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Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade

versión impresa ISSN 0104-7043versión On-line ISSN 2358-0194

Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade vol.31 no.67 Salvador jul./set 2022  Epub 13-Ene-2023

https://doi.org/10.21879/faeeba2358-0194.2022.v31.n67.p113-126 

Artigos

“É COMPLICADO, ELES SÃO MUITO FECHADOS”: DOCÊNCIA E CULTURA INDÍGENA NA ESCOLA

“IT’S COMPLICATED, THEY ARE VERY CLOSED”: INDIGENOUS TEACHING AND CULTURE IN SCHOOLS

“ES COMPLICADO, ESTÁN MUY CERRADOS”: ENSEÑANZA Y CULTURA INDÍGENA EN ESCUELAS

Noé Cardoso Silva*  Secretaria Municipal de Educação de Porto Velho
http://orcid.org/0000-0003-3729-093X

Genivaldo Frois Scaramuzza**  Universidade Federal de Rondônia
http://orcid.org/0000-0003-3738-9905

*Mestre em Educação Escolar pela Universidade Federal de Rondônia (UNIR). Docente da Educação Básica da Secretaria Municipal de Educação (SEMED) de Porto Velho, Rondônia. E-mail: noe.cardoso@gmail.com

**Doutor em Educação pela Universidade Católica Dom Bosco (UCDB). Docente do Programa de Pós-Graduação em Educação Escolar da Universidade Federal de Rondônia (PPGEEProf/UNIR). E-mail: genivaldo@unir.br


RESUMO

O presente artigo descreve as percepções de docentes a respeito da cultura indígena e seu ingresso em uma escola pública urbana amazônica com abordagem para as identidades e diferenças culturais desses povos originários. A pesquisa dialoga com autores(as) do campo teórico dos Estudos Culturais e sua articulação com a educação (CANDAU, 2014; FLEURI, 2003; HALL, 1997; SKLIAR, 2003). A experiência de pesquisa se constituiu a partir do pressuposto da Bricolagem (KINCHELOE, 2007; NEIRA; LIPPI, 2012), articulando entrevistas semiestruturadas, grupos de discussão on-line através de ferramentas digitais, além de análise documental. Após a realização das diferentes estratégias para produção de dados, evidencia-se a partir das narrativas e discursos que os/as professores(as) representam a cultura e a identidade dos povos indígenas numa visão construída historicamente por meio do discurso colonial eurocêntrico, que busca sua invisibilidade e/ou marginalização na sociedade.

Palavras-chave: corpo docente; cultura; cultura indígena

ABSTRACT

This article seeks to describe the perceptions of teachers about indigenous culture and their entry into an Amazonian urban public school with an approach to the cultural identities and differences of these native peoples. The research dialogues with authors from the theoretical field of Cultural Studies and its articulation with education (CANDAU, 2014; FLEURI, 2003; HALL, 1997; SKLIAR, 2003). The research experience was constituted from the assumption of Bricolage (KINCHELOE, 2007; NEIRA; LIPPI, 2012), articulating semi-structured interviews, online discussion groups through digital tools, in addition to document analysis. After carrying out the different strategies for data production, we evidenced from the narratives and discourses that the teachers represent the culture and identity of indigenous peoples in a vision historically constructed through the Eurocentric colonial discourse that seeks their invisibility and/ or marginalization in society.

Keywords: teacher; culture; culture indigenous

RESUMEN

Este artículo describe las percepciones de los docentes sobre la cultura indígena y su ingreso a una escuela pública urbana amazónica con un acercamiento a las identidades y diferencias culturales de estos pueblos originarios. La investigación dialoga con autores del campo teórico de los Estudios Culturales y su articulación con la educación (CANDAU, 2014; FLEURI, 2003; HALL, 1997; SKLIAR, 2003). La experiencia de investigación se constituyó a partir del supuesto de Bricolage (KINCHELOE, 2007; NEIRA; LIPPI, 2012), articulando entrevistas semiestructuradas, grupos de discusión online a través de herramientas digitales, además del análisis de documentos. Luego de realizar las diferentes estrategias de producción de datos, se desprende de las narrativas y discursos que los docentes representan la cultura e identidad de los pueblos indígenas en una visión históricamente construida a través del discurso colonial eurocéntrico que busca su invisibilidad y / o marginación en la sociedad.

Palabras clave: cuerpo docente; cultura; cultura indígena

1 Introdução1

O cenário político-ideológico no Brasil tem se manifestado cada vez mais forte em versões conservadoras e coloniais, e os noticiários de conflitos gerados a partir das identidades e as diferenças culturais contra os povos indígenas ditos como “inferiores” ou “sem cultura”, evidenciam e afirmam discursos que Silva (2020, p. 16) descreve como “autoritária, populista e ideológica que incitam ao ódio e segregam, utilizados como estratégia política para redigir novas diretrizes e pautas às classes vistas como “marginalizadas”. Tais discursos representam esses povos originários com o objetivo de marginalizar ou excluir direitos constitucionais, como a proteção territorial, cultural, política, entre outros.

