1 Cirandar: encontros, histórias e propostas de formação 1
Este texto é um documento que traz 10 anos de histórias, de encontros e de partilhas vividas no projeto de extensão Cirandar: Rodas de Investigação na Escola. Pretende-se narrar, reviver e relembrar histórias que movem o projeto Cirandar, assumindo-se um narrar a partir das próprias lembranças, e, nesse reencontro com o já vivido, abrir-se para questionar e investigar as apostas e propostas desenvolvidas na formação docente.
Estes 10 anos de história permitem argumentar sobre uma proposta de formação outra, uma formação horizontal entre escola e universidade. Busca-se o distanciar-se de uma escrita estruturada, rígida e formatada em normas de trabalhos científicos. A ideia de uma escrita mais livre encontra respaldo em Contreras (2011), que com convicção afirma, ao narrar seus percursos na formação docente, que os professores necessitam desenvolver uma escrita pessoal e narrativa em que relacionam o vivido com o que faz pensar, o sentido com a intenção de compreender, o passado com o que é preciso fazer. Nisso, há ressonância com Larrosa (2016), que intenta questionar as fronteiras da distinção entre ciência, conhecimento, objetividade e racionalidade, por um lado, e entre arte, imaginação, subjetividade e irracionalidade, por outro, de maneira a instaurar outros modos de escrita.
O Cirandar foi inspirado em experiências anteriores de constituição de redes, especialmente na forma de projetos de formação de professores de Ciências entre as universidades UNIJUÍ, PUCRS e FURG desde os anos 1980, quando o Edital SPEC/PADCT/CAPES promoveu por uma década a formação de redes de professores de Ciências. Foi a partir dessa rede que se originaram os Encontros de Investigação na Escola e a Rede de Investigação na Escola (RIE), com inspiração nos Encontros Ibero-americanos de Investigação na Escola. Em projetos anteriores, as apostas na escrita e no diálogo pautaram muitas das ações desenvolvidas, originando documentos publicizados (GALIAZZI, AUTH, MORAES, MANCUSO, 2007; 2008). O Cirandar, a partir deles e nessas redes, tem desenvolvido sua proposta de formação, intensamente organizada em rede, pela escrita, leitura e conversa.
Outra importante interação e parceria estabelecida é com o coletivo argentino de docentes que fazem investigação na escola, iniciada no Encuentro Ibero-americano de Escuelas que Hacen Investigación, realizado em Córdoba, na Argentina, em 2011, e no encontro com o trabalho de Daniel Suárez sobre os processos de documentação narrativa de experiências pedagógicas nos Congressos Internacionais de Pesquisa (Auto)biográfica (CIPA). Partilham-se, assim, entendimentos sobre propostas de formação em rede em que se busca promover uma epistemologia do sul com a tessitura de redes em cada país da América Latina e entre países, com fortalecimento de laços de cooperação e organização do trabalho docente. O repertório compartilhado em redes mobiliza e transforma os participantes em sujeitos da experiência e sujeitos de saberes, construindo formas próprias e singulares de ser docente e de fazer escola (DUHALDE, 2009; SUÁREZ, 2008, 2011).
Outra inspiração veio de trabalho semelhante desenvolvido por Gordon Wells no Ontario Institute for Studies in Education, da University of Toronto, em uma pesquisa-ação colaborativa entre escola e universidade cujo objetivo inicial foi investigar a fala na aprendizagem e no ensino de Ciências na educação básica. Iniciando com a área de Ciências e logo expandiram para outras áreas do currículo, visando o engajamento em sala de aula como necessário para criar comunidades de indagação. Concluiu-se que, para sustentar o engajamento em sala de aula, era necessário criar comunidades de indagação em que os estudantes fossem encorajados a formular questões reais e, juntos, a buscar por respostas. Isso fez com que Gordon Wells e os professores que o acompanhavam no projeto passassem a investigar sua prática como grupo de professores pesquisadores, o que originou o projeto Developing Inquiring Communities in Education Project (DICEP). Esse projeto foi descrito em Action, Talk, and Text: Learning and Teaching Through Inquiry (WELLS, 2001) - os professores escreveram, leram os textos entre pares e publicaram o livro.
A história de formação em rede é construída no coletivo, com foco nas experiências e teorias que sustentam a prática em sala de aula de cada docente. O Cirandar é espaço de autoria em diferentes níveis e modalidades de ensino, com a participação de professores da rede de educação básica, professores da universidade, acadêmicos dos cursos de licenciatura e demais profissionais da educação.
A ideia inicial era fazer cirandas em cada escola, organizadas pelos professores em seu contexto escolar. Com o tempo, entendeu-se mais sobre as dificuldades em fomentar processos formativos centralizados em cada escola, dadas as condições históricas de desvalorização docente, que faz com que os professores tenham carga horária elevada distribuída em diferentes escolas, geralmente em dois turnos, chegando mesmo a três turnos para alguns. Na ida a Córdoba em 2011, no Encontro Iberoamericano, emergiu a ideia de um evento local, e quando, em fevereiro de 2012, houve um chamado da Pró-reitora da Universidade Federal do Rio Grande (FURG) convidando para uma reunião com a 18a Coordenadoria Regional de Educação (CRE) do estado do Rio Grande do Sul, foi proposta a formação que desencadeou o projeto Cirandar. Sob o governo do Partido dos Trabalhadores (PT), que se iniciava, sendo governador Tarso Genro, constava uma proposta de reestruturação curricular para o ensino médio. Na reestruturação curricular, havia o Seminário Integrado, uma componente curricular interdisciplinar baseada na pesquisa como princípio pedagógico e no trabalho coletivo de professores, e a universidade foi chamada a contribuir na formação de professores.
