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Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade

versión impresa ISSN 0104-7043versión On-line ISSN 2358-0194

Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade vol.31 no.67 Salvador jul./set 2022  Epub 13-Ene-2023

https://doi.org/10.21879/faeeba2358-0194.2022.v31.n67.p75-97 

Artigos

IDENTIDADE, DIVERSIDADE E CULTURA DOS POVOS INDÍGENAS: PESQUISA-AÇÃO COM ESTUDANTES DO ENSINO FUNDAMENTAL

WORK ON NOTIONS ABOUT INDIGENOUS PEOPLES - RECOGNITION AND RESPECT CONTEXTS

EL TRABAJO CON NOCIONES SOBRE PUEBLOS INDÍGENAS - CONTEXTOS DE APRECIO Y RESPETO

Ivana Aparecida de Araujo Rocha*  Universidade Estadual Paulista
http://orcid.org/0000-0001-7525-726

Eliane Giachetto Saravali**  Universidade Estadual Paulista
http://orcid.org/0000-0003-1259-6027

*Mestre em Educação (UNESP). Docente da Educação Básica. Membro do GEADEC (UNESP). Americana-SP, Brasil. E-mail: ivana.a.rocha@unesp.br

**Doutora em Educação (UNICAMP). Docente da Universidade Estadual Paulista(UNESP), campus de Marília-SP. Líder GEADEC (UNESP). E-mail: eliane.g.saravali@unesp.br


RESUMO

O artigo apresenta parte dos resultados de uma pesquisa-ação cujos objetivos consistiram em analisar as noções que alunos do Ensino Fundamental possuem acerca da identidade, da diversidade e da cultura dos povos indígenas, bem como promover uma intervenção pedagógica sobre o tema. Participaram do estudo 27 alunos do quinto ano, de uma escola da rede particular localizada no interior paulista. Na fase diagnóstica, os estudantes, submetidos a uma entrevista semiestruturada, apresentaram ideias em que os indígenas são reconhecidos somente por aspectos aparentes e caricatos, com argumentos alicerçados em estereótipos. Na fase de ação, foram desenvolvidas com a turma dezenove atividades planejadas, com o intuito de fornecer informações, promover o debate e trocas, que possibilitaram a valorização dos povos originários do nosso País. Os resultados da fase de avaliação demonstraram avanços nas crenças dos participantes que se desprenderam de estigmas e passaram a valorizar a diversidade e a cultura desses povos.

Palavras-chave: povos Indígenas; pesquisa-ação; ensino fundamental; intervenção pedagógica

ABSTRACT

This paper presents part of the results of an action research whose objectives were to analyze the notions that elementary school students have about the identity, diversity and culture of indigenous peoples, as well as to promote a pedagogical intervention on the subject. The participants were 27 students, from 5th grade, of a private school, located in the countryside of São Paulo state. In the diagnostic phase, the students, who were submitted to a semi-structured interview, presented thoughts that the indigenous people are recognized only by their apparent and caricatured aspects, with ideas based on stereotypes. In the action phase, 19 planned activities, were developed with the class, with the intention of providing information, promoting debate and exchanges, enabling the recognition of the native peoples of our country. The results of the evaluation phase showed advances in the beliefs of the participants, who let go of stigmas and began to recognize the diversity and culture of those peoples.

Keywords: indigenous peoples; action research; elementary school; interventional activity

RESUMEN

El artículo presenta parte de los resultados de uma investigación acción cuyos objetivos consistieron em analizar las nociones que tienen los estudiantes de primaira sobre la identidad, diversidade y cultura de los pueblos indígenas, así como promover uma intervención pedagógica sobre el tema. Los participantes fueron 27 alumnos de 5º grado de uma escuela privada ubicada em el interior de São Páulo. Em la fase de diagnóstico, los estudiantes, sometidos a uma entrevista semiestructurada, presentaron pensamentos em los que los indígenas son reconocidos solo por aspectos aparentes y caricaturizados, con ideas basadas em estereótipos. En la fase de acción se desarrolaron 19 actividades planificadas com la clase com la intención de brindar información, promover el devate y el intercambio, posibilitando la valoración de los pueblos originarios de nuestro país. Los resultados de la fase de evaluación mostraron avances em la creencias de los participantes que se deshicieron de los estigmas pasando a valorar la diversidade y cultura de estos pueblos.

Palavras clave: pueblos indígenas; investigación para la acción; enseñanza fundamental. actividad interventiva

Introdução1

Desde 2008, a necessidade de se abordar a história e a cultura indígenas nas salas de aula foi regulamentada pela Lei n.º 11.645, de 10 de março de 2008 (BRASIL, 2008). Trata-se de um importante avanço para a Educação brasileira, que enfatiza o conhecimento a respeito da formação da população do País a partir de dois grupos étnicos (Afrodescendentes e Indígenas) e valoriza a diversidade cultural e as suas respectivas contribuições. A alteração da Lei n.º 9.394, de 20 de dezembro de 1996, modificada pela Lei n.º 10.639, de 9 de janeiro de 2003, por sua vez modificada pela Lei n.º 11.645/2008, significou não apenas o reconhecimento dos indígenas no processo de formação da sociedade brasileira, mas também o estabelecimento de novas diretrizes para viabilizar ações que permitam a implementação e a efetivação de (novas) práticas pedagógicas no currículo escolar, mais especificamente no âmbito do ensino de História, Literatura Brasileira e Educação Artística: “[...] os conteúdos referentes à história e cultura afro-brasileira e dos povos indígenas brasileiros serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História brasileiras” (BRASIL, 2008, Art. 1º).

Anos após a regulamentação dessa lei, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) indica que a inclusão destes temas “[...] tais como a história da África e das culturas afro-brasileira e indígena, deve ultrapassar a dimensão puramente retórica e permitir que se defenda o estudo dessas populações como artífices da própria história do Brasil. ” (BRASIL, 2017, p. 403).

A temática indígena, assim como a da cultura afro-brasileira, são apresentadas para escolares durante o Ensino Fundamental I (primeiro e quinto anos). Na BNCC (BRASIL, 2017), tem-se apontado como uma das Unidades Temáticas para o quarto ano o trabalho no ensino de História com As questões históricas relativas às migrações, em que um dos objetos de conhecimento seria pensar sobre “[...] os processos migratórios para a formação do Brasil: os grupos indígenas, a presença portuguesa e a diáspora forçada dos africanos” (BRASIL, 2017, p. 412). Ainda, aponta-se a necessidade de trabalhar a transmissão de saberes, de culturas e de história, de forma a possibilitar o desenvolvimento de habilidades importantes como “[...] identificar formas de marcação da passagem do tempo em distintas sociedades, incluindo os povos indígenas e os povos africanos” (BRASIL, 2017, p. 415). Em outras palavras, espera-se que, ao chegarem ao quinto ano, os alunos tenham realizado experiências educativas significativas no contexto da temática e tenha havido oportunidades de refletir e de elaborar melhores noções.

Considerando os marcos legais e as recomendações dos documentos vigentes, compreendemos que o ensino possui o grande desafio de abordar algo tão desvalorizado em nosso País e, simultaneamente, acreditamos que a escola seja um espaço privilegiado para que essa diversidade, assim como outras, sejam elas sociais, étnicas, raciais, culturais, de gênero e religião, sejam vivenciadas, estudadas e compreendidas.

Ainda há um grande distanciamento entre os artigos que compõem a lei e aquilo que efetivamente se trabalha no contexto escolar, carregado fortemente com o estigma do dia 19 de abril, em que as crianças são pintadas ou pintam “índios” xerocopiados, absurdamente estereotipados, ou com apostilas e materiais didáticos que, tangencialmente, parecem cumprir tabela e mencionam alguns poucos elementos da grande aculturação e do genocídio ocorrido com os povos originários em nossas e/ou em outras terras do planeta.

Nesse contexto, docentes possuem um grande desafio: como trazer em sua prática um olhar descolonial e decolonial, com ruptura de estigmas e que promova uma formação histórica e plural? Outrossim, como responder a essa questão quando a própria formação que se possui é, igualmente, carregada de estereótipos e preconceitos? Entre os desafios, podemos apontar a necessidade de possibilitar que o aluno se conceba como um sujeito histórico.

