SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.31 número65CULTURA DIGITAL Y ENSEÑANZA DE LITERATURA: POTENCIAS Y PONDERACIONESRELACIÓN ENTRE LA FORMACIÓN DOCENTE Y LAS TECNOLOGÍAS DIGITALES: UN ESTUDIO EN LA EDUCACIÓN SECUNDARIA PORTUGUESA índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
Home Pagelista alfabética de revistas  

Servicios Personalizados

Revista

Articulo

Compartir


Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade

versión impresa ISSN 0104-7043versión On-line ISSN 2358-0194

Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade vol.31 no.65 Salvador ene./mar 2022  Epub 25-Oct-2022

https://doi.org/10.21879/faeeba2358-0194.2022.v31.n65.p281-301 

ESTUDOS

LITERATURA INFANTIL DIGITAL: DA PRODUÇÃO BRASILEIRA À LEITURA DE CRIANÇAS

DIGITAL LITERATURE FOR CHILDREN: FROM BRAZILIAN PRODUCTION TO CHILDREN’S READING

LITERATURA INFANTIL DIGITAL: DE LA PRODUCCIÓN BRASILEÑA A LA LECTURA INFANTIL

Rafaela Vilela*  Universidade Federal do Rio de Janeiro
http://orcid.org/0000-0003-2761-6385

Patricia Corsino**  Universidade Federal do Rio de Janeiro
http://orcid.org/0000-0003-4623-5318

*Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professora do Colégio de Aplicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Rio de Janeiro - Brasil. E-mail: rafalouise@gmail.com

**Pós-doutorado em Educação pela Università degli Studi di Pavia-Itália. Doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Professora Associada da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Rio de Janeiro - Brasil. E-mail: corsinopat@gmail.com


RESUMO

O artigo apresenta resultados de uma pesquisa de doutorado e tem como objetivos divulgar a produção de literatura infantil digital no Brasil e discutir esse novo modo de fazer e de ler literatura. Para isso foram realizadas: i) pesquisas em sites de editoras, livrarias virtuais e na categoria “infantil digital” do Prêmio Jabuti (2015 a 2017) e ii) análises de três aplicativos literários: “Pequenos grandes contos de verdade”, “Quanto bumbum!” e “Mãos mágicas” em diálogo com ações propositivas de leitura realizadas com um grupo de crianças de 5 e 6 anos de uma escola pública federal do Rio de Janeiro. Apesar do pouco espaço no mercado editorial brasileiro, a pesquisa evidenciou a literatura infantil digital como uma produção artística potente, cujo acesso coletivo planejado foi capaz de amplificar as ações de leitura na escola e de contribuir para a formação literária de crianças e professores.

Palavras-chave: literatura infantil digital; aplicativos literários; leitura literária; educação infantil

ABSTRACT

The paper presents results of a doctoral research and aims to disseminate the production of children's digital literature in Brazil and discuss this new way of doing and reading literature. For this, we carried out: i) searches on publishers' websites, virtual bookstores and in the “digital children's” category of the Jabuti Award (2015-2017) and ii) analyzes three literary apps: “Little great tales of truth”, “How much butt!” and “Magic rands” in dialogue with purposeful reading actions carried out with a group of children aged 5 and 6 years old from a federal public school in Rio de Janeiro. Despite the limited space in the Brazilian publishing market for digital children's literature, the research showed that this is a powerful artistic production, whose planned collective access was able to amplify reading actions at school and contribute to the literary formation of children and teachers.

Keyword: children's digital literature; literary apps; literary reading; early childhood education

RESUMEN

El artículo presenta resultados de una investigación doctoral y tiene como objetivo difundir la producción de literatura infantil digital en Brasil y discutir esta nueva forma de hacer y leer la literatura. Para ello, realizamos: i) búsquedas en las webs de las editoriales, librerías virtuales y en la categoría “digital infantil” del Premio Jabuti (2015-2017) y ii) análisis de tres apps literarios: “Pequeños grandes cuentos de la verdad”, “Cuantos traseros!” y “Manos mágicas” en diálogo con acciones de lectura intencionada realizadas con un grupo de niños de 5 y 6 años de una escuela pública federal en Río de Janeiro. A pesar del espacio limitado en el mercado editorial brasileño para la literatura infantil digital, la investigación mostró que se trata de una producción artística poderosa, cuyo acceso colectivo planificado fue capaz de amplificar las acciones lectoras en la escuela y contribuir a la formación literaria de niños y profesores.

Palabras clave: literatura infantil digital; apps literarias; lectura literaria; educación infantil

Introdução1

A tecnologia remete, hoje, não a alguns aparelhos, mas, sim, a novos modos de percepção e de linguagem, a novas sensibilidades e escritas. (MARTÍN-BARBERO, 2006, p. 54).

As tecnologias digitais têm alterado os processos de produção, circulação e percepção da linguagem e, por conseguinte, da cultura e dos modos de subjetivação. Relações entre tecnologia e inovação têm se imposto a diversos campos socioculturais. Na educação faz-se necessário refletir não apenas sobre as disrupções que essas relações têm provocado, como também sobre as continuidades: o que se suspende, o que se interrompe, o que se altera nos processos e também o que se exacerba, se aprofunda e se potencializa. Walter Benjamin (1993), crítico da modernidade, no século passado, alertava para a ideia de história como um curso contínuo rumo ao progresso. O quadro de Paul Klee, Angelus Novus, traz o anjo da história olhando os destroços do passado, mas irremediavelmente sendo impelido para o futuro. Esta imagem dialética nos faz refletir se haveria como deter o fluxo do progresso para observar os cacos dos destroços que ficaram para trás e reconstituir algo novo a partir das ruínas. Para Benjamin (1993), a barbárie está na própria linguagem ao tornar-se mero veículo de informação, afastando-se do seu potencial expressivo, narrativo, extralinguístico, interpretativo, coletivo. Contudo, ao denunciar a barbárie, esse autor apresenta um conceito positivo para ela que é justamente “poder procurar a tempo por onde virá a próxima ruptura e pensar as ruínas antes que elas se produzam” (KONDER, 1999, p. 83). Neste sentido, a arte, e a literatura infantil em particular, se apresentaria como uma possibilidade de ruptura? O que pode a leitura literária digital com as crianças na escola?

Henri Jenkins (2008) afirma que experimentamos hoje a cultura da convergência, destacando o lugar central que as mídias conquistaram nas sociedades contemporâneas. Para esse pesquisador norte-americano, compreender a convergência envolve considerar as transformações pelas quais a lógica da indústria atua: uma mudança tanto na forma de produzir quanto na forma de consumir informações. Operamos dentro de um fluxo incessante de conteúdos. Uma lógica que altera de forma profunda o consumo cultural, já que os usuários deixam de ser meros receptores e passam a atuar como criadores e transmissores dos seus próprios conteúdos. Um processo pautado na ideia de remix e que envolve copiar, combinar e transformar conhecimentos. Um contexto que altera a ideia de autor e que oferece à criação um caráter de obra-acontecimento.

