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vol.31 número66EPISTEMOLOGIA INTERCULTURAL DECOLONIAL E A EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA EM CONTEXTO URBANO: ENTRE FORMAÇÃO/IDENTIDADE/PRÁXIS DE PROFESSORES INDÍGENAS NA CIDADE DE MANAUS-AMA FORMAÇÃO ENTRE PARES COMO AÇÃO ÉTICA E POLÍTICA índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
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Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade

versão impressa ISSN 0104-7043versão On-line ISSN 2358-0194

Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade vol.31 no.66 Salvador abr./jun 2022  Epub 25-Out-2022

https://doi.org/10.21879/faeeba2358-0194.2022.v31.n66.p173-190 

EDUCAÇÃO BÁSICA E UNIVERSIDADE: REDES DE FORMAÇÃO DOCENTE NA AMÉRICA LATINA

NOTAS DE UMA METODOLOGIA CONTRACOLONIAL TEÓRICO-BRINCANTE: ENCONTROS DE EDUCADORAS E EDUCADORES A ‘QUAL’ DISTÂNCIA?

NOTES OF A THEORETICAL-PLAYING COUNTER COLONIAL METHODOLOGY: MEETINGS OF EDUCATORS AND EDUCATORS AT ‘WHAT’ DISTANCE?

APUNTES DE UNA METODOLOGÍA TEÓRICO-JUGADORA CONTRACOLONIAL: ENCUENTROS DE EDUCADORES Y EDUCADORAS ¿A ‘QUÉ’ DISTANCIA?

Lúcia Cavalieri*  Universidade Federal Fluminense
http://orcid.org/0000-0003-2443-4308

Tatiana de Freitas Ordonhes de Mello**  Colégio Pedro II

Lea Velocina Tiriba***  Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
http://orcid.org/0000-0001-9508-5980

*Doutora em Geografia pela FFLCH-USP. Licenciatura, bacharelado e mestrado pela FFLCH-USP. Pós-doutoranda do Programa de Pós- Graduação em Educação, Linha de pesquisa: Práticas Educativas, linguagens e tecnologias (PPGEdu/ Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro/UNIRIO). Professora Adjunta à Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense (FEUFF). Emaill: cavalierilucia@id.uff.br

**Mestre em Educação Brasileira pela PUC-Rio. Graduada em Pedagogia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Especialista em Educação Infantil pela PUC-Rio. Professora do programa de Pós-Graduação em Educação Psicomotora e Professora da Educação Infantil do Colégio Pedro II. E-mail: tatiana.mello@gmaill.com

***Doutora em Educação pela PUC-Rio. Mestre em Educação pela Fundação Getúlio Vargas/RJ. Graduada em Comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro/UFRJ. Pós-doutorado em Educação, Linha de pesquisa: Contextos Contemporâneos e Demandas Populares (PPGEduc/Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro/ UFFRJ). Professora Associada à Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). E-mail: leatiriba@gmail.com


RESUMO

Este texto compartilha resultados de pesquisa de produção de práticas ecológicas, populares e libertárias na formação continuada de educadoras/es de escolas do campo e da cidade, assim como de territórios originários e tradicionais brasileiros, vividos no contexto de projetos coletivos de extensão de um grupo de pesquisa de uma universidade federal do Rio de Janeiro. Nosso objetivo é apresentar os princípios que inspiram e corporificam uma metodologia contracolonial teórico-brincante. Para isso, fazemos um recorte de um curso de extensão produzido e promovido pelo nosso grupo de pesquisa em 2021. Como recurso metodológico de análise, optamos por uma cartografia que traça fios de palavras, imagens, gestos e conceitos expressos por educadoras/es, entrelaçando-os com os rituais e as vivências concebidos nos encontros durante o curso. Observamos que, mesmo a longa distância, a luta pelo direito à natureza nos convoca, nos une e amplia o compromisso com as infâncias e com a natureza.

Palavras-chave: metodologia contracolonial teórico-brincante; formação de professores; crianças e natureza

ABSTRACT

This text shares research results on the production of ecological, popular and libertarian practices, in the continuing education of educators from rural and urban schools, as well as original and traditional Brazilian territories, coined in the contexts of collective extension projects by GiTaKa , at the federal university of the state of Rio de Janeiro/UNIRIO. Our objective is to present the principles that inspire and embody our theoretical-playful countercolonial methodology. For this, we make a clipping of the Conversatório FinaFlôr Course held in 2021 promoted by the group. As a methodological resource for analysis, we chose a cartography that traces threads of words, images, gestures and concepts expressed by educators, intertwining them with the rituals and experiences conceived by the Conversatório. We observe that, even from a long distance, the right to nature connects us, unites us and expands our commitment to childhood and to nature.

Keywords: theoretical-playful countercolonial methodology; teacher education; children and nature

RESUMEN

Este texto comparte resultados de investigación sobre la producción de prácticas ecológicas, populares y libertarias, en la formación continua de educadoras/es de escuelas rurales y urbanas, así como de territorios brasileños originales y tradicionales, acuñados en lo contexto de proyectos de extensión colectiva por un grupo de investigación en una universidad pública del Estado de Rio de Janeiro/UNIRIO. Nuestro objetivo es presentar los principios que inspiran y encarnan nuestra metodología contracolonial teórico-lúdica. Para ello, realizamos un recorte de un curso de extensión realizado en el 2021. Como recurso metodológico de análisis, se eligió una cartografía que traza hilos de palabras, imágenes, gestos y conceptos expresados por los educadores, entrelazándolos con los rituales y vivencias. Observamos que, incluso desde la distancia, el derecho a la naturaleza nos conecta, nos une y amplía nuestro compromiso con la infancia y con la naturaleza.