Combater esses discursos a partir de diálogos e reflexões democráticas nas instituições educacionais desde a pré-escola com intuito de ensinar as crianças o respeito e o diálogo com o outro sem distinção de cor, gênero, cultura ou condição social, constitui-se em uma urgência, conforme destaca Candau (2008, p. 52),

[...] uma educação para o reconhecimento do ‘outro’, para o diálogo entre os diferentes grupos sociais e culturais. Uma educação para a negociação cultural, que enfrenta os conflitos provocados pela assimetria de poder entre os diferentes grupos socioculturais nas nossas sociedades e é capaz de favorecer a construção de um projeto comum, pelo qual as diferenças sejam dialeticamente integradas.

Nesse contexto, o sistema educacional brasileiro deve promover, através de Políticas Públicas, a construção de propostas educativas que possibilitem olhar para as diferentes identidades e culturas que transitam no contexto escolar por meio de negociações que viabilizem a valorização e o respeito, com o “outro”, possibilitando a construção de propostas educativas com perspectiva intercultural para uma sociedade mais justa e igualitária. Skliar (2015, p. 27) permite contextualizar este processo ao dizer que:

A olhar sem julgamento, nem condenação prévia, a olhar para a possibilidade de outras existências diferentes da nossa, a fazer uma saudação disponível, a dar as boas-vindas, a perguntar, a dar vazão, a permitir, a possibilitar, a deixar fazer, a dar o eu fazer, a sugerir, a conversar etc.

A escola como espaço democrático torna-se um lugar privilegiado para construção social do indivíduo e deve estar aberta a relações de reciprocidades entre as diferenças, rompendo, assim, com estruturas rígidas e/ou universais presentes em suas propostas educacionais numa perspectiva eurocêntrica, conforme destaca Quijano (2005, p. 126): “[…] é tempo de aprendermos a nos libertar do espelho eurocêntrico onde nossa imagem é sempre, necessariamente, distorcida. É tempo, enfim, de deixar de ser o que não somos.”

Com a globalização, a demanda da sociedade contemporânea exige repostas rápidas às transformações que vêm ocorrendo e que impactam todos os setores da sociedade, o que inclui a educação. Hall (1997) destaca que “a vida cotidiana das pessoas comuns foi revolucionada”. Após a revolução industrial e com a expansão da globalização que rompeu fronteiras culturais, sociais e políticas, a forma de pensar, produzir e se relacionar em sociedade mudou, logo, dialogar, interagir e refletir com o “outro” torna-se importante no fortalecimento das relações socioculturais.

O presente artigo descreve as percepções de docentes a respeito da cultura indígena e seu ingresso em uma escola pública urbana amazônica com abordagem para as identidades e diferenças culturais desses povos originários. Para melhor compreensão deste processo, temos a intenção de expor o modo como foram confeccionados os dados empíricos de estudo, bem como os trânsitos teóricos que acompanham as reflexões aqui explicitadas.

2 Percurso metodológico: desconstruindo caminhos a partir da bricolagem

A produção dos dados de pesquisa ocorreu a partir de diversas articulações sob a perspectiva da bricolagem. Esse modo de fazer pesquisa tem sido apropriado ao campo dos Estudos Culturais articulado com a educação. Tem possibilitado estabelecer conexões de diferentes concepções político-ideológicas, culturais e sociais a respeito de um mesmo fenômeno, “na medida em que avançam na construção social do conhecimento, da concepção e da subjetividade humana” (KINCHELOE, 2007, p. 25). Assim, a bricolagem busca (des) construir a partir de múltiplas visões de um determinado grupo social, neste representado por professores(as), sendo cada um com seu modo de ver, produzir e pensar a educação no mundo contemporâneo.

Destaca-se que para a produção dos dados de pesquisa enunciados considerou-se o papel das novas mídias no desenvolvimento das pesquisas educacionais on-line. A situação pandêmica e de distanciamento social produzida pela Covid-19 impôs o desafio de continuar a pesquisa sem, contudo, inferir a presença física nos contextos pesquisados. As possibilidades metodológicas em ambientes virtuais intensificaram uma tendência de pesquisas on-line que já estava sendo ensaiada na educação mesmo antes do período de distanciamento social, mas que foi enormemente ampliada pelas condições sanitárias do presente. Conforme destacam Hanna e Mwale (2019, p. 297), “[...] a internet está mudando a natureza da pesquisa social e de saúde devido a uma série de características, como a habilidade de se comunicar com pessoas do mundo inteiro simplesmente apertando um botão”.

Considerando a virtualidade do processo investigativo, a prática metodológica buscou permitir conhecer as concepções docentes sobre a cultura indígena com olhar para as identidades e diferenças culturais no contexto de uma escola pública urbana amazônica com objetivo de levar a reflexão, ressignificação e/ou (des)construção de discursos e práticas monoculturais existentes na escola. Diante dessa concepção, Neira e Lippi (2012, p. 611) destacam que “Construir conhecimentos a partir de múltiplas vozes exige saber qual a origem das explicações fornecidas e quais experiências sociais influenciam os olhares sobre o fenômeno investigado.”