Foi aceita nossa proposição de formação, e, nos dois primeiros anos do Cirandar, com o apoio da Secretaria Estadual da Educação, buscou-se compreender melhor os Seminários Integrados. Foi um período de aprendizagens e desafios. Percorreram-se as 19 escolas estaduais de ensino médio sob responsabilidade da 18ª CRE, distribuídas em três municípios: Rio Grande, São José do Norte e Santa Vitória do Palmar. Visitas mensais para encontrar os professores foram realizadas nas escolas, promovendo a produção de relatos dos professores, e, ao final de cada ano, realizou-se um evento de apresentação de relatos em rodas. É assim que começa a história do Cirandar, com os professores da rede estadual de educação básica, mais especialmente, com professores do ensino médio que atuavam nesta componente curricular. Dessa experiência, muitas histórias têm sido contadas e publicizadas (GALIAZZI, 2013, 2014; FIRME, 2019; GUIDOTTI, 2019; COUGO, 2019).
Nos anos seguintes, a coordenação do projeto Cirandar assumiu sua continuação com uma ideia central de democratização da produção dos conhecimentos pedagógicos e da formação docente, que ressoava a solicitação de professores da rede municipal de educação para também participar do Cirandar, criticando o direcionamento da formação aos professores da rede estadual exclusivamente. Ao mesmo tempo, entendeu-se que a vinculação da proposta anterior a um governo teve ruídos por oposições partidárias ao governo do PT nas escolas.
Assim, nos últimos anos, fortaleceu-se o coletivo no Cirandar a partir da articulação de projetos institucionais desenvolvidos em rede de Instituições de Ensino (IEs) parceiras na proposta de formação, embora se saiba que seja insuficiente pensar em formação de professores sem o apoio dos órgãos gestores. Isso porque a formação que se faz fica restrita à intenção em participar do professor, que precisa desdobrar-se em tempos, aulas, escolas.
O projeto Cirandar busca por alternativas para um mundo em que as lutas dos oprimidos e das minorias parecem estar silenciadas, especialmente quando se presta atenção na educação pública. No caso deste projeto, considera-se que os professores da educação básica têm sido oprimidos pela desvalorização histórica à qual estão submetidos. Nos relatos dos professores de suas salas de aula, também se percebem estudantes oprimidos; por isso, o Cirandar aposta na horizontalidade do processo na produção e publicação de relatos de professores da educação básica, geralmente silenciados na publicação de seu trabalho pedagógico. Nesse sentido, o projeto instala-se como resultado de ações de cooperação na formação de professores, proporcionadas pela parceria entre universidades, institutos federais e escolas da rede de educação básica.
Neste escrito, busca-se resgatar a história vivida até aqui no projeto Cirandar, com um detalhamento das atividades formativas, sustentadas pelas apostas, pelas teorias e pelas reflexões ocorridas nesse processo. Para isso, inicialmente, apresenta-se um estudo da experiência, para que, então, se possa afirmar a que experiência se articula a proposta da escrita de relatos como centralidade do processo de formação em um caminho para entendimento da experiência. A seguir, busca-se documentar essa experiência; para isso, compôs-se uma história de trabalho a partir das narrativas construídas em rede, com vozes, desejos, anseios e sentimentos que possibilitaram apresentar uma amostra do processo investigativo e interpretativo.
2 Experiência, narrativas e formação
O Cirandar, desde sua primeira edição, propõe a escrita de um relato de experiência, mas a que se refere quando expressa a palavra experiência, em que o ocorrido em sala de aula será registrado? A solicitação dessa escrita espelha-se nos primeiros Encontros de Investigação na Escola, em que se partia de um formato fornecido a ser preenchido pelos professores. Muito se ouviu sobre a contribuição desse formato para estruturar o relato, mas a vivência em edições sucessivas fez entender que o que se buscava, em termos de escrita, se distanciava de um modelo a ser seguido. Por isso, abandonou-se a sugestão de um template de escrita do relato, embora não seja raro que essa estrutura seja lembrada ou mesmo solicitada. E a que experiência remete a solicitação do relato? A uma experiência de sala de aula, ao acontecido em uma sala de aula a partir do planejamento do professor.
A Hermenêutica Filosófica tem orientado a compreensão pelas palavras que compõem o fazer docente iniciado pelo estudo etimológico da palavra, indo em direção ao conceito e retornando à palavra, em uma fusão de horizontes que amplia sua compreensão (SOUSA, 2016; SOUSA, GALIAZZI, 2017, 2019). Pretende-se, nesta parte do texto, compreender melhor a palavra experiência e, assim, a solicitação feita no Cirandar.
A palavra experiência percorreu séculos como preocupação de filósofos de épocas diferentes. Abbagnano (2018) aponta dois significados fundamentais para a experiência. No primeiro, atribui-se experiência a um sujeito que sabe repetir determinada situação, de modo a resolver um problema. O segundo significado remete a um recurso para poder confirmar certas proposições. Nenhum desses sentidos se aproxima do que tem sido solicitado no Cirandar, mas a palavra experiência tem longa tradição. Para Aristóteles, a experiência continua sendo o que havia sido apresentado por Platão: consiste em conhecer o fato que ocorre repetidas vezes, sem saber suas causas; assim, saber e conhecer não se atribuem à experiência, e esse sentido permanece em escritores medievais.
Se o primeiro sentido tem caráter pessoal, o segundo é objetivo e impessoal, tendo sido comum no empirismo. A experiência como critério de validação do conhecimento tem sido característica dos diferentes empirismos. Nesta acepção, podem-se distinguir duas interpretações: a experiência como intuição e a experiência como método. Roger Bacon, empirista, afirmava que, sem a experiência, nada se pode conhecer e que se conhece pela argumentação e pela experiência, mas o primeiro modo, a argumentação, só se confirma pela experiência. Segundo Ockham, a experiência é o conhecimento intuitivo perfeito, externo ou interno, como a alegria ou a tristeza, e tem por objeto as coisas do presente. A ligação da experiência à intuição sensível foi reforçada a partir do Renascimento. Quem tem ouvido que a sabedoria é filha da experiência não atribui sua autoria a Leonardo da Vinci (ABBAGNANO, 2018).
Tanto em Leonardo da Vinci quanto em Galileu, ao lado da experiência sensível, aparece o conhecimento matemático. Para Francis Bacon, o fundador do empirismo moderno, o guia do conhecimento humano é o experimento, que é a experiência guiada e disciplinada pelo intelecto. Essa mesma visão da experiência segue com Locke, em uma perspectiva de experiência como totalidade do mundo (ABBAGNANO, 2018).
