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Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade

versión impresa ISSN 0104-7043versión On-line ISSN 2358-0194

Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade vol.31 no.67 Salvador jul./set 2022  Epub 13-Ene-2023

https://doi.org/10.21879/faeeba2358-0194.2022.v31.n67.p143-162 

Artigos

A QUESTÃO INDIGENISTA A PARTIR DA PERSPECTIVA DE DIFERENTES ESCRITORES(AS) NA VIRADA DO SÉCULO XIX E INÍCIO DO SÉCULO XX: PROJETOS EDUCATIVOS E CIVILIZACIONAIS (1893-1910)

THE INDIGENIST QUESTION FROM THE PERSPECTIVE OF DIFFERENT WRITERS AT THE TURN OF THE 19TH CENTURY AND THE BEGINNING OF THE 20TH CENTURY: EDUCATIONAL AND CIVILIZING PROJECTS (1893-1910)

LA CUESTIÓN INDIGENISTA EN LA PERSPECTIVA DE DIFERENTES ESCRITORES DE FINALES DEL SIGLO XIX Y PRINCIPIOS DEL XX: PROYECTOS EDUCATIVOS Y CIVILIZATORIOS (1893-1910)

Alexandra Padilha Bueno*  Universidade Estadual do Paraná
http://orcid.org/0000-0002-0351-0060

Caroline Marach**  Centro Universitário UniFael
http://orcid.org/0000-0003-3279-7432

*Doutora em Educação pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Docente dos Cursos de Licenciatura da Universidade Estadual do Paraná (UNESPAR). Paranaguá, Paraná, Brasil. E-mail: alexandrapadilha192@gmail.com

**Doutora em História pela Universidade Federal do Paraná UFPR). Docente do Curso de Licenciatura de História do Centro Universitário UniFael. Curitiba, Paraná, Brasil. E-mail: carolmarach@gmail.com


RESUMO

O presente artigo analisa os jogos linguísticos presentes em fontes de diferentes naturezas, no projeto educativo e civilizacional orientado para os indígenas brasileiros, manifesto por um grupo de escritores(as) da virada do século XIX e início do XX. Este trabalho delimita-se entre 1890 e 1905 e considerou a ambiência intelectual que elegeu a temática indigenista como cerne de um dos projetos educacionais deste período. A análise pauta-se no Contextualismo Linguístico de John Pocock (2003), cujo foco encontra-se na dimensão pragmática do discurso político e relação entre a realidade experienciada e a linguagem. Em relação às fontes, foram produzidas por agentes, que evidenciaram, na cena pública, concepções acerca do tema deste trabalho. Conquanto os/as escritores(as) elencados(as) aqui tenham posicionamentos diferentes sobre questões relativas aos indígenas brasileiros, há um consenso de que a educação seria o condão que viabilizaria o processo de inserção desses povos no processo civilizador, cujo viés se fundamentou na ideia de construção de uma identidade brasileira, segundo a qual os indígenas ocupavam um lugar fundamental.

Palavras-chave: indigenismo; escritores(as); causa indígena; contextualismo linguístico

ABSTRACT

This article analyzes the linguistic games present in sources of different natures, in the educational and civilizing project oriented towards Brazilian indigenous people, manifested by a group of writers from the turn of the 19th century and the beginning of the 20th century. This work is delimited between 1890 and 1905 and considered the intellectual environment that chose the indigenist theme as the core of one of the educational projects of this period. The analysis is guided by Linguistic Contextualism - Jonh Pocock (2003) - whose focus is on the pragmatic dimension of political discourse and the relationship between experienced reality and language. Regarding the sources, they were produced by different subjects, who showed, in the public scene, conceptions about the theme of this work. Although the writers listed here have generic positions on some issues related to Brazilian indigenous peoples, there is a consensus that education would be the power that would enable the process of insertion of these peoples in the civilizing process, with a bias that had as a project the construction of a “Brazilian identity”, in which the indigenous people occupied an important place.

Keywords: indigenism; writers; indigenous cause; linguistic contextualism

RESUMEN

Este artículo analiza los juegos lingüísticos presentes en fuentes de diferente naturaleza, en el proyecto educativo y civilizador orientado hacia los indígenas brasileños, manifestado por un grupo de escritores de finales del siglo XIX y principios del siglo XX. Este trabajo se delimita entre 1890 y 1905 y considera el ambiente intelectual que eligió la temática indigenista como eje de uno de los proyectos educativos de este período. El análisis se guía por el Contextualismo Lingüístico - John Pocock (2003) - cuyo foco está en la dimensión pragmática del discurso político y la relación entre la realidad experimentada y el lenguaje. En cuanto a las fuentes, fueron producidas por diferentes sujetos, quienes manifestaron, en la escena pública, concepciones sobre el tema de este trabajo. A pesar de que los autores enumerados aquí tienen posiciones genéricas sobre algunas cuestiones relacionadas con los pueblos indígenas brasileños, existe un consenso de que la educación sería el poder que posibilitaría el proceso de inserción de estos pueblos en el proceso civilizatorio, con un sesgo que tenía como proyecto la construcción de una “identidad brasileña”, en la que los indígenas ocuparon un lugar importante.

Palabras clave: indigenismo; escritores; causa indígena; contextualismo lingüístico

Introdução

O período do último quartel do século XIX e o início do século XX foi profundamente marcado pela presença de um debate público que tinha como pauta fundamental o tema da educação como lugar por excelência de modificação e progresso da sociedade brasileira. O tema foi alvo de interesse de escritores e escritoras, evidenciado em discursos de viés cultural, político e econômico. Entre as diversas nuanças que marcaram tais debates, a questão indígena e os projetos educativos e civilizatórios que envolviam os povos originários brasileiros estiveram em evidência.

A questão indigenista configura-se como uma tradição no pensamento de literatos(as) e escritores(as), e suas bases remontam às primeiras reflexões acerca da construção de uma identidade brasileira que, de acordo com Castello (1953), surgiu como manifestação de um nascente nacionalismo. Particularmente no período já mencionado, uma vertente de enaltecimento do elemento indígena ganhou evidência nos círculos letrados brasileiros para se pensar acerca das origens e características do povo brasileiro. Suas primeiras expressões podem ser observadas em obras literárias de acentuado tom romântico nativista, datadas do período posterior à independência do Brasil, momento em que houve uma preocupação em buscar o que havia de genuíno na cultura nacional.

No presente artigo, pretende-se evidenciar aspectos inéditos do pensamento de uma intelectualidade acerca das populações nativas de diferentes etnias presentes no território brasileiro na passagem do século XIX para o XX. Em razão das fontes escolhidas para análise, assumem evidência os contextos geográficos do Rio de Janeiro e do Paraná.

As fontes analisadas podem ser subdivididas em duas categorias: para as análises acerca do contexto paranaense, foram selecionados artigos de opinião de duas publicações da revista paranaense O Cenáculo (1895-1897). Selecionamos esses fascículos em especial por serem dedicados, quase integralmente, à questão indigenista, diferentemente dos outros números do mesmo periódico, com assuntos mais diversos. A segunda categoria de fontes referese ao contexto do Rio de Janeiro, composta por textos e fotografias produzidas e conservadas por Leolinda Daltro, única mulher dentre os escritores elencados para a presente análise. Esse segundo corpo documental refere-se a documentos memoriais selecionados por essa autora e dizem respeito a sua empreitada de catequização laica de indígenas Xerentes no interior de Goiás. Entendemos que a análise dos discursos presentes nas fontes citadas contribui para a compreensão do pensamento indigenista e racialista em âmbito regional e nacional.

O grupo de escritores(as) dessas fontes era composto por professores(as), literatos(as) e jornalistas cuja maioria é autora de publicações que lhes conferiram destaque na cena pública regional e nacional. Tais agentes são entendidos aqui como “atores linguísticos”, expressão de John Pocock (2003) que designa aqueles que operam como articuladores da linguagem de uma época, visando à defesa de interesses e à expressão de determinadas ideias e valores. Foram, portanto, mediadores da cultura de sua época, desempenhando, a um só tempo, os papéis de atores e testemunhas do contexto por eles e elas vivenciado.

Para tratarmos da questão indigenista, há que se compreender aspectos de um debate em voga entre os pensadores da cultura brasileira: afinal, quais são os aspectos a determinar características da população brasileira? Há a possibilidade de se alegar a existência de um elemento genuinamente brasileiro a constituir o povo deste país? E, quais seriam suas origens?