Nesse contexto, as pesquisas no campo de Estudos Culturais se aproximam da bricolagem como abordagem metodológica, pois buscam contestar qualquer estrutura rígida e inflexível, levando o/a pesquisador(a) a provocações, a (des)construções e reflexões dos diversos fenômenos socialmente construídos a respeito dos povos indígenas e sua cultura na sociedade contemporânea. Rodrigues e outros (2016, p. 970) destacam que as abordagens estão mais críticas e criativas, considerando a complexidade do mundo, além de provocar e afinar a reflexão do pesquisador, distanciando-o da prática predominantemente reprodutivista dos modelos dominantes.

Entender esses eventos a partir de uma visão epistemológica e analítica com um olhar para as diferentes identidades e culturas presentes no contexto escolar, com o objetivo de institucionalizar “uma escola pautada em princípios de igualdade e respeito pelo diferente”, conforme destaca Candau (2011, p. 241). Assim, ao invés de definir uma prática metodológica específica, fez-se uso de um número significativo de textos, documentos, entrevistas, narrativas, comportamentos, entre outros, que nesta pesquisa se aproxima de uma bricolagem metodológica.

2.1 Estratégias utilizadas para produção de dados

Do ponto de vista das estratégias utilizadas para a produção de dados, infere-se que o ambiente on-line se constituiu como desafiador e ao mesmo tempo oportuno para novas aprendizagens. Neste contexto, entre os principais ganhos da pesquisa on-line, pode-se destacar os aspectos constatados por Hanna e Mwale (2019, p. 7-8), para os quais estão “a facilidade e flexibilidade de agendamentos; interação virtual e visual; facilidade de captura de dados; locais públicos e privados; maior controle para os participantes”. As vantagens anunciadas se ampliaram quando não houve, por foça de legislações sanitárias, possibilidade de encontros face a face.

Pensando em uma perspectiva de articular/ bricolar instrumentos e práticas de pesquisa foi que, em um primeiro momento, aplicouse um questionário fechado, utilizando-se da ferramenta Google Forms, que buscou produzir dados para a caracterização dos participantes da pesquisa, como idade, gênero, raça, formação acadêmica, entre outras, bem como informações preliminares que abordam a temática da pesquisa, como: participação em grupos de estudos ou pesquisa; as formações oferecidas pela mantenedora e quais suas abordagens; e as temáticas que gostariam que fossem abordadas e oferecidas em futuras formações.

Ampliando esse processo, foi elaborado um roteiro para as entrevistas semiestruturadas com objetivo de produzir informações a partir das concepções e experiências pessoais e formativas dos/as entrevistados(as) com a temática pesquisada. Para Ludke e André (1986, p. 35-36), “o roteiro tem como objetivo criar um ambiente entre entrevistado coerente na busca por objetivos da pesquisa”.

As entrevistas semiestruturadas foram realizadas via Google Meet por meio de questões que colaborassem para narrativas espontâneas dos/as entrevistados(as) com base em suas “experiências culturais, cotidianas, os discursos que atravessam e ressoam em suas vozes” (SILVEIRA, 2007, p. 137), contribuindo assim para registros de seu contexto atual.

Outra prática metodológica utilizada foi o Grupo de Discussão. Inspirado no Grupo Focal, o Grupo de Discussão, nesse caso on-line, foi utilizado como possibilidade de continuação ao processo investigativo diante desse cenário de distanciamento social. Para Meinerz (2011, p. 488), “O grupo de discussão não é uma técnica, mas uma prática de investigação que possui historicidade, assim como diferentes enfoques e pressupostos teóricos.”

O uso dessas diferentes estratégias no decorrer de todo o processo investigativo, desde a caracterização dos sujeitos produzidos a partir de questionários fechados e quantificáveis, parece colaborar não apenas para a composição de um panorama da pesquisa, mas também para compor dados em conjunto com as entrevistas e o Grupo de Discussão on-line. Outro elemento importante para a pesquisa foi a análise documental. Neste caso, se destacou o Projeto Político Pedagógico (PPP) da Escola. Esse conjunto diverso de lugares de informações de pesquisa, sua necessária articulação e uso parecem autorizar uma certa experiência em bricolagem que se faz presenta nesta pesquisa.

Por fim, reforça-se o que já foi destacado, isto é, que para a realização de todo o processo investigativo foi necessário ressignificar as estratégias para produção de dados que tradicionalmente ocorrem por meio presencial, por utilização de ambientes e ferramentas digitais em virtude do cenário atual acometido pela SARS-CoV-2, que afetou todo o mundo e paralisou diversos setores como indústria e instituições educacionais.

2.2 Iniciando o diálogo: narrativas e outras interlocuções docentes

Começando a pesquisa de campo, o primeiro encontro ocorreu em dezembro de 2020. Naquele momento iniciava-se uma caminhada que buscaria contribuir para a (des)construção ou não da prática docente dos(as) professores(as), através de debates/discussões a respeito da cultura indígena e seu ingresso em uma escola pública urbana amazônica com abordagem para as identidades e diferenças culturais desses povos originários.

As entrevistas semiestruturadas foram realizadas conforme cronograma previamente estabelecido. Destaca-se também que os nomes dos(as) professores(as) foram substituídos por pseudônimos, para preservar o anonimato.