O significado da experiência como aspectos verificáveis consolida-se em Carnap ao afirmar que todo o enunciado descritivo da linguagem da ciência é confirmado em predicado-coisas-observáveis. A interpretação dada à experiência, próxima ou não do observável, é a teoria da experiência como intuição. A teoria da experiência como método, entretanto, é a que põe à prova um conhecimento e, inclusive, o retifica. O objeto empírico da experiência passa da sensação à coisa em si - da sensação de um sujeito ao observar o vermelho à medida e verificação da existência do objeto vermelho. Nesse modo de compreender a experiência, está o sentido a ela atribuído por Galileu, que nunca se afastou do raciocínio matemático em suas verificações e constatações. Na experiência como método, é preciso uma ordem que resulta em uma causalidade; desse modo, toda experiência precisa ser explicada, e o método empírico dá suporte à explicação. Essa concepção de experiência mostra-se também em Kant, para quem a possibilidade da experiência é que torna legítimo o conhecimento (ABBAGNANO, 2018).
Não tem sido nenhum desses sentidos o que se atribui à experiência no Cirandar, embora não se tenha dedicado a compreender o conceito, intenção do estudo que aqui se apresenta. Uma mudança de sentido percebe-se em John Dewey, que rompe com essa ideia reduzida de experiência, afirmando que os juízos de um objeto ou evento estão vinculados a um contexto mais amplo, a uma situação, embora a experiência como método tenha continuado a ser defendida por pragmatistas e empiristas (ABBAGNANO, 2018). Segundo Silva (2011), para Dewey, a experiência é o vínculo entre o ser vivo e o ambiente: “toda a experiência modificada ocorre pelo meio, concepção que leva o autor a admitir a existência de processo contínuo de criação de conexões e continuidades, propiciando permanentes recriações dos elementos envolvidos” (Idem, p. 2).
A autora aproxima a experiência de Dewey ao aprender a pensar de modo autônomo, proposto por Freire (2011), pois este considera que a autonomia se concretiza na experiência adquirida nas inúmeras tomadas de decisões ao longo da vida. Aprender a pensar exige partir de problemas, de embates e de desafios a serem resolvidos no enfrentamento da vida cotidiana. É nesse sentido que uma pedagogia da autonomia tem de estar centrada em “experiências estimuladoras de decisão e da responsabilidade, vale dizer, em experiências respeitosas da liberdade” (2011, p.107). Dewey também influencia Freire na importância dada à curiosidade para a ampliação da experiência. O autor americano considera fundamental que se conheçam as experiências dos estudantes, pois é por meio das experiências que se aprende a pensar. Se a escola não considerar as experiências dos estudantes, será inútil. “Enfim, pensar, para ambos, é um ato que ilumina a diversidade das coisas, tendo o poder de coordenar, unir, ordenar ideias despertas pelas coisas do mundo” (SILVA, 2011, p.15).
Ao analisarem-se os relatos nos diferentes livros produzidos no Cirandar, pode-se afirmar que Paulo Freire tem sido o autor mais referenciado, especialmente seu livro A pedagogia da autonomia. No entanto, não se pode considerar que o sentido atribuído à experiência relatada seja esse, o que suscita este estudo da palavra. Pensando, entretanto, que os professores entram em sala de aula e inúmeras vezes tomam decisão, sendo essas tomadas de decisão que tecem a experiência, teriam sido elas experiências respeitosas da liberdade? Teriam essas experiências estimulado a curiosidade epistemológica?
Gadamer, ao discutir o conceito de experiência, critica profundamente o modo de pensá-la com o objetivo de alcançar generalizações, como posto na tradição da palavra enfatizada nos processos indutivos, especialmente nas ciências da natureza. Husserl, segundo Gadamer (2004), também buscou esclarecer como a experiência foi submetida à ciência, embora o precursor da Fenomenologia ainda tenha projetado o mundo idealizado da experiência da ciência sobre a experiência do mundo ao fundamentar na percepção toda a experiência posterior. Para Gadamer (2004), não se aspira a transformar a experiência concreta em um caso de uma regra geral, como objetiva a ciência. A experiência hermenêutica a partir da linguagem difere da ciência, pois é um compreender, um acontecer. Trazendo para a compreensão de textos, afirma que, para interpretar, é preciso ter a experiência de deixar-se ser surpreendido pelo que não se sabe e, com isso, poder ampliar horizontes de compreensão. A linguagem é inerente ao pensar, e o significado de uma palavra carrega sua idealidade, no entanto, a palavra precede a experiência e “pertence à própria experiência buscar e encontrar a palavra certa, isto é, a palavra que realmente pertença à coisa, de modo que ela própria venha à fala” (Idem, p. 421), e assim a experiência hermenêutica se realiza na linguagem. Não é suficiente compreender tudo o que está escrito em um texto; antes disso, compreender como experiência autêntica é encontrar algo no texto que se impõe como verdade e que não era sabido.
Neubauer (2015), ao estudar a experiência em Gadamer, diz que falar de experiência significa falar em experiência de sentido com a própria existência. Experiência não é confirmar apenas aquilo que já sabemos, mas estar aberto ao que não sabemos, a experiência negativa. Somente a experiência negativa é que abre novos horizontes, trazendo o estranhamento e o distinto àquilo que pensamos.
Aproxima-se da Hermenêutica Filosófica a experiência que os sujeitos são solicitados a relatar no Cirandar, pois o processo pretende que quem relata busque o que estudar para ampliar sua compreensão e que, ao fazer isso, nos processos de reescrita e leitura dos textos, outros possam também aprender com essa experiência. Ressalta-se que, nesse movimento, o próprio projeto Cirandar é uma experiência.