[...] A compreensão do aluno como sujeito no processo histórico é uma exigência encontrada nas propostas pedagógicas do estado de São Paulo, desde a década de 1980, e nos Parâmetros Curriculares Nacionais, desde 1996. Ela parte da constatação de que o conhecimento histórico pode contribuir para o desenvolvimento da identidade. Mas o que isso quer dizer? Quer dizer que ensinar História para uma criança no Ensino Fundamental pode ajudá-la a pensar sobre sua própria história. Isso representa tomar consciência de seus hábitos, compreender melhor a cultura e o ambiente em que vive, e conhecer a realidade de seus colegas. Ao descobrir quem é, de onde veio, ela tem condições de projetar para onde vai (BELINTANE; SANTOS, 2014, p. 9).

De acordo com o censo do IBGE de 20102 os mais de 305 povos indígenas somam 896.917 pessoas, o que corresponde a, aproximadamente, 0,47% de toda a população nacional. São 324.834 indígenas não aldeados e 572.083 que vivem em aldeias. Os que são conhecidos como indígenas urbanos ou urbanizados vivem fora das terras indígenas; ainda, há 53 grupos que vivem de forma isolada, ou seja, sem contato com a população não indígena (BRASIL, 2010). Esses dados são comumente desconhecidos no ambiente escolar e na sociedade contemporânea não indígena.

Em 1500, quando ocorreu a chegada dos portugueses ao Brasil, e deu-se início ao processo de exploração e de colonização das terras brasileiras, a população indígena era de, aproximadamente, três milhões de pessoas, de acordo com a Fundação Nacional do Índio (FUNAI, 2020). “[...] Desde 1500 até a década de 1970 a população indígena brasileira decresceu acentuadamente e muitos povos foram extintos. O desaparecimento dos povos indígenas passou a ser visto como uma contingência histórica, algo a ser lamentado, porém inevitável” (FUNAI, 2020, grifo nosso). Ora, é de se pensar com indignação que essa citação seja oriunda do site oficial da Fundação Nacional do Índio, órgão federal que tem como objetivo a proteção e a garantia de direitos aos povos originários. Como é possível conceber como inevitável a ideia de contingência dos povos originários, que tanto transmitem à sociedade ensinamentos de convivência com a natureza e com toda a humanidade, dedicando-lhes respeito, amor e zelo?

Tal citação - que tem data de publicação de novembro de 2013 e data de atualização em novembro de 2020 - e ainda algumas outras manifestações deliberadas contra os povos indígenas, significam que é preciso combater as injustiças, os privilégios e todos os mecanismos que geram a desigualdade, vinculando a “questão” indígena à “causa” dos marginalizados. Não é uma missão fácil (pode-se pensar que nunca foi), para esses grupos, lidar com tantos agravos deliberados contra seus territórios considerados sagrados contra suas formas de viver. Castro (2016) nos adverte que os indígenas são exemplo por resistirem a uma guerra secular e violenta contra eles. Essa guerra tem por finalidade fazê-los perder a existência, fazê-los desaparecer, por meio da matança ou do processo de “desindianização”, para torná-los “cidadãos civilizados” (CASTRO, 2016).

Mais uma vez, podemos questionar sobre como é possível pensar e trabalhar a diversidade, tanto no âmbito educacional, quanto nos meios sociais, enquanto seguem em declínio a preservação e o direito de uso de línguas, práticas de cura, religiosidades, maneiras de viver com a natureza e cultura material e imaterial destes povos? É notória a luta que os indígenas travam pela preservação de suas vidas, de seus espaços, de sua ancestralidade. É preciso buscar entender as origens de tais situações, tanto de maneira histórica, como no contexto atual da sociedade brasileira.

[...] Há uma guerra em curso contra os povos índios do Brasil, apoiada abertamente por um Estado que teria (que tem) por obrigação constitucional proteger os índios e outras populações tradicionais, e que seria (que é) sua garantia jurídica última contra a ofensiva movida pelos tais donos do Brasil, a saber, os “produtores rurais” (eufemismo para “ruralistas”, eufemismo por sua vez para “burguesia do agronegócio”), o grande capital internacional, sem esquecermos a congenitamente otária fração fascista das classes médias urbanas. Estado que, como vamos vendo, é o aliado principal dessas forças malignas, com seu triplo braço “legitimamente constituído”, a saber, o executivo, o legislativo e o judiciário (CASTRO, 2016, p.5).

Das etnias existentes hoje, são 274 línguas diferentes e muitas formas diversas de compreensão da realidade que cerca cada povo (FUNAI, 2020). Uma grande parte vive em algumas das 505 terras indígenas demarcadas, que representam 12,5% do território nacional (IBGE, 2010). Esses territórios são fundamentais para a reprodução de seus modos de vida. Outros ainda vivem fora de Terras Indígenas, como os não-aldeados ou urbanizados.

Um fato facilmente comprovado em análises de materiais didáticos presentes nos planejamentos pedagógicos das escolas brasileiras é que há um abismo entre esses e muitos outros dados da realidade dos povos indígenas e as atividades e vivências escolares que proporcionam experiências educativas sobre o contexto indígena. De acordo com Munduruku (2017), reproduzimos um pensamento sobre os povos originários de nosso País, repetido à exaustão, que revela o quanto não sabemos sobre os indígenas e suas especificidades culturais. Sentindo na própria existência as ideias estereotipadas sobre sua etnia, o autor conta que, quando criança, sentia vergonha de sua identidade, ao ouvir menções a indígenas como canibais, preguiçosos, selvagens, entre outros. Raramente os indígenas são tratados e respeitados como fonte de cultura e de formas de vida compatíveis com a civilização ocidentalizada da sociedade, ou como um ser humano que:

[...] teceu e desenvolveu sua cultura e sua civilização de modo intimamente ligado à natureza. A partir dela, elaborou tecnologias, teologias, cosmologias e sociedades, que nasceram e se desenvolveram de experiências, vivências e interações com a floresta, o cerrado, os rios, as montanhas e as respectivas vidas dos reinos animal, mineral e vegetal. Há inúmeras características e formas de relações do índio com a natureza, o que provocou o florescimento de muitas etnias, muitas variedades de línguas, muitos costumes (JECUPÉ, 2020, p.19).

Embora a diversidade cultural faça parte da História da humanidade, desde os seus primórdios, são muitos os exemplos de genocídios e etnocídios contra povos considerados “culturalmente inferiores”. Os povos indígenas passaram por inúmeros processos de desestruturação étnica, desde o primeiro contato com a população não-indígena. Isso resulta da dominação socioeconômica e cultural que lhes foi imposta pelas nações colonizadoras (ZOIA, 2017).

Perante o processo português de colonização, a formação do Brasil ocorreu em meio a origens étnicas e raciais distintas, de tradições variadas, entre eles indígenas, brancos e negros. A esse processo tem-se atrelado a forte característica de miscigenação entre os povos, em meio ao desenvolvimento da urbanização. Diante disso, percebe-se um contínuo comportamento de negação e de desvalorização das culturas indígenas e também as de matrizes africanas. Negação de sua identidade étnica, de suas cosmologias, de seus significados. Por outro lado, a resistência indígena sempre se opôs. Essa é uma realidade que contradiz a expressão conceitual da democracia racial brasileira, que se compõe de expressiva variedade étnica, mas mostra-se carregada de disparidades em suas esferas sociais.

Oficialmente, a História impôs a esses povos um sistema de homogeneização de suas línguas e culturas. Difundiu-se a ideia de uma língua e cultura oficial, ou seja, aquela que é falada pela sociedade dominante, imposta pelos colonizadores portugueses e espanhóis aos povos nativos do continente americano. Manifestações culturais dos povos nativos foram destruídas em virtude de uma tal integração de costumes e de culturas da classe que os dominava, sob o pretexto de formação de uma nação única. Esse processo de exploração econômica e cultural a que esses povos foram submetidos durante séculos, consequentemente, dizimou diversos povos e línguas indígenas e conduziu, necessariamente, a uma perda de identidade para aqueles que sobreviveram. De acordo com Krenak:

[...] Nosso tempo é especialista em criar ausências: do sentido de viver em sociedade, do próprio sentido da experiência da vida. Isso gera uma intolerância muito grande com relação a quem ainda é capaz de experimentar o prazer de estar vivo, de dançar, de cantar (KRENAK, 2019, p. 26).

Sob a justificativa de civilizar, os europeus conquistaram, dominaram, exterminaram. As transformações sociais que os indígenas são obrigados até hoje a passar, principalmente na busca de alternativas de sobrevivência física e cultural, perante as influências sofridas pela sociedade não indígena, são fatores que contribuem para a diminuição da população indígena. Como exemplos, podemos citar as constantes invasões de modo ostensivo aos seus territórios, que têm causado uma pulverização de vidas indígenas, na falta de reconhecimento desse direito original.