Os sujeitos da pesquisa constituem-se de 6 (seis) professores(as) que atuam em turmas do 1º ao 5º ano do ensino fundamental da Escola, localizada na zona Norte de Porto Velho, Roraima. Os participantes foram 4 (quatro) professores(as) do turno matutino e 2 (dois) professores(as) do turno vespertino, que aceitaram contribuir para a construção dessa pesquisa. Weller (2006) destaca que o critério de seleção não se orienta por uma amostra representativa em termos estatísticos, mas pela construção de um corpus com base no conhecimento e na experiência dos entrevistados sobre o tema.

Os critérios utilizados para a escolha dos sujeitos da pesquisa foram os seguintes: fazer parte do quadro efetivo de professores(s )da escola; aceitar contribuir na construção da pesquisa, expressando de forma espontânea suas narrativas em relação aos objetivos da pesquisa; ter a disponibilidade de participar da pesquisa via ambiente virtual, bem como considerando as turmas com relatos de conflitos gerados a partir das identidades/diferenças culturais na escola, como sugerido pela gestão escolar.

Destaca-se que todo processo investigativo foi submetido e aprovado no Conselho de Ética, conforme estabelece a Resolução nº 510/2016 (BRASIL, 2016) do Conselho Nacional de Saúde. Ao expormos o processo metodológico do estudo, temos a intenção de mostrar ao leitor como a cultura indígena atravessa os discursos de docentes de uma escola urbana em contexto amazônico.

2.3 Campo da pesquisa

A pesquisa in loco foi realizada em uma escola da rede pública municipal que atende os anos iniciais do Ensino Fundamental I (1º ao 5º ano), localizada no município de Porto Velho, estado de Rondônia, em um bairro periférico da zona norte da cidade, região próxima ao setor chacareiro, de invasões e um grande condomínio popular voltado para pessoas beneficiárias de políticas públicas como os programas “Bolsa Família” e “Minha Casa Minha Vida”, entre outros.

A Escola Municipal de Ensino Fundamental Pé de Murici (2017, p. 64) tem como missão, apresentada em seu Projeto Político Pedagógico (PPP), “oferecer um ensino de qualidade, garantindo a participação ativa da comunidade escolar, contribuindo para a formação integral dos alunos, para que eles possam agir construtivamente na transformação do seu meio”. Ao analisar o referido documento, evidenciamos uma tendência na perspectiva multicultural muito presente em suas práticas educativas, quando apenas possibilitam a discussão de sua construção a partir de normas reguladoras já pré-estabelecidas, não considerando as vivências educativas tão presentes em seu contexto.

A construção de projetos pedagógicos deve contribuir para a construção de práticas educativas reflexivas e para a construção da identidade que a escola pretende constituir institucionalmente. Veiga (2001, p. 110) conceitua o Projeto Político Pedagógico (PPP):

É um instrumento de trabalho que mostra o que vai ser feito quando, de que maneira, por quem, para chegar a que resultados. Além disso, harmoniza as diretrizes da educação nacional com a realidade da escola, traduzindo sua autonomia e definindo seu compromisso com a clientela. É a valorização da identidade da escola e um chamamento a responsabilidade dos agentes com as racionalidades interna e externa. Essa ideia implica a necessidade de uma relação contratual, isto é, o projeto deve ser aceito por todos os envolvidos, dá a importância de que seja elaborado participativa e democraticamente.

Logo, sua construção deve possibilitar processos dialógicos, democráticos, participativos e reflexivos por parte de todos(as) os/as servidores(as) da escola, alunos(as) e comunidade escolar, que consigam produzir significados que serão importantes para a construção identitária de professores(as) e alunos(as) e da própria escola. Pensar o PPP como documento constituído e construído a partir de reflexões, debates e discussões por diferentes grupos, a fim institucionalizar práticas efetivas e não meramente burocráticas.

A escola atual precisa acompanhar as transformações educacionais, sociais, culturais, históricas e políticas da sociedade contemporânea. Neste contexto, Candau (2008, p. 2) enfatiza que

A escola atual, inserida em uma sociedade que se transforma rapidamente e que está marcada fortemente por movimentos que combatem as desigualdades em todos os sentidos, se vê frente a grandes desafios para que possa realizar, de fato, uma educação intercultural e cumprir seu papel social na construção de uma sociedade mais justa, igual e solidária.

Reconhecer a pluralidade de identidades culturais presentes em seu contexto potencializa a construção de práticas educativas que levem professores(as) e alunos(as) a compreender seu papel na construção e transformação da sociedade em prol de direitos sociais com equidade.

Está definido no PPP da Escola Municipal de Ensino Fundamental Pé de Murici (2016, p. 59): “Escola Que Queremos: Uma instituição onde possa haver inclusão, sem preconceito, onde todos os alunos possam receber uma educação de qualidade, com métodos modernos de ensino com participação ativa da comunidade escolar.” Nesse contexto destacase o estudo produzido por Veiga-Neto (2002, p. 105), intitulado Incluir para Excluir, no qual esse autor propõe “discutir algumas das dificuldades e ambiguidades que enfrentam as políticas que pretendem fazer a inclusão escolar dos anormais”.