Larrosa (2014), propondo-se a testemunhar experiências de escrever na educação, com inspiração em Foucault, para quem se escreve para transformar o que se sabe, e não para transmitir o sabido, como em Gadamer, também convida para fazer soar de outro modo a própria palavra experiência. Visto que a experiência foi menosprezada pela racionalidade clássica e moderna tanto na filosofia quanto na ciência, o autor aponta que é preciso desconfiar da experiência quando se trata de fazer uso da razão; nesse entendimento, o saber está em um lugar distinto do lugar da experiência. Dessa forma, a linguagem da ciência não pode ser a linguagem da experiência. Na ciência, a experiência é aquela objetivada, homogeneizada, controlada, fabricada, convertida em experimento. Como Dewey, Freire e Gadamer, aqui trazidos, Larrosa (2014, p.74) afirma que “a vida, como a experiência, é a relação com o mundo, com a linguagem, com os pensamentos, com os outros, com nós mesmos, com o que se diz e com o que se pensa, com o que se é e o que se faz, com o que já se está deixando de ser”.
A experiência não é instrumento, nem uma palavra que se faz presente no dizer ou no escrever. “A experiência possibilita abrir caminho para o pensamento, para a linguagem, para a sensibilidade e para a ação” (LARROSA, 2014, p.75). É abrir-se para outro modo de pensar, de fazer, de arriscar-se a perguntar, é dar abertura para as possibilidades do que não se sabe.
Quando o Cirandar solicita um relato de experiência, se tem outra característica da formação, que é relatar a experiência, ou seja, escrever sobre um acontecimento, e isso exige informar, descrever, narrar. Assim, o relato de experiência articula experiência e narrativa.
Seguindo Benjamin (1994), a experiência é cada vez mais rara. Benjamin, ao resgatar a importância da narrativa e do narrador, destacou que “o narrador retira da experiência o que ele vai contar: sua própria experiência ou a relatada pelos outros” (Idem, p.201).
Larrosa busca, nas afirmações de Benjamin, ao observar a pobreza de experiências que caracterizam o mundo, argumentos para seu modo de pensar a experiência. Se Benjamin já pautava o excesso de informação, vivem-se tempos de ainda mais facilidade de obter informação, momento agravado pelo excesso de informações falsas. A informação não é experiência, ela não dá lugar para a experiência (LARROSA, 2014).
Nos últimos tempos, é quase uma imposição ser “bem informado”, e nisso há a ideia de saber muito sobre tudo; caso não se saiba, é possível a busca instantânea da informação, afinal, ela está à mão na tela do celular. Nunca foi tão fácil “saber das coisas”, ser um sujeito “bem informado” (LARROSA, 2011). Tal contexto remete à pergunta: nos processos de formação de professores, como oportunizar a experiência do conhecimento em vez da informação? Assim, aproximam-se do conceito de experiência de Larrosa (2011) formações que incentivem refletir sobre a experiência do conhecimento no fazer pedagógico em sala de aula, por meio da escrita das perguntas, das inquietações e dos desejos dos professores, com a proposição de que cada docente se sinta envolvido e convidado a ser autor da sua sala de aula, a ser protagonista desse fazer, por vezes silenciado e desacreditado, e de que o encontro com as suas histórias e as histórias dos seus pares possa fortalecer esse exercício de escrita da experiência.
O Cirandar aproxima-se dos argumentos de Larrosa, pois aposta na possibilidade de reencontro com o ato de narrar e documentar experiências educativas. Benjamin buscou o resgate da narrativa, e nela o conceito filosófico da experiência, na década de 1930, com vestígios da Guerra Mundial em 1914. No texto O narrador, reflete sobre o papel da narrativa e questiona o sistema econômico da época, com o fim da atividade artesanal, substituída pelo trabalho mecânico nas linhas de montagem das indústrias e, consequentemente, no plano cultural, com o desaparecimento da narrativa como uma forma “artesanal de comunicação” (BENJAMIN, 1994).
A leitura de Benjamin (1994) faz acreditar na narrativa como uma forma artesanal de comunicação, pois o interesse não é transmitir o “puro em si” da coisa narrada, como uma informação ou um relatório. A narrativa é um mergulho em histórias de vida, nas histórias do fazer docente - como no ato de bordar, em que a artesã resgata, em cada bordado, o registro do seu fazer, da sua história (DORNELES, 2016).
Para Bruner (1991), a narrativa é a forma de organizar a experiência humana. A narrativa permite viver a experiência, sendo um modo de documentar, pela escrita, nossas experiências educativas. Diante disso, não temos a preocupação de como elaborar um texto narrativo, mas de como a narrativa se torna um importante instrumento de construção da realidade (BRUNER, 1991).
A narrativa permite assumir uma posição moral, mesmo que seja contra as posições morais (BRUNER, 1997). Tal afirmação fortalece a esperança em tempos de desvalorização da educação e dos docentes, de desrespeito aos saberes e experiências, como também de desconhecimento da construção de conhecimentos culturais, sociais e científicos na formação acadêmica dos profissionais da educação. Assim, a escrita narrativa torna-se artefato para documentar esse fazer e, por meio das histórias de sala de aula, firmar posição moral, ética e estética (RIOS, 1993) como docentes que lutam pela educação neste país.
Compreender a escrita da experiência pelo viés narrativo é “[...] explorar o que a palavra experiência nos permite pensar, o que a palavra experiência nos permite dizer, e o que a palavra experiência nos permite fazer no campo pedagógico” (LARROSA, 2014, p. 38). Reafirma-se o papel formativo da narrativa além de um viés reflexivo da docência (PIMENTA, GHEDIN, 2002), na potencialidade de investigar o fazer docente e as experiências educativas.
Este estudo sobre experiência, articulando-a com sentidos atribuídos à narrativa, ampliou horizontes sobre o solicitado aos participantes do Cirandar: produzir um relato de experiência. Distanciando-se dos sentidos atribuídos pela racionalidade clássica e pela racionalidade moderna, a solicitação, na medida em que ainda não tenha se dedicado a conceituar a experiência educativa à qual se refere, aproxima-a de seus conceitos, mesmo que polissêmicos, situando-se, por um lado, na ideia de que a experiência foi adquirida por inúmeras tomadas de decisões como professor, mas é ao mesmo tempo única. É a experiência em uma situação de sala de aula, em uma situação prática. Como afirma Neubauer (2015, p. 83), “a experiência não decorre de um significado último, de uma ciência cognitiva, mas sim de seu próprio acontecer, que assume uma compreensão ontológica”, que desacomoda, convoca e convida à reinvenção de si, da sala de aula e da própria proposição de formação do Cirandar. Como se organiza o processo para a produção do relato é o que se mostra no item seguinte.