A literatura infantil digital surge nesse contexto e se caracteriza como uma produção ficcional que conjuga texto, imagem, movimento, som e interatividade. Uma proposta que rompe com a linearidade textual consolidada pelo suporte impresso, transformando as relações entre autor-obra-leitor. Candido (2011), ao ressaltar o lugar formativo e humanizador da literatura, nos leva a indagações: como a literatura infantil digital pode romper com a ideia dominante de consumo cultural e se aproximar de questões relativas à formação cultural humanizadora? Ela poderia romper com a superfície do mero entretenimento e provocar experiências estéticas capazes de deslocar os sujeitos da “história única” a que, muitas vezes, estão imersos, como aponta Adiche (2019)?

Com o objetivo de investigar como a literatura na tela, com seu caráter híbrido e multimodal, pode dilatar as experiências de leitura das crianças, foi realizada uma pesquisa de doutorado (VILELA, 2019) com um grupo de crianças de 5 e 6 anos de idade em uma escola pública federal do Rio de Janeiro. A pesquisa-intervenção partiu de uma perspectiva dialógica, um agir propositivo que encontra na alteridade fundamentos para um investigar compartilhado (MACEDO et al., 2012). Fundamentos teórico-metodológicos que possibilitam olhar para os artefatos da infância, em diálogo com as crianças, sujeitos competentes, produtores de cultura (BENJAMIN, 1992), que têm muito o que dizer sobre arte e tecnologia.

Cabe ressaltar que foi nosso interesse investigar como a leitura coletiva de obras literária digitais na escola poderia se configurar como experiência, considerando o sentido benjaminiano do termo erfahrung, que se relaciona ao caráter de comunidade entre vida e palavra. Experiência que, segundo Benjamin (1993), estaria em declínio nos tempos atuais, mas que entendemos ser possível na educação infantil pelo seu fazer relacional e artesanal e, também, pelas formas singulares como as crianças pequenas repetem, retomam, mostram, se expressam, tecem relações em um tempo ampliado, indicando participar “da ligação secular entre a mão e a voz, entre o gesto e as palavras” (GAGNEBIN, 1993, p. 11).

Nesse contexto, foram realizadas ações propositivas envolvendo a leitura de nove aplicativos literários. Antônia, Bento, Bruno, Carolina, Giovana, Maitê, Marcela, Pedro, Vanessa e Vitória foram os interlocutores desse processo investigativo. Dez crianças, dez diferentes modos de ver e entender o mundo. Os movimentos de leitura dos meninos e meninas foram registrados por meio de filmagens, anotações em caderno de campo feitas por uma pesquisadora-assistente e notas escritas por uma das autoras e também coordenadora das ações. O conceito de captura de instantes foi construído como tentativa de articular esses planos: uma unidade discursiva que entrelaça todas essas camadas de observação.

Com o intuito de ampliar as reflexões sobre inovação e tecnologia na educação, este artigo apresenta um panorama da produção de literatura infantil digital no Brasil, discutindo características desse novo modo de fazer e de ler literatura a partir da análise de três aplicativos: “Pequenos grandes contos de verdade”, “Quanto bumbum!” e “Mãos mágicas”. Para isso, realizamos dois movimentos. Primeiramente, criamos um mapa de obras digitais, a partir de pesquisas em sites de editoras, livrarias virtuais e na divulgação dos finalistas na categoria “infantil digital” do Prêmio Jabuti (2015-2017). A partir desse mapa e em diálogo com os critérios de qualidade elencados por Real e Correro (2018), selecionamos aplicativos literários para ler para e com as crianças na escola. Movimentos que possibilitaram pensar a literatura infantil digital a partir de uma circularidade capaz de dilatar as discussões sobre arte, infância e tecnologia, e, ao mesmo tempo, apresentar caminhos para o planejamento das ações de leitura na escola, contribuindo para a formação literária de crianças e professores.

O texto está organizado em quatro partes: a primeira traz considerações sobre a literatura infantil digital; na sequência, apresenta a produção literária digital brasileira; na terceira parte busca diálogo com as crianças para analisar três aplicativos literários; e, por fim, nas considerações finais, indica que apesar do pouco espaço no mercado editorial brasileiro, a literatura infantil digital é uma produção artística potente, capaz de amplificar as ações de leitura na escola e de contribuir para a formação literária de crianças e professores.

Literatura digital para infância

A perspectiva ficcional é, de acordo com Ramada Prieto (2017), o elemento que constitui a comunicação literária digital. O conceito de ficção digital desponta como um contraponto à ideia de narrativa, uma concepção que indica especificidades na estrutura e nas formas de expressão e que se encontra pautada em quatro aspectos: i) mudança da materialidade; ii) presença da multimodalidade; iii) participação como uma nova relação entre autor-obra-leitor; e iv) ruptura da linearidade textual.

O primeiro aspecto destaca que a literatura infantil digital apresenta-se ao leitor na tela. Isso, por si só, transforma a natureza do objeto e o contexto de comunicação literária, posto que envolve uma mudança na produção e na recepção da obra.

A multimodalidade, segundo aspecto sinalizado pelo pesquisador catalão, é um artifício definidor dessa produção estética (HAYLES, 2008), posto que as ficções digitais trazem como marca a convergência entre diferentes linguagens, sendo construída pelo entrelace entre imagem, texto, som, movimento, interatividade.

O terceiro aspecto refere-se à participação do leitor na obra. Embora a interatividade seja vista como elemento central da literatura infantil digital, Ramada Prieto (2017) ressalta que em muitas obras ela se apresenta como um mero adorno tecnológico. Nesse sentido, uma produção digital de qualidade abarca bem mais do que a inclusão de recursos que envolvam apenas o simples toque na tela. Para que o leitor participe da ficção, o clique precisa capturá-lo para dentro da obra, fazendo surgir novos elementos, animar figuras, acionar sons, explorar outros planos, apresentando a possibilidade de modificar, de fato, a obra.

Por fim, a ruptura com a linearidade textual é, definitivamente, um ponto que altera a arquitetônica da comunicação literária e os modos de ler. A natureza hipertextual presente nas obras digitais rompe com a perspectiva de uma narrativa com princípio, meio e fim, instaurando uma lógica não sequencial, que oferece liberdade de navegação ao leitor.