As políticas educacionais para inclusão de alunos(as) especiais, dos povos indígenas, refugiados, entre outros, evidenciam essa falsa sensação de inclusão. Há falta e/ou não cumprimento de políticas públicas para formação de professores e demais agentes educacionais preparados para receber, dialogar e interagir, bem como a falta de investimentos em recursos técnicos-pedagógicos e infraestrutura adequada para a chegada e permanência desses alunos(as) no espaço escolar. Para Silva e Rebolo (2017, p. 183), “A escola tem a função relevante de (re)conhecer, dar valor e poder a todos os sujeitos socioculturais, no sentido de reconhecer a diferença cultural como expressão positiva.”

Destaca-se que a proposta de inclusão se baseia em uma educação que tenha um olhar a partir do contexto social, político, cultural e histórico de todos(as) os atores e possa criar condições numa linha horizontal de equidade. Assim, diversos PPP fazem referência às propostas educativas elaboradas e construídas de forma padronizada a partir de políticas internas e externas que não reconhecem as diversas identidades presentes em seu contexto.

Uma das análises em destaque no PPP da Escola Municipal de Ensino Fundamental Pé de Murici (2017) levou a refletir a respeito da visão da escola em classificar seu alunado e sua comunidade escolar em alta e baixa cultura, como consequência para as dificuldades de aprendizagem dos(as) seus/suas alunos(as), conforme descrito:

Segundo levantamento diagnóstico com alunos e professores, tratados em reunião pedagógica, um significativo número de alunos apresenta dificuldades de leitura, de escrita e de cálculo, consequência de falta de interesse e acompanhamento, bem como fruto do baixo nível cultural de suas famílias. (ESCOLA MUNICIPAL DE ENSINO FUNDAMENTAL PÉ DE MURICI, 2017, p. 7, grifo nosso).

Diante desse diagnóstico, fica evidente o quanto a escola ainda tem a visão de uma sociedade dividida entre alta e baixa cultura e essa visão se reflete em suas práticas educativas, que tendem a valorizar a homogeneização cultural ou até mesmo o silenciamento ou exclusão dos grupos considerados de “baixa cultura”. Veiga-Neto (2003, p. 8) destaca que “é evidente o recurso ao conceito de cultura como um elemento de diferenciação assimétrica e de justificação para a dominação e a exploração”.

O campo dos Estudos Culturais tem contribuído para superar essa concepção construída historicamente ao longo dos séculos. De acordo com Costa (2004, p. 13), a “segunda metade do século XX nos permite registrar sua emergência em estudos inspirados num sentimento que rompe com o fluxo - usualmente tomado como óbvio - das assim chamadas ‘alta cultura’ para a ‘baixa cultura’”.

Desconstruir esse conceito presente na sociedade e também nas instituições educacionais fomentadas por políticas neoliberais de cunho elitista que impõem seu poder sobre os grupos considerados “sem cultura” são fatores emergentes, tendo em vista os diversos encontros e desencontros, tensões e conflitos presentes no ambiente escolar, composto por distintos grupos, cada um com sua visão de mundo, modo de pensar, produzir saberes e conhecimento. Costa, Wortmann e Bonin (2016, p. 518) destacam que os Estudos Culturais “seguem uma grande diversidade de trajetórias e percursos, afastando-os de projetos intelectuais direcionados a regulamentações disciplinares - uma característica marcante que diz respeito a sua abertura para conexões, desconexões e reconexões com outros saberes”.

A escola atual ainda não conseguiu superar esse conceito que se faz tão presente na seleção de seus conteúdos, do seu currículo, do seu processo avaliativo e de suas práticas educativas, com grande influência das concepções da suposta verdadeira cultura ou cultura alta, formada por intelectuais e/ou grandes grupos que detêm grande parte do poder e que se denominam detentores do verdadeiro saber e conhecimento numa visão eurocêntrica.

3 Educação e cultura: percepções docentes a respeito da cultura e identidade indígena em uma escola pública urbana amazônica

A construção da identidade sociocultural dos povos indígenas foi marcada por conflitos e tensões que levaram ao extermínio de grande parte dessa população com a colonização do Brasil, “marcada pelo genocídio dos indígenas, pela escravidão dos negros e pela inferiorização dos grupos socioculturais considerados ‘diferentes’, quer dizer, que não entram dentro dessa visão ocidental, branca, racionalista da sociedade e da cultura” (CANDAU, 2011, p. 280-281).

Essa construção é marcada por representações estereotipadas que levam ao preconceito e discriminação, formadas a partir de concepções coloniais que se perpetuam até os dias atuais, conforme destacado na fala do professor Jerry (2021): “É complicado, eles são muito fechados, eles não são iguais aos nossos alunos que são comunicativos, que perguntam, aquela coisa, é natural do índio, do indígena ser muito fechado, na deles e só observar muito. É possível, é viável pela experiência que eu tenho.”

Essa representação estereotipada apresentada pelo professor Jerry (2021) faz parte de uma construção colonial que descreve os povos indígenas como preguiçosos, incrédulos, descrentes por acreditarem nos Deuses que pertencem à sua própria cultura. Assim, “devemos nos aproximar da história dos povos indígenas, para conhecermos a cultura e seu modo de viver/sentir, pensar a educação” (BRUM, 2018, p. 60).