Palabras clave: metodología contracolonial teórico-lúdica; formación de educadores; niños y naturaleza

Apresentando os fios

A crise ambiental, que vimos ser produzida ao longo dos séculos XX e XXI, assemelha-se a um caleidoscópio, dada sua complexidade marcada por tantas disputas discursivas, rupturas, apropriações e fantasias. Algumas políticas disruptivas pautadas tanto na razão desencantada quanto em epistemicídios e genocídios se estendem desde os séculos coloniais e agravam a chamada crise reveladora da escassez promovida por uma forma hegemônica de ocupar o mundo. Uma das características mais marcantes da chamada sociedade do consumo (LEFEBVRE, 1991) é o sequestro da natureza como objeto a ser decifrado e dominado por meio de técnicas. Nem mesmo a pandemia causada pelo coronavírus SARS-CoV2, dos anos de 2020 e 2021, que já causou a morte de mais de 6 milhões de pessoas ao redor do mundo e, por opções políticas desastradas e comprometidas com a morte, em várias escalas, arrasta outros tantos milhões à fome e à pobreza, impulsionou outras formas de se viver que não são ditadas pela mercantilização da vida e da natureza e pela desigualdade social.

O objetivo do Grupo Infâncias, Tradição Ambiental e Cultural Ancestral (GiTaKa), compromissado com as infâncias e com o cuidado da Terra, tem sido investigar, inventar e difundir metodologias de formação contracolonial teórico-brincante, assim denominadas por se situarem na contramão de pressupostos antropocêntricos, racionalistas e individualistas do paradigma moderno que só aprofundam a chamada crise ambiental.

Enfrentamos teoricamente e trilhamos caminhos políticos que contradizem fundamentos iluministas que veem o mundo como uma grande máquina de reprodução de coisas e mercadorias, ao defender, de forma monoepistêmica, a razão branca, racista e eurocêntrica como instrumento exclusivo de conhecimento de uma parcela da humanidade (TIRIBA, 2018).

Este texto objetiva discutir processos e resultados de pesquisa de produção de práticas ecológicas, populares e libertárias de caráter coletivo, criados como projetos de extensão do GiTaKa, vinculado ao Núcleo Infâncias, Natureza e Arte (NiNa) da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro- UNIRIO. Uma das ações de extensão empreendidas neste período foi um conjunto de conversas intitulado Conversatórios FiNaFlor, realizado em diálogo com uma rede de secretarias municipais de educação, grupos de pesquisa e movimentos sociais brasileiros. Cumpre ressaltar que, na origem desse projeto de extensão, há um desejo e um compromisso com a continuidade da vida na Terra, com a saúde, com as crianças e com a natureza, fundamentos do GiTaKa.

A proposição contracolonial surge com Nêgo Bispo (2019, 20201). Para ele, na travessia do Atlântico, na diáspora africana com milhares de escravizados ao longo de séculos, os povos afrodescendentes confluíram com os povos originários que aqui estavam. Nesse movimento de confluência e na chamada guerra das denominações, Nêgo Bispo cunha a contracolonialidade como ideia e prática que afirma formas de produzir e circular conhecimentos dos povos afropindorâmicos como estratégia de sobrevivência em aliança com os povos originários, das favelas e dos quilombos. Tal proposição nos inspira no desenho de metodologias com uma educação que possa reinventar o mundo.

Nessa direção, apresentaremos os princípios que compuseram, neste tempo-espaço pandêmico, a ampliação de possibilidades de uma metodologia contracolonial teórico-brincante, sustentada agora por telas e fios condutores de sons e de luz e, ainda, por fios e redes que compõem nossa ancestralidade, nossos corpos e memórias. Essa metodologia2 vem sendo criada e experimentada em espaços de educação de crianças e de formação inicial e continuada de professoras/es3. Ela intenciona fissurar a lógica racionalista dos processos de formação, fazendo um convite ao conhecer de corpo inteiro, pelo cantar e o dançar, por rituais de proximidade com a terra e com a água, pelo desejo, pela alegria dos encontros.

No artigo em tela, traremos o histórico do Conversatório FiNaFlor procedendo a uma breve descrição de cada encontro e os fundamentos e metodologias criadas para ele. Por fim, anunciamos uma cartografia dos encontros, com imagens e textos expressos pelos convidados e participantes do curso, alinhavando-os teórico-metodologicamente com os conceitos fundamentais de nossa proposta.

Em consonância com os conceitos do grupo, interessou-nos observar, nos encontros, em quais linhas os desejos das/os diferentes educadoras/es e crianças se encontravam e se afastavam, ou como confluíam, como nos ensina Bispo (2019, 2020).

Conversatórios: uma encruzilhada a ser conhecida

Luis Rufino, juntamente com Nêgo Bispo, aportou contribuições profundas aos Conversatórios e à forma como passamos a entender uma metodologia teórico-brincante no campo da educação. A ideia da encruzilhada é uma dessas contribuições:

É nessa perspectiva que venho a propor uma Pedagogia das Encruzilhadas, um projeto poético/político/ético arrebatado por Exu. Nessa mirada o orixá emerge como loci de enunciação para riscar uma pedagogia antirracista/decolonial assente em seus princípios e potências. Exu, enquanto princípio explicativo de mundo transladado na diáspora que versa acerca dos acontecimentos, dos movimentos, da ambivalência, do inacabamento e dos caminhos enquanto possibilidades, é o elemento que assenta e substancia as ações de fronteira, resiliência e transgressão, codificadas em forma pedagogia. (RUFINO, 2018, p. 72)

Apesar dos cortes orçamentários vividos no campo da educação desde o golpe de 2016, o GiTaKa optou por manter vivos os laços de proximidade com os profissionais da Educação Básica dando continuidade aos processos de formação desenvolvidos pelo Ministério da Educação, em parceria com as Instituições de Ensino Superior, IES, de todo o Brasil em anos anteriores. Dirigimos nossa atenção à formação das profissionais que atuam na ponta, tomando nas mãos a educação das crianças brasileiras, em especial, da faixa etária entre 0 e 6 anos, resistindo à precariedade de recursos e de políticas públicas que desde então vigoram.

As 16 edições do Fórum FiNAFlor vividas desde 2011, os Cursos Infâncias Cariocas de 2017, 2018 e 2019, o Curso de Extensão Infâncias Brasileiras, ocorrido de forma on-line em 2020, consolidaram uma maneira de fazer extensão em proximidade com a pesquisa e o ensino, em diálogo com a concepção de extensão como comunicação, tal como apregoada por Paulo Freire (1997).