3 Rede Cirandar: a alegria do relato2
Os processos de formação são sempre inacabados e melhor acontecem se acompanhados de atividades que articulam teorias e práticas voltadas à construção de outras compreensões do papel da docência e de sua relevância diante das necessidades de educação nos contextos de atuação dos professores. Nesse sentido, o projeto coloca ênfase nas teorias expressas pelos professores ao narrarem sua sala de aula em forma de relato de experiência. Assim, mediante diálogo, leitura e reescrita, essas teorias podem ser indagadas, fundamentadas e transformadas.
A proposta formativa organiza-se em atividades que integram a escola e a universidade, sendo articuladas coletivamente por meio da linguagem, especialmente a escrita, a leitura, a oralidade e o diálogo, desenvolvidos em Roda de Formação em Rede. As Rodas constituem-se em um espaço de partilha de experiências e de saberes da sala de aula, em que os docentes se tornam autores das suas práticas educativas e aprendentes no processo de formação (SOUZA, 2011; CACCIAMANI, 2012). Propõe-se a escrita como modo de pensar (GALIAZZI, 2003; MARQUES, 2006), e os professores, ao escreverem sobre suas experiências vividas nos espaços escolares, produzem significados sobre a ação docente que, na partilha com outros professores, favorecem (re)pensar, (re)significar e (re)construir as práticas educativas (SUÁREZ, 2011; DORNELES, 2016).
A Rede Cirandar, atualmente, compõe-se de uma parceria com 8 IEs de diferentes regiões do país e uma coordenação, constituída por um coletivo de 18 coordenadores que fomentam o processo formativo. Anualmente, uma nova edição do projeto é ofertada, com duração de oito meses, totalizando um curso de formação de 90 horas, com encontros síncronos (online e/ou presencial) e atividades assíncronas, conforme as etapas detalhadas a seguir:
1º movimento: divulgação do projeto nas redes parceiras de formação docente, para tornar mais claro o processo de formação, baseado na investigação e na escrita das experiências educativas.
2º movimento: formação e constituição da rede de coordenadores no Cirandar, com encontros mensais, para ampliar a compreensão dos processos formativos em rede e fomentar a produção escrita dos participantes.
3º movimento: promoção de encontros coordenados por um dos participantes da rede de coordenadores para dialogar sobre a experiência, criar modos de documentá-la e discutir fundamentos teóricos da Educação para sustentar a escrita de cada um dos participantes. Cada participante, para compor seu relato de experiência durante o processo formativo, será convidado a escrever um conjunto de três cartas (carta de apresentação; carta de indagações para fomentar o processo investigativo; carta com a narrativa das ações, decisão de estudo e aprofundamento teórico).
4º movimento: envio da primeira versão do relato de experiência.
5º movimento: leitura entre pares. Nesta etapa, cada participante lerá e dialogará com o relato de experiência de um colega, como também terá acesso aos relatos de experiências dos colegas que estarão na mesma sala de apresentação (em torno de dez relatos por sala). A partir da leitura e contribuições nas rodas de conversa virtuais, cada participante realiza o processo de reescrita do seu relato de experiência, reenviando, então, a nova versão do relato.
6º movimento: encontro final do processo de formação, com a intenção de fomentar encontros online e presenciais entre as redes de formação docente do Brasil e demais países da América Latina.
7º movimento: publicização dos relatos e das cartas produzidas no site do Cirandar: rodas de investigação; publicação dos relatos de experiências finalizados, em forma de anais e/ou livros digitais e/ou livros.
Os movimentos formativos que fomentam as ações da Rede Cirandar articulam-se ao dispositivo da documentação narrativa das experiências pedagógicas como estratégia de trabalho colaborativo, centrada na investigação-formação-ação entre docentes e inspirada fundamentalmente nos critérios teórico-metodológicos da investigação narrativa e (auto)biográfica (SUÁREZ, 2008, 2011; CLANDININ, CONNELLY, 2011). Trata-se de promover redes de colaboração entre escola e universidade, com a produção de relatos de experiência como modo de narrar, difundir e debater as práticas educativas realizadas pelos próprios professores autores das histórias em diferentes situações sociais, culturais, geográficas, históricas e institucionais (SUÁREZ et al., 2021).
Assume-se a investigação narrativa no processo formativo e investigativo ao compreender-se que ela não só implica uma metodologia específica, como também compõe outra forma de saber, ser e fazer. Além de conceitual e metodológica, antes de tudo, é uma forma eminentemente pedagógica, política, epistemológica e ontológica (CLANDININ, CONNELLY, 2011; PORTA, 2021).
Com essa intenção, neste texto, buscou-se compor um repertório narrativo vivido no projeto Cirandar. A história de trabalho é tecida de narrativas de formação, experiências minúsculas e singulares do coletivo de professores e professoras que participam do Cirandar. Foi necessário tecer um recorte para construir um processo investigativo da experiência de formação no projeto. Com isso, a história de trabalho apresentada resgata narrativas dos diários das próprias autoras e também recortes narrativos dos relatos de experiência publicizados na última edição em e-book do coletivo que participou do Cirandar nos anos de 2016 e 2017 (DORNELES, 2021).
4 Narrativas de trabalho na Rede Cirandar: o bordado da memória3
Apresenta-se, a seguir, uma composição narrativa, com a intenção de produzir, com os participantes do projeto Cirandar, um repertório narrativo com composições de sentidos que remetem ao compromisso social, ético e estético com a escola e com a formação de professores. A composição narrativa inspira-se na obra Léxico Familiar, de Natalia Ginzburg, em que as memórias da narradora, em uma linguagem afetiva, se contrapõem a um mundo sombrio do pós-guerra.