Atualmente os conflitos veiculados em noticiários impressos, mídia etc. trazem estampados discursos de ódio, contribuindo, assim, para a representação distorcida dos povos indígenas. Skliar (2003, p. 113) destaca que a “representação colonial do outro, além da conquista de seu território e de seus mitos, é seu massacre, seu descobrimento, seu redescobrimento, sua invenção, sua inscrição em fronteiras de inclusão/exclusão [...]”. Diante de tantos ataques e conflitos gerados, muitos povos indígenas amazônicos estão sendo forçados a produzir uma migração para a zona urbana. Diante desse cenário, os povos indígenas

Esperam da sociedade envolvente não é que lhes (re) ensinem suas tradições, nem que os não-índios determinem os traços culturais a serem preservados, pois esta seleção e adaptação só pode ser realizada plenamente pelo próprio grupo indígena. O que eles esperam é o respeito às suas diferenças, acesso aos conhecimentos e técnicas ‘habitualmente manipuladas pelos brancos’ desde que seus direitos e tradições sejam preservados. (GOMES; AGUIAR; ALEXANDRE, 2012, p. 424).

As diásporas dos povos indígenas foram construídas historicamente a partir do descobrimento do Brasil em 1500 pelos portugueses, num processo de colonização, luta/resistência, exclusão, genocídios que se perpetuam em pleno século XXI, por meio de discursos estereotipados que marginalizam e/ou tentam a invisibilidade desses povos originários “por entendê-los como obstáculo ao progresso ou como detentores de um conhecimento e de uma prática ultrapassada e, portanto, fadada à extinção” (LAMAS, 2017, p. 162).

Com o avanço da agropecuária e a mineração na Amazônia amparada pelo silêncio do poder público e, ainda, a introdução de agendas de governo estranhas ao interesse dos povos indígenas, com políticas públicas que excluem direitos que lhes foram garantidos na Constituição Federal de 1988, bem como afrouxamento da legislação ambiental e na fiscalização por órgãos competentes vinculados ao poder público, muitos desses povos começaram a migrar para áreas urbanas em busca de trabalho, fugindo de conflitos e das tensões nas fronteiras e dentro de seus territórios.

A fala da professora Telma evidencia o quanto as políticas públicas educacionais e sociais para acesso, reconhecimento e valorização dos povos indígenas nas escolas urbanas são frágeis, pois “não podemos dizer que eles tenham acesso, essa é uma questão que não está bem resolvida” (TELMA, 2021). A seguir, a fala na íntegra da professora:

Eu acho que eles são normais. Eu considero que seria como qualquer outro aluno, da mesma forma que trato um haitiano eu trato um indígena. Eles (indígenas) são mais próximos de nós, da nossa realidade. Somos um país de antecedentes indígenas, ainda mais morando na região norte, logo fazem parte da nossa história. Eu penso que deveria ser encarado com muita naturalidade, o que falta é formação para professores para recebê-los da maneira adequada. Eu atuo há mais de 12 anos na nossa região e nunca recebi um aluno indígena. Então não podemos dizer que eles tenham acesso, essa é uma questão que não está bem resolvida. (TELMA, 2021).

Na concepção da professora Telma, todos(as) os alunos(as) devem receber o mesmo tratamento, independentemente de sua identidade e sua cultura. Neste contexto, Fleuri (1999, p. 278) destaca que “a visão essencialista, universalista, igualitária do monoculturalismo corre o risco de legitimar a dominação de um projeto civilizatório ante as minorias culturais”.

Ao analisar a fala da professora Telma no senso comum, parece algo correto, porém é preciso reconhecer as especificidades de cada identidade e de cada cultura, com seu modo de pensar, agir, ver o mundo e produzir conhecimentos e saberes.

A concepção dessa professora está pautada em uma tendência do multiculturalismo ao propor a universalização de práticas educativas. Neste contexto, Duschatzky e Skliar (2000, p. 171) afirmam que “[...] no campo educativo, a entrada do multiculturalismo é recente, dado que o pensamento etnocêntrico miserabilista tem funcionado desvalorizando as outras narrativas e produzindo uma gramática escolar fortemente disciplinadora e homogeneizante”.

Contrapondo-se a essa visão, o campo dos Estudos Culturais, articulado com uma educação na perspectiva intercultural, aponta para “a compreensão da escola como espaço híbrido de negociações e de traduções” (FLEURI, 2003, p. 27) a partir das especificidades de cada identidade e cultura, que carregam sua visão de mundo, formas de agir e produzir e pensar. Corroborando com essa discussão, Fleuri (2003, p. 73) enfatiza que a “Educação intercultural ultrapassa a perspectiva multicultural, à medida que não só reconhece o valor intrínseco de cada cultura e defende o respeito recíproco entre diferentes grupos identitários, mas também propõe a construção de relações recíprocas entre estes grupos”.

No contexto escolar, os/as professores(as) devem perceber essas diferenças e trabalhar o processo de escolarização a partir do respeito mútuo entre essa diversidade de culturas e identidades, através de momentos reflexivos, dialógicos, interativos e democráticos. O relato das professoras Fabíola e Marlúcia é interessante ao considerar essa possibilidade de se trabalhar com os povos indígenas, porém a professora Fabíola destaca em sua fala uma visão estereotipada que se construiu contra esses povos:

Ah! Eu acho muito interessante. Eu fiz parte de um projeto chamado recomeçar na educação de jovens e adultos-EJA, e na época eu tinha aqueles professores que iam até às aldeias, nossa eu ficava muito encantada, eu falei nossa já pensou se eu tivesse a oportunidade, porém, será que eu iria mesmo? Fico com medo do desconhecido, porque você imagina o que é isso? Daquele jeito, pegar uma flecha e já acertar você, então é uma visão totalmente diferente. (FABÍOLA, 2021, grifo nosso).