A partir dessas considerações, compreendemos a literatura infantil digital como uma produção ficcional contemporânea para ser lida exclusivamente em meio digital. Trata-se de uma obra multimodal, não linear, que entrelaça diferentes linguagens e poéticas. A limiaridade presente nas ficções digitais é o que permite aos leitores transitar entre diferentes territórios semióticos e de, nesse ir e vir, construírem suas leituras.

Na tela, observamos a literatura infantil surgir de forma tímida. Por vezes, parece ser confundida com a simples digitalização da obra impressa. É preciso frisar a produção digital para infância não como uma simples adaptação de suporte, mas entendê-las como “obras híbridas, multimodais e multissensoriais que podem apresentar: texto, imagens, sons e também a possibilidade de interação do leitor, aumentando, assim, a sua motivação e criatividade” (CORRERO, 2014).

Nesse contexto de criação, é possível perceber dois movimentos: i) a produção de obras que ainda têm o livro impresso como referência direta para sua produção e ii) o lançamento de ficções multimodais que têm como pressuposto a não linearidade de leitura e que exigem uma participação ativa do leitor. O primeiro movimento configura-se como uma transposição da mídia impressa para a digital associada a pequenos recursos como: narração em voz alta, pequenos efeitos sonoros e movimentos, oferecendo ao leitor uma interação simplificada e limitada com a obra. O segundo movimento caracteriza-se pela composição de diferentes linguagens e pelo uso da hipertextualidade. A história se desdobra a partir dos cliques e da participação efetiva do leitor. Ações que podem ser realizadas em diferentes ordens, proporcionando rotas alternativas. É dentro dessa categoria que surgem os aplicativos literários, definidos por Frederico (2021, p. 3) como obras que utilizam disposições “materiais, codificadas, multimodais e hipermidiáticas dos dispositivos móveis de tela sensível ao toque, para transmitir uma obra literária em que a participação do leitor, por meio da interatividade, é essencial para o desenvolvimento da sua poética”.

As ações propositivas foram planejadas a partir da escolha de aplicativos literários que apresentassem recursos de participação na estética ficcional. A pesquisa evidenciou que as obras digitais ampliaram as experiências de leitura das crianças, configurando-se como convite para adentrarem no espaço lúdico-simbólico da literatura, instigando o olhar sensível e reflexivo de todos. Considerações que destacam a importância de mais pesquisas que tratem sobre a produção e a recepção da literatura infantil digital.

Um olhar para a produção brasileira

Nos últimos anos, de modo ainda tímido, vimos iniciar a produção de obras digitais destinadas ao público infantil no Brasil. Como a literatura infantil digital tem sido produzida no Brasil? Quais editoras têm investido nesse formato? Que obras estão disponíveis para acesso? Com o intuito de responder a essas questões, escolhemos primeiramente olhar para as editoras brasileiras que apresentam a literatura infantil como foco de produção. Por tratar-se de um evento que divulga o livro para crianças e jovens, selecionamos as editoras que participaram das edições do Salão da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ), ocorridas em 2017 e 2018 (Quadro 1). A partir deste critério, reunimos uma listagem com 30 editoras e/ou grupos editoriais, uma seleção que contempla as maiores produtoras de títulos impressos de literatura infantil no país.

Fonte: Elaborado pelas autoras deste artigo.

Quadro 1 Listagem de editoras que participaram do Salão do Livro Infantil e Juvenil - Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ), em 2017 e 2018 

A partir da leitura e análise dos sites dessas editoras, foi possível perceber um movimento ainda pequeno de produção digital para infância: do total de editoras investigadas, apenas 27% delas, índice que corresponde a 8 editoras, produziram e/ou adaptaram alguma obra infantil para ser lida em dispositivo eletrônico. São elas: Ática/Scipione/Saraiva, FTD, Globo, Melhoramentos, Moderna/Salamandra, Peirópolis, SESI-SP, WMF/Martins Fontes. Um movimento que sugere que 73% das editoras investigadas parece ter interesse em permanecer apenas no mercado de obras impressas.

Em contrapartida, ao analisar as listagens dos finalistas da categoria infantil digital do Prêmio Jabuti entre os anos de 2015 e 20172 (Quadros 2, 3 e 4), é possível observar dois movimentos interessantes: i) o reconhecimento das editoras já mencionadas, em especial de cinco delas: Ática/Scipione/Saraiva (1 obra), FTD (4 obras), Melhoramentos (2 obras), Peirópolis (2 obras) e SESI-SP (6 obras); ii) o surgimento de editoras especializadas na produção de literatura infantil digital, como é o caso da Caixote Editora (2 obras) e da Editora Storymax (2 obras).

Fonte: Elaborado pelas autoras deste artigo.

Quadro 2 Listagem dos finalistas da Categoria Infantil Digital - 57o Prêmio Jabuti - 2015 

Fonte: Elaborado pelas autoras deste artigo.

Quadro 3 Listagem dos finalistas da Categoria Infantil Digital - 58o Prêmio Jabuti - 2016 

Fonte: Elaborado pelas autoras deste artigo.

Quadro 4 Listagem dos finalistas da Categoria Infantil Digital - 59o Prêmio Jabuti - 2017 

As listas apresentam, ao todo, 34 obras de literatura infantil digital (Quadros 2, 3 e 4). Há títulos que foram adaptados para o ambiente digital e outros que se destacam por apresentaram software próprio, configurando-se como aplicativo. A pesquisa em livrarias virtuais ampliou essa listagem (Quadro 5).

Fonte: Elaborado pelas autoras deste artigo.

Quadro 5 Listagem de produções digitais para a infância, construída a partir pesquisa em livrarias virtuais em 2019 

Ao todo, juntando todas as listagens, conseguimos mapear 49 obras de literatura infantil digital produzidas no Brasil até o ano de 2019. Um número realmente pequeno comparado às produções editoriais de literatura infantil. Além da baixa produção, há outro problema: muitos aplicativos não se encontram mais disponíveis para compra na Apple Store ou na Google Play, exibindo na tela a seguinte mensagem: “o item solicitado não está atualmente disponível na iTunes Store brasileira”. A descontinuidade atinge, inclusive, aplicativos premiados como: “Flicts” (Jabuti) e “Quem soltou o pum?” (The Bologna Ragazzi Digital Award). Reflexões que corroboram as análises feitas por Frederico (2019) diante da pouca quantidade de obras digitais para infância inscritas para avaliação do Selo da Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio.

Apesar da pequena produção brasileira e de parte apresentar falhas no quesito disponibilidade, compreendemos que esse é um mercado com grande potencial de expansão, visto o movimento de outros países. Destacamos que há títulos de qualidade no mercado, inclusive opções de acesso às obras gratuitas. Nesse contexto, assim como Kirchof (2016), defendemos a criação de espaços de pesquisa sobre a produção editorial da área e, consequentemente, sobre a qualidade das obras digitais para infância.

