimento subjaz tanto ao trabalho do booktuber quanto ao do professor. Nesse sentido, até podemos afirmar que esses papéis se fundem; mas, em hipótese alguma, se confundem.

Velloso, Santos e Amaral (2019, p. 246-247, grifo nosso), ao refletirem sobre a qualidade do trabalho da booktuber Tatiana Feltrin, apontam que “a booktuber se coloca numa posição que pode até mesmo se sobrepor ao trabalho dos docentes de Literatura, se os mesmos não atentarem para o contexto de convergência de mídias (JENKINS, 2009) em que nos inserimos”. Temos uma compreensão diversa desta que é enunciada pelas pesquisadoras. Cremos que o trabalho do(a) profissional booktuber não pode mesmo se sobrepor ao trabalho docente, visto que essas atividades não concorrem e têm, no seu cerne, naturezas muito distintas. Enquanto o booktuber compartilha suas experiências e impressões sobre obras literárias de maneira mais livre e despretensiosa, o professor, por meio de uma ação pedagógica sistemática e intencional, que acontece na escola, promove o encontro entre os alunos e os textos literários em uma situação de ensino-aprendizagem.

Essa compreensão não significa que os professores não devam estar atentos à cultura da convergência, ao desenvolvimento tecnológico, às potencialidades da cultura digital para ensino e aprendizagem e, sobretudo, ao aprimoramento metodológico, desafios constantes e necessários ao exercício docente. Igualmente, não estabelece qualquer tipo de hierarquia entre professores e booktubers, tampouco menospreza o trabalho destes.

Aliás, a booktuber Tatiana Feltrin apresenta em seus vídeos dicas de leitura, análises e comentários muito interessantes sobre obras nacionais e internacionais, clássicas e contemporâneas. E faz isso de forma contextualizada e com uma linguagem que cria proximidade com público (VELLOSO; SANTOS; AMARAL, 2019). Isso é excelente e, claro, pode favorecer o trabalho do professor. A ponderação que fazemos diz respeito ao reconhecimento das diferenças que existem nos meios e, sobretudo, nos fins entre o trabalho pedagógico e a criação de conteúdos em torno de obras literárias.

Devemos ponderar, ainda, que a circulação de conteúdos na internet e a conclamação de uma cultura participativa está fortemente atrelada a uma participação ativa de consumidores (JENKINS, 2008). Então, no caso do trabalho dos booktubers, para além da partilha de impressões sobre textos, há também o compromisso com a promoção e venda dos livros, geralmente distribuídos pela Amazon, potência mundial no e-commerce. Em outras palavras, formam-se leitores e consumidores. Há algum problema em vender livros? Claro que não! Oxalá os livros estejam cada vez mais presentes na vida da população, especialmente daquela mais carente! Apenas ponderamos que ao recorrermos, dentro de um processo pedagógico, ao YouTube, precisamos ter em mente e refletir com os alunos que também há ali uma peça publicitária e que nem sempre precisamos adquirir o produto anunciado.

Não é comum, por exemplo, por motivos óbvios, que os booktubers recomendem aos leitores que procurem os livros em sebos, em bibliotecas públicas ou escolares, ou na própria internet. Ao contrário, por vezes, clássicos da literatura brasileira, como Dom Casmurro, por exemplo, que estão disponíveis no Portal Domínio Público, são anunciados com preços que nem sempre são tão convidativos. Em alguns canais, há uma hipervalorização não da leitura, mas, principalmente, do consumo, como aponta o jovem booktuber Alec Costa.

Aqui, novamente apresentamos um olhar “de dentro para fora”, no qual Costa (PRECISAMOS..., 2020) relata que na comunidade de booktubers, “quanto mais você mostra que você tem e [...] que você pode comprar e que você comprou e quantos novos livros você tem, por mais que você não tenha lido absolutamente nenhum deles, mais visualização você vai ter”. O jovem segue seu relato fazendo uma comparação entre duas situações ocorridas em seu canal.