As narrativas trazidas compõem uma Ciranda no sentido de expressar, em vozes, sons e escritos, histórias partilhadas e construídas em rede. Nessa composição narrativa, o nome “Cirandar” surge com a intenção de valorizar um repertório musical da raiz da cultura brasileira, lembrando especialmente que Villa-Lobos, o maior expoente da música nacionalista brasileira, reconhecido também como um marco na educação musical em nosso país, inspirou-se nas cirandas para compor obras aplaudidas no Brasil e no exterior. Villa-Lobos foi músico e educador preocupado com a formação de professores, tendo criado em 1932, durante o governo Vargas, o curso de Pedagogia de Música e Canto Orfeônico, ministrado pelo próprio músico. Muitas das composições de Villa-Lobos são baseadas em temas folclóricos, sendo que compôs duas coleções para piano solo chamadas Cirandas (16 peças sobre temas populares brasileiros) e Cirandinhas (12 partituras também sobre temas populares brasileiros, mais especificamente, rodas infantis). Nas melodias, letras e entonações das Cirandas e Cirandinhas presentes nas composições de Villa- Lobos, há um resgate cultural, estético e histórico da dimensão humana e social brasileira (SCHMIDT, GALIAZZI, 2013).
Inicia-se trazendo a história da própria invenção do Cirandar, narrada por Lidia4, a mãe de Natalia, caçula de cinco irmãos: Gino, Mário, Alberto, Paola e Natalia. Lidia, como conta Natalia, adora uma conversa, adora escrever cartas, adora estudar. Com experiência na formação de professores, é Lidia, professora universitária, quem conta parte da história do Cirandar, especialmente com memórias de seu início.
Durante a participação no Encontro Iberoamericano de Redes de Professores que fazem Investigação na Escola, em Córdoba, na Argentina, no ano de 2011, surgiu a ideia. Foi numa mesa de café, com diário sobre a mesa, e numa agradável conversa, que se iniciavam os alinhavos do Cirandar, em que chamamos Daniel Suárez para uma conversa. A intenção era promover Encontros de Investigação na Escola na nossa região, oportunizando aos professores a escrita de relatos de experiências e a partilha dos seus escritos em rodas de diálogos entre as escolas e a universidade.
Os Encontros de Investigação na Escola, durante seus 14 anos de realização, mostram que é possível realizar outro modo de fazer formação na universidade, promover rodas de conversa a partir da experiência relatada por cada docente. Assim, é um Encontro que não tem palestra, não tem minicursos, nem projetores. As professoras - somos maioria no Cirandar - e os professores escrevem seus relatos com foco em uma atividade desenvolvida por um período, a qual é acompanhada por um diário de campo. Durante os primeiros anos do Cirandar, uma das primeiras aprendizagens foi sobre a importância da escuta dos professores. Apanhamos muito das escolas, que se sentiam ultrajadas em suas propostas ao terem que inventar o Seminário Integrado. Depois, quando os professores perceberam que o que solicitávamos era a escrita de sua sala de aula, esta agressividade diminuiu. Isso aconteceu em quase todas as escolas às quais fomos. Por isso a expressão “apanhamos muito” dos professores. Teve uma situação em que não conseguimos apresentar a proposta, de tanto que eram as reclamações dirigidas à 18ª CRE. Éramos vistos como aliados da CRE, o que era verdadeiro, e por isso a nós eram dirigidas todas as reclamações.
No segundo ano do Cirandar, houve a greve dos professores porque o governador, antes Ministro da Educação, havia aprovado o piso salarial dos professores e havia um descontentamento em relação ao entendimento de qual era o valor do piso. Isso gerou uma greve dos professores, o que afetou o Cirandar. Aliada a isso, havia a solicitação de professores da rede municipal de educação para participarem da formação. Assim, a partir da terceira edição do Cirandar, abrimos aos professores em exercício de todos os níveis e modalidades. Nesse período, com financiamento cada vez menor, as viagens e idas às escolas já haviam cessado, o governo era de outro partido, a parceria com a 18ª CRE se afrouxou, mas o Cirandar continuou, e aí também outra aprendizagem: a participação sem vínculos obrigatórios ou institucionais horizontaliza o processo em que todos nos formamos.
Em um dos anos do Cirandar, quando não íamos mais às escolas, penso que tenha sido pelos idos de 2016, quando também assumimos o gênero epistolar como gênero da formação de professores, a mediação da formação foi feita por cartas. No primeiro ano, foram escritas 21 cartas durante o processo de formação, com a intenção de orientar a escrita e o processo investigativo a ser realizado por cada participante. No ano seguinte, diminuímos as cartas, não por não acreditar nelas, mas porque pensamos que era preciso mais tempo para leitura e diálogo com cada carta, embora tenha lido relatos afirmando a empolgação com a chegada da carta (eletrônica). Assim, com menos cartas, seguimos com a proposição e convite de estudo pessoal, e não de direção deste estudo.
Nos últimos anos, as cartas são enviadas aos participantes como modo de fomentar a conversa e mediação do processo de formação, e, com isso, um movimento de escrita e reescrita acontece, pois em toda carta enviada há um convite para que cada professor escreva sua própria carta como modo de construir um repertório compartilhado de experiências de sala de aula. Há uma leitura entre pares, uma troca de cartas, e nossa história mostrava que a leitura do relato do colega era feita rapidamente, sem maior atenção. Então, mudamos a estratégia. Na época, chamávamos de parecer crítico, leitura crítica do relato, e, em vez da exigência de um parecer, passamos a solicitar a escrita de uma carta ao colega.
Como se percebe, o relato de experiência, que iniciou com indicação de um modelo de escrita a ser seguido, nos últimos anos, assumiu o gênero epistolar. Quem escreve uma carta tem algo a contar para alguém a seu modo, e, de certa maneira, todos sabemos escrever cartas. O desafio da escrita foi relatado por uma participante.
Frances, amiga de Lídia, professora de Biologia na rede de educação pública, atuando no ensino médio na disciplina de Biologia, relata sua participação no Cirandar, com o desafio da primeira escrita, sua decisão de registrar o processo de formação de professores na escola e a intenção de continuar no Cirandar. É muito frequente que, como Frances, professores se refiram às propostas acontecendo no “chão” da escola, mostrando como no discurso as palavras podem dizer menos de um lugar. O espaço legítimo de formação na escola com colegas fica diminuído ao ser referido apenas como o “chão”.