Ao longo dessas ações de extensão, vividas por mais de uma década, buscamos a construção de uma metodologia contracolonial teórico-brincante - como parte inegociável dos cursos oferecidos pelo GiTaKa - enquanto estratégia de trabalho de formação de professoras que articula apropriação teórica com proximidade da natureza (em parques, praias da cidade ou espaços ao ar livre da universidade) - envolvendo vivências corporais, musicais, teatrais, dançantes, literárias, plásticas, proporcionadas por professoras da universidade, estudantes de outros cursos ligados à arte e, também, indígenas e profissionais de outras áreas.

Já os anos pandêmicos de 2020 e 2021 nos convocaram a inventar ações de formação on-line que não ficassem restritas às lives4. Nosso esforço metodológico, em detalhe nas próximas seções deste artigo, imaginou uma cartografia contracolonial para cada encontro, de modo a promover rodas de conversa, produzir vídeos-relatos, convidar nossos corpos a brincar e a se tornarem presentes, escapando, assim, do formato de live, enquanto palestra.

Ao longo do processo de concepção dos Conversatórios, redes de ensino de quase todas as regiões do Brasil buscaram formação continuada às/aos suas/seus educadoras/es. Este foi mais um gatilho em nossa compreensão de que a nova ação de extensão que se desenhava estava grávida de todos esses chamados e convites; grávida também da urgência em apresentar pedagogias mais próximas da ética do cuidado (BOFF, 1999), construídas em múltiplos territórios Brasil afora, em uma relação de parentesco (KRENAK, 2020) entre humanidade e natureza. Várias redes municipais se tornaram parceiras e estiveram presentes conosco: Secretaria Municipal de Educação de Nilópolis -RJ, Secretaria Municipal de Educação de Camboriú, Secretaria Municipal de Educação de Florianópolis/Gerência de Formação Continuada, Secretaria Municipal de Educação de Mesquita - RJ, Secretaria. Municipal de Educação de Niterói- RJ/Subsecretaria de Projetos Transversais, Cooperação e Articulação Institucional, Coletivo Educação Infantil de Niterói, Associação Comunitária de Instituições Rosangela Ângelo/São Gonçalo-RJ, Movimento Articulação Infâncias, Sindicato de Professores do Rio de Janeiro/SinproRio, Secretaria Municipal de Educação de Mocajuba, Rede Araucária, Secretaria de Educação de São Leopoldo, Secretaria Municipal de Educação Itajaí, Secretaria Municipal de Educação Vinhedo, Secretaria Municipal de Educação Parobé. Algumas redes estiveram presentes desde o primeiro Conversatório, outras aderiram à formação mais tardiamente. Grupos de pesquisa também se achegaram ao longo do processo, como: FRESTAS - Formação e ressignificação do educador, saberes, trocas, arte e sentidos; GEASUR - Grupo de Estudos em Educação Ambiental desde el Sur; GEECAF - Grupo de Pesquisa Educação, Cultura, Ambiente e Filosofia; CRIEI - Grupo de Pesquisa a respeito das crianças, Educação Infantil e Estudos da Infância.

Os Conversatórios ocorreram em quatro encontros com cerca de duas horas e meia de duração cada um deles, sempre na última quinta-feira de cada mês, no segundo semestre de 2021, com transmissão ao vivo para o canal do Youtube do NiNa UNIRIO5. Cada encontro dos Conversatórios foi concebido a partir de ementas que se entrelaçaram as quais, por sua vez, surgiram dos temas estudados no primeiro semestre em três grupos de estudos do GiTaKa. Ao todo, tivemos cerca de 1700 educadoras/es de diferentes territórios do Brasil em cada um dos encontros.

A partir das ementas, os Conversatórios contaram com a participação de convidadas/os comprometidas/os com pedagogias que acolhem todas as formas de vida (humanas e não humanas), que criticam o individualismo e o antropocentrismo, que propagam a amizade e a solidariedade, que valorizam a autonomia, que afirmam a soberania dos povos e se colocam contra as injustiças ambientais e as desigualdades sociais que assolam o nosso país.

A estrutura dos encontros foi desenhada seguindo os princípios teórico-metodológicos do período presencial, com algumas adaptações que as telas nos impõem. Os seguintes rituais no período remoto foram instituídos: ritual de acolhimento (também chamado de chegança ou ancoragem do eu), anunciações das/os convidadas/os e das/os "anfitriãs/ões", vídeos com experiências-relato de desemparedamento em diferentes territórios, a grande roda conversa com as/os convidadas/os e o ritual de despedida.

No primeiro Conversatório, ocorrido em 26/08/2021, intitulado InfânciasComNatureza: educação como direito à alegria, tivemos como ementa: reconexão com a natureza, alegria e criação cosmológica; pedagogia imanente, desemparedada, biocêntrica e biofílica. Para esse primeiro encontro, convidamos Ailton Krenak6 e Luis Rufino.

Em 30/09/2021, data de nosso segundo Conversatório, convidamos Paula Henning, Walter Kohan e Diná Ramos, inspiradas/os pela ementa: desemparedar; reconectar, florestar, verdejar, ajardinar; abrir espaços de céu terra e água nas escolas, nos bairros, nas cidades. Seu título foi Desemparedar a vida, florestar-se, experimentar-se natureza…

NaturezaCorpoTerritório ocorreu em 28/10/2021, dispondo da ementa: ancestralidade; corpo, danças e corpo; biofilia. Para esse encontro, estiveram on-line conosco Laura dos Santos, Antônio Bispo dos Santos (Nêgo Bispo) e Stela Caputo.

Encerrando a formação intencionada pelo Conversatório FinaFlor InfânciasComNatureza, em 25/11/2021, chamamos mais três convidados para estarem on-line em nosso último encontro. Foram eles: Frederico Loureiro, Jader Janer e Márcia Ramos7. Para esse encontro, Redes de Cuidado das Infâncias e da Terra, respondemos à ementa: viver a infância no mundo atual; experiências de cuidado da terra, de sementes, de rios; agroecologia; práticas escolares comunitárias em escolas da cidade e do campo.

Os certificados de participação foram cuidados pela Pró-Reitoria de Extensão da UNIRIO. Criamos também um grupo de e-mail e WhatsApp diretamente com as secretarias para que elas recebessem o material de divulgação e textos que complementavam a formação que ocorreria em cada mês. As secretarias os repassavam às suas redes, as/os docentes vinham para as formações e se apresentavam no chat.