Outro fator extremamente importante, concomitantemente histórico e atual, refere-se à constante violência usada contra essa população. Segundo o último Relatório de Violência Contra os Povos Indígenas do Brasil (CIMI, 2019), a história inicial colonial se repete por diversas vezes ao longo desses cinco séculos. A violência ocorre com a finalidade explícita e oficial de exterminar estas populações e seu modo de vida tradicional; é muito ampla: envolve o racismo, a discriminação, a negação da identidade dos povos originários, a invasão de seus territórios, a exploração ilegal dos recursos naturais neles existentes e as diversas formas de omissão por parte do poder público em relação à saúde, à Educação e, especialmente, no que diz respeito à regularização e à proteção das terras indígenas (CIMI, 2019).

A realidade contemporânea mostra uma sociedade visivelmente marcada por um preconceito estrutural e racializado, étnico e que produz e reproduz uma invisibilidade indígena. De acordo com Moreira (2020, p. 14) “é preciso compreender que todos os grupos são construtores de cultura, assim, cultura pode ser compreendida como a vida em movimento, como a exterioridade do ser humano e das relações destes com a natureza, outros seres, com as coisas do mesmo mundo.” Ainda segundo Moreira (2020), a cultura é nossa identidade, ao mesmo tempo em que pertencemos a uma determinada sociedade.

[...] Cultura não é, jamais, uma coisa exterior a nós, mas é aquilo que queremos nós, e que negociamos com o grupo humano com o qual convivemos e que nos deu origem. É nosso lugar e jeito de ser e de estar no mundo com os outros e outras. É morada, é abrigo. É o que nos expõe, tira nossa intimidade para fora de nós, para um território público. A cultura é como um espelho projeto para nós mesmos nossa imagem do exterior de nós para nós, e para os outros. Nela, estamos envolvidos nas formas de tempo e espaço que nos faz acessíveis ao mundo (PASSOS, 2010, p. 25).

Nas esferas sociais do mundo moderno, torna-se complexo (e ao mesmo tempo necessário) falar de cultura, de respeito ao outro e de reconhecimento de diferentes e inúmeros povos, entre eles os indígenas. Nas escolas, a educação intercultural tem grande potencialidade de diálogo e de aprendizado, já que é um espaço pensado para que os alunos aprendam a lidar e a conviver com a diversidade social e cultural. Uma grande questão a ser pensada em relação à escola é como lidar com a diversidade social, cultural, étnico-racial, constitutiva das infâncias brasileiras, pensar e construir um currículo que não coloque o aluno diante de uma perspectiva monocultural e padronizada. De que forma nossos alunos estão construindo conceitos sobre os povos originários e que tipo de experiências lhes são proporcionadas no ambiente escolar e/ou fora dele?

Na contramão dos currículos que incorrem em um padrão e modelo educacional, deve-se dar conta do “diverso”, da dinâmica cultural que atravessa o cotidiano escolar, da organização de um espaço de encontros, para pensar os conflitos existentes nas relações sociais, nos acordos e na produção de preconceitos e de estereótipos pela sociedade.

Considerando essas questões, a presente pesquisa foi delineada. Como abordar nas escolas a cultura e a História da população brasileira, valorizar e trazer esses aspectos e as contribuições dos povos indígenas para o nosso País, de forma a se respeitar efetivamente a Lei n.º 11.645, de 10 de março de 2008 (BRASIL, 2008)? Como construir uma prática que vá ao encontro das necessidades dos alunos, ao mesmo tempo em que apresente informações coerentes e verdadeiras, colabore para que os discentes façam novas relações e coordenem diferentes elementos que possam auxiliá-los a compreender, a problematizar e a valorizar os povos indígenas?

Aspectos metodológicos

A pesquisa, com abordagem qualitativa, teve como delineamento a pesquisa-ação, de tal forma que a docente da sala era também a pesquisadora que dialogava e realizava as intervenções junto aos alunos. Segundo Thiollent (1986, p. 75), “[...] com a orientação metodológica da pesquisa-ação, os pesquisadores em Educação estariam em condição de produzir informações e conhecimentos de uso mais efetivo, inclusive ao nível pedagógico”, o que promoveria condições para ações e transformações de situações dentro da própria escola.

[...] Pesquisa-ação é uma forma de investigação baseada em uma autorreflexão coletiva empreendida pelos participantes de um grupo social de maneira a melhorar a racionalidade e a justiça de suas próprias práticas sociais e educacionais, como também o seu entendimento dessas práticas e de situações onde essas práticas acontecem (TRIPP, 2005, p. 454).

Em um processo cíclico de exploração que presume planejamento-reflexão-ação, há a participação colaborativa dos alunos e a seleção do tema foi feita a partir do contexto pedagógico e social, problematizado anteriormente. De acordo com Thiollent (1986), a pesquisa-ação:

[...] É um tipo de pesquisa social que é concebida e realizada em estreita associação com uma ação ou com a resolução de um problema coletivo e no qual os pesquisadores e os participantes representativos da situação da realidade a ser investigada estão envolvidos de modo cooperativo e participativo (THIOLLENT, 1986, p. 14).

Sendo de cunho metodológico qualitativo, a pesquisa-ação agrega contribuições significativas a variadas áreas do conhecimento e apresenta diversas formas de aplicação segundo os diferentes contextos e objetivos de pesquisa e/ou investigação. Em Educação, ela é, com frequência, utilizada como um método que desenvolve práticas reflexivas em sala de aula, leva professores e alunos a reconsiderarem suas ações e conhecimentos dentro do processo contínuo de desenvolvimento da aprendizagem. De acordo com Tripp (2005, p. 446), nesse processo, “[...] Planeja-se, implementa-se, descreve-se e avalia-se uma mudança para a melhoria de sua prática, aprendendo mais, no correr do processo, tanto a respeito da prática quanto da própria investigação”.

A sala de aula em questão era um quinto ano do Ensino Fundamental I, de uma escola particular, localizada em uma cidade do interior do estado de São Paulo que atendia uma população predominantemente de classe média e média-alta. Os participantes foram os 27 estudantes, regularmente matriculados na turma, com idades entre nove e dez anos. A docente pesquisadora ministrava aulas de Língua Portuguesa, História, Geografia e Educação para o Consumo Consciente. A realização da pesquisa foi, inicialmente, autorizada pela instituição escolar e, em seguida, procedeuse a uma apresentação aos responsáveis que assinaram os Termos de Consentimento Livre e Esclarecido e autorizaram a participação de seus filhos. Demais procedimentos éticos foram avaliados e aprovados pelo Comitê de Ética em Pesquisa Local3 e pelo CONEP - Comissão Nacional de Ética em Pesquisa, após submissão na Plataforma Brasil4.

Passamos a descrever a pesquisa conforme a fases da pesquisa-ação, descritas por Thiollent (1986).

Fase Exploratória

A primeira fase da pesquisa-ação, também chamada por Thiollent (1986) de exploratória, consistiu, no presente estudo, na elaboração e aplicação de um instrumento que analisasse a noção inicial que os participantes tinham sobre povos indígenas, em específico a sua identidade, sua diversidade e sua cultura. Portanto, nesse momento, a ideia era conhecer os olhares e as crenças que os discentes traziam consigo, na intenção de, posteriormente, construir uma intervenção que pudesse ser transformadora.

Com o objetivo de desencadear o pensamen- a Figura 1, seguida de questões que computo dos sujeitos acerca do tema, era apresentada nham uma entrevista semiestruturada.

Fonte: https://www.ufmg.br/espacodoconhecimento/influencia-do-tupi/

Figura 1 Imagem utilizada nas entrevistas 

  1. Fale um pouco sobre esta imagem que você vê.

  2. Quem são as pessoas apresentadas na imagem? - caso a resposta seja “índios” ou “indígena”, prosseguir... - Por que você acha que são “índios” ou “indígenas” (conforme nome dado pela criança)? O que você vê na foto que informa que eles são indígenas? - caso mencionem as roupas, prosseguir - Se eles estivessem vestidos com roupas como as nossas, seria possível saber que são indígenas?

  3. Você acha que essas imagens mostram pessoas que vivem atualmente ou não? Como você sabe disso? Onde elas vivem? Há muitas ou poucas pessoas assim na nossa sociedade? Por quê?