Como argumenta Abílio Guerra (2010) em sua dissertação de mestrado, tais questionamentos são tão antigos quanto a própria conformação do universo intelectual brasileiro.

Segundo esse autor, o povo brasileiro é compreendido, desde o início do século XIX, a partir de teorias brasileiras e estrangeiras diversas, das quais emergem representações acerca de um território de ambiente natural exuberante as quais se articulam com teses acerca da interferência do clima sobre a moral e o intelecto da população local. Silvio Romero, de acordo com Guerra (2010, p. 29), teria sido um dos primeiros escritores a buscar compreender as características mais proeminentes do povo brasileiro, por meio de teorias “cientificistas”, conforme categorizou Roque Spencer Maciel de Barros (1986, p. 22).

Tal como Romero, diferentes letrados do Brasil oitocentista sustentavam com veemência a crença no poder da ciência para compreender os comportamentos sociais diversos, bem como para sanar os males humanos. Por meio das obras de cientistas sociais estrangeiros, como Augusto Comte, naturalizou-se no pensamento literário brasileiro o evolucionismo por etapas, segundo o qual havia uma natureza permanente na Humanidade, e as diferenças entre as sociedades deveriam ser analisadas como diferenças de ritmo, diferentes graus de desenvolvimento ao longo de um mesmo processo. Conforme destaca Guerra (2010, p. 69), o positivismo comteano foi a primeira das doutrinas evolucionistas no Brasil. Foi seguido por outras, como as de Spencer, Darwin e Haeckel.

Guerra (2010) também destaca que Silvio Romero, imbuído do etapismo comtiano, sustentou a formação da população brasileira a partir das três raças: a americana, a caucasoide e a etiópica. Da miscigenação desses três elementos seria resultante a figura do mestiço. Romero alega, ainda, que a seleção natural faria predominar a raça branca, para ele, a mais numerosa.

Em se tratando de buscar uma origem étnica da população brasileira, a eugenia, em nome da ciência, assumiu sua parte nas discussões do período. Francis Galton e Renato Kehl foram os precursores do pensamento eugênico que foi trazido para o Brasil e, aqui, conciliado com outras teorias cientificistas. Como explica Guerra (2010, p. 97), “ao contrário das teorias racistas, que postulam tendências degenerativas atávicas a certas etnias, as concepções eugênicas deslocam o motivo da corrupção para os hábitos e costumes”. Assim, a eugenia, sustentada pioneiramente por Galton e Kehl, defende um processo civilizacional para os povos tidos como degradados etnicamente, e essa “ciência” se constitui a partir do discurso do aperfeiçoamento moral e físico da espécie.

Essa vertente em defesa do aperfeiçoamento humano chegou ao Brasil em fins do século XIX e foi adaptada e acomodada ao pensamento de diferentes escritores, como veremos a seguir. A eugenia, ora velada ora declarada, fez-se valer em discursos que circularam em diferentes periódicos nacionais, em práticas e em políticas públicas as quais foram destinadas a populações que pouco tinham em direitos de se expressar. Imigrantes pauperizados, indígenas que ainda lutavam por seus territórios, negros recém-libertos: grupos cuja cultura fora relegada e condenada pelos padrões civilizatórios eugênicos e higienistas do período em que era constituída, ou forjada, a identidade nacional.

O projeto educativo e civilizacional de indígenas de Leolinda Daltro: uma proposta de educação laica

No contexto da virada do século XIX para o século XX, a cidade do Rio de Janeiro, então capital do Brasil, vivia a sua Belle Époque. Um período marcado por intensas mudanças urbanísticas, culturais, de sociabilidade e de sensibilidades.

As modificações no quadro urbano podiam ser observadas, por exemplo, na construção da Avenida Central - atualmente, Avenida Rio Branco - na conjuntura das reformas organizadas pelo prefeito e engenheiro Pereira Passos, que resultou no “bota-abaixo”, retirando do centro da cidade os cortiços e parte da população mais pobre, antiga habitante dessa região. Entre as remodelações ocorridas no espaço urbano da capital federal, pode-se incluir a construção e as reformas que ocorreram em instituições de assistência social, lazer e educação, como escolas públicas, maternidades, orfanatos, entre outras. Além disso, questões de ordem trabalhista e sanitária estavam em pauta na época, em virtude da reforma sanitária promovida pelo cientista Oswaldo Cruz. Da mesma maneira que ocorria com o contexto urbano, os costumes, a moda e as sensibilidades modificavam-se, seguindo o fluxo das renovações estéticas em curso.

Esse período pode ser caracterizado pela presença de diversos grupos intelectuais que buscavam legitimidade para interferir nas políticas públicas do país, constituindo e consolidando um espaço social de atuação. É nessa ambiência cultural que encontramos a figura de Leolinda Daltro, que participou ativamente da história do associativismo feminista e sustentou uma postura fortemente combativa em prol da causa feminista. As chacotas a seu respeito vinham de todos os lados. Adjetivos como o de “invertida”, “masculinizada”, “ridícula”, “a mulher do diabo”, foram alguns dos utilizados para defini-la. O tratamento nada gentil que parte da imprensa fluminense deu a Daltro, no início do século XX, demonstra que não foi fácil para essa mulher participar da cena pública.

De personalidade enérgica e engajada em suas crenças, essa autora interveio em várias frentes, agregou personalidades diversas e controversas em suas empreitadas e assumiu o protagonismo de um projeto formativo laico voltado aos indígenas Xerentes, o qual foi visto por seus contemporâneos com desconfiança.

Daltro teve uma ampla participação no espaço público e, como fundadora do Partido Republicano Feminino (PRF), sofreu a ironia e a intolerância de seus contemporâneos e contemporâneas. Conquanto, soube utilizar as vantagens oferecidas por seus apoiadores e ocupou os lugares que lhe foram permitidos na imprensa periódica, tendo inclusive criado e editado três jornais: A Verdade, em 1902, A política, em 1910, e A Tribuna Feminina, em 1916, todos no Rio de Janeiro. Ao mesmo tempo, buscou construir uma imagem de si como alma abnegada e dotada de uma nobre missão de pioneirismo, amparada pelos revezes que sofreu ao longo de sua trajetória.

Daltro não mencionou em seus escritos suas experiências de formação inicial. Em 1887, mudou-se para o Rio de Janeiro e, nessa cidade, ficou conhecida por seu trabalho com a educação de grupos indígenas. Daltro justificava sua adesão à causa indígena a partir de dois argumentos: o primeiro, por ser ela mesma neta de indígenas (DALTRO, 1920). E, também, porque a leitura de O Selvagem, de Couto Magalhães, causara-lhe impacto. Conforme suas próprias palavras, a obra “despertara na época as [suas] latentes aspirações, de [se] internar pelos sertões do Brasil a fim de observar a vida e os costumes das populações indígenas [...]”. (DALTRO, 1918, p. 9).

Mencionada por Grigório (2012) e divulgada na imprensa da época, foi marcante a chegada ao Rio de Janeiro de um grupo de indígenas Xerentes, vindo de Goiás para uma audiência com o presidente da República. O grupo pretendia solicitar ferramentas, roupas e a continuidade do trabalho de catequese que vinha acontecendo em sua aldeia, o que teria despertado o interesse de Daltro, que na ocasião abrigou o grupo em sua própria casa.

Grigório (2012) argumenta que a professora teria se disponibilizado a ir ao aldeamento em Goiás e realizar a catequese leiga daqueles indígenas. Para isso, teria solicitado ao governo uma licença de seu cargo de professora e a manutenção de seus vencimentos durante o tempo de sua viagem, com a intenção de organizar uma escola indígena na região. Daltro teve sua solicitação negada e, posteriormente, teve aprovada uma licença para tratamento de saúde, fato que lhe garantiu a continuidade dos seus vencimentos durante o período de sua viajem até Goiás (COSELHO..., 1897, p. 2).

Fonte: Os selvícolas... (1909, p. 5).2

Figura 1 Grupo de índios Xerentes em sua chegada ao Rio de Janeiro.1  

Após concedida a licença, Daltro seguiu para São Paulo a fim de realizar a viagem para Goiás. Em São Paulo, conforme apontam os trabalhos de Rocha (2002), Grigório (2012) e Cunha dos Santos (2014), teria recebido o apoio de parte da imprensa paulistana.