No final dessa caminhada, as redes que nos enviaram pequenos vídeos, textos, materiais artesanais já revelaram mudanças teórico-práticas provocadas nas escolas e territórios. Esse material vem sendo estudado, sendo a partir dele que nos comunicamos (lembrando sempre da concepção de extensão de Paulo Freire, 1997) com as práticas docentes.

Arranjos conceituais na construção da metodologia

Em cada encontro do Conversatório, como descrito na seção acima, estivemos com intelectuais, filósofas/os, militantes, pesquisadores e pesquisadoras, Mestras/es que falam desde seus próprios territórios e potencializam o diálogo com a Universidade, na medida em que trazem suas epistemologias e ontologias ancoradas em cosmovisões e cosmopolíticas como ferramentas de r-existência8.

As cosmovisões de comunidades tradicionais, avessas à modernidade, nos convidam a outras imagens do mundo e a imaginar outra educação com a natureza. Essas cosmovisões, além de trazerem alento e poesia, nos provocam a entender os movimentos políticos e epistêmicos advindos dessas imagens. De encantamentos a enfrentamentos (de existências a r-existências) palmilhamos o devir de territórios tradicionais e das formas como as crianças neles são cuidadas e concebidas.

Em diálogo, nos Conversatórios, proseamos com essas/es filósofas/os e Mestras/es aproximando-nos de seus próprios termos, ou seja, de suas relações com outras sociedades, com a ética, com a natureza, com a origem e a manutenção da vida e com as crianças. As epistemologias das comunidades tradicionais, de seus territórios e crianças ganharam centralidade, ou melhor, ganharam movimento e encantamento.

Sublinhamos que a espoliação - com fins à criação de uma América Latina feita tábula rasa para o extrativismo colonial - é um dos motores da moderno-colonialidade que tem, como seus postulados, a separação entre natureza e cultura, o encobrimento do outro, a cosmofobia9 e o racismo. Ou seja, a crise ambiental - e sua urgente superação - não nasce a partir de diagnósticos e tratados europeus das décadas de 1960 e 1970, sendo, sim, constitutiva de um modo de produção que perdura há mais de 500 anos e se acirra nos tempos atuais.

Nesse mundo em crise sistêmica, a vida dos povos originários e das comunidades tradicionais nos informa outras formas de se viver, quiçá menos destruidoras e suicidas que a nossa, tão violentamente constituída de forma monoepistêmica e subjugada aos ditames do mercado, como nos alertam Ailton Krenak (2020) e David Kopenawa (2015).

Ao dialogar com nossas matrizes epistemológicas, forjadas em séculos de vida e de r-existência à colonialidade, rompemos silêncios e enfrentamos o racismo e a violência epistêmica de embranquecimento de peles, de sentimentos, de pensares, de olhares e de almas. Em oposição à hybris ou ao desatino do punto cero10 que caracterizou a linguagem científica iluminista trazida às Américas, como garantidora da imparcialidade do conhecimento e do observador que o produz, tratamos de criar condições para que, de dentro das universidades e dos cursos de formação, as formas de sentipensar11 e de r-existir, até aqui silenciadas e invisibilizadas, sensibilizem e dialoguem com professoras/es e estudantes.

De acordo com o que vimos construindo em nossas pesquisas e formações, as infâncias e as crianças foram compreendidas como produtoras de cultura tradicional e ambiental; de sujeitos empíricos, protegidos tão arduamente por inúmeros dispositivos legais, as crianças passaram a ser sujeitos epistêmicos. As crianças são ancestralidade, como aprendemos com algumas/uns das/os Mestras/es que conosco estiveram e se tornam cosmofóbicas (ou não) a partir das experiências que vivem desde a cultura que habitam e recriam. Os mapas dos encontros que apresentaremos a seguir trazem imagens de crianças de diferentes locais do Brasil e nos mostram seus saberes corporificados em diálogo com o Cosmos.

Nos grupos de estudos do GiTaKa em 2021, que precederam a concepção e a realização dos Conversatórios, algumas/uns autoras/es nos eram muito queridas/os e nos inspiravam12 a pensar as crianças e a natureza. Alguns desses autores puderam estar conosco no Conversatório, como Krenak, Rufino e Nêgo Bispo.

Luis Rufino, convidado do primeiro Conversatório, disparou de forma contundente:

O trauma colonial permanece nos ataques aos corpos marcados pelos traços da diferença, na edificação de um modelo de razão monológica e de um modo de linguagem que não comunica, pois tem ânsia de silenciamento. O trauma permanece na produção incessante de desigualdade que nutre os privilégios e prazeres de uma minoria. Porém, há jogo pra se fazer, volta ao mundo pra se dar no terreiro. Cruzando nossas flechas e soprando o pó do bendizer, consagramos no chão nossas apostas para o fortalecimento da travessia. Assim, nossas flechas se lançam para os quatro cantos dessa casa chamada existência. Cada flecha atirada emana um poder de transformação e de mobilidade do tempo. São quatro setas disparadas em um único tiro: Educação, Cura, Cotidiano e Criança. (RUFINO, 2019, p. 13)

Ao reconhecer os carregos e as marafundas coloniais (RUFINO, 2019), que se fazem tão presentes nas escolas e no cotidiano das instituições educativas, lançamo-nos pelas encruzilhadas ontológicas e epistemológicas em conversas sobre crianças com natureza, desafiando aquilo que nos é negado desde a modernidade (ou desde a fundação da tradição judaico-cristã, como diria Nêgo Bispo nas obras já referidas): a separação entre natureza e cultura, filosofia e arte, ciência e espiritualidade, razão e emoção, corpo e espírito, humano, não-humano.

Nos dias mais recentes, temos ouvido sobre resgate de nossa ancestralidade. Contudo, parece haver um equívoco quando tomamos ancestralidade como correspondente à geração que nos precedeu, ou seja, nossos antepassados. Justo são as filosofias afroameríndias que recolocam a ancestralidade nas relações que nos interessam realçar em processos de formação de professores: a relação criança-natureza.