Eu não conheço a realidade deles. Eu conheço a realidade contrária do professor da área urbana que vai dar aula para os indígenas. Mas eu acharia muito bom se eles pudessem ter mais acesso de sair da área indígena onde eles moram e vim para área urbana. Eu nunca tive uma experiência dessa, mas eu gostaria muito de ter, eu acharia muito bom. (MARLÚCIA, 2021).

O desafio da educação contemporânea é desconstruir essa visão equivocada que leva à exclusão e ao silenciamento, diante do discurso de ódio de governos que se encontram no extremo do conservadorismo e suas políticas públicas que desvalorizam a importância desses povos na construção sociocultural da sociedade. Neste contexto, Candau (2014) destaca que

Para se trabalhar estas questões, o papel da educação é fundamental, pois incide no imaginário coletivo, nas mentalidades, nas representações das identidades sociais e culturais presentes na nossa sociedade e nos colocam diante da necessidade de aprofundar na compreensão das relações entre cultura e educação. (CANDAU, 2014, p. 36).

O ambiente escolar torna-se um espaço importante para a desconstrução e entendimento da “cultura dos povos indígenas, como fazem a leitura de mundo, como fazem a sua resistência para se defender da violência opressora em que vivem e resistem até os dias atuais” (BRUM, 2018, p. 49), pois é um dos primeiros locais, fora a família, para construção social das crianças. Logo, promover momentos dialógicos, reflexivos e democráticos contribui para a formação plena do indivíduo com senso crítico, ético, reflexivo, entre outros, essencial para a formação de sociedades plurais, justas, democráticas e humanizadas.

Essas temáticas precisam estar presentes e discutidas no currículo escolar como forma de resistência de uma educação pautada no reconhecimento, respeito e na valorização das diferentes identidades e culturas presentes no contexto escolar, conforme estabelece a Lei 11.645/2008 (BRASIL, 2008): “§ 2o Os conteúdos referentes à história e cultura afro -brasileira e dos povos indígenas brasileiros serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de educação artística e de literatura e história brasileiras.”

Assim, desconstruir a visão eurocêntrica considerada como cultura “superior” em diferentes contextos sócio-históricos, presentes em diferentes instrumentos educacionais, como livros didáticos, paradidáticos, revistas, jornais, currículos, entre outros, são componentes importantes para reescrever e repensar a pluralidade e a diversidade de culturas e identidades que foram e são importantes no Brasil e em toda a América Latina, com destaque aos povos indígenas que já habitavam nosso continente.

Para o professor Douglas, as instituições educacionais não estão preparadas para receber os povos indígenas em virtude do choque cultural existente entre as línguas maternas indígenas e a língua portuguesa, conforme ele destaca,

Eu vejo assim que a escola tem que estar preparada para receber esse aluno, porque a questão da língua vai ser um choque cultural, vai ser uma segunda língua para eles, se não souberem a língua portuguesa e em segundo lugar depende muito dos objetivos deles, muitos indígenas vêm para cidade atrás de uma formação, uma educação formal para seguir de volta para a aldeia, para continuar ajudando lá com a formação que ele obteve aqui. Já tem muitos deles que vem para cidade com intuito de abandonar a aldeia, infelizmente cada um faz sua escolha, mas eu acho positivo, eu não vejo com olhos discriminativos, eu acho que a escola tem que estar preparada como na inclusão de alunos especiais. Eu acho que só vem a somar, os alunos querendo ou não eles aprendem a respeitar o que é educação especial, e eles também vão aprender com o aluno indígena, vão aprender com ele e a respeitar ele e a cultura dele. Então, a escola no momento não está preparada no meu ver para trabalhar com indígena. Eu não conheço a realidade de um indígena e na minha formação a gente estudou um pouco sobre, mais na minha vivência como professor não cheguei a dar aula para aluno indígena. (DOUGLAS, 2021, grifo nosso).

A fala do professor mostra a importância de processos formativos que abordem e dialoguem com as temáticas da cultura, identidade e diferença e possibilitem “reconhecer o direito à diferença como um enriquecimento educativo e social” (IMBERNÓN, 2002, p. 82).

Uma educação na perspectiva intercultural favorece que “diferentes grupos socioculturais conquistem maior presença nos cenários públicos” (CANDAU, 2011, p. 241) e reivindiquem seu espaço na formação de uma sociedade democrática e plural, com participação direta na construção de políticas públicas educacionais e sociais.

A professora Marlete traz uma narrativa importante para a descolonização da cultura e identidade indígena, com a realização de práticas e políticas educativas que articule e promova a relação entre cultura e educação,

É muito importante que a escola favoreça seu acesso para que se promova a integração de fato das populações que acabam não se inserindo na sociedade por falta de encorajamento e políticas públicas que o insiram, mas o encoraje a permanecer. Todos ganham com o indígena na escola, pois a troca de conhecimentos se intensifica e enriquece, além de despertar nos demais o respeito pelo indivíduo de outras culturas. (MARLETE, 2021).