De olho no tablet: crianças e aplicativos na escola

A partir do mapeamento apresentado, selecionamos nove obras digitais para ler com as crianças nas ações propositivas realizadas na escola. Para a seleção, consideramos os critérios de qualidade elencados por Real e Correro (2018) que avaliam dimensões relacionadas aos aspectos formais, ao conteúdo e à adequação ao leitor. Os aspectos formais pautam-se em parâmetros que tratam sobre a disponibilidade do aplicativo, a segurança de uso e os artifícios paratextuais expostos. Os aspectos relacionados ao conteúdo implicam uma observação do produto editorial, das possibilidades de personalização, da presença da multimodalidade, da participação do leitor e, ainda, da complexidade interpretativa da obra. Por fim, os aspectos que dizem sobre a adequação da obra ao leitor tratam do aplicativo tecnológico em si. Nesse caso, Real e Correro (2008) indicam observar a que leitor a obra se reserva, o conhecimento tecnológico necessário para navegação e se há necessidade de o leitor possuir conhecimentos literários prévios.

A partir dessas categorias, selecionamos para ler com as crianças os aplicativos: “Crianceiras”, “Pequenos grandes contos de verdade”, “Monstros do Cinema”, “Quanto bumbum!”, “Sua história maluquinha”, “Mini Zoo”, “Mãos mágicas”, “Chomp” e “Via Láctea”. Os aplicativos “Mini Zoo” e “Chomp”, apesar de não serem produções brasileiras, foram selecionados para compor o acervo pela proposta inovadora e poética.

Foram realizados quatorze encontros, entre os meses de julho e outubro de 2018, com uma turma de pré-escola, de crianças de 5 e 6 anos de idade que frequentavam uma escola pública federal na cidade do Rio de Janeiro. Cada encontro teve a duração média de 50 minutos. Eles foram planejados prevendo a seguinte organização: i) encontro inicial para apresentação da pesquisa; ii) uma rodada com quatro encontros, sendo o primeiro para apresentação de três aplicativos e a exploração livre das crianças e os três seguintes para a leitura em profundidade de cada um dos aplicativos apresentados na rodada. O movimento que foi repetido três vezes; iii) encontros finais para encerramento da pesquisa.

A liberdade das crianças em escolher o que ler e como ler, a partir de um universo previamente selecionado, foi um ponto significativo na pesquisa. A dinâmica de alternar momentos em que as crianças pudessem explorar uma gama de aplicativos e outros com a proposta de ler uma mesma obra ofereceu aos leitores a oportunidade de ler de novo, experimentar percursos e partilhar descobertas.

Foram utilizados ao todo 4 tablets3 durante as propostas. Enquanto dispositivo partilhado de leitura, o tablet permite a leitura coletiva de duas ou três crianças, no máximo. A alternância de parcerias foi uma aposta produtiva, pois fortaleceu os elos do grupo e reafirmou a leitura na escola como uma ação dialógica e alteritária. Um ato que fora da escola é geralmente individual, na escola ganhou novas possibilidades interdiscursivas, permitindo o compartilhamento de saberes entre uma comunidade de leitores.

Para este artigo, apresentamos a análise de três dessas obras: “Pequenos grandes contos de verdade”, “Quanto bumbum!” e “Mãos mágicas”. Em diálogo com os instantes capturados durante as ações propositivas na escola, destacamos características, recursos e funcionalidades da literatura infantil digital.

Pequenos grandes contos de verdade

Criado por Oamul Lu e Isabel Malzoni, o aplicativo literário “Pequenos grandes contos de verdade” venceu a categoria Infantil Digital do Prêmio Jabuti, em 2016. Disponibilizado pela Editora Caixote, o aplicativo foi lançado em julho de 2015, apenas para o sistema operacional iOS. A produção digital, baseada no livro I found a star, do escritor chinês Oamul Lu, traz três contos: “A árvore do urso”, “Feliz Natal” e “Bem Agasalhados”. Como é possível acessar gratuitamente o primeiro conto, escolhemos ler e analisar apenas “A árvore do urso”.

Fonte: Lu e Malzoni (2015).

Figura 1 Tela inicial do aplicativo Pequenos Grandes Contos de Verdade 

A tela inicial do aplicativo (Figura 1) exibe, em primeiro plano, personagens dos contos: um pinguim, um grande urso marrom e um Papai Noel. Os personagens movimentam-se na tela, convidando o leitor a escolher sua história. O anúncio do título é feito em seguida. Os tons esmaecidos em contraste com o marrom vivo do urso, juntamente com os cadeados, indicam que estamos acessando a versão lite e que apenas o conto “A árvore do urso” está disponível. Para acessar os outros contos é preciso comprar o aplicativo na Apple Store. O fundo musical é alegre e convidativo. Na tela, observamos no canto superior o símbolo da Editora Caixote e no inferior um ícone que permite escolher o idioma (português ou inglês) e um ícone com a figura de uma mão, onde o leitor pode acessar três telas: i) “somos a editora caixote” - com informações sobre a editora; ii) “por que gravar a sua própria narração?” - com um convite para os adultos usarem o recurso de gravação de voz e gravarem a leitura dos contos para as crianças; e iii) “por trás do livro-aplicativo” - com créditos da obra e informações técnicas do projeto (Figura 2).

Fonte: Lu e Malzoni (2015).

Figura 2 Captura de telas: “somos a editora caixote”, “por que gravar a sua própria narração?” e “por traz do livro-aplicativo” 

Retornando à tela inicial, ao clicar no conto “A árvore do urso”, vemos o grande urso bater palmas. Uma nova tela se abre. O urso aparece segurando uma garrafa de suco que vai aos poucos ficando cheia e, ao seu lado, três opções de áudio: i) “leia para mim” - onde um narrador faz a leitura; ii) “eu leio sozinho” - onde não há nenhum tipo de narração; e iii) “leitura especial” - onde é possível selecionar uma narração salva no aplicativo. Esse recurso oferece para o leitor a opção de gravar sua leitura ou para que familiares e amigos deixem a sua voz registrada. As leituras podem ser ouvidas quando o leitor desejar (Figura 3). No contexto das oficinas, esse foi, sem dúvidas, o recurso mais explorado pelas crianças, como veremos mais adiante.

Fonte: Lu e Malzoni (2015).

Figura 3 Captura de telas: escolha do áudio e leitura especial 

“A Árvore do Urso” narra a história de um menino que durante uma visita ao zoológico depara-se com um urso triste. Comovido, ele cria um plano para mudar essa realidade. Decide colher maçãs e, com a ajuda da avó, fazer suco para vender no mercado local. Com o valor arrecadado em mãos, o menino volta ao zoológico e pede que o dinheiro seja usado para plantar uma árvore próxima ao urso. No fim, o urso e o menino ficam felizes.