Para Rufino (2019), a ancestralidade é lida e vivida como política que celebra a existência como um contínuo e o ser como exercício comunitário. Para ele, é a ancestralidade que nos nutre com seu repertório de cura diante da escassez, do desencantamento e do assombro colonial. Nesse sentido, uma criança pode ser nosso ancestral, como nos contou, também no Conversatório, Stela Caputo. Ventos, rios, terra, lama... também podem ser nossos ancestrais. A ancestralidade passa por nosso corpo-território e, presente nas crianças, descortina a circularidade do tempo e a inseparabilidade da natureza e da cultura, de nós e dos outros.

Ao longo dos Conversatórios, a potência da oralidade evidenciou-se com a presença das/os Mestras/es. Para Cavalieri e Monteiro (2019), as palavras, em seu sentido mais estendido, comunicam uma experiência compartilhada ao longo das gerações. A oralidade está viva e não se encerra em folhas de papel em branco, preenchidas com letras. A oralidade expressa jeitos e gestos de se fazer e estar no Cosmos. Ela acolhe saberes novos, como uma grande roda-gira, na qual, busca-se os fios de interseção e encontros entre os seres e experiências diversas para a composição coletiva, sem a perspectiva de monopolização de uma única verdade possível.

Anúncios e cartografias de uma metodologia contracolonial teórico-brincante

Considerando a riqueza do material audiovisual produzido e gravado durante os quatro encontros dos Conversatórios, interessou-nos investigar como se desenharam nossas práticas de formação pelas telas.

Conceituamos como metodologia contracolonial teórico-brincante práticas de formação realizadas, sempre que possível nos espaços abertos, na natureza, nas quais as experiências sensoriais, artísticas e brincantes se entrelaçam e amplificam as reflexões teóricas. Trata-se de práticas realizadas e reavaliadas nas rodas, nos coletivos de educadores, nas quais a troca, a conversa e o diálogo constituem condição de aprender-fazer-sentir. Por essa razão, pelas telas, desejávamos continuar desenvolvendo práticas que valorizassem os afetos bons, os bons encontros (TIRIBA, 2019). Assim, nesse trabalho, desejamos honrar esse processo, buscando cartografar gestos, palavras, olhares, tons de vozes que surgiam nas falas dos convidados e nas manifestações pelo chat, construindo linhas que narrassem sobre os afetos que se cruzaram pelas/os diferentes educadoras/es e crianças, compreendendo onde se aproximavam e se afastavam ao longo de cada roda.

Optamos, como exercício metodológico, pela busca pela construção de cartografias dos encontros, entendendo-a como prática que se enreda ao conceito de rizoma de Deleuze e Guattari. Em um rizoma, diferentemente da ideia de árvore, não sabemos a raiz das coisas e não estamos interessadas/os em fixar nenhuma relação de causa e efeito, somente identificamos os vetores que os atravessam criando territórios. Simonini afirma:

Não seria mais a questão de buscar pela profundeza e/ou pontos de origens das raízes, mas de seguir as linhas que se emaranham na construção de tramas cujas trajetórias são ativadas e/ou abortadas no processo vivo e maquínico de composições, rupturas e alianças. (SIMONINI, 2019, p. 79).

Inspiradas na teoria das Multipheidades de Deleuze (1995), na qual o múltiplo passa ao estado de substantivo e os elementos que o compõem não podem ser analisados separadamente de forma linear, temporal ou mesmo causal, colocamo-nos à disposição das gravações dos encontros on-line já com a compreensão de que todos os encontros se atravessam e se integram entre si desde sua concepção, mas na intuição de que fragmentos saltariam aos nossos olhos e aguçariam nossos sentidos.

Nosso intuito foi construir uma cartografia, um plano de composição no qual fosse possível localizar os platôs (zonas de intensidade contínua), em que gestos, palavras e outros elementos se conectariam e fariam sentido para apresentar uma determinada realidade ou ideias pulsantes de nossa ação. Foi a partir da elaboração dos mapas que surgiram algumas linhas que deram contorno aos territórios de nosso desenho de formação teórico-brincante a longas distâncias e, ao mesmo tempo, curtas distâncias entre nossos afetos.

Uma das linhas que define um caminho ético-estético-político do GiTaKa e que atravessou um platô de infinitas criações conceituais em nosso trabalho nos Conversatórios foi a compreensão da inseparabilidade do corpo e da mente, visto que não há, absolutamente, uma mente sem corpo13.

Defendemos que essa ideia de cognição e de aprendizagens, as quais se dão somente acima do pescoço e com os corpos forçadamente sentados, parados, é pesada e inapropriada demais (MATURANA, 2001). Por isso, adoece professoras/es e crianças há alguns séculos e não podemos permitir essa violência simbólica contra nossa potência de perseverar em nosso ser. Espinoza (1983) afirma que, se uma coisa aumenta ou diminui a potência de agir do nosso corpo, a ideia dessa mesma coisa aumenta ou diminui a potência de pensar da nossa alma, sendo, portanto, absolutamente importante pensar em ações que não dicotomizem corpo e mente, mas que afetem os corpos com afetos alegres, aumentando a potência de agir dos corpos e de pensar das mentes. Isso se o que desejamos é nos tornar sujeitos cada vez mais emancipados, cientes de nossas escolhas e transformadores do nosso cotidiano na educação.

O desejo é a própria essência do homem, isto é, um esforço pelo qual o homem se esforça por perseverar no seu ser. Por isso, o desejo que nasce da alegria, é favorecido e aumentado pela própria afecção de alegria; inversamente, a que nasce da tristeza é diminuída ou refreada pela própria afecção de tristeza. (ESPINOZA, 1983, p. 238)

Na cartografia dos encontros remotos, como a própria metodologia propõe, buscamos nos afastar das tentativas de totalizações para criar um plano de consistência que revelasse as intensidades do brincar, da ginga, do aumento de potência de alegria, de trans(formação) de educadoras, durante os quatro encontros14 do FiNAFLOR Conversatórios que partilhamos.