Sobre o apoio recebido por Daltro em São Paulo, na busca por fontes jornalísticas realizada, encontrou-se apenas duas notas do jornal O Commercio de São Paulo. A primeira, de 15 de janeiro de 1897, em que se enfatiza a publicação de uma edição da revista A Tarde Ilustrada, de São Paulo, na qual Leolinda Daltro e sua viagem ao sertão eram destaque na quinta página (A TARDE..., 1897, p. 2). A segunda, de 20 de fevereiro do mesmo ano, menciona um concerto realizado por Daltro com a intenção de arrecadar fundos para sua ida a Goiás (PELOS Cherentes,3 1897, p. 2). No entanto, Grigório (2012) e Cunha dos Santos (2014) apontam para outras fontes. Grigório (2012, p. 12) afirma que houve, a partir daí, [...] uma campanha de arrecadação de fundos promovida pelo jornal A Plateia, de cartas de apoio à empreitada da professora, publicadas através do mesmo jornal e também de cartas pessoais, algumas com críticas e tentativas de fazê-la desistir da viagem.

Segundo Cunha dos Santos (2014), um dos colaboradores da viagem de Daltro foi o professor José Feliciano, sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo (IHGSP), dedicado à causa dos Xerentes. À época, o professor escreveu inúmeras cartas para o jornal O Estado de São Paulo, manifestando seu apoio a Daltro. Ainda de acordo com Cunha dos Santos, Daltro e José Feliciano tinham um amigo em comum, Horace Lane,4 que, no período de sua viagem, assumia o cargo de Diretor do Mackenzie e “foi o principal mentor e patrocinador de seu propósito de catequizar os índios no vale entre os rios Araguaia e Tocantins (1897-1900)” (CUNHA DOS SANTOS, 2014 p. 19). Essa mesma autora aponta que Leolinda Daltro e Horace Lane mantiveram um forte laço de amizade, registrado em correspondências trocadas entre os dois.

Outro apoio interessante angariado por Leolinda Daltro, também citado por Cunha dos Santos (2014), foi o da pedagoga e médica belga Marie Renotte, que morava em São Paulo. Renotte foi a primeira mulher a ser admitida no Instituto Histórico e Geográfico daquela cidade, em 1901. Em outubro de 1896, ela teria publicado notas favoráveis ao projeto de Leolinda Daltro. Renotte era conhecida por sua participação na imprensa feminina de São Paulo e pela defesa da educação da mulher como forma de sua emancipação.

Ao partir de São Paulo para Goiás, passando por Uberaba, Daltro esperava o mesmo apoio que recebera em São Paulo. Entretanto, segundo Grigório (2012), foi recebida com dívidas de hospedagem contraídas pelos indígenas que a aguardavam na cidade, além dos gastos que teve com a compra de quatro cavalos. “Para pagá-las teve que se desfazer de suas joias, o que acabou por envolvê-la em um caso de acusação de roubo e consequentemente, na revolta da população local contra a sua pessoa” (GRIGÓRIO, 2012, p. 13).

A querela foi resolvida com o testemunho de um “mulato” que atestava que a professora Daltro teria comprado os animais de montaria e que havia sido acusada injustamente pelo ex-proprietário dos cavalos que, após ter “perdido as joias no jogo, queria recuperar a montaria” (GRIGÓRIO, 2012, p. 14). Em razão da confusão, a imprensa local passou a chamar Leolinda pela alcunha de “mulher do diabo”.

Segundo Elaine Rocha (2002, p. 69), Leolinda Daltro

ganhou notoriedade […] pela defesa intransigente dos direitos dos índios. Apaixonada pela ideia de incorporar os índios brasileiros à sociedade por meio da alfabetização sem conotações religiosas usou de todos os artifícios ao seu alcance, inclusive o contato com pessoas influentes para iniciar no ano de 1896 o ambicioso projeto de percorrer o interior do Brasil promovendo a alfabetização de tribos indígenas.

Daltro foi casada duas vezes e teve cinco filhos: dois com o primeiro marido, de quem se separou ainda na Bahia, e três com o segundo, de quem, de acordo com Cunha dos Santos (2014), separou-se ao voltar da viagem que realizou pelo interior de Goiás, no projeto de alfabetização de indígenas.5 Na viagem, quem a acompanhou foi o filho mais velho, Alfredo. A atitude do filho, segundo Grigório (2012), teve como consequência a exoneração de seu emprego - sendo ele um funcionário público -, fato que lhe impossibilitou de seguir adiante na carreira pública.

Na época de sua viagem, Leolinda Daltro deixou dois filhos, menores de idade, em colégios internos protestantes de São Paulo (Makenzie). A filha caçula ficou aos cuidados de Quintino Bocaiúva (1836-1912),6 que era padrinho da menina. A outra filha, mais velha, já havia se casado (ROCHA, 2002).

A origem da aproximação de Bocaiúva com Leolinda Daltro é desconhecida, contudo, é inegável que a proximidade entre os dois foi importante para a configuração de uma rede de sociabilidade da intelectual com outros republicanos do período, fato que contribuiu para que Daltro levasse à frente sua missão.

Cunha dos Santos (2014) afirma que Quintino Bocaiúva tentou dissuadir Daltro de viajar deixando os filhos, no entanto, ela permaneceu decidida a prosseguir. O fato de ter deixado os filhos mais novos num colégio protestante desencadeou uma considerável controvérsia na imprensa da época.

Importa notar que, num momento em que o papel feminino das classes médias - caso em que Daltro se inclui, visto que, na época de sua partida, era professora catedrática no Rio de Janeiro e esposa de um funcionário público - estava circunscrito à esfera doméstica e à valorização da maternidade como função primordial de participação na construção da República, ela deixa os filhos e segue na aventura que nomeou como “missão”. Pode-se inferir que a circunstância de sua orfandade, ainda na infância, tenha de alguma forma contribuído para que em seu projeto de emancipação feminina ela considerasse a questão da sobrevivência autônoma da mulher mais importante do que a função materna ou a preservação de um núcleo familiar tradicional. Tal condição poderá ser observada na sequência deste trabalho, quando sua proposta de educação voltada para mulheres é explicitada.

A viagem inicialmente duraria 2 anos. Entretanto, a perseguição que enfrentou por parte dos freis que já realizavam o trabalho de catequese na região a forçou a voltar para o Rio de Janeiro após um ano de viagem e dividir sua “missão” em duas etapas.

De acordo com Cunha dos Santos (2014), em novembro de 1897 Daltro partiu da cidade de Goiás, de onde seguiu rumo às aldeias do povo Xerente. Ali permaneceu até 1898, quando, se sentindo ameaçada pelos assassinos contratados pelo frei Antonio [de Ganges], que, conforme aponta essa autora, era diretor dos índios Xerentes e mantinha uma postura rigorosa na qual “procurava afastar ‘de suas ovelhas’ qualquer ‘intruso/a’” (CUNHA DOS SANTOS, 2014, p. 51) que tentasse praticar a catequese leiga, buscou trilhas alternativas, fazendo parte do caminho a pé pela mata, trocando de nome e separando-se dos companheiros de viagem. Consoante com os relatos da própria Professora Daltro, durante sua viagem ao sertão de Goiás, ela teria arrancado seus implantes de dentes de ouro para que não fosse reconhecida por seus “algozes” e não corresse risco de vida, visto haver sofrido ameaças de morte antes de sua partida (DALTRO, 1920).

Sua viagem teve início quando saiu do Rio de Janeiro em direção a São Paulo. No percurso, ela passou por Uberaba e Araguari, em Minas Gerais; esse trajeto, conforme aponta um mapa elaborado pela escritora, foi realizado de trem, pela Estrada de Ferro Central do Brasil. O deslocamento até a cidade de Goiás foi feito, possivelmente, com os animais de montaria adquiridos pela professora em Uberaba, utilizando o caminho que comumente era realizado pelas tropas da época, certamente a alternativa encontrada por ela para sair do caminho mais óbvio e fugir de seus adversários.

Possivelmente, Leolinda se lançou na segunda viagem após receber notícias sobre o falecimento do frei que a perseguia. De acordo com mapas elaborados por Daltro, no itinerário da segunda viagem a escritora utilizou-se de caminhos secundários que a levaram a percorrer o sertão do Araguaia.

De acordo com Cunha dos Santos (2011), durante a incursão de Leolinda Daltro nos sertões ela recebia correspondências de amigas e amigos que tentavam convencê-la a voltar ao Rio de Janeiro. Entre o material, essa autora cita uma carta recebida da amiga Magdalena de Noronha, a qual permite uma mirada sobre as representações que a sociedade fluminense tinha do elemento indígena naquele contexto.