Um dos elementos que vem sendo muito questionado quanto ao processo de reconhecimento das diferenças nas escolas são as representações dessas diferenças expressas nos mais diversos instrumentos pedagógicos escolares, tais como discursos, livros, cartazes, entre outros. Para Hall (1997, p. 17), a “representação é a produção do significado do conceito em nossa mente através da linguagem”.

Tais instrumentos trazem representações estereotipadas contra os povos indígenas, que “articulados nessas produções resultam de um conjunto de práticas discursivas estabelecidas socialmente, a partir de ‘relações de poder’ que, por sua vez, possibilitam a quem tem mais força [...] atribuir aos outros seus significados” (OLIVEIRA, 2003, p. 25).

A Cultura Ocidental constituída e representada nos diferentes dispositivos pedagógicos por meio do discurso colonial, que estão atualmente estruturados no fazer e pensar das práticas educativas, são fatores que levam ao silenciamento ou apagamento das identidades e culturas minoritárias, “sobretudo ao depreciá-la diante da cultura eurocêntrica do colonizador” (BIAVATTI1 et al., 2020, p. 75). Diante desse contexto é preciso desconstruir, descolonizar práticas e discursos dominantes que impregnam práticas sociais, educacionais e políticas em nossa sociedade. Para Fleuri (2019), “Trata-se de construir e potencializar os múltiplos dispositivos, as diferentes estratégias, os variados processos, as várias linguagens e narrativas capazes de suscitar e sustentar a relação de mútua aprendizagem entre os diferentes sujeitos e entre suas respectivas culturas” (FLEURI, 2019, p. 49).

O discurso político atual é preocupante, pois estereotipa os povos indígenas de forma preconceituosa e racista. Tal discurso tem sido veiculado na sala de aula por concepções e narrativas que distorcem a história desses povos desde a colonização. Assim, faz-se necessário uma “aproximação das escolas com os universos culturais de cada aluno/a é uma discussão relacionada à qualidade da educação, sobretudo se pensarmos em um currículo com qualidade social” (BLINI, 2017, p. 20).

Ampliando a discussão, Grupioni (1996, p. 426) destaca a “importância da escola, e do espaço ocupado pelo livro didático, no processo de formação dos referencias básicos das crianças da nossa sociedade”, bem como outros instrumentos pedagógicos utilizados, como pesquisas digitais e documentais que possibilitam aos professores(as) dialogar com os/as alunos(as) a respeito dos povos indígenas.

Contudo, têm se destacado discursos e concepções de uma cultura primitiva e única, sem dar ênfase às diferentes etnias existentes no Brasil e na América Latina, e devem continuar isoladas em seus espaços, sem a interação com as sociedades urbanas em virtude das diferenças culturais e linguísticas. Para Santomé (2013, p. 172), “um currículo antimarginalização é aquele em que todos os dias do ano letivo, em todas as tarefas acadêmicas e em todos os recursos didáticos estão presentes as culturas silenciadas”.

A escola tem papel fundamental na descolonização da cultura e da identidade indígenas, representada historicamente por meio de discurso colonial que “permita problematizar e desnaturalizar a estigmatização cultural, mediante a visibilidade e o questionamento de suas causas atuais e suas origens históricas” (TUBINO, 2016, p. 24).

Assim, percebe-se que as diferentes identidades e culturas que transitam na escola são componentes importantes para a (des) construção e descolonização da representação estereotipada dos povos indígenas construída com discurso e olhar colonial que marginalizam a cultura e a identidade no Brasil e na América Latina.

4 Considerações Finais

Na atual conjuntura em que se encontra o Brasil, tem-se acompanhado cotidianamente, por meio dos veículos de comunicação e informação, a presença marcante do discurso de ódio contra grupos considerados “inferiores” ou “sem cultura” a partir de um olhar colonial extremante conservador. Tal ato consequentemente resulta em tensões e conflitos, com destaque para os povos indígenas, que têm sofrido inúmeros ataques em razão da demarcação de suas terras e com o avanço da cadeia pecuarista na Amazônia.

Desse modo, pode-se observar a evidente manifestação de ódio e a tentativa de silenciamento e/ou exclusão contra esses povos originários. A partir desse contexto, qual seria então o papel da educação frente a essas questões que englobam a construção da identidade a partir das diferentes culturas presentes no espaço escolar?

Uma educação cujos pressupostos estejam articulados com o campo dos Estudos Culturais pode ser um instrumento que possibilite desconstruir/descolonizar a representação estereotipada construída historicamente a partir da ideia de raça como forma de classificação social estabelecida pelas relações de poder do discurso colonial que se perpetuam até os dias atuais e corroboram o aumento das desigualdades sociais e econômicas. Essas representações se manifestam no currículo escolar, pois é este documento que orienta as ações pedagógicas na escola.

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1Destaca-se que todo processo investigativo foi submetido e aprovado no Conselho de Ética, conforme estabelece a Resolução nº 510/2016 (BRASIL, 2016) do Conselho Nacional de Saúde.

Recebido: 16 de Janeiro de 2022; Aceito: 11 de Julho de 2022

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