Fonte: Elaborado por Mello, T. (2022), a partir das gravações do Conversatório

Mapa 1 Educação como direito à alegria 

Nestas capturas de tela, organizadas nesta cartografia primeira, observamos como as/os educadoras/es presentes no encontro on-line demonstravam, por meio de mensagens pelo chat, a potência dessas vivências para o desenvolvimento de um desemparedamento do próprio corpo. Reafirmavam a tão conhecida necessidade de parar e de se permitir sentir o ar que entra, que alegra e traz paz interior. Ainda sobre esse momento vivenciado no primeiro Conversatório, observamos também que o encontro com os olhos, os sons da voz, a delicadeza nos convites e a abertura para a liberdade, conduzidos por Mariana Lopez15, pareceu acolher as/os educadoras/es, pois, mesmo a longas distâncias (e “quais” distâncias…), imediatamente, procuraram formas de retribuir o diálogo, com figurinhas coloridas, escolhidas para demonstrar o vínculo com a temática da natureza e palavras de afeição, como forma de agradecimento.

Saindo de vivências, como a apresentada acima, com respiração e histórias imaginadas, nos três outros encontros subsequentes ao primeiro Conversatório, aproximamo-nos das práticas de chegança, como nos folguedos e festas populares, como momentos de acender todo o corpo. Katarina Assef16 convidou todo o povo que assistia ao vivo para dançar com desafios de percussão corporal e músicas de repertório mais popular.

Fonte: Elaborado por Mello, T. (2022), a partir das gravações do Conversatório.

Mapa 2 Dizer sim às vontades do corpo 

Seguindo nessa direção da escuta dos desejos, destacamos uma segunda linha que atravessa o mapa: dizer sim às vontades do corpo (TIRIBA, 2018). Esse platô foi fundamental para a escolha da brincadeira como central em nossa metodologia.

Compreendemos que a suspensão do tempo pelo jogo, com suas múltiplas possibilidades de movimento, tensão, divertimento e alegria precisam estar integrados, permeando as conversas e os estudos, possibilitando a compreensão e a invenção de conceitos e ideias, com e pelo corpo. Acreditamos que o jogo abre espaços para a manifestação dos diferentes desejos de cada sujeito que compõe nossos grupos, potencializando o nascimento e consciência de novos desejos, destravando medos, curando inseguranças e acendendo caminhos.

Fonte: Elaborado por Mello, T. (2022), a partir das gravações do Conversatório

Mapa 3 Brincar 

No terceiro Conversatório, sublinhamos um depoimento importante:

É possível tornar o mundo melhor. Nós que convivemos com as crianças sabemos que as crianças não têm problemas. Quem têm problemas são os adultos. (...) O mundo sempre foi CAOS e CRIAÇÃO.

A criança não está preocupada com o que mundo vai pensar que ela é. ELA É. Ela é e se faz o tempo todo. Ela é ação! (Laura Santos, relato oral no terceiro Conversatório).

A concepção de brincadeira com a qual nos identificamos e nos impulsiona à metodologia teórico-brincante se baseia na perspectiva de Maturana (2004), Piorsky (2016), Huizinga (1945) e Rufino (2019). Huizinga (1945) assevera que o jogo, em aproximação com nossa ideia de brincadeira, vai além de uma atividade humana. Dessa forma, assim como os bebês humanos, os animais também não precisam ser ensinados à atividade lúdica.

A observação de que a brincadeira não é apenas uma característica dos seres humanos explicita a terceira linha de nossa metodologia: a brincadeira em si não pode ser explicada por um viés racionalista. Seja nos espaços educativos, na floresta ou entre muros de uma instituição, o jogo não é uma consequência da cultura, por mais que esteja conectado e emaranhado com ela. Ele é anterior a ela. As crianças nos apresentam isso o tempo inteiro, desde muito cedo.

Rufino também nos brindou com uma assertiva sobre o brincar:

Nós perdemos a capacidade de brincar, nós perdemos a capacidade de ritualizar a brincadeira. Nós somos povos que perdemos o contato com os tambores encantados. O tambor encantado nesta narrativa dos Ibejis - que quem toca é Doum - é o nosso corpo. Nós perdemos a capacidade de sermos leitores e ouvintes em múltiplas línguas, nós perdemos a capacidade de espantar a escassez, a tormenta, com uma certa face brincante. Talvez nós estejamos ainda um tanto quanto achatados, buscando soluções em esquemas extremamente ocidentalizados que não conseguem ouvir as crianças, os Ibejis, a floresta. Não conseguem ouvir tantas outras artimanhas que são capazes de nos ensinar coisas. Ou talvez essa seja a grande tarefa da educação: desaprender-educando, e isso perpassa por uma educação com as crianças onde elas possam ser nossas professoras. (Luis Rufino, relato oral no primeiro encontro).

Fonte: Elaborado por Mello, T. (2022), a partir das gravações do Conversatório

Mapa 4 Natureza em vídeos-relatos 

Este mapa apresenta algumas capturas de outro momento que marcava um tempo de escuta das práticas entre adultos e crianças de nossos encontros: os vídeo-relatos. Essa estratégia abriu a possibilidade de ouvirmos e vermos relatos de diferentes experiências de educadoras que, nos mais diferentes territórios e contextos, criaram movimentos e rotas de fuga contra o emparedamento dos corpos.

Encomendar e receber esses pequenos vídeos de 3 a 5 minutos, de diferentes escolas das redes públicas e particulares do país, de parceiros dos movimentos sociais de diferentes estados do Brasil que nos acompanham e que acompanhamos há algum tempo, nos territórios indígenas, quilombolas e ribeirinhos um pouco mais afastados e também dos centros urbanos, fortaleceram e ampliaram nossa rede.

A organização e a exibição em blocos que misturavam diferentes territórios, em nossa avaliação, provocaram reflexões sobre as semelhanças e as diferenças de concepção de infância, de currículos e de relação com as naturezas nas diferentes culturas. Observamos como, nas crianças pequenas de diferentes lugares do Brasil, pulsa um “eu gosto de mexer na areia, plantar na terra, banhar nas águas do rio ou dos mares e lagos, de correr e dançar com os ventos”, reinventando um mundo do lado de dentro e esticando-o do lado de fora (PIORSKI, 2016).

Huizinga (1945), voltando ao tema do brincar, nos chama a atenção para o fato de que o jogo precisa ser compreendido como uma categoria autônoma, como totalidade, pois sua definição, a partir de outros termos, sempre limita sua condição significante. Para ele, o jogo não é o contrário da seriedade; o riso, no jogo, não é uma característica obrigatória; o jogo não é, necessariamente, cômico; o jogo não pode ser relacionado às antíteses entre o bem e o mal ou entre a verdade e a falsidade; o jogo não tem relação propriamente dita com a moral, com virtudes ou vícios; o jogo quebra qualquer possibilidade de determinismo do Cosmos e reafirma a natureza supralógica da situação humana, outro platô nosso. Ele insinua a potência do jogo como possibilidade de mudança no jogo da vida.