Fonte: Lu e Malzoni (2015).

Figura 4 Cenas do conto “A árvore e o urso” 

O aplicativo apresenta três ícones para navegação: “menu” - que permite ao leitor retornar para a tela inicial; “avançar” - para seguir a narrativa; e “voltar” - para retomar cenas já lidas. Essas duas últimas opções envolvem um tempo mínimo de interação do leitor com a obra, não aceitando que o leitor adiante ou retome a leitura instantaneamente.

A ilustração do aplicativo é delicada e captura o leitor. É possível observar um cuidado com a movimentação dos personagens, ilustrada a partir de pequenos gestos, como quando o menino caminha pelo zoológico, acena com a mão ou quando coça a cabeça, sem saber o que fazer. Os textos escritos aparecem intercalados com a animação, em lugar próprio. Há, em todo o conto, uma capa musical suave, além de diferentes efeitos sonoros, como: o vidro de suco quebrando, o som do mercado local etc. Os personagens comunicam-se por meio de ruídos incompreensíveis e/ou por balões de fala com imagens (Figura 4), oferecendo ao leitor diferentes interpretações.

Há poucos espaços para a participação efetiva do leitor. Em todas elas, a interação está junto à ideia da solidariedade, tema da obra, como explicita Isabel Malzoni na apresentação do aplicativo. Desse modo, a interatividade de “A árvore e o urso” convida os leitores a participarem ajudando os personagens em três momentos do conto: i) colhendo maçãs; ii) participando da produção do suco; iii) vendendo os sucos de maçã no mercado local. A sinalização se apresenta majoritariamente por meio de um círculo azul, embora, em alguns momentos, surja um balão com uma indicação escrita e/ou a narração desse mesmo texto. As oficinas apontaram, entretanto, que o grande recurso de participação do aplicativo é a gravação de voz, como mostra o instante abaixo:

Fonte: Vilela (2019, p. 113-115).

Figura 5 Capturas do instante “Agora a gente vai ler e botar a nossa voz!” 

Vitória: Agora a gente vai ler e botar a nossa voz!

Antônia: Rafa, onde que aperta?

Leio para as meninas o que está escrito na tela: ‘Clique aqui para gravar a sua leitura. Para começar a gravação adicione e nomeie a sua narração’.

Despois de escreverem os seus nomes, elas começam a gravar:

Vitória inicia, dizendo: Era uma vez um menino que foi ao zoológico.

Antônia: Aí o menino viu um urso.

Vitória: Depois o menino foi catar maçãs e depois o menino pegou as maçãs e foi para casa...

Vitória: e foi, e foi, com a sua... Era a avó?

Antônia: Foi sozinho!

Vitória: Foi sozinho para casa e a sua avó ajudou.

Antônia: A fazer suco!

Vitória: A fazer suco!

Antônia: E botar nas latinhas.

Vitória: E botar nas latinhas.

Vitória: Mais aí algumas garrafas caíram.

Vitória: E tiveram que fazer mais... e depois o menino foi vender no supermercado.

Antônia: Agora é a minha vez!

Antônia: E o menino estava lá no meio da rua, que não era o supermercado, dando para as pessoas. Uma pra lá, outra pra cá, uma pra lá, outra pra cá... e ele viu uma criança e a criança quis comprar o suco e fim da história!

Vitória: Não! Fim nada! - diz balançando o dedo.

Antônia: Ah é!

Vitória: O urso ganhou uma árvore!

Antônia: É! O menino ganhou muito dinheiro...

Vitória: Aí, aí... foi dar...

Antônia: Vitória está na minha vez! Aí o menino foi no zoológico...

Vitória: ...deu para o dono do zoológico...

Antônia: Não! Pegou o seu dinheiro na mão e falou: ‘Posso pegar esse urso?’ Aí o guarda...

Vitória: Não! Deu a árvore! Dar a árvore para o urso... fala da árvore!

Pesquisadora: Ela está te ajudando a lembrar a história, Antônia.

Antônia: Mas aquela é a história que eu vou contar... e é a história verdadeira!

Vitória: Não! Não é assim! O segurança deixou ele dar uma árvore para o urso!

Antônia: Mas não dá pra tirar a árvore do lugar, sem serra. Ele não tem serra!

Pesquisadora: O que que aconteceu então? Será que foi a árvore inteira ou um pedaço dela?

Antônia: Deixa comigo, que eu estou gravando isso tudo!

Vitória: Então o menino levou o urso para o quintal dele.

Antônia: E o menino queria tanto ganhar um urso que deu de presente uma árvore para o urso e em troca deu o seu dinheiro para o guarda e ele viveu com o seu urso.

Vitória: Vamos lá ver! Vamos ouvir a gravação! (Oficina 4 - 11/07/2018). (VILELA, 2019, p. 113-115).

O instante “Agora a gente vai ler e botar a nossa voz!” ganhou esse título a partir da enunciação de Vitória. A possibilidade de gravar e ouvir a própria voz encantou a menina, entretanto, foi o desejo de Antônia de ler o conto do seu jeito o que se destacou na cena.

Há uma cumplicidade entre Vitória e Antônia, um combinado de que cada uma delas irá narrar um trecho da ficção. Ao longo de todo o instante, vemos as meninas negociarem sentidos. Vitória revelou-se mais fiel ao enredo proposto pelos autores. Antônia, por sua vez, quis imprimir sua marca à história escolhendo um novo final para a ficção. De acordo com ela, o menino, com o dinheiro em mãos, fala para o “dono/guarda/segurança” do zoológico: “posso pegar esse urso?”. Vitória não gosta e interrompe a amiga: “Não! Deu a árvore! Dar a árvore para o urso... fala da árvore!”. Antônia afirma que essa é a história dela, “a história verdadeira!”, dizendo que “não dá pra tirar a árvore do lugar, sem serra”. A árvore que aparece no conto, já grande, parece não fazer sentido para ela. Depois da explicação, Vitória embarca no desvio e propõe: “então o menino levou o urso para o quintal dele” e Antônia finaliza: “e o menino queria tanto ganhar um urso que deu de presente uma árvore para o urso e em troca deu o seu dinheiro para o guarda e ele viveu com o seu urso”.