  4. Você acha que faz tempo que pessoas como essas da imagem existem? Desde quando?

  5. Como você acha que eles vivem? O que fazem? Eles trabalham? Como e o que conseguem com o trabalho deles?

  6. Você acha que eles vivem aqui no Brasil? Onde? E em outros países também? Quais? Acha que sempre existirão pessoas assim no Brasil? E no mundo também?

  7. Você acha que os povos indígenas do Brasil são iguais ou diferentes dos povos indígenas dos outros países? Em que são iguais? Em que são diferentes?

  8. Como são as famílias das pessoas que você vê na imagem? Em que são parecidas com sua família? Em que são diferentes?

  9. O que as crianças dessas famílias fazem? Elas brincam? Como? Você acha que elas aprendem coisas novas? Que tipo de coisas? Onde aprendem? Quem ensina?

  10. Como são os lugares que essas pessoas das imagens vivem?

  11. Você sabe ou já ouviu falar sobre cultura? O que é? O que é cultura para você? Você acha que as pessoas da imagem têm cultura?

  12. Você já ouviu falar sobre civilização? O que é? O que é uma pessoa civilizada para você? Você acha que as pessoas da imagem são civilizadas?

  13. Você já ouviu a palavra indígena? Onde você ouviu? Você acha diferente falar “índio” e “indígena” ou você acha que quando usamos essas palavras falamos a mesma coisa?

As entrevistas foram realizadas individualmente, durante o momento de aula, enquanto os demais alunos desenvolviam atividades com outra professora da sala. Foram gravadas, tendo duração de 12 a 30 minutos, de acordo com a espontaneidade de cada criança e, posteriormente, transcritas para análise.

Para organizar as respostas e apresentar os resultados, realizamos uma subdivisão pelos eixos pesquisados: Identidade, Diversidade e Cultura.

Em relação à Identidade, as ideias apresentadas abrangem desde a consideração de aspectos físicos e aparentes do grupo apresentado na imagem, como observações que enfatizam as características físicas indígenas - tons de pele, estilo do cabelo, caracterização pela maneira de se vestir, uso de acessórios, adornos e pinturas pelo corpo até argumentos, apresentados por poucos, que consideram aspectos não-visíveis, como identificar as características étnico-raciais, a percepção das características fenotípicas, remetendo-se, por exemplo, à miscigenação, como também entender a pessoa indígena como integrante de um povo abrangendo sua história, sua cultura e sua identidade própria. Vejamos alguns exemplos:

FIL (10;5)5: E por que você acha que são indígenas? Porque está com cara. Como assim, com cara? Tá com roupa de índio. Roupa de índio? (Faz sinal de positivo com a cabeça). E pintura...no rosto. Se eles não tivessem com roupa de índio, nem com pintura no rosto, você saberia dizer se são índios? Não muito, eu reconheço o índio quando tem pintura no rosto e roupa de índio. É assim que você reconhece? Uhum. E por que você acha que eles usam essa roupa e essa pintura? Eu acho que a roupa porque eles conseguem fazer essa daí e a pintura para identificar que é índio.

GUS (10;4): Se eles tivessem com roupas como as nossas você saberia dizer se são indígenas? [...] eles estão com essas roupas e eles ainda estão quase no meio do mato [...]. E se eles tivessem com as outras roupas, não teria como identificar se eles fossem indígenas ou não, porque eles meio que já teriam se acostumado com... é... meio que o mundo que a gente vive. [...] Com o mundo? Não é bem o mundo, é, com as nossas...[...]como se fossem os costumes. Então se tivessem com roupas como as nossas, quer dizer que eles teriam... Eles meio que seriam parentes de índios, mas não ser os índios também. Eles meio que seriam, metade gente e meio índio, querendo dizer assim. [...] Meio gente? É, meio gente. Não, é assim, meio gente da cidade e meio que gente que mora em tribo assim.

Percebe-se que uma das características das respostas deste eixo é a identificação do indígena que torna relevantes e essenciais os aspectos aparentes da pessoa ou até mesmo do ambiente caracteristicamente natural, como o da imagem. Para a maioria dos participantes, ser indígena está atrelado à maneira de se vestir e ao local em que vivem, e não a uma identificação de pertencimento cultural, histórico e ancestral.

Ao eixo Diversidade foram reunidas as respostas que dizem respeito à diversidade dos povos originários, ou seja, se por meio delas, os sujeitos poderiam apontar se conheciam e compreendiam a existências de vários grupos de povos indígenas, cada qual com sua identidade, cultura, organização coletiva, modos de viver, de celebrar rituais, História e língua no Brasil e no mundo. Alguns exemplos de respostas deste eixo são demonstrados a seguir:

MAC (9;11): O que você sabe sobre os povos indígenas, MAC? Eu sei das características, sei onde eles vivem, do que eles sobrevivem. Pode me falar um pouco sobre? Sim, exemplo como eu já falei de caça, de pesca, de agricultura, eles trabalham bastante, eles possuem a suas características, esses acessórios.

ALI (9;11): E o que você sabe sobre os povos indígenas, ALI? É... o que eu sei? Isso. Que eles moravam em ocas, porque eles não tinham casa, eles se alimentavam da natureza, eles construíam as casas na natureza, que eles faziam os negócios nos braços (aponta para o ombro) para marcar a coragem, os negócios lá, que eles pintavam o rosto, eles faziam, as crianças elas brincavam, né, bastante, que os pais ensinavam.

No eixo Cultura, foram organizadas as informações relacionadas ao reconhecimento de diferenças culturais existentes na sociedade, a compreensão sobre o diálogo e convivência entre os grupos e como entendem o comportamento, os hábitos e os costumes dos povos indígenas em relação ao modo de viver contemporâneo dos povos não-indígenas, como se vê nos exemplos a seguir:

BEA (10;1): Como você acha que eles vivem hoje? Estão um pouquinho mais evoluídos, assim mas ainda tem bastante contato com a natureza e acho que eles usam um pouquinho mais de roupas, assim iguais às nossas, assim igual... assim, eu vi na TV um dia que um casal de indígenas estava usando roupas como as nossas, mas eles estavam com rosto pintado com “chapéis”. Ah eles também falam com outra língua não é tudo igual a gente.

GUS (10;4) - E você acha que sempre existirão pessoas assim no Brasil? Eu acho que não sempre, porque tem é, porque talvez mais pra frente o mundo fique mais tecnológico e eles consigam muito mais coisas e talvez eles acabam que meio que desmatando tudo.

Nesta fase exploratória, observa-se que muitos sujeitos ainda não consideram o modo de viver dos povos indígenas de forma dialogal e em coerência com a cultura da modernidade, trazem argumentos que relacionam a cultura indígena à pobreza, ao atraso social e à falta de evolução. Também não há reconhecimento nem valorização das atividades de subsistência dos povos indígenas como forma de trabalho, além de não validarem organizações desses povos como escola e família.

A maioria dos participantes (88%), nesta primeira fase, demonstraram que baseavam suas ideias em aspectos mais visíveis, muitas vezes caricatos, estereotipados e imbuídos de elementos preconceituosos para identificar e pensar a presença do indígena no Brasil.

Fase de Ação

A segunda etapa, também conhecida como fase de ação (THIOLLENT, 1986), consistiu no planejamento e na implementação de uma intervenção pedagógica, constituída de dezenove atividades escolares, que envolveram os participantes em vivências educativas sobre conceitos pertinentes à compreensão a respeito dos povos indígenas.

Essas atividades foram desenvolvidas durante o período de maio a novembro do ano corrente da pesquisa e foram propostas com vistas a proporcionar a reflexão sobre os povos indígenas brasileiros, sua história, sua cultura e sua diversidade, e não somente informações referentes ao tema abordado. Realizadas de modo coletivo, individual ou em pequenos grupos, foram compostas de vídeos, histórias, músicas, interpretações de notícias e imagens, confecção de cartazes, produções de desenhos, apresentação de trabalhos, entre outras.

As atividades foram desenvolvidas por meio de metodologia que valoriza o aluno ativo no seu processo de construção do conhecimento, em uma perspectiva multidisciplinar e transversal. Livros e textos de alguns escritores indígenas serviram de referência para a elaboração de atividades, muitas planejadas durante o processo interventivo a partir da necessidade e interesses demonstrados pelos alunos. Alguns desses livros são Coisas de Índio: versão infantil (MUNDURUKU, 2019) e Meu vô Apolinário: Um mergulho no rio da (minha) memória (MUNDURUKU, 2005).