Na primeira, ele produziu um vídeo de 3 minutos sobre a obra Cachorro Velho, de Teresa Cárdenas. Segundo Costa, a obra lhe tocou bastante por se tratar de um assunto muito forte, que é a escravidão. Pelo fato de o booktuber tratar com frequência em seu canal sobre temas relacionados à negritude, ele imaginava que o vídeo teria uma grande repercussão, o que não aconteceu. Em contrapartida, um vídeo de 19 minutos, intitulado Muitos livros novos, que tinha como miniatura uma pilha de livros que caía sobre Alec Costa, obteve muito mais sucesso (número de visualizações, curtidas e comentários), ainda que o booktuber não tivesse lido qualquer uma das obras e não tivesse, naquela ocasião, apresentado algum conteúdo, como ele próprio aponta.

Ratificamos que não é nosso intuito subvalorizar o trabalho dos booktubers. Ao contrário, o compartilhamento da forma como leitores se relacionam com obras literárias é, para o ensino de literatura, potência. Apenas ponderamos que, por se tratar também de uma atividade econômica, a ação de alguns influenciadores está em conformidade com as leis do mundo das coisas (BOTTOMORE, 2001), um mundo que hipervaloriza o consumo de mercadorias. E essa reflexão não pode escapar à ação pedagógica, visto que, em nome de um consumo imediato, que colide com o tempo que é necessário à leitura de obras consideradas mais densas, circulam na rede enunciados como o apresentado na Figura 2.

Fonte: Crie... (2021).

Figura 2 Tweet de Felipe Neto sobre leitura literária na escola 

A publicação surgiu a parir da trend em circulação no Twitter, no início deste ano, intitulada “Crie uma treta literária e saia”. A polêmica criada pelo famoso youtuber Felipe Neto girou em torno da leitura literária nas escolas e desencadeou um caloroso debate nas redes. As questões levantadas a partir desse tweet puderam gerar discussões que perpassam desde o acesso a livros, ausência/presença da literatura nos anos iniciais, seleção dos textos, leitura de fruição versus leitura por obrigação até a escola como lugar do entretenimento, do confortável. Entretanto, pensar a literatura na escola não pode deixar ausente o espaço para o debate em torno da mediação na formação de leitores, na formação humana.

Questionamo-nos por quais razões os autores mencionados no tweet não seriam adequados ao aluno adolescente? Quais seriam, então, autores e obras pertinentes ao itinerário de formação desse aluno? Seriam aqueles que apresentam um mundo de distrações? A leitura literária não poderá ser também o lugar de estranhamentos? Os textos do cânone literário também não podem possibilitar relações com nossas vivências atuais ou ainda diálogos com elementos da contemporaneidade?

Sobre algumas das provocações acima, Jover (2007) nos oferece a analogia entre a educação literária e um vasto mapa que deverá ser ofertado pela escola. Nele a escolha de um itinerário se dá na coletividade, considerando os docentes, as características dos alunos e os percursos desenhados por cada comunidade escolar.

A viagem, como nos aponta essa autora, certamente não deverá ser exaustiva e, tampouco, forçosa, como nos diz Felipe Neto (CRIE..., 2021). Entretanto, compreender o trabalho com autores consagrados da literatura brasileira como um desserviço da escola nos faz pensar qual seria então o papel da escola, senão também o de formação humana a partir da experiência literária. A quem caberia oferecer aos alunos o mapa e a bússola do caminho anteriormente descrito senão a escola?

Ademais, a ideia de consumo, apontada nesta seção, nos remete a uma lógica imediatista, que não se coaduna com o tempo necessário para as ações de pensar, ler, ler compreensivamente e refletir. Afinal, o objetivo das aulas de literatura não deve consistir em reproduzir o modelo zapping da tevê, mas de educar na lentidão e na reflexão necessárias à mudança da forma como enxergamos o mundo (JOVER, 2007).

Outro aspecto importante consiste na concepção de que ler Machado de Assis e Álvares de Azevedo torna a literatura na escola “um saco”, nas palavras do youtuber. Ora, sabemos que ler não é uma tarefa fácil e consiste em uma atividade altamente complexa. O trabalho com a leitura literária exige esforço, mobiliza o exercício do pensamento, mobiliza a reflexão (ou ao menos deveria) e isso não implica no abandono dos clássicos em substituição aquilo que seria mais palatável ou que gerasse maior entretenimento ou identificação.

O que, sim, poderá ser enfadonho nas aulas de literatura, trazendo novamente Jover (2007) ao debate, é querer transformar os alunos em historiadores da literatura, limitando-se a apresentar uma periodização das escolas literárias e de características pontuais a serem memorizadas para fins de um teste. E, nesse ponto, retomamos a necessidade da mediação.