É possível negar-se, se quiser, quase todas as abstrações: a justiça, a beleza, a verdade e o bem, o espírito, Deus. É possível negar-se a seriedade, mas, não ao jogo. (...) Mas, ao reconhecer o jogo, reconhece o espírito. Pois o quer que seja o jogo, ele não é algo material. Ultrapassa, mesmo no mundo animal, a realidade física (HUIZINGA,1945, p. 4).

Essas experiências nos provocaram a fabular outros possíveis com nossas crianças, a escavar com elas as brechas necessárias por seu direito ao brincar na natureza, repensando nossas relações com os diferentes tempos e espaços educativos.

Nesse sentido, o “brincante” de nossa metodologia não foi e não é apenas uma escolha por uma determinada área de estudo que, por exemplo, defenda o brincar como descarga de energia, de prazer, mas, sim, como resultado de outra linha nossa: o cuidado com a vida (BOFF,1999). Esse fundamento sustenta a nossa concepção de vida na Terra, e, portanto, nossos múltiplos caminhos pela pesquisa, extensão e ensino. O brincar docente instaura outro platô de nossa experiência: a busca por comunhão conosco mesmas/os e com outros seres brincantes de nosso Cosmos.

Não abrimos mão de importantes estudos da psicologia (VIGOTSKI, 1997) que explicam a brincadeira e o jogo como uma atividade essencialmente humana, importante fator no desenvolvimento de funções psicológicas superiores, mediadas por signos culturais. A Sociologia da Infância investiga a cultura de pares, expressa através de jogos como, por exemplo, os de fuga, comuns às crianças de diferentes culturas e lugares do mundo (SARMENTO apud MÜLLER, 2009). Entendemos que este não pode ser o centro de nossas preocupações. A intensidade do brincar e seu poder de fascinação não podem se limitar às análises racionais. A ginga e a brincadeira são convites à liberdade, à natureza e à vida em grupo.

Fonte: Elaborado por Mello, T. (2022), a partir das gravações do Conversatório

Mapa 5 Redes de cuidado 

Mesmo quando não estamos em um momento de jogo propriamente dito, buscamos estar caboclamente (RUFINO, 2019) em ginga com o cotidiano que habitamos, aprendendo e potencializando-nos com os ensinamentos de nossas diferentes culturas tradicionais, visto ser elas que nos inspiram.

Invocarmos as crianças como trato, como horizonte de labuta, de exercício de uma semeadura de esperança para espantar a morte, é entender que a gente precisa combater o esquecimento e, talvez, esses que são lidos como os mais novos são os mais velhos nesse tempo que não é uma linha reta, que é outra artimanha deste projeto [colonial]: uma captura do tempo. Esse tempo que é espiralar. Cada um, cada uma que chega está fazendo o retorno nesta espiral do tempo, e é capaz de na brincadeira, no rito, reivindicar, invocar tecnologias ancestrais de cura e de batalha. (Luis Rufino, relato oral no primeiro encontro).

Nêgo Bispo ao nos fazer pensar sobre o cuidado e sobre o que aprendemos com a natureza rememora:

[Tio Norberto dizia] (...) o Boi não precisa trabalhar para comer. Somos nós que precisamos. Então, cada vez que você for pegar o boi para trabalhar, peça por favor. Por favor, Boi, me ajude a arar esta terra… Peça por favor, porque ele não precisa.

Então, eu perguntava ao Tio Norberto: Mas tio, você acha o que o boi vai entender isso que eu vou dizer? Ele respondia: Não. Quem precisa entender isso é você. O boi não precisa entender nada disso não. (Nêgo Bispo, relato oral no terceiro encontro).

Algumas considerações finais para enredar

A formação continuada de educadores é direito homologado no Brasil em leis federais, como na Lei de Diretrizes e Base da Educação (BRASIL, 1996) e em resoluções como as Diretrizes Curriculares Nacionais para a formação continuada dos professores da Educação Básica (BRASIL 2020). Como sabemos, a criação de projetos nessa direção devem, obrigatoriamente, fazer parte dos planos anuais de Estados, Municípios e de todas as instituições que firmam um compromisso com a educação de pessoas, sejam elas adultos ou crianças bem pequenas. Interessou-nos e nos interessa questionar o que vem significando esses termos da obrigatoriedade, na prática.

Acreditamos que, ao nos relacionarmos com humanos e, mais do que isso, seres vivos únicos, que compõem um Cosmos e são (trans)formados a cada instante por uma complexa rede de afetos, a obrigatoriedade legal não garante, necessariamente, o que mais precisamos: encontros que nos fortaleçam em nossas práticas transgressoras, que criem gestos e devires mais amorosos na ginga cotidiana e no reconhecimento da espiral do tempo que nos constitui.

Nessa direção, a metodologia de formação do GiTaKa é brincante porque concebida no fluir dos encontros, no que se expressa como desejo e gera alegria, individual e/ou grupal, atravessando nossas vidas, transformando-nos. O grupo pesquisa possibilidades de produção de cotidianos alegres em espaços de convívio entre crianças, adultos e todas as formas de vida (humanas, vegetais, animais, cósmicas) porque a alegria é o sentimento resultante de afetos, encontros, vivências potencializadoras da existência.

As metodologias foram denominadas como contracoloniais teórico-brincantes porque atuam na contramão do paradigma europeu dominante, valorizando a proximidade com a natureza, apostando em caminhos de conhecimento que se situam para além da razão, abrindo espaços às vontades do corpo, aos processos criativos/artísticos, aos movimentos de empoderamento político, na perspectiva da democracia. As metodologias contracoloniais teórico-brincantes apostam em movimentos fluidos e fruitivos de cada pessoa e dos grupos, em direção ao que lhes interessa conhecer, de acordo com seus desejos. Com Spinoza, desejo que não indica uma carência, pode ser potência, entendida como princípio que orienta a vida afetiva que impulsiona os seres em direção ao que é bom (SPINOZA, 1983). Ampliando a ideia de Espinosa, temos a concepção de Rufino (2019) que aponta que a existência é um contínuo e o ser é exercício comunitário (jamais individual) lançando-nos no jogo, na festa e na ginga que desassombram e enfrentam as políticas de escassez.