Em função dos limites deste artigo, apresentaremos, no Quadro 1, a seguir, a relação das atividades realizadas durante a intervenção pedagógica, considerando a ordem de realização e os procedimentos utilizados. Em seguida, ilustraremos o processo e apresentaremos com mais detalhes apenas algumas delas.

Quadro 1 Atividades realizadas durante a fase de ação. 

ATIVIDADES PROCEDIMENTOS
1 Desenho “Povos Indígenas” Desenho livre sobre o tema “Povos Indígenas”.
2 Filme “O Descobrimento do Brasil” Discussão coletiva, escrita de dois textos do gênero Carta Pessoal a D. Manuel, rei de Portugal na época da chegada dos portugueses ao Brasil, sendo uma sob a perspectiva de um navegante português e outro sob a perspectiva de um nativo brasileiro, descrevendo as percepções sobre as terras brasileiras. Desenho de dois mapas que complementavam as cartas, sendo um do ponto de vista de um português, e outro de um indígena.
3 Vídeo “A Mãe do Brasil é indígena” e trechos do livro “Coisas de índio - versão infantil” Discussão coletiva, levantamento de hipóteses sobre a quantidade e distribuição dos povos indígenas brasileiros na atualidade, pesquisa individual sobre diversos povos indígenas.
4 Trecho do livro “Coisas de índio - versão infantil” e vídeo “Os equívocos nossos de cada dia” (Série Crônicas de Abril) Discussão coletiva e produção de desenhos sobre o que significa ser “índio” ou “indígena”.
5 Diário de Descobertas Discussão coletiva, compartilhamento das descobertas realizadas até o momento sobre os povos indígenas pesquisados, desenho e produção escrita espontânea sobre as descobertas.
6 Apresentação de maquetes e pesquisas sobre diversos povos indígenas e Mapa Coletivo do Brasil Compartilhamento de descobertas sobre os povos indígenas brasileiros pesquisados, apresentação individual de maquetes que representavam aldeias e modos de vida dos respectivos povos. Preenchimento coletivo com desenhos de um Mapa do Brasil representando a distribuição das etnias indígenas estudadas até o momento. Escrita de Ficha descritiva do povo pesquisado.
7 Mostra Cultural Compartilhamento de descobertas sobre os povos indígenas brasileiros pesquisados, apresentação individual de maquetes para as famílias.
8 Game “Huni Kuin - os caminhos da jiboia” Apreciação e exploração de um game virtual criado a partir da narrativa indígena do povo Kaxinauá, escrita de um texto narrativo inspirado nas fases do game.
9 Autorrevisão do texto narrativo produzido na atividade anterior Autorrevisão do texto narrativo seguindo os elementos de estrutura do gênero narrativo.
10 Artigo de opinião Discussão coletiva sobre elementos necessários para sobrevivência dos povos indígenas, leitura sobre terras indígenas e demarcação, levantamento de argumentos contrários e favoráveis à demarcação e elaboração coletiva de um artigo de opinião.
11 Manual de instrução Pesquisa em pequenos grupos de um povo indígena ainda desconhecido pelos alunos, levantamento de informações, elaboração de uma narrativa indígena a partir da realidade do povo pesquisado e criação de um jogo/game a partir desta narrativa, seguindo o gênero Manual de Instrução.
12 Pesquisa sobre Brincadeiras Indígenas Pesquisa e registro individual de brincadeiras e jogos infantis indígenas.
13 Registro de observação do quanto e como a pessoa indígena é retratada na sociedade Registro de observação por dez dias de informações espontâneas demonstradas sobre os povos indígenas nos meios de convivência social e também em redes sociais.
14 Socialização do registro de observação, reflexão sobre os filmes “O Levante dos Apaches”, “Dança com Lobos” e a música “Baila Comigo” Roda de conversa de socialização das observações realizadas na atividade anterior, reflexão sobre como o indígena foi retratado em algumas redes sociais (filmes e música), registros no Diário de Descobertas e desenho sobre o retrato do indígena na sociedade.
15 Roda de Conversa com uma descendente indígena do povo KRENAK Roda de conversa e compartilhamento com uma parente de aluna, participante da pesquisa, professora de História e descendente do povo KRENAK. Elaboração de roteiro, perguntas e anotações no DIÁRIO DE DESCOBERTAS.
16 Notícias e Biografia Discussão coletiva sobre algumas notícias que mostram a realidade indígena atualmente em diferentes perspectivas: conflitos de indígenas isolados (ataque a coordenador da FUNAI); situação de marginalização dos indígenas em Dourados - MS; dificuldades de inserção na sociedade para indígenas urbanizados; trechos do documentário “Falas da Terra”; ataques de garimpeiros a indígenas isolados. Produção em pequenos grupos de biografia de uma pessoa indígena.
17 Síntese Cronológica da História indígena brasileira. Linha do tempo do livro “A terra dos Mil povos - História indígena do Brasil contada por um índio”. Atividade de leitura e compreensão de alguns fatos da História do Brasil ocorridos desde o ano de 1500, contados a partir da perspectiva de um escritor indígena. Trabalho em grupo de análise de linha do tempo e elaboração de NOTÍCIA sobre o fato estudado.
18 Análise do samba “Histórias para ninar gente grande”. Roda de conversa sobre a letra da música do Samba “Histórias para Ninar gente grande”. Análise em grupo de alguns versos, registros escritos e CARTAZ ILUSTRATIVO sobre o título e a letra da música.
19 Apresentação de fim de ano - música ALOK com povos indígenas Dança e representação cênica sobre as descobertas realizadas ao longo do ano sobre os povos indígenas.

Fonte: elaborado pelas autoras.

Durante o processo interventivo, os alunos entraram em contato com uma variedade de textos, advindos de diferentes veículos de informação. De acordo com as necessidades conceituais previstas para a construção da noção sobre os povos indígenas, as atividades foram organizadas conforme um processo gradativo de construção individual dos educandos, oportunizando não somente a procura individual por informações, mas também socializações coletivas, produções compartilhadas, debates e trabalhos em grupo.

Atividade - Filme “O Descobrimento do Brasil”.6

Fonte: Dados da Pesquisa.

Foto 1 filme “O Descobrimento do Brasil”. 

Esse filme brasileiro retrata, em forma de narrativa épica, a chegada da frota portuguesa às costas brasileiras em 1500, narrada com trechos extraídos da Carta de Pero Vaz de Caminha. Durante o filme, foi inevitável que alguns alunos elaborassem e manifestassem questões e comentários sobre o que estavam compreendendo da narrativa. Seguem alguns excertos desses comentários:

VIN (9;11): Eles eram burros. Quem? Os índios. Por que você diz isso? Ficam aceitando trocar coisas com os portugueses. ALV (10;7): Não, eles não tinham noção! [...] BEA (10;1): Acho que foi nessa época que eles (portugueses) pensaram em escravos. [...] RAF (10;2): Eles (indígenas) estão na missa, mas nem sabiam de Cristo. [...] JOS (9;11): Se os portugueses gostam de Cristo que criou a Terra, porque eles destroem a Terra? (Ao ver a derrubada de árvores). Por que você acha? JOS (9;11): Sei lá... ganância... [...] VIN (9;11): Os indígenas estavam tentando entender (ao ver que eles observavam os portugueses derrubarem algumas árvores).

Após o filme, as crianças foram solicitadas a imaginar-se como um dos tripulantes portugueses presente nas naus. A partir daí, que se encarregassem da missão de observar as novas terras e seus habitantes e retratassem, por meio de uma carta pessoal e também pelo desenho de um mapa, uma representação para descrever detalhadamente, com o objetivo de ser direcionada ao rei de Portugal na época, D. Manuel. A ideia era que começassem a pensar esse aspecto da História a partir da perspectiva dos exploradores portugueses do século XVI e demonstrassem o que já sabiam desse recorte histórico do País.

A partir da discussão gerada e das perspectivas levantadas, na aula seguinte, foi solicitado aos alunos que se imaginassem então como um dos nativos das terras descobertas. A elaboração de uma nova carta e um novo mapa foi solicitada, sob o ponto de vista de um indígena brasileiro do século XVI. Vejamos um exemplo:

Fonte: Dados da pesquisa.

Figura 2 Produção escrita por LUI (9;10). 