Na carta, Magdalena mostrava-se preocupada com a imagem pública de Daltro, mencionava uma peça de teatro que estava sendo exibida no Rio de Janeiro, na qual a professora era a personagem protagonista e aparecia “num ridículo medonho, vestida de penas, dançando e falando asneiras com os índios” (CUNHA DOS SANTOS, 2011, p. 35). A correspondência informava ainda que o senador Quintino Bocaiúva teria intervindo e solicitado à polícia a retirada da peça e a suspensão do espetáculo, fato que se deu na sequência. Em seguida, comunicava que o periódico O Paiz teria saído em defesa de Leolinda Daltro, argumentando que os organizadores da peça estavam sendo “impatrióticos” (CUNHA DOS SANTOS, 2011, p. 42). Convém ressaltar que Quintino Bocaiúva, na época, era diretor do jornal citado. Segundo Eleutério (2008, p. 87), O Paíz foi

criado pouco antes do advento da República, em 1884, sob a direção de Quintino Bocaiuva, figurava eminente do periodismo republicano, e perdurando até o ano de 1934, obteve grande prestígio e tiragens elevadas. Nasceu republicano e durante toda a Primeira República conservou-se situacionista.

Embora não tenha recebido apoio financeiro do compadre Quintino Bocaiúva, a relação estreita que manteve com ele, membro da elite republicana fluminense, pode ser entendida como um capital simbólico que foi fundamental para que ela ocupasse novos espaços sociais.

Conforme pode ser observado no trabalho de Grigório (2012), ao colocar-se à disposição do governo para a catequese leiga7 dos indígenas, Daltro entrava em uma disputa entre os missionários católicos - que realizavam a catequese dos nativos até então - e os políticos e coronéis de Goiás que a apoiavam na empreitada.

Na ocasião de sua partida para Goiás, Leolinda Daltro não tinha um posicionamento político vinculado ao Partido Republicano, contudo, sua amizade com Quintino Bocaiúva pode ter levado os coronéis do mesmo partido da região a supor que a professora tinha tal alinhamento partidário. De certa forma, isso facilitou sua empreitada nos sertões.

A amizade que Daltro mantinha com o grupo ligado ao Partido Republicano pode ter contribuído para que ela se tornasse indesejada por parte de outros jornais. Grigório (2012) destaca que a ida de Leolinda aos sertões também despertava dúvidas acerca de seus objetivos com os indígenas. O grupo que se opunha aos políticos republicanos tinha como hipótese que sua presença poderia estar relacionada com interesses políticos específicos. Portanto, além de sofrer perseguição por parte dos missionários católicos, em razão da controvérsia em relação ao catecismo indígena, ela possivelmente enfrentou também o grupo de coronéis opositores da política local.

O Coronel José Dias é um exemplo de político local com quem Daltro manteve laços de amizade. De acordo com Grigório (2012, p. 143), “foi o principal responsável por sua chegada em segurança ao Rio de Janeiro”, quando seu filho foi acometido de varíola. Essa autora aponta que o coronel teve um papel importante nos conflitos [da região] devido a sua capacidade de arregimentar homens para sua tropa, recrutamento forçado na maioria das vezes, e o sucesso das suas investidas lhe rendeu a fama de ‘general do sertão’ surgindo no imaginário popular a crença de que ele tinha pacto com o demônio e por isso, as balas não o atingiam. (GRIGÓRIO, 2012 p. 143).

A instabilidade vivida no campo político brasileiro, haja vista que os primeiros anos republicanos foram marcados por disputas entre as elites políticas e o temor pela possibilidade da reorganização dos monarquistas, visto que eram recentes os acontecimentos da Revolta de Canudos (1896-1897), a qual foi entendida naquele contexto como um levante monarquista, trazia preocupação aos coronéis8 de Goiás. A preocupação se justificava, visto que, no contexto regional, entre 1881 e 1885, portanto, antes da Revolta de Canudos, havia se passado a chamada Primeira Revolução do Boa Vista, a qual teria sido liderada por José Dias (PALACÍN, 1990).

O ideário das elites políticas locais9 que ocupavam o poder, conforme aponta Palacín (1990), estava marcada por uma forte adesão ao republicanismo e ao anticlericalismo, e a presença de Leolinda Daltro em Goiás, com o objetivo de catequizar de forma leiga os indígenas, pode ter sido providencial aos olhos dos Bulhões, pois evitava que a catequese continuasse a ser realizada pelos missionários católicos. Dessa forma, a professora, além da simpatia dos coronéis goianos, também conseguiu apoio financeiro, escasso, é verdade, que lhe permitiu dar início ao seu projeto civilizatório.

No material organizado por Daltro (1920) na obra Da catechese dos índios, de 1920, entre a correspondência selecionada por ela para o material tem destaque uma carta que reporta a uma das viagens que ela realizou ao aldeamento dos Krahô, em Muquém, na qual, com o apoio da elite política de Goiás, pretendia reuni-los com a tribo dos Xerentes e fundar uma escola e uma oficina de ferreiro. Dizia a carta:

[…] moça ainda, bonita a valer, […] se atreve a atravessar estes inóspitos sertões, seminua, pois que, o vestido de brim grosso que mal lhe cobre o corpo, já está em farrapos, […] e uma caixa inseparável, onde leva os apetrechos para fazer flores nos povoados por onde passa. […] Perguntando-lhe se não estava arrependida, respondeu-me que sim, mas, somente pelas saudades que tinha de seus filhinhos. (DALTRO, 1920, p. 239-240).

A carta tinha a assinatura de Francisco Coelho Guimarães, datada de novembro de 1898, e conforme nota da própria Daltro na obra citada, era uma resposta à carta do Dr. Lopes Filho. O documento mencionava ainda que a professora sempre estava acompanhada “por um pretinho, seu ex-escravo” (DALTRO, 1920, p. 242). Rocha (2002) afirma que se tratava de Ezequiel Joaquim Pereira; informa ainda que este havia servido na Guerra do Paraguai e que vinha a acompanhando desde a Bahia.

Outro elemento interessante que pode ser destacado do trecho é aquele que diz respeito às ferramentas levadas por Daltro para fazer flores. Em 1900, Leolinda recolheu várias cartas que tinham como intenção comprovar sua idoneidade moral. Entre elas, encontra-se a carta do Reverendo Cook, que após apontar para as qualidades morais da professora, mencionava que um dos impedimentos para que ela desse prosseguimento ao seu intento civilizatório estava na falta de recursos, que a forçavam a angariar renda com costuras e flores de papel (DALTRO, 1920).

Ao voltar para o Rio de Janeiro em 1900, é possível supor que Leolinda Daltro estivesse esperando uma boa recepção. Contudo, o que encontrou, segundo suas palavras, foi a indiferença da imprensa e problemas relativos ao seu cargo público e seus vencimentos como professora. Em 1897, seu compadre Quintino Bocaiúva lhe havia enviado um telegrama informando que o Estado não havia prorrogado sua licença (DALTRO, 1920). A situação se reverteria apenas em 1902.

Nesse ano, um episódio envolvendo Leolinda Daltro e Lima Barreto, que então fazia parte da Federação dos Estudantes do Rio Janeiro, acabou por tornar a professora seu desafeto. Lima Barreto, em uma de suas crônicas, afirmava que Daltro teria buscado o presidente da instituição, Barreto Dantas, com o intuito de que ele e a Federação dos Estudantes intervissem junto ao Prefeito Francisco Pereira Passos a fim de que ela fosse reintegrada ao magistério municipal. Anos mais tarde, segundo o ponto de vista de Barreto, Daltro usaria do mesmo expediente para ganhar a simpatia dos poderosos, quando organizou o Grêmio Patriótico Leolinda Daltro, em 1906, composto por indígenas que haviam sido civilizados por ela. A associação comparecia a eventos patrióticos (UNIÃO..., 1906). A aliança política foi duramente criticada por Lima Barreto e posteriormente seria inspiração para sua obra Numa e a Ninfa (BARRETO, 2017),10 na qual a protagonista Florinda Seixas, que representava Leolinda, criava e presidia a “Sociedade Comemorativa do Falecimento do Constâncio”, que tinha como objetivos o ensino do guarani e as aclamações às pessoas de destaque:

Entre nós, muita gente tem mania de caboclo e havia na cidade uma senhora idosa, D. Florinda Seixas, que cultivava essa mania com muito carinho e constância. Desde anos que a sua casa vivia cheia deles; e, ao surgir a candidatura Bentes, D. Florinda aderiu a ela com os seus caboclos hirsutos. Acontecia também que Bentes tinha um tio, já falecido, mais ou menos notável; e D. Florinda muito naturalmente juntou a sua mania indígena à admiração que sempre professou pela memória do tio de Bentes, o almirante Constâncio. Fundou, consequentemente, uma sociedade - Sociedade Comemorativa do Falecimento do Almirante Constâncio. O principal fim da sociedade dizia-lhe o nome; mas tinha outros, entre os quais, o do ensino do guarani e o das aclamações às pessoas de destaque. (BARRETO, 2017, p. 103).