Desde o ano de 2013, participo do Cirandar e escrevi relatos de experiências da sala de aula em Seminário Integrado e Biologia, da Coordenação Pedagógica, quando estávamos tendo a Formação Continuada do Pacto do Ensino Médio na Escola, oferecido pelo Ministério da Educação (MEC), em 2014. Neste ano de 2016, vou escrever sobre a prática da formação continuada dos docentes no chão (espaço) da escola. Este relato será desenvolvido a partir de registros das reuniões pedagógicas, realizadas com o grupo de professores da escola desde o começo da Reestruturação do Ensino Médio. Estas reuniões são semanais por área do conhecimento e quinzenais com todas as áreas reunidas, num processo de aprendizagem de imersão na linguagem oral e escrita. Cheguei até aqui com muita dificuldade, pois não tinha o hábito de escrever minhas experiências e muito menos socializá-las, mas ,depois de vencer o desafio da primeira escrita, que foi justamente através do Cirandar, de onde desenvolvi essa habilidade, agora caminho para a quarta participação neste processo de formação e pretendo continuar, pois tomei gosto pela escrita e não tenho mais o medo de torná-la pública (Frances).
O que Frances conta, de não ter o hábito de escrever sobre suas aulas, é o usual. Os professores não contam suas aulas ou como se tornaram professores em seus percursos docentes, como fez Larrosa (2019), que narra seu ofício de professor - ideia que teve origem em um curso com José Contreras.
Entender-se em processo de formação é o que assinala Gino, um dos filhos de Lídia, irmão de Natalia, o mais velho dos irmãos, professor de Artes a quem o pai atribuía todas as qualidades imagináveis, o que mostrava sua admiração pelo primogênito. No Cirandar, até antes da pandemia, ocorria um evento de finalização, com participação obrigatória. É a esta data que Gino se refere. Interessante notar que Gino se considera participante do processo. Pode contribuir com a proposta e, ao mesmo tempo, formar-se e reescrever.
Neste período de reescrita, quase desisti do projeto Cirandar, pois, no dia 10 de dezembro, caso a antiga data se mantivesse, não estaria em Rio Grande. Fiquei muito feliz que a data foi alterada, assim, posso contribuir de alguma forma com a proposta, além de agregar ainda mais potencialidades à minha formação como docente em construção. Acredito que, nesta reescrita, eu deva me apresentar um pouco e falar de minhas motivações a respeito do Ensino de Arte (Gino).
Gino aponta para a reescrita do relato, ou seja, no Cirandar, há a ideia de que sempre é possível escrever de novo sobre a mesma coisa, e é nesse processo recursivo que se entende a investigação da sala de aula, em que, com o olhar do leitor e depois da conversa, se aprimora o relato. Um dos desafios está em, a partir da escrita inicial, decidir-se por algo a estudar, mas não se aprende a estudar em um ano - este é um objetivo a mais longo prazo.
É na partilha das experiências entre as cartas e os encontros, que professores ainda na formação inicial vão compreendendo melhor o ofício de professor, como narra Paola, irmã de Natalia, que adorava fazer longas caminhadas com a mãe. Estudante ainda e em estágio obrigatório no curso de Pedagogia, conta-nos de sua segunda participação no Cirandar e de sua decisão sobre o que narrar: seu estágio de docência, mostrando inicialmente a escola em que ele vai se realizar e a turma.
Bem, quando me inscrevi para participar, pela segunda vez, do Cirandar, já tinha em mente que iria fazer um relato sobre a experiência que estou vivendo no estágio obrigatório do curso de Pedagogia. Penso em fazer o relato desde as observações até o momento do estágio que estarei vivenciando. Então, vou começar falando um pouquinho sobre a escola e a turma (Paola).
Sim, o estágio de docência, para os licenciandos, é uma experiência que muitas vezes traz marcas de momentos amargos. O fragmento do relato de Paola não deixa antever o resultado, mas sua expectativa é grande, a ponto de decidir contar sobre ele. E assim são as lembranças de professores, momentos alegres e de muita satisfação pessoal e profissional, e outros que também constituem a docência. Grassi, uma das jovens amigas de Lídia, busca na memória lembranças de momentos para celebrar o reconhecimento de seus alunos como professora, amiga e confidente. Como conta em seu relato, também há momentos amargos na docência que constituem a professora que ela é. É um momento de alegria que ela buscou na memória:
Instigada pelo processo de escrita proposto pelo Cirandar 2016, passei a rememorar alguns episódios da minha trajetória docente. Alguns momentos doces vieram à memória, como a festa surpresa para comemorar meu aniversário, organizada por estudantes do 6º ano, e os recados de ex-alunos que recebo pelas redes sociais, dizendo o quanto fui importante em suas vidas, não somente como professora, mas como amiga e, em alguns momentos, como confidente. Outros momentos são amargos, como a hostilidade de alguns estudantes que não se sentem pertencentes ao espaço escolar e distribuem revolta a todos que com eles convivem. Mas todos esses momentos fazem parte da minha trajetória e me constituíram enquanto sujeito (Grassi).
Nem sempre é possível participar todo ano do Cirandar, como conta Miranda, casada com Alberto, irmão de Natalia. Professora experiente de Língua Portuguesa, decide narrar do lugar que, com os alunos em sala de aula, se reinventa como professora.
Reinicio minha caminhada no Cirandar. Estive por aqui no ano passado, mas problemas alheios à minha vontade não me deixaram concluir a caminhada de 2015. Neste ano, volto com um novo gás e imensa determinação para conseguir ir ao encontro do dia 3 de dezembro, quando teremos a oportunidade de estarmos juntos. O ano de 2016 me aproximou da sala de aula pelo fato de eu estar atuando em minha área de formação - Língua Portuguesa. Chamo-me Gina Miranda, sou professora há 30 anos e tenho certeza de que o melhor lugar para se estar é em contato direto com os estudantes, pois é com eles que fazemos as trocas e com quem temos a possibilidade de nos reinventarmos (Miranda).