Fonte: Dados da pesquisa.

Figura 3 Representação gráfica de MAI (9;11). 

Atividade - Vídeo “A Mãe do Brasil é indígena”7e trechos do livro “Coisas de índio - versão infantil”.

A partir do vídeo “A mãe do Brasil é indígena” e leitura de trechos do livro “Coisas de índio - versão infantil”, foi proposta uma discussão sobre a distribuição dos indígenas no país atualmente, como demonstra o excerto a seguir:

Onde se encontram os indígenas hoje no Brasil? GUB (10;2): Os indígenas estão no Amazonas. Quantos indígenas há no Brasil hoje? ALV (10;7): Se no Brasil tem 220 milhões (de habitantes), metade é índio. Como vocês sabem disso? JOA (10;1): Só sei que tem em SP, porque nós fomos no segundo ano (referindo-se a um estudo do meio). CAI (10;5): Já vi em uma reportagem que tem no Acre. [...] GUB (10;2): Acho que tem (indígenas) em todos (os estados), porque existem desde sempre. [...] Vocês já viram indígenas por aí? LAU: (10;9) Acho que tem no Pará, porque sempre passa na TV. [...] Por que vocês falam que tem certeza que no Amazonas tem? GUB (10;2): No Amazonas tem muita mata, já tinha vários índios, e começaram a se reproduzir. ALI (9;11): No Amazonas tem mais recursos para a tribo.

Um levantamento de hipóteses sobre a quantidade e distribuição dos povos indígenas brasileiros foi realizado individualmente pelos alunos, como demonstra a Figura 4 a seguir.

Fonte: Dados da pesquisa.

Figura 4 Levantamento de hipótese da quantidade e distribuição de povos indígenas brasileiros feito por LAU (10;9). 

Em seguida, alguns dados oficiais foram demonstrados para comparação. Em grande parte, os alunos se mostraram surpresos, ao constatarem a quantidade de pessoas indígenas no País e de verem que estes se encontram distribuídos em todo o território nacional, não somente na região Norte ou Amazônica. Outro dado importante e que causou curiosidade aos alunos, trazido pelo livro de Munduruku (2019), foi a quantidade de povos indígenas no Brasil atualmente, somando 305 etnias diferentes, como demonstra a Figura 5, apresentada aos alunos para comparação.

Fonte: Munduruku (2019, p. 12).

Figura 5 Mapa de distribuição dos povos indígenas no Brasil. 

Após a apresentação do Mapa ALI (9;11) afirmou: “Bem que a moça falou no vídeo que todos têm sangue indígena!” A criança se referia ao vídeo A mãe do Brasil é indígena, visto por eles na aula anterior.

Diante da constatação e espanto de alguns, da quantidade e variedade de povos indígenas no Brasil, foi proposto aos estudantes que escolhessem um dos povos e realizassem, individualmente, uma pesquisa que esclarecesse informações sobre a etnia escolhida, como local onde viviam, quantidade de pessoas pertencentes, cultura e costumes, rituais, história, entre outros. Para representarem a pesquisa realizada, a proposta foi que construíssem uma maquete e socializassem oralmente o material e as aprendizagens com os colegas e com a professora.

Fonte: Dados da pesquisa.

Figura 6 Pesquisa de informações do povo Xavante realizada por LAU (10;9). 

A partir pesquisa, foi proposto que cada aluno montasse e apresentasse à turma uma maquete que mostrasse suas descobertas. O objetivo era que, nessa atividade, pudessem perceber a diversidade étnica entre os povos indígenas, cada qual com seu modo de viver e de organizar-se socialmente, como sua língua, costumes, rituais e caminhos pautados na própria tradição. Ao longo da produção da maquete, pode-se notar um envolvimento e motivação grande das crianças, desde a escolha dos materiais para a construção, passando pela representação que demonstrasse fidedignamente a forma de moradia do povo indígena pesquisado, bem como a participação das famílias. Como realizaram a construção em casa, muitos alunos enviaram fotos mostrando este processo, como apontado a seguir:

Fonte: Dados da pesquisa.

Foto 2 Produção de maquete. 

Após a confecção das maquetes sobre as principais informações de um povo indígena brasileiro, houve a apresentação e compartilhamento das descobertas com a turma. Foi um momento que proporcionou o conhecimento de situações marcantes ocorridas com todos os povos indígenas, como disputa por território, conflitos com garimpeiros e com madeireiros, possíveis riscos de extinção e celebração de rituais. Houve bastante participação dos alunos, que se manifestavam com comentários, perguntas e curiosidades, conforme excertos e imagens a seguir:

JOA (10;5): Antigamente, quando eles não se entendiam, os Terena e outros índios, eles ficaram em guerra, mas agora estão em paz, estão na boa. Vocês entenderam essa fala do JOA, que antes os Terena viviam em guerra com outros povos indígenas? JOA (10;5): Na verdade só teve uma guerra, mas durou bastante. Por que será que os indígenas têm conflito entre si? VIN (9;11): Pode ser território. ART (9;11): Por que eles querem comida? Território? JOA (10;5): A guerra começou porque os terenas moram aqui [aponta para o estado do Mato Grosso do Sul no mapa do Brasil exposto no quadro] e tem outra tribo bem perto deles. VIN (9;11): Então acho que era por questão de território. JOA (10;5): Sim, mas nem tanto por causa de território. Teve um garimpeiro que foi lá fazer uns negócios, eu pesquisei isso, e os outros índios acharam uma ameaça e começaram a atirar flecha e caiu na tribo dos Terena, eles entenderam como guerra e começou tudo isso. VIN (9;11): Nossa, eles ficam bravo com tudo. Os indígenas? VIN (9;11): O povo Terena. JOA (10;5): É que os garimpeiros estavam matando eles, e eles foram atacar. VIN (9;11): Ah, tá!

HEI (10;3): A casa dos Guajajara, eu ia fazer de outro jeito que eu pensava, como oca, mas vi que parece uma casa normal, com tijolo de barro. E como você pensava que eram as casas deles? HEI (10;3): Ah, de palha, que nem uma oca. Mas pesquisei e vi que não era assim. [...] HEI (10;3): Essa tribo vive no Maranhão [...] aqui vai algumas curiosidades: essa tribo é uma das mais ameaçadas do mundo e outra curiosidade triste é que o povo Guajajara resiste a invasões territoriais há 20 anos e há quatro mortes registradas. Mas tem outras mortes que não foram registradas. Mas tem curiosidades boas: Sônia Guajajara, a primeira mulher indígena que conseguiu chegar na política.

• Atividade - Exploração do Game Huni Kuin: Yube Baitana (os caminhos da jiboia)8.

A partir do interesse dos alunos em conhecer as diversidades entre os povos indígenas e também do entusiasmo que demonstram com games virtuais no seu cotidiano, foi-lhes apresentado um videogame criado por uma equipe de pesquisadores e indígenas do povo Kaxinawá. Trata-se de um jogo eletrônico desenvolvido para abordar a cultura desse povo, vencedor do Festival ComKids Interativo 2020, na categoria Games e também do Prêmio Melhor Jogo da Diversidade, no BIG Festival 2019, maior festival de games da América Latina.

[...] A proposta do projeto foi desenvolver um jogo eletrônico que abordasse a cultura do povo Kaninawá (ou Huni Kuin, como eles próprios se denominam, a fim de possibilitar uma experiência de intercâmbio de conhecimentos e memórias indígenas por meio da linguagem dos videogames. A proposta do jogo em si foi propiciar aos jogadores uma imersão no universo huni kuin, para que pudessem entrar em contado com diversos saberes deste povo - como cantos, grafismos, histórias (mitos) e rituais -, possibilitando a circulação destes por uma rede mais ampla (MENESES, 2017. p. 84).

Fonte: http://www.gamehunikuin.com.br/.

Figura 7 Imagem representativa do game. 

A fim de proporcionar aos alunos uma oportunidade de conhecerem a cultura de um povo indígena ainda desconhecido por eles, foi proposto aos participantes que explorassem o jogo por uma semana, de modo que interagissem com as etapas, visto que cada uma delas demonstrava trajetos percorridos carregados de elementos e histórias do povo Kaxinawá. Assim, foi possível perceber que houve um enriquecimento do repertório de ideias, de palavras e de pensamento coerente quanto a situações vivenciadas pelos indígenas.

Atividade - Produção de Manual de Instrução.