O instante mostra que o aplicativo literário despertou nas meninas o desejo de criar sua própria narrativa. As ilustrações em movimento, o fundo musical e o texto narrado oferecem a Vitória e Antônia elementos para criação. De acordo com Vigotski (2009), criar envolve combinar e modificar algo conhecido. Como elucida Smolka (VIGOTSKI, 2009, p. 9), na apresentação do livro Imaginação e criação na infância, “é na trama social, com base no trabalho e nas ideias dos outros [...] que se pode criar e produzir o novo. Não se cria do nada”. Assim, imaginação e criação são produtos da experiência, daquilo que nos afeta e nos atravessa e que pode ser contado para o outro. A literatura, ao oferecer uma relação estreita entre fantasia e realidade, amplia esse potencial criativo, pois permite ao sujeito experimentar diferentes situações na e pela linguagem.

A imaginação [...] transforma-se em meio de ampliação da experiência de um indivíduo porque, tendo por base a narração ou descrição de outrem, ele pode imaginar o que não viu, o que não vivenciou diretamente em sua experiência pessoal. A pessoa não se restringe ao círculo e a limites estreitos de sua própria experiência, mas pode aventurar-se para além deles, assimilando, com a ajuda da imaginação, a experiência histórica ou social alheias. Assim configurada, a imaginação é uma condição totalmente necessária para quase toda atividade mental humana. (VIGOTSKI, 2009, p. 25).

O encontro com a literatura infantil digital foi, nesse sentido, um espaço-tempo de encontro com a arte, capaz de provocar nas meninas um processo de criação dialógica e coletiva. O recurso de voz despertou esse processo, sendo convite para a criação e também um produto de como Vitória e Antônia construíram a ficção com seus desejos e experiências.

Quanto bumbum!

Mais uma produção da Editora Caixote, dessa vez em parceria com a Webcore e a Pulo do Gato, o aplicativo “Quanto Bumbum!”, de Isabel Malzoni e Cecília Esteves, foi lançado em janeiro de 2017. Disponível para os sistemas operacionais Android e iOS, o aplicativo literário foi um dos vencedores da categoria Infantil Digital do Prêmio Jabuti, em 2017, ficando em terceiro lugar.

A obra narra a história de um esquilo que tenta descobrir o que está acontecendo na floresta. Veloz, ele chega bem perto da casa da família Coelho, mas não consegue ver o que é, pois há muitos bumbuns na sua frente. De acordo com o site da editora, o aplicativo oferece ao leitor a possibilidade de “escutar a história ou ler sozinho, interagir com as personagens, curtir um clipe musical bem dançante e ainda jogar duas brincadeiras diferentes”.

Fonte: Malzoni e Esteves (2017).

Figura 6 Tela inicial do aplicativo Quanto Bumbum! 

A tela inicial do aplicativo tem como fundo uma floresta (Figura 6). As letras grandes e amarelas anunciam o título, que aparece em destaque, centralizado na parte superior da tela. Do lado esquerdo, há um ícone que se parece com um sol - que permite ao leitor escolher o idioma (português, inglês e espanhol) e/ou retirar o som. No lado oposto, há um ícone com a ilustração de duas pessoas nomeado como “Gente Grande”. Ao clicar nesse ícone, abre-se uma tela com um desafio matemático, indicando ser uma área para adultos. Após a resposta correta, surge uma nova tela com informações técnicas do aplicativo (Figura 7). Apesar de estar em uma área restrita, consideramos que as informações são relevantes para todos, sejam crianças ou adultos. Por fim, há a opção de adquirir mais aplicativos da Editora Caixote.

Fonte: Malzoni e Esteves (2017).

Figura 7 Telas do ícone “Gente Grande” 

Retornando à tela inicial, há mais quatro ícones na parte inferior. O primeiro deles tem um círculo vermelho com uma seta branca dentro, similar ao botão play dos aparelhos eletrônicos, com notas musicais e o texto “Veja o clipe”. O clipe narra o conto em uma composição que entrelaça música e animação. Há uma estética musical que captura o leitor. A composição de Paulo Bira, compositor de Brasileirinhos 1 e 2, títulos de Lalau e Laurabeatriz, e as ilustrações de Cecilia Esteves, conhecida por criar os videoclipes de animação do grupo Palavra Cantada, são um ponto alto do aplicativo

A casinha branca no canto superior permite ao leitor retornar à tela inicial. Bem no centro da tela, há um círculo vermelho com um livro branco, seguido do escrito “Leia a história”. As ilustrações vivas são acompanhadas de texto escrito e narração. Em cada tela, há a opção de interagir com animais, clicando em um círculo branco. O ritmo da narrativa é lento. A transição das telas demora a acontecer. O leitor chega a pensar que há algum problema no aplicativo. No canto inferior, há setas para voltar ou adiantar a tela (Figura 8).

Fonte: Malzoni e Esteves (2017).

Figura 8 Cenas de “Leia a história” 

Por fim, retornando à tela inicial, há dois ícones com jogos. O primeiro, anunciado por um círculo vermelho com um esquilo branco acompanhado do texto “De quem é esse bumbum?”, convida o leitor a descobrir a qual bicho pertence o bumbum em destaque. Ao clicar no personagem correto, há um recurso de som que alude a uma comemoração, seguido pela narração do nome do animal. Caso o leitor clique na resposta errada, o animal some da tela, oferecendo outra oportunidade. O último ícone, representado por um círculo vermelho com quatro quadrados brancos dentro seguido do texto “Jogo da memória”, apresenta o jogo em questão. Com doze cartas, o jogo traz os personagens do aplicativo (Figura 9).

Fonte: Malzoni e Esteves (2017).

Figura 9 Captura de telas: “De quem é esse bumbum?” e “Jogo da Memória” 

Nas ações propositivas, observamos o movimento das crianças em acompanhar o clipe, cantando e dançando a trilha sonora criada para o aplicativo. Em segundo lugar, as crianças buscaram os jogos, alternando entre as propostas. Mesmo com a nossa mediação, a leitura da história foi o recurso menos procurado pelas crianças. Entretanto, o aplicativo foi potencializador de conversas entre elas, como podemos observar no instante abaixo:

Nascimento é uma grande novidade mesmo

Pesquisadora: Os autores desse aplicativo escolheram o nascimento de um filhote para ser a grande novidade da floresta. Se vocês fossem os autores, que novidade escolheriam?

Pedro: Eu ia pôr o nascimento de uma barata!

Antônia: O nascimento de uma raposa bebê.

Maitê: Todos os bichos virando bebê.

Vanessa: Eu ia colocar os bichos vendo televisão, internet e comendo um monte de chocolates.

Vitória: Um cachorrinho filhote!

Bento: Ou um gatinho filhote!

Pesquisadora: Nascimento é uma grande novidade mesmo. (Oficina 8 - 11/09/2018). (VILELA, 2019, p. 124).