O desafeto de Lima Barreto com Leolinda Daltro permaneceu em pauta nos escritos posteriores do autor. O fato é que ele não foi o único a tecer críticas a ela quando de seu retorno de Goiás.

No jornal Gazeta de Notícias, em uma matéria intitulada “Os pynagés: Deposição do capitão (cárcere privado)”, de 17 de setembro de 1902, um articulista contava de maneira jocosa que um grupo de nove índios “chefiados por um capitão, foram aguardar oportunidade de falar a S. Ex. o Sr. presidente da República a quem chamam Papai Grande”11 (OS PYNAGÉS..., 1902, p. 2). O artigo informava ainda que o grupo ficou recolhido na repartição da polícia. No entanto, Daltro teria ido à delegacia e convencido o chefe de polícia que os indígenas haviam sido seus alunos em Goiás e que poderiam aguardar em sua casa, em Cascadura, enquanto o delegado providenciava as ferramentas, roupas e armas que haviam sido anteriormente prometidas a eles pelo governo.

O articulista se dizia perplexo com a ousadia da professora Daltro, que teria solicitado ao chefe de polícia que custeasse os gastos que ela teria com a hospedagem do grupo em questão (OS PYNAGÉS..., 1902). Após alguns dias, o capitão dos indígenas teria ido até a repartição da delegacia solicitar ao chefe de polícia que o ajudasse a tirar o grupo que estava lhe acompanhando, pois se recusavam a partir para Goiás, apesar de terem recebido roupas, armas e ferramentas. O capitão Casimiro de Moura, ajudante do chefe de polícia, foi enviado à casa de Daltro. Contudo, ao chegar a Cascadura, foi “recebido pela professora Daltro [e] ouviu desta a declaração categórica de que o pinagés não sairiam da sua casa e que a polícia seria apedrejada se tentasse retirá-los” (OS PYNAGÉS..., 1902, p. 2). Teria o capitão então a alcunhado de “cascadura”.

Nessa mesma data, o Jornal do Brasil publicou uma reportagem contando uma versão muito semelhante da narrativa publicada na Gazeta de Notícias (CONSELHO ..., 1902), contudo, afirmava que a professora teria ido até a redação do jornal contar o ocorrido do seu ponto de vista e solicitar a ajuda da imprensa para que não fosse permitido que o grupo de indígenas voltasse para o aldeamento, pois encontravam-se com estado de saúde muito delicado e se voltassem ao departamento de polícia para dali seguir a São Paulo sofreriam maus tratos e teriam que devolver as roupas que haviam recebido.

O jornal informava que Leolinda Daltro solicitou a publicação da nota com a intenção de que a imprensa fizesse uma campanha para arrecadar fundos, talvez inspirada pela experiência ocorrida em São Paulo, pois o governo havia se recusado a arcar com as despesas, para que ela pudesse tratar da saúde dos indígenas de forma que depois de curados, ela pudesse acompanhar o grupo até Goiás com a intenção de prosseguir no seu projeto de catequese leiga (OS INDÍOS..., 1902). No mês seguinte, o jornal O Paiz noticia o falecimento de dois indígenas do grupo que chegou em setembro e que foram acometidos de varíola, e em outubro de 1902 continuavam abrigados na casa de Daltro (NECROLOGIA, 1902).12

Os indígenas que resistiram à varíola passaram a compor o Grêmio Patriótico Leolinda Daltro e acompanhavam a professora em passeatas pela cidade, cerimônias cívicas como o Dia da América, Proclamação da República, Dia da Bandeira e recepções a autoridades como Rui Barbosa, Joaquim Nabuco e Rondon.

Em 1906, uma matéria encontrada no jornal Correio da Manhã (DUARTE, 1906) destacava as ações que Leolinda Daltro vinha desempenhando junto ao grupo de indígenas que estava abrigando em sua casa desde 1902, quando de sua chegada. De acordo com o artigo, a professora vinha realizando um trabalho educativo com os mesmos que, além da mudança de aparência, conforme pode-se perceber pela comparação entre as Figuras 1 e 2,13 também estava aplicando sua catequese, ensinando o grupo a leitura e a escrita, elementos da geografia e da história nacional e rudimentos de francês (DUARTE, 1906).

Fonte: Daltro (1920, p. 132.).

Figura 2 Fotografia de Leolinda Daltro com seus educandos indígenas 

O ano foi marcado também pela primeira solicitação de aposentadoria (jubilação) de Leolinda Daltro de seu cargo de professora, com a intenção de seguir novamente para Goiás, junto com o grupo que estava sob seus cuidados. A matéria citada anteriormente aponta para as intenções da professora com o grupo de indígenas. Conforme mencionava o articulista: “A única ambição de todos é - obtida a jubilação de mamãe grande, como eles chamam a D. Daltro - partirem com ela para o torrão natal e lá, como mestres e catequistas […] darem a luz do saber aos seus irmãos.” (DUARTE, 1906).

Outra matéria de 1906 destacava a participação de Leolinda no Congresso de Instrução no Rio de Janeiro, durante o qual ela teria feito um protesto contra o procedimento do Congresso, que deixou de incluir no seu programa a educação dos índios. Ela foi contestada pelo Dr. Costa Pinto e outros participantes do evento, que defendiam a catequese feita pelos padres até então.

O projeto de Daltro, escrito para o I Congresso Brasileiro de Geografia, em 1909, intitulado “Memória”, e que serviria ao propósito da criação de um órgão indígena governamental para atendimento dos nativos, propunha que fossem delimitadas áreas que ela chamava de “Território Autóctone”, e que os indígenas fossem incorporados à sociedade “civilizada”. No bojo de sua proposta de educação estava, segundo ela, a racionalidade

[...] um processo laical, científico, industrial e emancipador para a civilização dos silvícolas brasileiros, que seja reconhecida, enfim a necessidade de facilitar-lhes os meios para evoluir sem tolher-lhes a liberdade e os instintos nativos, mas organizando núcleos e escolas agrícolas e industriais onde possam cultivar seus dotes e aptidões e desenvolver suas melhores tendências. (DALTRO, 1920, p. 547-550).

É importante salientar que, durante o período em que Leolinda Daltro militou no campo da educação dos indígenas, nos debates acerca da política indigenista a ser adotada pelo Estado brasileiro, as propostas oscilavam entre a exterminação completa dos “bugios” e sua civilização - incorporação à cultura branca - leiga (laica) ou cristã.

Abreu (2007) afirma que o ensino preconizado pela professora Daltro incluía arte, literatura e ciências, além da alfabetização em língua portuguesa, também devendo ser ensinados aos indígenas rudimentos da língua francesa. Na educação dos homens eram ensinadas profissões como carpintaria e mecânica. Já para as índias, além do trabalho doméstico, eram contemplados saberes ligados a ofícios como costura e artesanato, que poderiam servir como fontes de renda. Como citado anteriormente, na primeira viagem de Daltro aos sertões de Goiás, ela tinha como intenção fundar uma escola (de ensino primário) e uma oficina de ferreiro.

No projeto de Daltro esses saberes e práticas estimulariam nos indígenas o desejo pelo conforto e o gosto pela estética, sendo que a educação laica evitaria “[…] o sectarismo religioso, a superstição e o fanatismo” (DALTRO, 1920, p. 132). De acordo com Veiga (2003, p. 406), “a possibilidade de constituição de um sujeito autônomo como matriz da produção de civilidade não se realizaria sem educação estética”.