A partir do interesse dos alunos na atividade do game “Huni Kuin - os caminhos da jiboia”, foi proposta uma pesquisa, em grupo, de informações sobre um povo originário ainda desconhecido por eles. Depois da pesquisa, os alunos elaboraram uma narrativa condizente com a realidade desse povo e criaram um jogo/game, devendo criar também o Manual de Instrução do jogo, segundo as características deste tipo de gênero textual.

Fonte: Dados da Pesquisa.

Foto 3: Construção do jogo e manual de instrução. 

Durante a socialização de suas criações, os alunos trouxeram suas descobertas:

Como chama o jogo de vocês? GUS (10;8): Tupinikim, a busca da tartaruga. O objetivo... a história vai acontecer assim... [...] alguns povos indígenas roubaram uma tartaruga que é sagrada para o povo Tupinikim... é... o ovo da tartaruga. Aí, vai ter um monte de fase pra ir procurando esse ovo da tartaruga. Quando você achar o ovo, o jogo acaba. GUS (10;8): E na aldeia pode pegar materiais e armas para ajudar mais na busca. PED (10;9): Tipo arco, flecha... não tem arma de fogo. Por que que não tem arma de fogo? PED (10;5): Porque são indígenas e as armas deles são... arco e flecha, lança...

Atividade - Registro de observação do retrato indígena na sociedade.

Em um certo momento do processo interventivo, ocorreu uma discussão sobre os indígenas nos meios de comunicação, se e como eram retratados, entre outros aspectos. Para obterem informações, foi proposto um levantamento, com duração de dez dias, em que deveriam registrar a quantidade e a forma pela qual as informações sobre os indígenas apareciam nos principais meios de comunicação a que os alunos tinham acesso. Após essa observação, foi realizada a socialização dos registros.

Fonte: Dados da Pesquisa.

Figura 8: Manual de instrução do jogo criado por MAL (10;9), MAC (9;11), LAU (10;9) e ART (9;11).  

A maioria dos alunos não constatou informações que apareceram espontaneamente nos meios sociais a que tinham acesso, seja na convivência com outras pessoas, nem mesmo na TV e nos recursos de mídia social. Tal percepção fez com que a turma refletisse sobre essa falta de representatividade indígena na sociedade. Apenas um aluno conseguiu registrar uma informação de telejornal, conforme se vê a seguir:

LUC (10;4): Então você ouviu falar sobre os indígenas? Onde você ouviu falar? Na televisão. O que dizia na televisão? Uma reportagem que eu não lembro muito bem, umas pessoas estavam tomando as terras deles, tomando o lugar deles. Entendi... foi isso que você viu na reportagem da TV então? Sim. Dos 10 dias que você observou, foi o único dia que você ouviu falar dos indígenas fora da escola? Ou viu algum na mídia? Sim.

Fonte: Dados da Pesquisa.Atividade - Filmes “O Levante dos Apaches” (1952)9 e “Dança com lobos” (1990)10.

Em continuidade à avaliação que estavam realizando sobre a caracterização dos indígenas na mídia, a turma assistiu, em diferentes aulas, trechos dos filmes O Levante dos Apaches (1952) e Dança com lobos (1990).

O filme O Levante dos Apaches (1952) retrata conflitos entre brancos da Cavalaria Americana e indígenas, carregados de ataques indígenas aos acampamento e comunidades brancas. No filme Dança com Lobos (1990) observa-se aproximações não violentas de um jovem militar a indígenas, que resultou em uma convivência afetuosa entre eles.

Os alunos debateram e perceberam as diferenças contidas nas obras, teceram críticas à maneira violenta pela qual os indígenas foram retratados na cena do primeiro filme, e mais calmos e/ou até curiosos no segundo. Após as trocas, os discentes foram convidados a registrar, por meio de uma representação intitulada O Retrato do Indígena na Sociedade o que haviam estudado nas últimas aulas. Alguns exemplos:

Fonte: Dados da Pesquisa.

Figura 9: Desenho de LÍV (10;4). 

LÍV (10;4): Por que essa diferença de tamanhos das pessoas que você desenhou? LÍV (10;4): Porque as outras pessoas estão se achando melhores que o indígena. É a maneira como elas se acham? É. Me fale um pouco do indígena que você desenhou. Ele está triste pelo preconceito das pessoas com ele.

Fonte: Dados da Pesquisa.

Figura 10: Desenho de MIG (10;5). 

MIG (10;5): O que representa teu desenho? Desse lado representa a expectativa das pessoas que falam que os índios são preguiçosos e do outro lado é a realidade. E qual é a realidade? Que eles trabalham como qualquer um.

Atividade - Música: “Histórias para ninar gente grande”11.

Esta atividade teve como objetivo viabilizar a discussão a respeito de como a História do Brasil é contada aos cidadãos do País e provocou reflexões sobre algumas questões que envolveram a construção da identidade histórica brasileira.

Foi apresentada e lida a letra do samba enredo e, em seguida, os alunos ouviram a música. Muitos pediram para ouvi-la mais de uma vez, chegando a cantar junto em alguns momentos. Algumas questões foram feitas para que eles refletissem sobre a letra. Eis alguns excertos:

O que vocês têm a me dizer sobre a letra dessa música? HEI (10;3): Ele quis dizer, com essa parte “Com versos que o livro apagou”, que o Brasil tem mais história que a de 1500, mas só que apagaram essa história. É como se o Brasil tivesse uma história apagada, e ele quisesse contar essa história apagada? HEI (10;3): É isso. História apagada por quem? Por que apagaram? [...] ALV (10;7): Essa é mais ou menos a história dos portugueses, relatada em todos os livros, sobre como os indígenas eram, porque se os indígenas retratassem no livro, seria bem diferente dos portugueses. O que faz vocês pensarem que está falando dos indígenas na música? ALV (10;7): Por conta de 1500. CAI (10;5): Eu acho que quando fala que a história foi apagada, só está contando o ponto de vista de uma pessoa, não de todos que participaram, não só os indígenas, mas todos os escravos. [...] HEI (10;3): Essa parte, “tem mais invasão que descobrimento, tem sangue retinto pisado, atrás do herói emoldurado”... que nem isso, que tem mais invasão que descobrimento, porque o que aconteceu no Brasil não foi descobrimento, foi uma invasão, tem mais sangue retinto pisado. O que significa esse sangue retinto pisado? O que quer dizer que tem mais sangue pisado? LET (10;5): Porque mataram muitos. O que seriam esses heróis emoldurados? ALV (10;7): Heróis falsos, os portugueses. Um herói emoldurado é um herói que está onde? HEI (10;3): Em uma moldura. Então, o que significa que tem sangue pisado atrás do herói que está na moldura? PED (10;5): Que pode ser um herói pra eles, mas significa que ele mais matou. Pra eles quem? PED (10;5): Pra quem está do lado do herói. ALI (9;11): Quando fala atrás do herói emoldurado, quer dizer que ele foi mandado lá por Portugal certinho para cumprir as ordens.

Atividade - Diário de Descobertas

Durante toda a fase de ação, as crianças eram convidadas a realizarem um registro espontâneo daquilo que haviam assimilado, trazendo suas impressões e sentimentos vivenciados durante os diferentes momentos do percurso. Por meio de uma produção individual, chamamos esta atividade de Diário de Descobertas, que tinha o objetivo de provocá -los a reconstituir os momentos de construção do pensamento sobre os povos indígenas, mediante relato pessoal, desenho, mapa de ideias ou outro registro espontâneo do aluno. Alguns exemplos de registros realizados pelos alunos em seus diários:

Fonte: Dados da pesquisa.

Figura 11 Registro no Diário de Descobertas de MIG (10;5). 

Fonte: Dados da pesquisa.

Figura 12 Registro no Diário de Descobertas de LAU (10;9). 

Fase de Avaliação

Nesta última etapa da pesquisa-ação, que é a fase de avaliação, foram reaplicados os mesmos procedimentos utilizados no diagnóstico inicial, com o objetivo de verificar como se apresentava a noção pesquisada após a implementação da intervenção pedagógica.

As respostas apresentadas nesta fase apontaram compreensões mais abrangentes e específicas por parte das crianças, em relação aos eixos de Identidade, Cultura e Diversidade dos povos indígenas, organizados para este estudo. Embora ainda apresentassem algumas explicações sobre esses aspectos um pouco confusas, foi constatado que alguns sujeitos demonstraram conhecimento sobre os principais processos históricos que envolviam os povos indígenas brasileiros, assim como uma melhor compreensão desses acontecimentos no tempo e espaço, mostrando reconhecimento de alguns agentes que alteraram e alteram a realidade dos indígenas (como os colonizadores europeus, líderes políticos, pessoas envolvidas em disputa de território).