O fragmento do relato de Miranda deixa ver a complexidade da escola; a professora experiente atua em diferentes áreas e, por alguma circunstância não dita, retorna à sua área de conhecimento, já sinalizando sua reinvenção. A escola pública, especialmente, é esta invenção que recebe muitas críticas pelo que uns e outros pensam que ela e seu corpo docente deveria fazer. Quem vive o cotidiano da escola pública sabe, sim, de seus limites, mas há sempre este espaço de invenção, apontado por Miranda e como Mario, outro dos irmãos de Natalia, professor de Educação Física, vai contar.
As experiências a serem descritas neste eventual círculo de ciranda educativa, denominado Cirandar, fazem parte do período em que me encontro, de vivenciar um estágio não obrigatório pela Secretaria Municipal da Saúde. Sou um dos proponentes do projeto Vida Ativa, que acontece em diversas Unidades Básicas de Saúde (UBS) na cidade do Rio Grande. O projeto em questão tem como público-alvo hipertensos, diabéticos e idosos. A Educação Física, dentro do projeto Vida Ativa, tem como objetivo central desenvolver práticas corporais que priorizam aspectos de sociabilidade e lazer, além de proporcionar diversos benefícios psicofisiológicos provenientes das atividades físicas (Mario).
A composição narrativa a partir de fragmentos dos relatos de experiência mostra a diversidade de disciplinas e de propostas a relatar. Considerando que a cada ano o Cirandar encerra com cirandas em que um conjunto de professores discutem seus relatos, previamente lidos pelos participantes, não é difícil imaginar como a escola se mostra de outro modo, pelas histórias e discussões que ocorrem. Todos têm uma experiência única e diferente de todas as outras sobre a qual escrever. Essa diversidade de salas de aula narradas sinaliza a potência que as conversas têm sobre e com os relatos. Professores experientes em diálogo com professores em formação inicial de diferentes licenciaturas discutem sobre a sala de aula e suas invenções pedagógicas, em processos de escrita, leitura e reescrita entre pares. Trata-se, como no livro de Natalia Ginzburg (2018), de uma história de resistência, narrada a partir de ocorrências minúsculas que remetem a uma rede de formação complexa cujos fios são feitos de histórias.
5 Reviver, repensar e investigar a sala de aula: o que o Cirandar nos ensina?
Nos últimos dez anos vividos no projeto Cirandar, tem-se tentado desenvolver um processo de formação horizontal, sob uma perspectiva de rede. A construção das próprias narrativas tem como objetivo compreender o Cirandar como experiência, dialogada com interlocutores teóricos que reforçam a importância de pensar a docência a partir das experiências dos próprios professores. O Cirandar oportuniza ao docente constituir-se e perceber-se autor e protagonista não só de seu processo de formação, como também dos de outros participantes. Reforça-se, ainda, a ideia da articulação entre a narrativa e a experiência como modo de produzir a própria experiência de formação desenvolvida no Cirandar.
Um dos pressupostos do Cirandar é o de que a formação continuada dos professores precisa ser realizada a partir da escola e de suas necessidades, pois ninguém as conhece melhor do que os próprios professores que ali atuam, ainda que possa ser necessária a tomada de consciência. Nessa perspectiva, Paulo Freire ajuda a pensar sobre o papel da docência em tempos em que a liberdade de expressão permite a todos apontar “culpados” pelo fracasso escolar de crianças e jovens, bem como determinar o que deve ser ensinado em sala de aula.
Cabe também refletir sobre o processo histórico de desvalorização docente, sobre o quanto os professores tornam-se oprimidos, acomodados e adaptados pela estrutura dominadora. Quando se percebe a necessidade de superar a situação opressora, com reconhecimento crítico, ou seja, da “razão” dessa situação, aumentam as chances de, por uma ação transformadora, incidir-se sobre ela e assim instaurar outra, que possibilite questioná-la.
No exercício da escrita do relato de experiência, de leitura entre pares e de rodas de conversa sobre os relatos, vivenciam-se a produção e o compartilhamento de significados, favorecendo o que Clandinin e Connelly (2011) trazem como o (re)pensar, (re)significar e (re)construir das práticas educativas a partir de uma perspectiva narrativa. Desse modo, argumenta-se sobre a importância do Cirandar, das rodas de formação em rede como um modo de promover o diálogo, a escuta e a partilha de saberes, com liberdade de expressão para todos da comunidade aprendente.
As histórias aqui contadas, oriundas do passado, das lembranças e dos momentos que reforçam a aposta no Cirandar, articuladas ao momento vivido e a questões sociais e políticas relacionadas à docência, reforçam a potencialidade de ser mais, de compreender o diálogo como experiência e de então fortalecer o sentimento de esperança pelo reconhecimento e valorização da docência e da educação pública do nosso país.
Em outro momento, ao reler essas histórias, já não serão mais as mesmas interpretações, e haverá outras histórias para contar. Porém, é exatamente isso que justifica a aposta na formação continuada desenvolvida no Cirandar, na escrita de relatos de experiência, em que cada professor tem a possibilidade de modificar-se nesse reviver, de experienciar, ou melhor, de pesquisar os caminhos que levam à experiência.
É claro que isso não é tudo, mas mostra algumas das apostas no projeto Cirandar. As narrativas retratam a história de formação, articulada a pressupostos teóricos. O que outros podem aprender a partir desta leitura? Um processo de formação de professores em uma perspectiva dialógica mediado pela escrita do relato de experiência da sala de aula, que pode ser desenvolvida em parceria em todo ambiente escolar. Desafios existem, e um deles é o estudo da experiência, ou seja, sair do acontecido e buscar compreender algo deste acontecido, com a parceria da teoria, e partilhar essas aprendizagens. É também sair da sala de aula em que há o espaço de invenção e discutir a carreira docente dos sistemas públicos, a escola pública, a educação pública e as políticas que nela interferem.
É um projeto de formação que se mantém como resistência a ações retrógradas na educação, tão frequentes nos últimos tempos no contexto brasileiro, em que temos vivido a fragilização da educação pública e de conquistas históricas e ainda não suficientes na formação de professores.