Assim, as cartografias produzidas, nesse período remoto, apontaram territórios onde as intensidades dos desejos se revelaram e se aliançaram com algumas linhas conceituais do grupo de pesquisa: a inseparabilidade do corpo e da mente; o dizer sim às vontades do corpo; a brincadeira em si não pode ser explicada por um viés racionalista; o cuidado, como busca por comunhão conosco mesmas/os e com outros seres brincantes de nosso Cosmos.

Em relação às distâncias, ao formato remoto e às possibilidades de afetar, acreditamos que a abertura para a escuta de experiências das/os profissionais de diferentes realidades, a abertura constante ao diálogo (SILVA, L.; MELLO, T.; PEREIRA, K., 2019) nas rodas de conversa, a escolha de convidados que atuam em diferentes campos de pesquisa e de saber foram escolhas teórico-metodológicas que alegraram os encontros e, por conseguinte, facilitaram as mediações e encontros.

É importante considerar que a resposta positiva ao projeto se expressa tanto quantitativamente, no número de visualizações, quanto qualitativamente, por meio de escritos no chat e de devolutivas que foram enviadas através do grupo de WhatsApp formado com os representantes de cada secretaria, universidade e movimentos sociais.

Outro aspecto que observamos foi a potência dos encontros on-line - mesmo diante das ambiguidades e da impessoalidade das telas - no que diz respeito às possibilidades de conversa e experiências educativas, aproximando territórios distantes. Para as/os profissionais do estado do Rio de Janeiro que moram em outros municípios ou em bairros mais distantes da universidade, o remoto também se revelou como uma oportunidade de inclusão, tema muito necessário e complexo relacionado ao contexto das/os educadoras/es brasileiras/os que vivem nas grandes cidades e/ou trabalham por longas jornadas dentro das instituições.

Desde o debate sobre a contracolonialidade, a ancestralidade, o brincar, o cuidado com as infâncias e com a natureza, juntamente com uma cartografia potente, defendemos a intrínseca relação entre a pesquisa, ensino e extensão pautada no diálogo com as epistemologias e as ontologias que são massacradas cotidianamente. Trata-se aqui de defender, na encruzilhada, os encontros pluriepistêmicos na formação de professores, no cuidado das crianças e na defesa da vida.

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1Antônio Bispo dos Santos é conhecido como Nêgo Bispo. Como assim ele se chama e se reconhece, optamos em também tratá-lo dessa forma no texto.

2Consultar SCHAEFER, K. B.; GUEDES, A. O.; TIRIBA, L. (2017).

3Optamos, neste artigo, em priorizar a escrita feminina buscando, sempre que possível, dirigirmo-nos ao leitor no feminino plural. Já quando estivermos falando especificamente das atividades investigadas e relatadas aqui, que contaram com a presença de homens educadores, usaremos o masculino plural.

4Herdamos da pandemia de COVID-19 uma pandemia de lives e meets que nos colou nas telas gerando adoecimentos às crianças, a todas, todos e todes que viram sua sociabilidade sequestrada.

5As transmissões ao Youtube do NiNa UNiRIO utilizaram o aplicativo StreamYard em sua versão gratuita.

6Nesta semana de agosto de 2021, o Supremo Tribunal Federal iniciou a votação do conhecido Marco Temporal, PL 490, tese que limitaria a ocupação das terras indígenas à sua presença no ano de 1988, ano da Constituição Federal Brasileira. Ailton Krenak, por esse motivo, justificou sua ausência. O tema do Marco Temporal e nossa defesa à vida das comunidades indígenas estiveram presentes no Conversatório.

7No Instagram do NiNa (@ninaunirio), postávamos os cartazes de divulgação com uma minibiografia de cada um dos convidados. Os cartazes também seguiam por WhatsApp para os gestores das redes parceiras que, por sua vez, os repassavam às/aos professoras/es.

8“[...] mais do que resistência, o que se tem é R-Existência posto que não se reage, simplesmente à ação alheia, mas, sim, que algo pré-existe e é a partir dessa existência que se R-Existe. Existo, logo resisto. R-Existo”. (PORTO-GONÇALVES, 2006, p. 47).

9Cosmofobia, um termo cunhado por Nêgo Bispo (2020), refere-se ao medo da natureza como ferramenta de conquista instituída pela máquina colonial. Divorciados da relação mais íntima, diversa e animista com o Cosmos, mais facilmente as culturas e territórios seriam dominados, segundo o autor. Seria, portanto, a cosmofobia uma doença colonial.

10Esta pretensión, que recuerda la imagen teológica del Deus absconditus (que observa sin ser observado), pero también del panóptico foucaultiano, ejemplifica con claridad la hybris del pensamiento ilustrado. Los griegos decían que la hybris es el peor de los pecados, pues supone la ilusión de poder rebasar los límites propios de la condición mortal y llegar a ser como los dioses. (CASTRO-GÓMEZ, 2005, p. 8).

11Eduardo Galeano (2013) nos apresenta, trazido de sua militância com os pescadores na Colômbia em tempos das Investigações Ações Participantes (IAP), o termo sentipensar que alia coração e razão.

12Para Bispo (2019), na guerra das denominações do modo contracolonial, os povos afropindorâmicos inspiram para transfluir enquanto os colonizadores transportam para influenciar.

13Lembrando Nietzsche, Bizzo (2021), ao relacionar a psicomotricidade à filosofia, afirma que o corpo é pensador. É fio condutor para a vida.

14O material utilizado nos mapas encontra-se nas quatro gravações e nos chats dos encontros disponíveis no canal do Youtube do NiNa Unirio (https://www.youtube.com/channel/UCZDq-KdR_910glIgZZOpAuA)

15Mariana Lopez é educadora, professora de educação física e psicomotricista.

16Katarina Assef é brincante, cantora, compositora e arranjadora vocal, formada em música pela UNIRIO.

Recebido: 06 de Janeiro de 2022; Aceito: 04 de Março de 2022

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