Desse modo, no eixo Identidade, observase que as crenças apresentadas vão além do aparente e aspectos não-visíveis passam a ser apontados, como a história, costumes, individualidade, coletividade étnica e cultura.

CAI (10;5): [...] me fala um pouquinho sobre essa imagem que você vê. Eu tô vendo vários indígenas, que...uma família de índios, que estão numa floresta. E por que que você acha que são indígenas, uma família de índios? Por causa do jeito que eles estão se vestindo, é do...das maquiagens, das pinturas no rosto e os cocares. E...se eles tivessem vestidos com roupas como as nossas, você...seria possível saber que são indígenas? Seria, é...pelo jeito que eles agissem, pelas ações deles. Como que eles agem? É...eles gostariam mais da natureza, é...ficariam, cuidariam mais do animais, das plantas.

Em relação ao eixo Diversidade, as respostas apontaram uma melhor noção dos sujeitos no que se referia ao conhecimento e à compreensão da existência de vários grupos de povos indígenas, cada qual com sua identidade, sua cultura, sua organização coletiva, seus modos de viver, de celebrar rituais, história e língua.

LUI (9;10): Você acha que os índios do Brasil com os índios dos outros lugares do mundo, por exemplo da África que você me disse, você acha que eles são iguais ou diferentes? É que existe muitas tribos, né? Mas todas as tribos têm o mesmo objetivo que é não machucar a natureza e viver em paz. Então isso seria o que eles são iguais? Exatamente. E tem diferença? Tem, na língua, muito na língua, porque como eu falei, existem várias tribos. Tupi é uma língua deles, mas existem muitas outras.

No eixo Cultura, algumas respostas demonstraram o reconhecimento de diferenças culturais existentes na sociedade, a compreensão sobre o diálogo e a convivência entre os grupos e como entendem o comportamento, os hábitos e os costumes dos povos indígenas em relação ao modo de viver contemporâneo dos povos não-indígenas. Eis um exemplo:

CAI (10;5): E, você acha que os indígenas são pessoas que vivem atualmente ou não? Sim, tem alguns indígenas que vivem ainda, eles só tem...tem alguns indígenas que fazem faculdade também. É...é possível eles viverem entre a gente também, não precisa ser no meio do mato. Eles podem viver entre a gente também, isso é normal. [...] você já me disse um pouco da maneira que você acha que eles vivem, você falou que alguns estão tendo oportunidades de estudar, outros ainda vivem isolados como os povos de antigamente, é isso né? Sim. É, o que que os indígenas fazem hoje? É, os indígenas que vivem como antigamente continuam caçando, é, eles vivem num lugar isolado, eles têm medo do resto das pessoas e se eles se sentirem ameaçados eles podem até matar a pessoa. E o de hoje, de hoje em dia, os que se abriram pra sociedade, é eles estão tendo, eles estão podendo morar aqui na cidade, tão podendo fazer tudo que eles quiserem, podem tomar vacina também. Eles podem estudar, podem trabalhar. Então eles trabalham? Mas é um pouquinho mais difícil pra eles. Então eles trabalham? Sim, eles podem trabalhar, eles podem ter emprego, eles podem estudar. Por que que você disse que é um pouco mais difícil pra eles viver? Porque tem gente que não aceita eles serem indígenas e estar na sociedade. Tem gente que não aceita, mas por mim isso seria normal, eles são pessoas que nem a gente.

Os resultados da fase de avaliação foram positivos e mostraram a efetividade da intervenção realizada, uma vez que foi possível constatar evolução na maneira pela qual os estudantes compreendiam as questões sobre os povos indígenas. Nesse sentido, 81,48% das respostas dos alunos apresentaram, além de informações, explicações mais consistentes, que demonstraram uma visão menos fragmentada e estática da cultura e história dos povos nativos, com maior reconhecimento da diversidade étnica e cultural existente no Brasil, bem como identificaram melhor elementos menos visíveis de uma cultura indígena, entre eles língua, rituais, crenças, modos de vida e organização social. Isso corresponde a uma melhoria da noção de povos indígenas de cerca de 75% dos alunos participantes.

É claro que o material apresentado aqui demonstra parte de um longo processo que a turma vivenciou. Todavia, é quando se observam as dúvidas, as constatações e as transformações que aparecem nos diferentes diálogos, representações e registros realizados pelas crianças, que presenciamos como a apropriação da História, a desvinculação do normativo branco imposto e a desconstrução de estereótipos leva tempo. Isso só reforça a necessidade de que iniciemos esse processo na escola, com as crianças, que, aos poucos, começam construções diferentes, coordenam elementos novos e aprendem a olhar o mundo de modo mais complexo e plural.

Considerações Finais

Na escola, ocorrem interações entre as crianças e também entre crianças e adultos, que produzem discursos, representações, formação de conceitos e que trazem luz a campos de conflitos e de exclusão que podem ocorrer a partir da diferença. A nomeação dos sujeitos, dos grupos e de possíveis conflitos sociais vivenciados deve ser reconhecida, debatida, respeitada, para que a dimensão cultural vá além da abordagem na perspectiva da constatação e do respeito.

A pesquisa que apresentamos aqui teve por objetivo mostrar como podemos construir uma prática que valorize, trazendo o lugar de fala e a representatividade dos povos indígenas, de forma a realmente se respeitar a Lei n.º 11.645 (BRASIL, 2008).

A construção de uma sociedade menos excludente e mais diversa perpassa a elaboração de noções complexas e menos estereotipadas sobre a realidade histórica e social, algo que precisa ser desenvolvido desde cedo e de forma específica com as crianças.

Precisamos garantir, nos espaços escolares, que nossas origens, resistências, valores e culturas sejam debatidos, pensados e compreendidos pelos futuros cidadãos.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Lei nº 11.645, de 10 março de 2008. Altera a Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília, 2008. [ Links ]

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BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular: Educação é Base. Brasília, MEC, 2017. [ Links ]

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1Texto revisado por Sandra Diniz Costa

2Os últimos dados fornecidos pelo IBGE datam ainda do ano de 2010. Esses dados também são encontrados no site da Fundação Nacional do Índio - FUNAI, do Conselho Missionário Indigenista - CIMI e Articulação dos Povos Indígenas do Brasil - APIB.

3Número do Parecer de aprovação: 4.690.001.

4Número do Parecer de aprovação: 4.922.867

5Os participantes estão apresentados com iniciais do nome, seguido da idade em anos e meses. A transcrição é ipsis litteris. Em negrito estão as falas da pesquisadora/ professora.

6Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=RibykMldK1U. Acesso em 28 dez 2021.

7Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=dtO-1RuRojYc. Acesso em 28 dez 2021.

8Disponível em: http://www.gamehunikuin.com.br/. Acesso em 17 jan 2022.

9Disponível em: https://www.facebook.com/watch/?extid=SEO-&v=2052179754810222 Acesso em 21 de out de 2021.

10Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=_ dNGgH5FjA0 Acesso em 21 de out de 2021.

11Compositores: Tomaz Miranda/ Ronie Oliveira/ Márcio Bola/ Mamá/ Deivid Domênico/ Danilo Firmino. Ano de gravação: 2019. Letra: Brasil, meu nego/Deixa eu te contar/A história que a história não conta/O avesso do mesmo lugar/Na luta é que a gente se encontra/Brasil, meu dengo/A Mangueira chegou/ Com versos que o livro apagou/Desde 1500,tem mais invasão do que descobrimento/ Tem sangue retinto pisado atrás do herói emoldurado/Mulheres, tamoios, mulatos/ Eu quero um país que não está no retrato/ Brasil, o teu nome é Dandara/ Tua cara é de Cariri/Não veio do céu nem das mãos de Isabel/A liberdade é um dragão no mar de Aracati/Salve os caboclos de julho/Quem foi de aço nos anos de chumbo/Brasil, chegou a vez de ouvir as Marias, Mahins, Marielles, malês/Mangueira, tira a poeira dos porões/ Ô abre alas pros teus heróis de barracões/ Dos Brasis que se faz um país de Lecis, Jamelões/São verde e rosa as multidões.

Recebido: 25 de Abril de 2022; Aceito: 11 de Julho de 2022

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