Nas fotografias publicadas em sua obra, no cotejo com a Figura 1 apresentada anteriormente, é possível perceber uma tentativa de demonstrar as alterações ocorridas nos indígenas a partir de sua educação. As alterações podem ser observadas pela postura e trajes do grupo que, afastados dos costumes primitivos e inseridos no contexto considerado civilizado, se tornavam aptos para exercer uma profissão, e podiam ser considerados como “cidadãos úteis” à sociedade.

Observa-se ainda a posição central que ocupa Leolinda Daltro na fotografia, o que pode estar relacionado com a sua autoridade como professora. Destacam-se também na imagem, por parte dos indígenas, elementos que podem representar sua resistência ao processo de catequese, como a manutenção dos cabelos longos e dos nomes indígenas, o que seria motivo de ironia, como pode-se observar na crônica de autor com pseudônimo J. Bocó que narra a história de um indígena que, diferente dos educandos de Daltro, se dizia livre:

Sou índio sim, sinhó; mas índio livre e não desses que vem consignados à professora Daltro, para passearem as suas cabeleiras e os seus chapéus-coco pelas redações e pelas avenidas para decorarem discursos pífíos e os dispararem nas bochechas do presidente da República e do chefe de polícia. (BOCÓ, 1909, p. 15).

Outro resultado, esperado pelo projeto educativo da intelectual, além das mudanças aparentes, estava relacionado com a constituição dos índios em “cidadãos da República, investindo-os nos seus direitos civis e políticos” (CUNHA DOS SANTOS, 2016, p. 34). De sua perspectiva, a participação política dos indígenas por meio do voto poderia significar, além de um exercício de cidadania, o reconhecimento de sua igualdade civil diante da população branca votante. Em 1906, os índios letrados de D. Leolinda Daltro tiveram sua inscrição para a eleição de deputados aceita e puderam exercer o seu direito ao voto. Talvez, os primeiros índios a votar na história do Brasil.

De acordo com Cunha dos Santos (2014, p. 143), a viagem de Daltro pelos sertões teria sido

[…] realizada com o propósito de catequizar as diversas ‘tribus’, ela efetivamente se deparou com o desconhecido. Seu contato com os índios permitiu que ela os percebesse como indivíduos que não estavam agregados à lógica do mundo ocidental cristão. Isto se tornou ainda mais evidente quando constatou neles a capacidade de mudar as estratégias defensivas e ofensivas à medida que os não índios avançavam para dentro de seus territórios naturais. Ou, então, na habilidade de reorganização social face às experiências de sucessivos aldeamentos.

Ou seja, é possível que as ações de Leolinda Daltro e suas estratégias dentro dos campos político e educacional, posteriores à sua viagem a Goiás, tenham de alguma maneira se inspirado na sua experiência com os indígenas.

O indígena-herói na contramão do imigrantismo: o caso do Paraná

No Paraná, a questão indigenista foi trazida à tona na revista O Cenáculo, em 1896. Dario Vellozo, um dos organizadores da dita revista, era proprietário de uma chácara localizada na região do rio Negro, no sul do Paraná. Ali, desde 1891, ocorria um conflito entre imigrantes e nativos pela disputa das terras da região (PINTO, 2007).

Possivelmente, Vellozo fora um dos primeiros paranaenses a chamar a atenção pública local para a questão indigenista e se posicionou ao lado dos nativos. Essa postura ganha evidência entre os pares de Vellozo e culmina na publicação de um número de O Cenáculo destinado à causa indigenista ou, como foi chamada na época, à “causa aborígene” (O CENÁCULO, 1896).

O grupo de indígenas que viviam nas margens do Rio Negro pertencia à etnia Xokleng, que vivia da caça, da pesca e da coleta de víveres como raízes silvestres e pinhão. A parcela do território que ocupavam não era bem definida, já que as rotas que eles percorriam variavam conforme a busca por alimentos.

Nas mesmas terras habitadas pelos Xokleng, em 1891 ocorreu a fundação da colônia Lucena, pelo Governo Federal. Nessa colônia, fixaramse imigrantes europeus, sobretudo poloneses, russos e alemães. A partir daí, uma acirrada disputa territorial foi travada entre estrangeiros e nativos, embate que impactou na imprensa local e colocou em xeque o que se tinha por certo acerca das benesses da imigração europeia.

Os imigrantes da colônia Lucena compunham o grupo de estrangeiros que vieram para o Brasil entre os anos de 1850 e 1918, aproximadamente. Conforme Edgar Lamb (1999), decretos governamentais lhes concediam terras de modo a auxiliar seu estabelecimento no território. Como pano de fundo dessas concessões, havia um amplo projeto imigrantista delineado pelas autoridades locais para resolver a questão do suprimento de gêneros alimentícios para o estado. O projeto também objetivava a ocupação das terras de forma a garantir a posse definitiva do território político paranaense, constantemente ameaçado por disputas fronteiriças.

Ideias entusiastas da imigração fundamentavam esse projeto, atribuindo ao imigrante livre, branco e trabalhador a missão de “ensinar o progresso” ao povo do Brasil. Em tese, “o contato com o imigrante europeu deveria servir à eliminação das máculas da sociedade brasileira e levar o elemento nacional a produzir” (NADALIN, 2001, p. 74). Acompanhando esse projeto estava o intento de promover um branqueamento racial da população, “buscando a integração na civilidade e no progresso ocidental pela via racial” (NADALIN, 2001, p. 75).

No entanto, os resultados dessa política imigrantista estiveram aquém do esperado em razão, sobretudo, da dificuldade de adaptação de alguns grupos à vida local (NADALIN, 2001, p. 84). A falta de remédios e alimentos e a precariedade das habitações dos imigrantes foram algumas das dificuldades enfrentadas. No entanto, no caso da colônia Lucena, um dos maiores empecilhos enfrentados pelos estrangeiros teria sido o embate contra os indígenas. Os Xokleng eram considerados “mais arredios e selvagens”, portanto, menos capturáveis e aculturáveis (VIEIRA FILHO; WEISSHEIMER, 2007, p. 108). Na mesma proporção, eram considerados incômodos por constituírem uma grande resistência ao “progresso” pretendido para a região pelas autoridades públicas.

Se, houve um discurso que defendeu o imigrante como um fator do progresso nacional do ponto de vista econômico e social, tal discurso não pode ser considerado uníssono. Em oposição a ele, surgiram diferentes vozes que ora apontaram para uma nova concepção de imigrante, ora clamaram pela defesa dos nativos do Paraná.

O estudo de Robert Lamb (1999) coloca em evidência tais vozes, as quais denunciavam os problemas sociais gerados pela imigração. Houve grupos de imigrantes europeus responsáveis por desencadear conflitos em Curitiba e regiões vizinhas. Por essa razão, tais grupos passaram a ser vistos como “propensos a envolver-se em manifestações perigosas à ordem pública, e, consequentemente, representavam [...], também uma ameaça ao processo civilizador” (LAMB, 1999, p. 36).

Em 1892, na Revista do Clube Curitibano, é possível encontrar essa perspectiva negativa do imigrante europeu em uma passagem de Dario Vellozo. Na época, o escritor mostravase preocupado com a possibilidade de ondas imigrantistas de europeus tomarem conta do território nacional. E afirma que:

[...] povos da Europa [...] dilacerados pela necessidade e oprimidos pelo descer das geleiras do Pólo septentrional, sem abrigo, sem tecto, feridos pelo excesso de população, abandonarão a terra mãe, indo estabelecerem-se em alguma parte do mundo, onde encontrem mais frágil resistência [...] (VELLOZO, 1892, p. 4).

Quatro anos depois, Dario Vellozo (1896) apresenta a continuação dessa tese em um artigo intitulado Pelos índios!, na revista O Cenáculo. Nele, afirma que o povo brasileiro poderia sofrer uma “degenerescência” racial em razão das imigrações de europeus. Para esse escritor:

O povo Brazileiro, cujos caracteres ethnicos [...] ainda não aprezentam o tom definitivo e geral que dá às collectividades autonomia e força, e soffrem actualmente degenerescência relativa, com os novos elementos que para elles estão concorrendo, nos Estados do Sul. (VELLOZO, 1896, p. 146).

A tese de que o povo brasileiro resulta em um processo incompleto de miscigenação das três raças - indígena, africana e europeia - não fora originalmente elaborada por Vellozo. Foi trazida à tona, pela primeira vez, por Sílvio Romero, ao se dedicar sobre a formação étnica do povo brasileiro (GUERRA, 2010; RABELLO, 1967). Esse escritor, que conquistou parte dos círculos letrados das capitais brasileiras oitocentista, chamou a atenção para a predominância do mestiço na formação da população brasileira, que ainda “não é um grupo étnico definitivo; porque é um resultado pouco determinado de três raças diversas” (ROMERO, 1949, p. 84).

Ao pensar sobre o futuro do povo brasileiro, Romero formula uma teoria inspirada em pressupostos cientificistas e evolucionistas: para ele, com a miscigenação da população, a raça branca prevaleceria sobre a africana e a indígena (GUERRA, 2010). E, é a partir das ideias de Romero que o paranaense Dario Vellozo encontra inspiração para tecer uma série de previsões sobre os perigos da imigração, da mestiçagem e da degeneração da raça brasileira. Conforme salienta Vellozo (1896, p. 2):

Penso com Sylvio Romero [...] o grande patriota republicano: ‘O Brazil possue uma certa unidade ethnica que lhe tem garantido a existência até hoje. Mas esta unidade não deve ser perturbada com a ingestão systhematica de elementos extrangeiros [...]. Depois dos assumptos políticos se seguem os sociaes e entre estes avulta o da imigração e colonização extrangeira, que a nosso ver, é mais um temeroso problema social do que econômico.’

É de se constatar até aqui que os discursos do grupo de O Cenáculo, no contexto linguístico em questão, assumem um caráter fortemente anti-imigrantista e concebem os estrangeiros como uma ameaça ao desenvolvimento do Brasil, especialmente no âmbito social. Essa perspectiva se acentua a partir de 1891 e ganha maior visibilidade pública a partir de 1896, com a já referida publicação de O Cenáculo sobre a causa indígena.

Outra constatação importante é a proximidade do pensamento de Vellozo às ideias de Silvio Romero no tocante à questão imigrantista e étnico-racial. Inspirado no autor pernambucano, Dario defende a ideia de que deveria haver uma “colonização integral”, ou seja, aquela que organizaria os imigrantes em diferentes pontos do território brasileiro para que se miscigenassem com as populações nacionais, “de modo que não ficassem isolados e localizados apenas na região sul do país” (VELLOZO, 1896, p. 5).

Essa preocupação racialista já era evidente desde 1892, em algumas conferências e artigos na Revista do Clube Curitibano. No entanto, a partir de 1896, a discussão torna-se intensa e segue acompanhada da defesa dos nativos do rio Negro e dos demais grupos indígenas existentes no território nacional. A edição de maio de 1896, em seu editorial, chama a atenção de seus leitores para pensadores nacionais que teriam se dedicado à causa aborígene. Entre eles estão Silveira Netto, Silvio Romero, Araripe Júnior, entre outros.

Nesse volume, Dario Vellozo menciona que:

[...] é necessário não alienarmos os direitos e a felicidade de nosso povo, na lizongeira e fallaz esperança de conquistarmos para o Brazil, em breve espaço de tempo, progressos fictícios que redundarão mais tarde no completo aniquilamento de nossa vitalidade ethnica. O Cenáculo está convencido, pelo estudo annalytico e comparativo dos factos históricos, de que é urgente e imprescindível aproveitar o elemento indígena em nossa civilização. (VELLOZO, 1896, p. 5).

“Vitalidade étnica”, nesse contexto, diz respeito ao ato de se trazer a etnia nacional à vida. Para aqueles pensadores, ela permanecia adormecida, ou não totalmente formulada: a união das três raças ainda não havia ocorrido por completo. Quais seriam as razões que impediam o despertar dessa nacionalidade?

Conforme se depreende dos discursos em análise, uma dessas razões seria o fato de o indígena viver em isolamento. No editorial do número de O Cenáculo dedicado à causa indígena, menciona-se que era chegada a hora de “lançar os olhos para as nossas florestas e procurar trazer para a civilização os preciosos destroços de altiva e sobranceira raça” (O CENÁCULO, 1896, p. 2). Isolado em “florestas”, o elemento indígena figurava, para aqueles escritores, como “um animal selvagem [...] uma raça selvagem, mas aperfeiçoável, uma gente abastardada, dissimulada, odiando a civilização” (PERNETTA, 1896, p. 135).

Segundo Pernetta e outros escritores da revista, os indígenas odiavam a civilização em razão da “falsa catequese” empregada contra eles pelos “falsos civilizadores”, ou seja, os europeus a colonizar as terras brasileiras. No mesmo número da revista, encontramos a expressão “catequese civil” como sinônimo de “instrução dos indígenas” (O CENÁCULO, 1896, p. 136). Desse modo, para trazer os indígenas para a civilização, conforme os discursos de época, fazia-se necessária sua instrução, que seria um processo de aculturação, fim a que se presta a catequese. Ainda sobre os indígenas, Dario Vellozo (1896, p. 164) complementa que se fazia necessário “manter-lhes a área de terra que habitam; protegel-os; defendel-os; aproveital-os, trazendo-os a nossos centros populosos, para que cohabitem comnosco, para que se imiscuam em a populações das cidades. Além de instruí-los, a miscigenação com “a população das cidades” brasileiras também deveria ser incentivada, novamente denotando o aspecto eugênico do ideário do grupo.

A instrução das massas fazia parte do ideário pedagógico positivista, de que o grupo de O Cenáculo era credor. Almejava para a população do Brasil, como um todo, uma educação ampla e generalizada, fosse para o lavrador, o indígena ou o operário. Para eles, a educação das massas seria capaz de acelerar a evolução da sociedade brasileira rumo a um progresso econômico-social. Essa educação seria voltada para o bem comum, para a harmonia coletiva e a fraternidade humana.14 Esse veio positivista pode ser encontrado em algumas passagens mais utópicas que procuram descrever, de um modo idealizado, o processo de miscigenação dos indígenas.

O lado particular do Brazil é a civilização aborígene, a sua educação civil, a irmanação da raça branca ou mestiça á raça vermelha pela convivência e pelo cruzamento, a agremiação dos habitantes das magestosas florestas do novo mundo em torno do moderno ideal de perfectibilidade humana. (NETTO, 1896, p. 134).

Seria possível mesmo atingir a “perfectibilidade humana” com a miscigenação? Que medidas práticas seriam tomadas para isso?

Pelo que se depreende das análises, os escritores de O Cenáculo silenciam no tocante a políticas e estratégias sociais que poderiam ser tomadas para a instrução da população indígena como modo de civilizá-la. Tampouco há menções de como garantir a pretensa perfectibilidade racial no Brasil. Há apenas uma passagem em que Dario Vellozo (1896, p. 164) afirma que o “Cenáculo confia na alta competência das autoridades constituídas” para que medidas pudessem ser tomadas em nome da educação dos nativos.

Se a unidade e integridade étnica do povo brasileiro encontravam-se ameaçadas com as ondas de imigrantes, a figura dos indígenas que habitavam o território nacional passou a ser defendida como representante do processo oposto, constituindo-se na peça-chave para a regeneração étnica nacional. É desse modo que o discurso a respeito da defesa da “causa aborígene” surge em O Cenáculo, concebendo o elemento “autóctone” como a representação da brasilidade e da nacionalidade em oposição ao cosmopolitismo do imigrante.

A respeito do contexto de disputa de terras na região do Rio Negro, os escritores de O Cenáculo consideravam o elemento autóctone o verdadeiro “dono” daquelas terras, o que fazia dos imigrantes os invasores que ameaçavam a integridade nacional, tanto do ponto de vista étnico-racial como geográfico. Os escritores consideravam legítima a defesa dos indígenas por seu território, conduta que pensavam ser resultante do “amor instinctivo do solo, o que sempre levou o selvagem brazileiro ao campo da lucta, onde se batia com estraordinario heroísmo” (O CENÁCULO, 1896, p. 135).

Nos discursos de O Cenáculo encontramos uma visão bastante próxima ao indígena da vertente literária conhecida como romântica nativista. São desse contexto a obra de Gonçalves Dias em O Brasil e a Oceania (1867) e de Domingos de Magalhães em Os indígenas do Brasil perante a história (1860), as quais chegam a elaborar uma visão de angelização do indígena por um processo, ao mesmo tempo, literário e político. (RABELLO, 1967). Era também o tempo da concepção da “bondade natural” do selvagem e dos excessos nacionalistas do romantismo. E Dario Vellozo era considerado um disseminador das obras de “Casemiro de Abreu, Castro Alves, Fagundes Varella, Alvares de Azevedo, Gonçalves Dias, Thomaz Ribeiro e muitos outros bons poetas e prosadores” (LEÃO, 1910, p. 159).

Para além de Dario Vellozo, essa concepção romântica do indígena era a marca do grupo de O Cenáculo de um modo geral. O indígena era concebido como um herói, expressão máxima da liberdade e, conforme preconizou Júlio Pernetta (1896, p. 135): “Por mais que alguns escriptores queiram fazer do sympathico e denodado Indio, um animal selvagem, elle se nos aprezenta, atravez das paginas da Historia, como um protesto sublime em prol da liberdade, da autonomia das suas florestas.”

O indígena, para os escritores em análise, era a personificação da coragem, da honra, do instinto, da vitalidade e, sobretudo, da força.

São várias as passagens em que se alude não apenas ao passado místico e lendário dos indígenas brasileiros - mas entendiam que esse passado representava a verdadeira história nacional. O indígena era concebido como portador de uma tradição que não dizia respeito apenas à sua cultura, mas à história da nação brasileira. Assim, além de assegurar a integridade étnica, o indígena era considerado importante para aquele contexto uma vez que era concebido como guardião das tradições ancestrais do país.

Conclusão

Cabe a nós, sobretudo, analisar o significado desses discursos para além do que literalmente pretenderam dizer. Eram uma reação à modernidade que se apresentava cosmopolita, imperialista e bélica. Com a imigração, acreditava-se que a unidade e integridade étnica do povo brasileiro encontrava-se ameaçada, levando o país a um cosmopolitismo e à perda de sua identidade, suas raízes e tradições. Nesse contexto, o indígena passa a se constituir na representação da brasilidade e torna-se o representante romântico do processo oposto à “modernidade cosmopolita”, constituindo-se peça-chave para a regeneração étnica nacional.

Além do fato de garantir a unidade étnica do povo brasileiro, e de salvaguardar as tradições e história nacionais, o indígena também constituía a força e o poderio de defesa do território nacional contra os invasores.

Para que esse processo fosse engendrado, Leonilda Daltro e os escritores de O Cenáculo defenderam a educação dos indígenas, para que pudessem ser mais facilmente miscigenados e aculturados, em consonância com as teorias eugênicas em voga na época.

Em um primeiro momento, poderíamos supor o caráter maniqueísta desse projeto social ainda em seu esboço. Devemos ter em mente, porém, que os intelectuais estudados procuraram encontrar uma solução para os problemas étnicos e sociais enfrentados pela população do Brasil, tendo como recursos as ferramentas teóricas disponíveis no contexto discursivo da época.

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1Essa imagem (não datada) aparece no periódico citado (1909) em meia página e, abaixo dela, aparece a fotografia de Leolinda Daltro paramentada com o mesmo grupo de indígenas. Pressupõem-se que o registro seja de 1902, já que a legenda indica que o grupo fotografado seria o mesmo que foi acolhido na residência de Daltro. O mesmo grupo assume ares “civilizados” ao lado da escritora, em 1909, como se verá na sequência dessa narrativa.

2Legenda do original: Os índios xerentes, quando em viagem de Goiás para a capital da República, onde foram gentilmente acolhidos pela professora Daltro que lhes aperfeiçoou os conhecimentos da língua portuguesa e tem andado com eles de Herodes para Pilatos, além de obter para os seus catecúmenos a proteção que eles pedem contra os exploradores que, em nome do governo, lhes querem surrupiar as terras.

3Optou-se por manter o título do artigo tal como aparecia no original (Cherentes) e atualizar a escrita no corpo do texto.

4Horace Lane nasceu em Readfeld, no Estado do Maine, nos Estados Unidos, em 29 de julho de 1837. Segundo Silva (2015), embarcou para o Brasil em 1858. Assumiu o cargo de diretor da Escola Americana de São Paulo.

5Conforme Cunha dos Santos (2014), em entrevista cedida a ela para sua pesquisa, em 2011, o neto de Leolinda Daltro afirmou que o seu segundo marido, Appolonio de Castillo Daltro, era funcionário da Província da Bahia, em Salvador, e teria sido transferido para o Rio de Janeiro em 1887. Daltro teria o acompanhado com os filhos.

6Quintino Antônio Ferreira de Sousa era jornalista, viveu em São Paulo, onde iniciou sua vida profissional. No período, ao trabalhar como articulista no jornal Acaiaba (1851), adotou o sobrenome Bocaiúva com a intenção de ratificar sua adesão ao Nativismo. Republicano, voltou ao Rio de Janeiro onde foi colaborador dos jornais Diário do Rio de Janeiro, Correio Mercantil e a A República. Em 1874, fundou o periódico O Globo, que cessou em 1883, quando foi substituído pelo jornal O País. A figura de Quintino Bocaiúva e sua campanha a favor da República nesse periódico foram fundamentais para a consolidação do processo que levou à queda da Monarquia e à Proclamação da República. Ele teve intensa participação no jogo político durante o Governo Provisório de Marechal Deodoro da Fonseca, no qual assumiu o cargo de Ministro das Relações Exteriores. Deixou o cargo em 1891, quando passou a exercer o mandato de Senador pelo Estado do Rio de Janeiro, durante a Assembleia Nacional Constituinte, do qual sairia em 1900, para assumir o governo do Rio de Janeiro (SODRÉ, 1998).

7Tratava-se de uma política de incorporação dos indígenas à sociedade brasileira por meio de sua educação sem os requisitos da religiosidade.

8“O coronelismo pode ser definido como um complexo sistema de negociação entre esses chefes locais e os governadores dos estados, e destes com o presidente da República. O coronel seria um dos elementos formadores da estrutura oligárquica tradicional baseada em poderes personalizados e nucleados, geralmente, nas grandes fazendas e latifúndios brasileiros. O coronel hipotecava seu apoio ao governo estadual na forma de votos e, em troca, o governo garantia o poder do coronel sobre seus dependentes e rivais, especialmente através da cessão de cargos públicos que iam do delegado de polícia à professora primária. E desse modo se estabilizava a República brasileira no início do século XX, na base de muita troca, empréstimos, favoritismos, negociações e repressão.” (SCHARCZ; STARLING, 2015, p. 332).

99 No período em que Leolinda Daltro realizou sua viagem a Goiás, a oligarquia que se revezava no poder na região era a família Bulhões. De acordo com Moraes (1974), os homens da família Bulhões realizaram sua formação superior em São Paulo e se envolveram nos movimentos abolicionista e republicano. Ascenderam ao poder em Goiás no final do século XIX e mantiveram-se como situação durante toda a Primeira República.

10Conforme aponta a nota de Antonio Arnoni Prado na obra Numa e a Ninfa (BARRETO, 2017, p. 13): “O conto ‘Numa e a Ninfa’ foi publicado em 3 de junho de 1911 pela Gazeta da Tarde do Rio de Janeiro. ‘As aventuras do Dr. Bogoloff’, publicação semanal, começaram a aparecer em fins de 1912. Lima Barreto desenvolveu posteriormente a novela, com o mesmo título (Numa e a Ninfa), que foi publicada em folhetins diários, pelo jornal carioca A Noite, de 15 de março a 26 de julho de 1915. O autor aproveitou, na confecção da novela, trechos das duas publicações anteriores, o que explica diversas repetições e algumas alterações de nomes de personagens.”

11De acordo com Cunha dos Santos (2014), o termo era utilizado para nomear as pessoas não índias que eles consideravam importantes.

12Cabe salientar que esse início do século foi marcado por inúmeras epidemias, entre elas a febre amarela e a varíola. Tal condição levou o governo a ações de saúde pública, tais como a legislação que tornou a vacinação contra essas doenças obrigatória. A condição de vida de boa parte da população fluminense, somada às reformas urbanas que retiraram dos grandes centros uma leva de pessoas das classes baixas e à novidade da vacina, levou o Rio de Janeiro a uma revolta popular contra a vacinação obrigatória em 1904 (SCHWARCZ; STARLING, 2015).

13A mesma matéria informava que os indígenas abrigados na casa da professora eram de tribos diferentes do Paraná e de Goiás, ribeirinhas dos rios Cruzes e Jacarezinho (Paraná) e Araguaia e Tocantins (Goiás), das tribos Guaranis, Xerentes e Caraós (DUARTE, 1906).

14 Essa questão foi abordada de modo mais aprofundado em Marach (2007).

Recebido: 15 de Abril de 2022; Aceito: 06 de Julho de 2022

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