O instante “Nascimento é uma grande novidade mesmo” apresenta o interesse das crianças pela temática do aplicativo. A questão levantada pela pesquisadora para que as crianças pensassem em uma novidade para a floresta torna isso claro. Pedro, Antônia, Maitê, Vitória e Bento elegem o nascimento de outro animal como novidade. Transitando entre o real e o ficcional, apenas Vanessa rompe com o enunciado dos amigos, criando uma cena com “bichos vendo televisão, internet e comendo um monte de chocolates”. Apesar de vencedor do prêmio Jabuti, esse foi um dos aplicativos preteridos pelo grupo.

Mãos mágicas

Criado por Teresa Yamashita, o aplicativo “Mãos Mágicas” faz referência ao livro homônimo também publicado pela Sesi-SP Editora, em 2013. Disponível para o sistema operacional iOS, o aplicativo literário foi um dos vencedores da categoria Infantil Digital do Prêmio Jabuti, em 2016, ficando em segundo lugar.

A obra narra a história dos irmãos Quadradinha e Fininho de Papel. Após ver o vento carregar Fininho para muito longe, Quadradinha dobra-se toda, entristecida. Mas o encontro com um sapo a faz descobrir o origami. Dobrando e desdobrando, ela transforma-se em outros animais. Vira borboleta, urso panda, gato, girafa, macaco, pássaro. Quadradinha viaja ao redor do mundo para encontrar seu irmão. Após chegar a uma casa amarela, encontra Fininho. Na casa da menina Sadako, os dois descobrem que ela também conhece a arte do origami. Juntos, enfim, eles voam em busca de novas aventuras.

Fonte:Yamashita e Suppa (2013).

Figura 10 Captura de telas: “abertura” e “tela inicial” de Mãos Mágicas 

Fininho e Quadradinha surgem em fundo verde, com árvores, assim que o leitor abre o aplicativo. As ilustrações de Suppa são vivas e repletas de estampas e textura, fazendo referência aos diferentes papéis usados na técnica do origami. Em seguida, automaticamente, surge a tela inicial. Dessa vez, os personagens não estão presentes. O fundo azulado, com uma árvore no canto da tela, anuncia, além do título do aplicativo, quatro ícones: “iniciar”, “ler você mesmo”, “biografias” e “créditos” (Figura 10).

O ícone “iniciar” apresenta a história dos irmãos acompanhado da narração, em quatorze telas. O ícone “leia você mesmo” apresenta a mesma proposta, desabilitando o recurso de narração (Figura 10). Ao longo da ficção é possível interagir com personagens e elementos do enredo. O clique faz com que surjam movimentos e sons. Cabe ao leitor descobrir os pontos de interatividade, já que não há indicação clara na tela. Entretanto, os recursos não prezam pela participação efetiva do leitor, oferecendo apenas um jogo lúdico, possivelmente por tratar-se de uma obra baseada no impresso (Figura 11).

Fonte: Yamashita e Suppa (2013).

Figura 11 Cenas de Mãos mágicas 

Retornando à página inicial, ao clicar em “biografia”, o leitor tem acesso a uma tela com informações sobre a autora Teresa Yamashita e a ilustradora Suppa. Por fim, o ícone “créditos” apresenta as informações técnicas da obra (Figura 12).

Fonte: Yamashita e Suppa (2013).

Figura 12 Captura de telas: “biografia” e “créditos” 

O aplicativo foi uma boa surpresa. Apesar da proposta do aplicativo não prever a participação ativa dos leitores para a construção da ficção, as crianças gostaram da obra e, a partir dela, compartilharam conhecimentos e descobertas. A leitura do aplicativo mobilizou discussões interessantes sobre sentimentos. Apesar da simplicidade de recursos, o aplicativo possui uma qualidade estética que capturou os leitores. As ilustrações, um ponto alto da obra, apresentam um jogo harmonioso entre cores e texturas. O silêncio presente na tela fez com que as crianças experimentassem a leitura de uma forma mais suave e sensível. Um dos poucos aplicativos sem fundo musical, “Mãos mágicas” ganhou os leitores justamente pelo modo simples de apresentar o entrelace entre texto, ilustração, movimento e som. Nada é excessivo. Isso fez com que as crianças entrassem na leitura pelo viés da ludicidade, como podemos observar no instante a seguir:

O clique na tela

Na leitura de ‘Mãos Mágicas’, as crianças se interessam em descobrir os recursos do aplicativo, experimentando movimentos e sons.

Bento ficou fascinado com o barulho do sapo, repetindo o clique na tela diversas vezes.

Bento: Olha o que eu consegui! O sapo! Clica no sapo!

Vitória: Que legal! Ele pula!

Bento: Olha o que eu descobri! Ele faz cambalhota - diz, referindo-se a um passarinho.

Giovana e Vitória descobrem que podem mexer nos elementos simultaneamente.

Giovana: Dá pra mexer junto!

Bento: Deixa eu ver?!

Bento e Maitê permanecem um bom tempo na tela em que Fininho aparece dentro do livro de histórias, brincando de fazer comidinha, misturando com o dedo a sopa que aparece em cima da mesa.

Maitê: Hum! Que delícia essa sopinha!

Bento: Você gostaria de experimentar? É de queijo! (Oficina 12 - 02/10/2018). (VILELA, 2019, p. 137).

Grande parte dos aplicativos literários apresenta de forma explícita os recursos de interação, indicando por meio de símbolos ou textos o que o leitor pode fazer. Em “Mãos mágicas” não vemos isso acontecer. Os recursos estão na tela para serem descobertos pelo leitor. O instante capturou o entusiasmo das crianças frente às descobertas do clique na tela. Bento, Maitê, Giovana e Vitória compartilham seus achados e falam sobre o sapo que pula, o pássaro que dá cambalhotas e sobre a opção de mexer ao mesmo tempo em objetos e personagens. Um dos recursos de animação, que faz surgir fumaça quando o leitor clica na sopa, provoca em Maitê e Bento o desejo de brincar de cozinha. O suporte vira brinquedo. Na tela, eles misturam a sopa e, logo em seguida, voltam a ler novamente a ficção.

Considerações Finais

Foram objetivos deste artigo apresentar um panorama da produção digital para a infância e analisar três obras em diálogo com instantes de leitura capturados durante uma pesquisa de doutorado realizada com crianças de 5 e 6 anos numa escola pública federal da cidade do Rio de Janeiro.

A pesquisa apontou que apesar de ser uma produção estética potente, a literatura infantil digital ainda tem pouco espaço no mercado editorial brasileiro. O levantamento da produção de obras disponíveis no mercado nacional resultou em apenas 49 títulos. A investigação indicou que, além da baixa produção, há também questões que comprometem o princípio da acessibilidade, já que há aplicativos indisponíveis para compra na Apple Store e na Google Play, dificultando o acesso e a consolidação de investigações no campo.