Considerando a metáfora cartográfica, acenamos para um componente fundamental do itinerário com nossos alunos viajantes, acompanhados dos mapas e bússolas: o acompanhamento do professor enquanto aquele que possibilita as condições adequadas e bem planejadas para percorrer o itinerário, aquele que promove “intervenções didático-metodológicas que podem subsidiar uma prática pedagógica mais dialógica a partir da leitura dos textos literários” (LOURENÇO; DALVI, 2019, p. 82).

A escola, portanto, não pode se privar da necessidade de garantir o direito aos jovens (ou de muitas vezes garantir sua única oportunidade) do acesso à leitura de cânones, à inclusão cultural e à formação humana. A leitura de clássicos da literatura e de textos não literários e modalidades que circulam na cultura digital podem estabelecer profícuos diálogos nos quais o clássico revela sua atualidade e contempla os mais diversos elementos que caracterizam nossa condição humana ou em que o elemento contemporâneo possa ser um ponto de partida para o contato com o texto literário.

CONSIDERAÇÕES CONTÍNUAS

A pesquisa que desenvolvemos buscou apontar interseções entre elementos da cultura digital e o ensino de literatura, bem como as ponderações que se fazem necessárias à atividade pedagógica.

Inicialmente contextualizamos o estudo e apontamos nossas questões de pesquisa. Em seguida, apresentamos os pressupostos teóricos da netnografia que nos orientaram e descrevemos o processo de construção da pesquisa e de elaboração do manuscrito.

Prosseguimos com a discussão sobre o que existe em potência na cultura digital para o ensino de literatura. Em seguida fizemos algumas ponderações sobre a incorporação de elementos dessa cultura ao ensino de literatura. Ao tratarmos do que entendemos enquanto potências na integração desses elementos, apontamos o espaço dado em documentos oficiais ao trabalho com o texto literário em associação às múltiplas linguagens e mídias da contemporaneidade, bem como algumas possibilidades práticas oriundas de experiências pedagógicas exitosas divulgadas no meio acadêmico. Aliado a isso, deparamo-nos também com a necessidade de tecer ponderações que fomentassem o exercício da reflexão crítica e trouxessem à tona um olhar mais atento e responsável na problematização e superação das ações do cotidiano que adentram o espaço escolar e permeiam as aulas de literatura na cultura digital.

Nesse movimento, esperamos ter evidenciado a necessidade de um olhar reflexivo e investigativo para tudo aquilo que compõe a cultura contemporânea, especialmente para o que existe em potência para a ação pedagógica: um olhar nem tão cético, que paralise a ação, nem tão inebriante, que entorpeça os sentidos e faça dos professores meros repetidores do que acontece fora da escola, em um improdutivo exercício de reiteração do cotidiano.

O cenário atual é marcado pela velocidade com que circulam as informações no mundo e pela oferta/venda de novos pacotes prontos para o uso/consumo nas escolas. Diante disso, consideramos uma inovação pedagógica a pausa necessária à reflexão e à produção autoral de propostas que considerem elementos da cultura contemporânea sem que haja esvaziamentos do papel da escola e do professor.

A educação escolar, que inclui o ensino de literatura, precisa sim estar de mãos dadas com o que existe em potência na contemporaneidade, não para reproduzir o ordinário, mas para, no mínimo, forjar novas formas de ser e estar no mundo, que colaborem para compreendê-lo e, sobretudo, para transformá-lo.

A pesquisa tem como limites a quantidade de estudos apontados, os enunciados analisados e as possibilidades pedagógicas vislumbradas. Há na cultural digital um verdadeiro manancial de informações que podem ser objeto de pesquisa. Outros pesquisadores poderão realizar revisões sistemáticas de literatura sobre o tema, apontar outras possiblidades pedagógicas para os mesmos enunciados discutidos neste trabalho ou para outros.

Esperamos assim ter dado o nosso contributo para a discussão acadêmica em torno da aproximação entre cultura digital e ensino de literatura, especialmente no que tange às ponderações necessárias ao exercício da docência.

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Recebido: 18 de Abril de 2021; Aceito: 17 de Novembro de 2021

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