A leitura coletiva de aplicativos literários na escola reafirmou a capacidade que a literatura tem de criar espaços e tempos para o encontro, o diálogo, a brincadeira, a narratividade. As ações propositivas, organizadas de maneira que as crianças tivessem tempo para explorar livremente os aplicativos e para, em outro momento, fazerem leituras em profundidade, ampliaram os seus processos de imaginação e de criação. Os recursos lúdicos multimodais não, necessariamente, se reduziram a meros entretenimentos, mas deram oportunidade de explorações estéticas diversas, ampliando o espaço de experiência e formação.

A abertura para o tempo não linear das ficções multimodais evidenciou também a possibilidade de estreitar elos de coletividade entre as crianças. Nesse sentido, reiteramos a potência das interlocuções das crianças com os aplicativos literários na escola. Cabe destacar que os dispositivos tecnológicos possibilitaram diversas formas de leitura, mas foi a ação coletiva, seja em duplas ou trios num mesmo tablet, seja com o grupo todo, que garantiu as interdiscursividades, reiterando a dimensão coletiva da experiência. Nesse sentido, defendemos a democratização desses dispositivos nas escolas, em especial no espaço da biblioteca, buscando estratégias que conjuguem leituras e conversas sobre e a partir das obras digitais.

REFERÊNCIAS

ADICHIE, Chimamanda Ngozi. O perigo da história única. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. [ Links ]

BENJAMIN, Walter. Rua de mão única - Obras escolhidas II. São Paulo: Brasiliense, 1992. [ Links ]

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica arte e política - Obras escolhidas I. São Paulo: Brasiliense, 1993. [ Links ]

CANDIDO, Antonio. O direito à literatura. In: CANDIDO, A. Vários escritos. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2011. p. 171-194. [ Links ]

CORRERO, Cristina. Livros digitais para crianças. In: CENTRO DE ALFABETIZAÇÃO, LEITURA E ESCRITA (CEALE) (org.). Glossário de Alfabetização, Leitura e Escrita. Belo Horizonte: Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita/FaE/UFMG, 2014. p. 208-2010. Disponível em: http://www.ceale.fae.ufmg.br/app/webroot/glossarioceale/verbetes/livros-digitais-para-criancas. Acesso em: mar. 2021. [ Links ]

FREDERICO, Aline. A literatura infantil digital no contexto dos Selos da Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio. In: YUNES, Eliana; MOREIRA, Viviane. (org.). Selo Cátedra 10 - Premiados 2016-2018. 1. ed. Rio de Janeiro: Saberes em Diálogo, 2019. p. 182-186. [ Links ]

FREDERICO, Aline. Lendo um aplicativo: dimensões da construção de sentido na leitura literária digital na primeira infância. Perspectiva, Florianópolis, v. 39, n. 1, p. 1-25, jan./mar. 2021. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/perspectiva/article/view/66013/45575. Acesso em: mar. 2021. [ Links ]

GAGNEBIN, Jeanne Marie. Walter Benjamin ou a história aberta. In: BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política - Obras escolhidas I. São Paulo: Brasiliense, 1993. p. 7-20. [ Links ]

HAYLES, N. Katherine. Literatura eletrônica: novos horizontes para o literário. São Paulo: Global: Fundação Universidade de Passo Fundo, 2008. [ Links ]

JENKINS, Henry. Cultura da convergência. São Paulo: Aleph, 2008. [ Links ]

KIRCHOF, E. Como ler os textos literários na era da cultura digital? In: Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, Brasília, n. 47, pp. 203- 228, jan./jun. 2016. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2316-40182016000100203&lng=en&nrm=iso&tlng=pt. Acesso em: mar. 2021. [ Links ]

KONDER, Leandro. Walter Benjamin: o marxismo da melancolia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999. [ Links ]

LU, Oamul; MALZONI, Isabel. Pequenos grandes contos de verdade. Livro-Aplicativo. São Paulo: Caixote, 2015. [ Links ]

MACEDO, Nélia Mara Rezende. Et al. Encontrar, compartilhar e transformar: reflexões sobre a pesquisa intervenção com crianças. In: PEREIRA, Rita Marisa Ribes; MACEDO, Nélia Mara Rezende (org.). Infância em Pesquisa. Rio de Janeiro: Nau, 2012. p. 87-107. [ Links ]

MALZONI, Isabel; ESTEVES, Cecilia. Quanto bumbum! Livro-aplicativo. São Paulo: Caixote, 2017. [ Links ]

MARTÍN-BARBERO, Jesús. Tecnicidades, identidades, alteridades: mudanças e opacidades da comunicação no novo século. In: MORAES, Dênis de. Sociedade midiatizada. Rio de Janeiro: Mauad X, 2006. p. 51-79. [ Links ]

RAMADA PRIETO, Lucas. Esto no va de libros: literatura infantil y juvenil digital y educación literaria. 2017. 546 f. Tese (Doutorado em Didática da Língua e da Literatura) - Faculdade de Ciências da Educação, Universidade Autônoma de Barcelona, Barcelona, 2017. [ Links ]

REAL, Neus; CORRERO, Cristina. Valorar la literatura infantil digital: propuesta práctica para los mediadores. Revista Textura - ULBRA, v. 20, n. 42, p. 8-33, jan./abr. 2018. Disponível em: http://www.periodicos.ulbra.br/index.php/txra/article/view/3639/2782. Acesso em: mar. 2021. [ Links ]

SMOLKA, Ana Luiza. Apresentação. In: VIGOTSKI, L. Imaginação e criação na infância: ensaio psicológico: livro para professores. São Paulo: Ática, 2009. p. 7-10. [ Links ]

VIGOTSKI, L. Imaginação e criação na infância: ensaio psicológico: livro para professores. Apresentação e comentários Ana Luiza Smolka; tradução Zóia Prestes. São Paulo: Ática, 2009. [ Links ]

VILELA, R. Literatura infantil digital: arte, infância e tecnologia. 2019. 191 f. Tese (Doutorado em Educação) - Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro, 2019. [ Links ]

YAMASHITA, Teresa; SUPPA. Mãos mágicas. Livro-aplicativo. São Paulo: Sesi-SP Editora, 2013. [ Links ]

1Texto revisado e normalizado por Luíz Fernando Sarno.

2Na contramão do mercado internacional, após uma série de mudanças nas categorias do Prêmio Jabuti, em 2018, a categoria “livro infantil digital” foi extinta.

3Todos os tablets utilizados nas ações propositivas foram da Apple. A escolha por usar iPads deu-se pela disponibilidade dos dispositivos e também pela facilidade em instalar os aplicativos pagos em até 5 aparelhos sem custo.

Recebido: 18 de Abril de 2021; Aceito: 17 de Julho de 2021

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons