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Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade

versión impresa ISSN 0104-7043versión On-line ISSN 2358-0194

Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade vol.31 no.67 Salvador jul./set 2022  Epub 13-Ene-2023

https://doi.org/10.21879/faeeba2358-0194.2022.v31.n67.p163-176 

Artigos

REFLEXÕES SOBRE OS DIREITOS INDÍGENAS NO BRASIL: BREVE HISTÓRICO E A LEGISLAÇÃO ATUAL

REFLEXIONES SOBRE LOS DERECHOS INDÍGENAS EN BRASIL: BREVE HISTORIA Y LA LEGISLACIÓN ACTUAL

Maria Veirislene Lavor Sousa*  Universidade de Salamanca
http://orcid.org/0000-0002-2747-3161

*Doutoranda em Ciências Sociais pela Universidade de Salamanca, Espanha. Mestre em Gestão de Sistemas de E-Learning pela Universidade Nova de Lisboa (UNL). Salamanca, Espanha. E-mail: veirislene@gmail.com


RESUMO

Este artigo tem como objetivo promover uma reflexão e discussão sobre os direitos indígenas, seu histórico, os principais marcos legais nacionais e internacionais e as referidas instituições responsáveis no Brasil, buscando dar mais visibilidade aos debates atuais no cenário brasileiro sobre a temática proposta e promover conhecimento coletivo. A metodologia se constitui sobre pesquisas bibliográfica e documental, as quais foram iniciadas durante o trabalho no curso do Programa de Doutorado em Ciências Sociais vivenciado na Universidade de Salamanca, na Espanha, sobre o qual se apresenta aqui este breve recorte da tese. A pesquisa documental iniciou-se sobre a legislação brasileira vigente e percorreu-se também sobre os principais documentos internacionais. Revisitou-se autores como Cunha e Barbosa (2018), Viveiros de Castro (2006), Krenak (2019), Terena (2021), Santamaría (2015), dentre outros. A análise dos dados foi trabalhada e maturada durante os anos de 2020 e 2021, e os resultados obtidos por meio da pesquisa, leitura e reflexão crítica dos vários documentos revisitados que compõem a extensa legislação dos direitos dos povos originários, na busca por conhecimentos sobre a temática, dando destaque aos principais marcos legais sobre a causa, o histórico e demais questões ligadas ao tema proposto. As considerações revelam os grandes desafios impostos numa luta constante desses povos por seus direitos. Mesmo com as conquistas alcançadas desde a colonização, estes direitos estão em constante ataque, sob vários processos de violações pelo descumprimento da legislação vigente em seus variados aspectos culturais, ambientais, territoriais, de saúde e educação.

Palavras-chave: povos indígenas; direitos indígenas; legislação dos direitos indígenas; movimento social indígena; resistência indígena

RESUMEN

Este artículo tiene como objetivo promover una reflexión y discusión sobre los derechos indígenas, su historia, los principales marcos legales nacionales e internacionales y las instituciones responsables antes mencionadas en Brasil, buscando dar más visibilidad a los debates actuales en el escenario brasileño sobre el tema propuesto y para promover el conocimiento colectivo. La metodología se basa en una investigación bibliográfica y documental, que se iniciaron durante el curso del Programa de Doctorado en Ciencias Sociales vivido en la Universidad de Salamanca, en España, sobre el cual se presenta este breve extracto de la tesis. La investigación documental comenzó sobre la legislación brasileña vigente y también abarcó los principales documentos internacionales. Se revisaron autores como Cunha y Barbosa (2018), Viveiros de Castro (2006), Krenak (2019), Terena (2021), Santamaría (2015), entre otros. Se trabajó y maduró el análisis de datos durante los años 2020 al 2021 y los resultados se obtuvieron a través de la investigación, lectura y reflexión crítica de los diversos documentos repasados que conforman la extensa legislación sobre los derechos de los pueblos indígenas, en la búsqueda del conocimiento sobre el tema, destacando los principales marcos legales sobre la causa, la historia y otras cuestiones relacionadas con el tema propuesto. Las consideraciones revelan los grandes desafíos impuestos en una lucha constante de estos pueblos por sus derechos, a pesar de las conquistas desde la colonización, estos derechos se encuentran en constante ataque bajo varios procesos de vulneración por el incumplimiento de la legislación vigente en sus diversos aspectos culturales, ambientales, territorial, salud y educación.

Palabras clave: pueblos indígenas; derechos indígenas; legislación de los derechos indígenas; movimiento social indígena; resistencia indígena

ABSTRACT

This paper aims to promote a reflection and discussion about the Indigenous rights, their history, the main national and international legal landmarks, and the responsible institutions in Brazil, as a way of giving more visibility to the current debates in Brazilian scenario about this theme and to promote a collective knowledge. The methodology is on bibliographic and documentary research, which were started with the work during PhD in Social Science at the University of Salamanca in Spain about which we present this short piece of the thesis. The documentary research started about the current Brazilian legislation, and also went through the main international documents. It was revisited authors like Cunha and Barbosa (2018), Viveiros de Castro (2006), Krenak (2019), Terena (2021), Santamaría (2015), among others. The data analysis was worked and matured during the years 2020 and 2021, and the results were obtained through the research, the reading and the critical reflection of several documents revisited that compose the extensive legislation of the Indigenous peoples rights, in the search for knowledge about the theme giving emphasis to the main legal landmarks about the cause, the history and other issues related to the proposed theme. The considerations reveal the big challenges imposed on a constant struggle faced by these peoples to get their rights. Even with the achievements got since colonization, those rights are in constant attack, under several processes of violation by the noncompliance of the current legislation in their several cultural, environmental, territorial, healthy and education aspects.

Keywords: Indigenous peoples; Indigenous rights; Indigenous rights legislation; Indigenous social movement; Indigenous resistance

Introdução

O presente artigo tem como objetivo discutir e refletir sobre os direitos indígenas à luz dos seus principais marcos legais, com base em seu histórico, lutas e vitórias travadas pelo movimento social indígena.

A base teórica do presente trabalho traz releituras de documentos legais sobre os direitos indígenas, fontes nacionais e internacionais, pensadores da antropologia, como Viveiros de Castro (2006), reconhecendo ainda as epistemologias do sul a partir da cosmovisão dos povos originários com base em autores indígenas, como Krenak (2019) e Terena (2021). Discorre-se pelo histórico desde os primórdios da escola salamantina, refletindo sobre documentos gerados a partir de muita resistência desses povos, até os atuais marcos legais e sua efetivação dentro das políticas públicas, em suas teorias e práticas.

A metodologia utilizada foi a bibliográfica e documental, através de fontes atualizadas sobre a legislação vigente, disponíveis em vários sites, repositórios e demais canais legais. Os critérios de seleção dos artigos de leis mencionados versam sobre três pilares: 1) revisitar os principais elementos para embasamento do trabalho proposto; 2) alcançar a proposta em contribuir na visibilidade do tema; e 3) promover conhecimento e debate sobre a temática. Os resultados apresentados surgem após análise dessa legislação, que representam uma vitória jurídica e legal. Todavia ainda não são suficientes mediante dados e fatos da realidade brasileira sobre a implementação dessas políticas públicas, na preservação da diversidade e das identidades dos povos originários. As considerações nos levam a refletir sobre a necessidade de reconhecimento dos direitos dos povos originários, dando visibilidade à causa desses povos e sua inclusão na pauta antirracista do país, respeitando a multiculturalidade da nação indígena.

Breve histórico sobre os direitos dos povos originários

Os primeiros registros sobre os direitos indígenas surgiram no século XIV, na Escola de Salamanca, pensados pelos teólogos jusnaturalistas Bartolomé de las Casas, Francisco de Vitória e Francisco Suaréz, que vão advogar perante a Coroa o reconhecimento de direitos desses povos, apesar de levarem em conta o paganismo dos nativos e sua necessária conversão ao Catolicismo.

Nesse sentido, persistia o debate jurídico a respeito da humanidade dos indígenas, porém o princípio de uti possidetis, extraído do direito natural das gentes, predominou na América Latina, sendo usado sob duas esferas: para dirimir os direitos sobre domínio e posse das conquistas territoriais a partir de guerras entre duas nações; e para decidir sobre conflitos entre os súditos de uma mesma nação ou reino. No primeiro caso, sobre as coisas tiradas dos inimigos, passava a ser propriedade de quem as tomava e, no segundo caso, a terra sob conflito ficaria com seu primeiro dono, desde que este fosse súdito do reino, com “direitos inscritos na ordem jurídica daquela comunidade” (CUNHA; BARBOSA, 2018, p. 105). Todavia a história tem imensos registros que, mesmo com o início da discussão sobre os direitos indígenas no período colonial, na América os indígenas já eram colocados em desvantagem absoluta, apesar da criação de instrumentos jurídicos que favoreciam os direitos indígenas pensados por esta escola espanhola. Na prática, a própria cultura local, as comunidades e suas formas de vida eram desvalorizadas e isso fragilizava aos poucos o próprio pensamento jurisprudente cristão e sua influência inicial, inclusive favorecendo forças contrárias a esta posição jusnaturalista, conforme afirma Santamaría (2015, p. 25):

Las leys espanolas desde el primer momento consideraron a los indios como hombres libres, súbditos de la corona, con ampla capacidad de poseer y disfrutar de sus bienes de cualquier naturaleza; los indios eran así sujetos de toda clase de derechos, incluyendo el de propiedad, sin ninguna excepción. Pero atendiendo a que ellos eran personas necesitadas de tutela a semejanza a los incapazes, les impuzeron, con ánimo de favorecerlos y defenderlos, determinadas trabas al libre ejercicio de sus faculdades dominicales sobre las tierras de su propiedad. Mas estas estas limitaciones no querían decir que las tierras se les daban a los indios únicamente en usufructo, reservándose, la Corona la propiedad.

No caso brasileiro, a Coroa portuguesa seguiu preceitos jurídicos similares aos espanhóis sobre a apropriação de terras; mas sem a direta influência da escola salamantina e seus teólogos.

No ano de 1611, o primeiro instrumento jurídico que surge no Brasil, através do Alvará Régio de 1º de abril, a posse sobre a terra deveria ser respeitada, resguardando os direitos indígenas, por estes povos serem os primeiros donos. Já em 1755, uma nova lei regula que a terra também é dita como de domínio natural indígena. Todavia, com os processos de colonização, onde eram enfraquecidas as ideias sobre a humanidade dos povos originários, desvalorização de suas culturas, o saque das riquezas em muitas viagens, dentre tantos outros processos de exploração, violências etc., foi-se forjando a desconstrução dos direitos dos povos indígenas e implantando-se o conceito de propriedade privada, dentre outros conceitos pregados pelos invasores, os quais até hoje influenciam nos debates e decisões judiciais brasileiros, quando se trata dos direitos dos povos originários sobre suas terras e territórios, mesmo depois da Constituinte de 1988.

No período colonial, os indígenas ficaram submetidos à jurisdição colonial portuguesa e, em teoria, vistos como súditos. A Bula de 1741, dirigida aos bispos que estavam no Brasil e nas Índias Ocidentais, ditava que ninguém (pessoa secular ou eclesiástica) podia possuir índios como escravos ou que eles fossem mantidos em cativeiros; caso descumprida esta ordem, a pessoa estaria sob risco de ser excomungada.

No século XVIII, mesmo com os processos galopantes de escravidão, conflitos, mortes e genocídios sobre os povos originários, estes permaneceram resistindo, o que fez com que a Coroa optasse pela escravização africana, decisão fortalecida também por outras conjunturas históricas. O projeto integracionista persiste aliado às tentativas de escravidão dos indígenas pela Coroa portuguesa, embora tal movimento não tivesse apoio declarado dos jesuítas, além da luta permanente dos povos nativos, impondo sua resistência, seja em conflito, fugindo para outras terras, ou mesmo se refugiando posteriormente em quilombos, se aliando aos negros que conseguiam fugir da escravidão.

No período do Brasil Império, mesmo com a Lei nº 37.627, de 27 de outubro de 1831 (BRASIL, 1831), que proibia a escravidão de indígenas, o reconhecimento dos direitos das comunidades nativas continuava sob ataque e ameaça constante. Neste período histórico, persiste a visão integracionista, e da condição de escravos, os povos originários passam a ter suas vidas tuteladas pelo poder estatal intermediado por juízes, equivalente à condição de órfãos, de seres incapazes. Tal condição eliminou completamente o reconhecimento legal da autonomia, a luta por suas terras, o poder individual e coletivo e de cidadania dos povos originários. Para legitimar a questão da posse das terras indígenas, estas foram tratadas como uma “posse territorial especifica, baseada no Direito das Gentes”1 (CUNHA; BARBOSA, 2018, p. 107).

Com a implantação da Lei de Terras (BRASIL, 1850),2 no Brasil Império, vê-se mais ainda o enfraquecimento das questões jurídicas sobre o direito às terras pelos indígenas, pois estes são colocados não como proprietários, mas como meros ocupantes, posseiros sem títulos ou direitos sobre a propriedade.

Com a Revolução Industrial, no século XIX, o excedente da lavoura agroexportadora e a entrada da mão de obra dos imigrantes resultaram na expansão sobre novas fronteiras e mineração, promovendo ainda mudanças econômicas estruturais no país, que passa a ser republicano, seguindo orientação liberal, cenário que afetou mais ainda a vida dos indígenas, suas terras e territórios, principalmente as áreas ainda intocadas e reforçando a questão da tutela, com base integracionista, que vê o indígena como um sujeito a ser preparado também para o trabalho subordinado e mais árduo. Isto persistiu em vários documentos que foram sendo criados e se perpetuou nas duas constituições anteriores à de 1988, que historicamente representa o grande divisor de águas sobre a questão dos direitos dos povos originários no Brasil.

Legislação atual sobre os direitos indígenas

Observa-se que a legislação brasileira sobre os direitos indígenas surgiu tardiamente, a duras penas, ao longo da história, a partir de muita luta e resistência dessas comunidades, que começaram a se organizar através de seu movimento social, mas se estabelecendo com mais firmeza na década de 1980, com a ajuda da Igreja Católica, através de pastorais missionárias em vários municípios brasileiros. Na atualidade, os documentos que compõem a lista da legislação vigente no país, os textos normativos internacionais, tais como Convenções, Tratados, Declarações e outros, dos quais o Brasil é signatário, são: Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (BRASIL, 1988) - Artigos 231 e 232; Código Penal - Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de fevereiro de 1940 (BRASIL, 1940); Código de Processo Penal - Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (BRASIL, 1941); Estatuto do Índio - Lei nº 6.001, de 19 de dezembro de 1973 (BRASIL, 1973); Pacto Internacional Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, da Organização das Nações Unidas (ONU) - Decreto nº 591, de 6 de julho de 1992 (BRASIL, 1992a); Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, da ONU - Decreto nº 592, de 06 de julho de 1992 (BRASIL, 1992b); Convenção Americana sobre Direitos Humanos - da Organização dos Estados Americanos (OEA) - Pacto de São José da Costa Rica - Decreto nº 678, de 6 de novembro de 1992 (BRASIL, 1992c); Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) - Decreto nº 5.051, de 19 de abril de 2004 (BRASIL, 2004); Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho na língua Guarani-Kaiowá (ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO, 2012a); Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho na língua Terena (ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO, 2012b); Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas - ONU - de 13 de setembro de 2007 (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 2017); e a Convenção Relativa à Proteção das Crianças e à Cooperação em Matéria de Adoção Internacional, promulgada pelo Decreto nº 3.087/1999 (BRASIL, 1999).

Dentre esses, propõe-se aqui uma reflexão sobre alguns dos principais marcos legais supracitados, destacando-se: o Estatuto do Índio, a Constituição de 1988, a Convenção 169 e a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos Indígenas. No caso brasileiro, a legislação sobre os direitos indígenas é tratada somente em âmbito federal, ou seja, cabe à Câmara de Deputados, ao Senado Federal e à Presidência da República.

Estatuto do Índio

O Estatuto do Índio é a denominação da Lei nº 6.001, promulgada em 19 de dezembro de 1973, que estabelece em seus Princípios e Definições a regulamentação da “situação jurídica dos índios ou silvícolas e das comunidades indígenas, com o propósito de preservar a sua cultura e integrá-los, progressiva e harmoniosamente, à comunhão nacional” (BRASIL, 1973). Apesar deste documento citar que os costumes e tradições indígenas deveriam ser preservados, na prática a ideia apregoada era integrar os povos tradicionais à comunidade nacional, um trabalho desenvolvido para ser associado ao trabalho de catequese e assistência da Igreja, este já existente desde os primeiros contatos dos colonizadores. De acordo com o referido documento, indígena é considerado “todo indivíduo de origem e ascendência précolombiana que se identifica e é identificado como pertencente a um grupo étnico, cujas características culturais o distinguem da sociedade nacional” (BRASIL, 1973).

Sobre os direitos indígenas e sua proteção, é delegada a responsabilidade à União, aos Estados, aos Municípios e aos seus órgãos de administração indireta brasileiros, conforme descrito no Art. 2:

  • I - estender aos índios os benefícios da legislação comum, sempre que possível a sua aplicação;

  • II - prestar assistência aos índios e às comunida-des indígenas ainda não integrados à comunhão nacional;

  • III - respeitar, ao proporcionar aos índios meios para o seu desenvolvimento, as peculiaridades inerentes à sua condição;

  • IV - assegurar aos índios a possibilidade de livre escolha dos seus meios de vida e subsistência;

  • V - garantir aos índios a permanência voluntária no seu habitat, proporcionando-lhes ali recursos para seu desenvolvimento e progresso;

  • VI - respeitar, no processo de integração do índio à comunhão nacional, a coesão das comunidades indígenas, os seus valores culturais, tradições, usos e costumes;

  • VII - executar, sempre que possível mediante a colaboração dos índios, os programas e projetos tendentes a beneficiar as comunidades indígenas;

  • VIII - utilizar a cooperação, o espírito de inicia-tiva e as qualidades pessoais do índio, tendo em vista a melhoria de suas condições de vida e a sua integração no processo de desenvolvimento;

  • IX - garantir aos índios e comunidades indígenas, nos termos da Constituição, a posse permanente das terras que habitam, reconhecendo-lhes o direito ao usufruto exclusivo das riquezas naturais e de todas as utilidades naquelas terras existentes;

  • X - garantir aos índios o pleno exercício dos di-reitos civis e políticos que em face da legislação lhes couberem. (BRASIL, 1973).

A Lei também conceitua o “índio” no Brasil, definindo-o também como “silvícola”, que representa “todo indivíduo de origem e ascendência pré-colombiana que se identifica e é identificado como pertencente a um grupo étnico cujas características culturais o distinguem da sociedade nacional” (BRASIL, 1973), classificando-os ainda em três tipologias, conforme o grau de integração nacional:

  • I - Isolados - Quando vivem em grupos desco-nhecidos ou de que se possuem poucos e vagos informes através de contatos eventuais com elementos da comunhão nacional;

  • II - Em vias de integração - Quando, em con-tato intermitente ou permanente com grupos estranhos, conservam menor ou maior parte das condições de sua vida nativa, mas aceitam algumas práticas e modos de existência comuns aos demais setores da comunhão nacional, da qual vão necessitando cada vez mais para o próprio sustento;

  • III - Integrados - Quando incorporados à comu-nhão nacional e reconhecidos no pleno exercício dos direitos civis, ainda que conservem usos, costumes e tradições característicos da sua cultura. (BRASIL, 1973).

De modo geral, esse documento segue um ponto central do antigo Código Civil brasileiro, datado de 1916, que considerava os índios como “incapacitados” parcialmente, portanto necessitavam ser enquadrados num regime tutelar através de um órgão indigenista federal.

Sobre os Direitos Civis e Políticos, citados no Capítulo I, Dos Princípios, os índios são considerados cidadãos de nacionalidade brasileira, em acordo com a Constituição Federal em seus Artigos 145 e 146, e estabelece o exercício de seus direitos. No Estatuto do Índio (brasil, 1973), em seu Art. 6º, declara que devem ser: “[...] respeitados os usos, costumes e tradições das comunidades indígenas e seus efeitos, nas relações de família, na ordem de sucessão, no regime de propriedade e nos atos ou negócios realizados entre índios, salvo se optarem pela aplicação do direito comum.”

Nessa Lei também é estabelecida a Assistência e o regime tutelar, ou seja, os índios e as comunidades indígenas que ainda não estejam “integrados à comunhão nacional ficam sujeitos ao regime tutelar” (BRASIL, 1973). Todavia, o índio, ou a própria comunidade inteira, poderá requerer a sua plena emancipação, desde que comprovada por órgão federal competente, após inquérito realizado e a plena integração do solicitante ou de uma comunidade indígena à comunhão nacional.

De acordo com o documento, para o indígena sair do regime tutelar ele deve comprovar suas capacidades civis amplamente, levando em consideração alguns pontos considerados importantes, tais como a aprendizagem da língua portuguesa, atividade profissional útil para a sociedade nacional, além da “compreensão dos usos e costumes da comunhão nacional” (BRASIL, 1973), conforme citado no Art. 9º. Tais etapas devem ser comprovadas através de homologação judicial e seu registro civil. Condicionado a estas capacidades, o indígena estaria apto para exercício de seus direitos, o que deixa claro aqui a abordagem com base na assimilação e aculturação. No decorrer da leitura desse documento fica claro que não há uma maior valorização da identidade cultural indígena, pois dentro dessa construção, apesar de citar alguns pontos importantes, imprimese o não reconhecimento de suas tradições como parte integrante da cultura nacional a ser preservada e trabalhada com os mais jovens em suas aldeias, mas como algo processual a ser superado pelo tempo até a sua integração ao modelo nacional, dito como melhor e superior, fruto de ideias ultrapassadas e seculares apregoadas pelo colonialismo, ainda latentes na sociedade brasileira.

A questão educacional, assim como as questões da cultura e da saúde, segue esta linha e paradigma assimilacionista e são tratadas nos Artigos 47 ao 55 deste documento oficial:

Art. 47. É assegurado o respeito ao patrimônio cultural das comunidades indígenas, seus valores artísticos e meios de expressão.

Art. 48. Estende-se à população indígena, com as necessárias adaptações, o sistema de ensino em vigor no País.

Art. 49. A alfabetização dos índios far-se-á na língua do grupo a que pertençam, e em português, salvaguardado o uso da primeira.

Art. 50. A educação do índio será orientada para a integração na comunhão nacional mediante processo de gradativa compreensão dos problemas gerais e valores da sociedade nacional, bem como do aproveitamento das suas aptidões individuais.

Art. 51. A assistência aos menores, para fins educacionais, será prestada, quanto possível, sem afastá-los do convívio familiar ou tribal.

Art. 52. Será proporcionada ao índio a formação profissional adequada, de acordo com o seu grau de aculturação.

Art. 53. O artesanato e as indústrias rurais serão estimulados, no sentido de elevar o padrão de vida do índio com a conveniente adaptação às condições técnicas modernas.

Art. 54. Os índios têm direito aos meios de proteção à saúde facultados à comunhão nacional.

Parágrafo único. Na infância, na maternidade, na doença e na velhice, deve ser assegurada ao silvícola, especial assistência dos poderes públicos, em estabelecimentos a esse fim destinados.

Art. 55. O regime geral da previdência social será extensivo aos índios, atendidas as condições sociais, econômicas e culturais das comunidades beneficiadas. (BRASIL, 1973).

O trabalho dos indígenas também é assegurado, buscando garantir igualdade, sem nenhuma discriminação em relação a qualquer outro trabalhador brasileiro, aplicando-lhes “todos os direitos e garantias das leis trabalhistas e de previdência social” (BRASIL, 1973), respeitando suas culturas e costumes, porém qualquer contrato de trabalho deveria passar pelo órgão de controle para sua efetiva aprovação.

Dentro das linhas gerais desse documento, acreditava-se que o “ser índio” tinha um caráter passageiro e logo este indivíduo iria se integrar à comunidade nacional, assumindo assim uma perspectiva assimilacionista. Inclusive sobre causas de infrações penais, detenções ou outras questões disciplinares são estabelecidas condições especiais e diferenciadas de acordo com o grau de integração e regime tutelar.

Outro assunto fundamental no texto é a questão da terra e do território indígena, em que são estabelecidos direitos, pontos sobre Terras Ocupadas, Áreas de Reservas, Terras de Domínio Indígena, entres outros, inclusive sobre demarcação, porém não se cita a diferença entre terra (todo o espaço da aldeia e reserva) e território, que representa também o lugar sagrado para os indígenas, onde são feitos seus rituais voltados à questão da espiritualidade.

A respeito da Defesa das Terras Indígenas, são asseguradas proteção das Forças Armadas e Polícia Federal:

Art. 34. O órgão federal de assistência ao índio poderá solicitar a colaboração das Forças Armadas e Auxiliares e da Polícia Federal, para assegurar a proteção das terras ocupadas pelos índios e pelas comunidades indígenas.

Art. 35. Cabe ao órgão federal de assistência ao índio a defesa judicial ou extrajudicial dos direitos dos silvícolas e das comunidades indígenas.

Art. 36. Sem prejuízo do disposto no artigo anterior, compete à União adotar as medidas administrativas ou propor, por intermédio do Ministério Público Federal, as medidas judiciais adequadas à proteção da posse dos silvícolas sobre as terras que habitem.

Parágrafo único. Quando as medidas judiciais previstas neste artigo forem propostas pelo órgão federal de assistência, ou contra ele, a União será litisconsorte ativa ou passiva.

Art. 37. Os grupos tribais ou comunidades indígenas são partes legítimas para a defesa dos seus direitos em juízo, cabendo-lhes, no caso, a assistência do Ministério Público Federal ou do órgão de proteção ao índio.

Art. 38. As terras indígenas são inusucapíveis e sobre elas não poderá recair desapropriação, salvo o previsto no artigo 20. (BRASIL, 1973).

Teoricamente, através da leitura dos artigos citados, busca-se garantir direitos dos povos originários, porém, atualmente, na prática, verifica-se um imenso crescimento da violência e desrespeito sobre estes pontos, principalmente proteção aos indígenas em suas terras e territórios, demarcação das terras - que não avança judicialmente - e outros pontos críticos, como invasão de grileiros, madeireiros, fazendeiros, empresários do meio rural e grandes empresas.

No ano de 1988, com a Constituição Federal, que dá um caráter diferenciado aos indígenas em relação aos documentos anteriores, passase a garantir a diversidade e manutenção de suas culturas, por reconhecê-las pela importância e tradições, quebrando assim o paradigma assimilacionista que perdurou séculos e até hoje deixou raízes e sequelas no imaginário popular, especialmente não indígena. Em 1994, uma proposta de Estatuto das Sociedades Indígenas foi aprovada por uma comissão especial da Câmara dos Deputados, mas encontra-se paralisada em sua tramitação. Só em 2002 os índios deixam de ser considerados relativamente incapazes, com a instituição do Novo Código Civil brasileiro (BRASIL, 2002), no qual fica estabelecido que os povos originários seriam regidos por uma legislação especial.

Essa abordagem assimilacionista tem seu início desde a colonização através dos jesuítas, aplicada depois pelo Serviço de Proteção aos Índios (SPI), com o intuito de convertê-los também em mão de obra nas lavouras, se consolidando ainda na Constituição Federal de 1934, se perpetuando através deste estatuto, perpassando pela Convenção de 1957. Contudo, tal abordagem foi sendo desconstruída processualmente pela resistência dos povos originários e pela força do seu movimento social, tendo como divisor de águas a Constituição Federal de 1988 e, posteriormente, com outros documentos sobre os quais discorreremos a seguir.

A história revela que toda a legislação indigenista, desde a colonização, foi um caminho traçado para a subjugação, onde buscaram tirar-lhes o direito de ser índios, seguidos pelas tentativas de escravização dos povos indígenas, porém por algumas ações fracassadas e resistência indígena, foram acontecendo atos mais violentos de extermínio e genocídio, de acordo com o crescimento das ações voltadas à expansão do colonialismo e ocupação das terras brasileiras.

A Constituição Federal de 1988 - CF/88

Através da CF-88 (BRASIL, 1988), a abordagem assimilacionista e aculturada sobre os indígenas é superada e passam a ser consideradas as diferenças e a diversidade de culturas indígenas, algo considerado pioneiro para a década de 1980, sendo que esta abordagem foi completamente abolida teoricamente no ano posterior, na Convenção sobre os Povos Indígenas e Tribais de 1989 (ORGANIZAÇÃO INTERNACONAL DO TRABALHO, 1989), realizada pela OIT, superando as questões estabelecidas na ótica do Direito Internacional da Convenção sobre as Populações Indígenas e Tribais de 1957.

Historicamente, essa Carta Magna traz várias inovações sobre a temática, sendo a primeira que dedicou um capítulo específico à proteção e defesa dos direitos dos povos indígenas, garantindo ainda a capacidade processual, pois antes dela os povos originários sequer estavam “autorizados a ingressar com ações judiciais” (CUNHA; BARBOSA, 2018, p. 13), apesar da luta e grande esforço de fazer desta Constituição uma realidade para a nação indígena. Em sua obra Direitos dos Povos Indígenas em Disputa, Cunha e Barbosa (2018, p. 15) afirmam que “Falar do futuro dos direitos dos povos indígenas não é a formulação cândida que paira no ar. Antes, é um projeto normativo ancorado na resistência indígenas de longa data, com a vitalidade no presente das muitas associações indígenas locais, regionais e nacionais”.

Observa-se que essa associação de resistência pelo direito vai além do âmbito nacional, ganhando força e alguma visibilidade internacional, atingindo ainda outros povos tradicionais da América Latina.

Com a Constituição Federal de 1988, o Brasil encerra um período de obscurantismo sobre os direitos indígenas, pois vem reconhecer e garantir aos povos originários, em seu Art. 231, “sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens” (BRASIL, 1988). Este é um importante marco histórico, pois ao validar o direito dos indígenas em manter a sua própria cultura, rompe-se com a secular tradição da visão indigenista, integracionista, que perseguia a ideia de homogeneização das etnias a um suposto modelo nacional e tratava o índio como um ser relativamente incapaz, alguém que deveria ser tutelado pelo Estado.

Em seu Art. 232, a Carta Magna garante também a capacidade processual a essas comunidades tradicionais, quando se lê: “os índios, suas comunidades e organizações, são partes legítimas para ingressar em juízo, em defesa dos seus direitos e interesses” (BRASIL, 1988), inclusive contra o Estado.

O atual Código Civil brasileiro do ano 2002, consequentemente, segue as linhas da Constituição Federal vigente, não tratando mais o indígena como um ser incapaz ou a ser tutelado, porém dispõe que tal capacidade deverá ser regulada por uma legislação especial. Sobre esta questão, há um processo com tramitação paralisada no Congresso desde 1994, para que isto seja revisto, sob o nome de Estatuto das Sociedade Indígenas, além de projetos de lei para a regulamentação de elementos dispostos na CF/88 e com isso possa se ajustar a legislação antiga completamente ao disposto na Carga Magna.

Fato é que, mesmo após 33 anos da Carta Magna no Brasil, a garantia dos direitos estabelecidos é conquistada ainda sob imensa pressão, luta e articulação das etnias através do movimento social indígena e suas diversas associações nacionais e internacionais, além de apoiadores e aliados da causa. Dentre as muitas entidades e associações que fazem parte deste movimento, destacam-se alguns nomes, de ordem diversas (religiosa, política, educativa, científica, artística, jurídica, não governamentais etc.): Associação Nacional de Ação Indigenista (ANAI); Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB); Centro de Estudos Ameríndios (CEstA); Conselho Indigenista Missionário (CIMI); Conselho de Missão entre Povos Indígenas (COMIN); Comissão Pró-Índio do Acre (CPI-AC); Comissão Pró-Índio de São Paulo (CPI-SP); Centro de Trabalho Indigenista (CTI); Greenpeace; Instituto Internacional de Educação do Brasil (IEB); Instituto de Formação e Pesquisa em Educação Indígena (IEPÉ); Índio é Nós - Portal de campanhas; Instituto de Estudos Socioeconômicos (INESC); Instituto Socioambiental (ISA) e seus programas: Programa Monitoramento de Áreas Protegidas, Programa Política e Direito Socioambiental, Programa Rio Negro, Programa Parque Indígena do Xingu; KANINDÉ - Associação de Defesa Etnoambiental; Operação Amazônia Nativa (OPAN); Portal KAINGANG (divulgação da cultura e dos direitos do povo Kaingang); Projeto Vídeo nas Aldeias; Uma Gota no Oceano; Programa WAIMIRI-ATROARI, Programa PARAKANÃ - PROPKN; Projeto Trilhas de Conhecimentos; Núcleo de História Indígena e do Indigenismo, da Universidade de São Paulo (NHII/USP); e Laboratório de Pesquisas em

Etnicidade, Cultura e Desenvolvimento (LACED). São muitas outras pelo país, pela América Latina e pelo mundo que estão em prol da luta, defesa e garantia desses direitos.

Ainda sobre a Carta Magna, Viveiros de Castro (2006) afirma:

A Constituição de 1988 interrompeu juridicamente (ideologicamente) um projeto secular de desindianização, ao reconhecer que ele não se tinha completado. E foi assim que as comunidades em processo de distanciamento da referência indígena começaram a perceber que voltar a ‘ser’ índio - isto é, voltar a virar índio, retomar o processo incessante de virar índio - podia ser uma coisa interessante. Converter, reverter, perverter ou subverter (como se queira) o dispositivo de sujeição armado desde a Conquista de modo a torná-lo dispositivo de subjetivação; deixar de sofrer a própria indianidade e passar a gozá-la. Uma gigantesca ab-reação coletiva, para usarmos velhos termos psicanalíticos. Uma carnavalização étnica. O retorno do recalcado nacional.

Esse momento é considerado único na história, pois representou a aprovação dos direitos por políticos de várias frentes: de orientação de direita, de centro e de esquerda. Foi um momento também muito importante para o movimento social indígena, que marcava sua gênese em âmbito nacional, além do reconhecimento de algumas importantes lideranças indígenas protagonistas desse processo no ano de 1988, como Ailton Krenak, Álvaro Tukano, David Kopenawa, entre tantos outros.

A Convenção 169

A Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre Povos Indígenas e Tribais, publicada em 7 de junho 1989 (ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO, 1989) e posteriormente promulgada através do Decreto nº 5.051, de 19 de abril 2004 (BRASIL, 2004), teve sua vigência no Brasil a partir de 25 de julho de 2003 e revê a convenção anterior (Convenção nº 107 de 1957). O referido documento da organização permanente, pessoa jurídica de Direito Internacional Público, do qual o Brasil é membro, dentre tantos outros países, afirma em seu Art. 3 que “os povos indígenas deverão gozar dos direitos humanos e liberdades fundamentais, sem obstáculos, nem discriminação”. A partir deste direito prioritário são descritos os demais no mesmo documento internacional, o qual aborda as questões sobre a proteção dos territórios, sobre a cultura, valores e práticas sociais, culturais e espirituais, além da necessidade de reconhecimentos dos problemas individuais e coletivos dos povos originários.

Diferente da convenção anterior, a qual disciplinava propósitos assimilacionistas pelas comunidades minoritárias ao modelo nacional, a atual demanda que os povos originários devem “assumir o controle de suas próprias instituições e formas de vida”, e as suas línguas, religiões, culturas e, essencialmente, identidade devem ser preservadas e respeitadas no âmbito dos Estados onde vivem.

Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos Indígenas

O documento com 46 artigos vem reconhecer e afirmar os direitos dos povos originários, abordando-os de maneira abrangente sobre a cultura, saúde, territórios, educação e demais temas essenciais aos direitos fundamentais. Tal declaração, mesmo depois de longos debates por duas décadas, discutida em assembleia e aprovada em 2007, ainda é um desafio em solo brasileiro, pelas dificuldades em sua implementação e uma série de infrações sob vários aspectos, dentre os principais a violência de todos os graus sobre os povos originários, com perseguições, mortes, assassinatos, genocídios; a lentidão e estagnação da demarcação de seus territórios; a discriminação e racismo sofridos por esses indivíduos que são considerados pelos governantes como pessoas que representam atraso e barreiras ao desenvolvimento etc. Com este documento, consideram-se mais alguns avanços:

Os povos indígenas têm direito à autodeterminação. Em virtude desse direito determinam livremente sua condição política e buscam livremente seu desenvolvimento econômico, social e cultural [Artigo 3] [...]. Os povos e indivíduos indígenas têm direito a não sofrer assimilação forçada ou a destruição de sua cultura [Artigo 8]. (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 2008).

Reconhecer e reafirmar os direitos dos povos originários no Brasil é uma luta interminável, mesmo com a legislação vigente. De modo geral e visto em várias instâncias (sociocultural, política, econômica etc.), pode-se pensar que o povo brasileiro carece de reconhecer sua própria identidade, pois de modo geral é um coletivo que não conhece sua própria história enquanto povo, não preserva ou tem memória de si mesmo quando não se reconhece nas suas fortes raízes indígenas, o que reforça os processos de reprodução da violência colonial.

Embora a proposta deste artigo não seja promover um debate jurídico, vale revisitar Sartori (2010), quando ele afirma a importância da luta indígena, pois representa a luta pelas diferenças, por seus modos de subsistência e de reprodução social dentro de um modelo contraditório homogeneizante imposto pelo sistema capitalista.

Considerações

Por mais de cinco séculos, desde a colonização, passando por processos de invasão e exploração de seus territórios, genocídios, escravidão, dentre tantos outros, e mesmo apesar dos avanços sobre os direitos indígenas, embora historicamente bem tardios, às custas de muitas lutas, resistência, tempo de vida e mortes de tantas pessoas, esses direitos continuam sob ataque no Brasil, não são efetivados e são cada vez mais sonegados e usurpados, principalmente dentro do atual quadro político, com o atual mandatário do país, denominado pelos povos originários de Xauara.3

Cita-se ainda um dos graves acontecimentos que marcou o cenário mundial, envolvendo dois defensores da causa indígena, o indigenista brasileiro Bruno Pereira e o jornalista inglês Dom Philips, que foram mortos barbaramente a tiros, queimados e enterrados no dia 5 de junho de 2022, no Vale do Javari, região amazônica, na qual faziam uma expedição, local de disputa acirrada e dominada pelos traficantes de drogas, garimpeiros e ladrões de madeira. Este tipo de crime, dentre outros, infelizmente, se repetem na Amazônia. Na maioria das vezes seus reais mandatários ficam impunes, como ocorreu com Chico Mendes, em 1988, com a Irmã missionária americana Dorothy Stang, em 2005, dentre outras lideranças e indigenistas perseguidos e mortos pela mesma causa. Segundo Carazza (2022), a organização Global Witness informa que no Brasil, somente entre os anos 2012 e 2020, foram assassinadas 317 pessoas por causa de conflitos e questões ambientais, revelando que o Brasil é o país que mais mata pessoas por defenderem a floresta, suas populações nativas e direitos desses povos. Vale ainda refletir que este trágico número poderá ser maior, caso somem-se os acontecimentos de outros territórios indígenas pelo país, com brasileiros e lideranças invisibilizadas, não contabilizadas nessa lista.

Esses direitos, que deveriam ser garantidos à nação indígena, lhes são retirados em vários âmbitos e impressos pela violência sobre os povos indígenas, denunciada em vários canais pelo Brasil e pelo mundo, mesmo depois da abertura democrática dos anos 1990 e a garantia de seus direitos originários, dentre outros descritos. Os indígenas sofrem com o desrespeito à demarcação de seus territórios; a invasão de garimpeiros, posseiros, latifundiários e empresas em seus territórios; questões ligadas à educação e à precarização de suas escolas e trabalho docente; saúde pública - principalmente agora, durante a pandemia do Coronavírus, os quais foram as comunidades mais afetadas -, dentre tantas outras causas pelas quais lutam e continuam resistindo, como mais recentemente a fome e escassez em seus territórios, enquanto o sistema ineficaz atua em sua necropolítica.

O relatório Direitos Humanos no Brasil 2021: Relatório da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos (STEFANO; MENDONÇA, 2021) denuncia de maneira detalhada as inúmeras atrocidades e numerosos processos, de forma detalhada, sobre a violação desses direitos e luta desses povos, sempre, além das questões ligadas diretamente à causa, tais como crise climática e ambiental, criminalização desses povos em busca da legalização da própria CF/88, agronegócio, retrocessos ambientais sobre a Amazônia, dentre tantas questões.

Eloy Terena (2021), um dos articuladores dessa causa, ligado à Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), em seu artigo A criminalização de lideranças indígenas como repressão da ação política, relata como este tipo de processo social, composto por uma série de etapas, tentando criminalizar o próprio movimento social, dificulta mais ainda a garantia pelos direitos: “Enquanto estratégia de repressão da ação política dos povos indígenas, a criminalização integra um repertório extenso de formas estatais e paraestatais de dominação e controle.” (TERENA, 2021, p. 93).

Enfim, além das ações de desmonte das instituições que deveriam proteger os indígenas, como a própria Funai, são várias ações impostas, arbitrárias e criminosas que tentam manipular a não validação dos direitos desses povos e a não viabilidade de suas causas e processos, que se arrastam ou mesmo estão estagnados em várias instâncias administrativas do poder público, reproduzindo os processos colonizadores seculares, de apagamento histórico, de exclusão social, de homogeneização de suas identidades, de desrespeito às suas ciências, saberes etc., apesar dos avanços documentados na Constituição Federal de 1988, segundo a qual deveria se fazer valer os direitos e promover de maneira permanente a necessidade de decolonização do pensamento e de uma produção de políticas públicas mais efetivas em prol da diversidade e identidades indígenas, incluindo-os verdadeiramente no projeto nacional.

REFERÊNCIAS

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1“O conceito de ius gentium, que foi também chamado de direitos de gentes, mesmo tendo a sua origem no direito romano e tenha atravessado, sob diferentes versões, a Idade Média, é recebido pela geração da Escola de Salamanca, e muito especialmente por Suárez, com alguns ajustes e atualizações. Passa a ser entendido como um direito que considera as culturas dos povos como autoridade legítima que deve ser respeitada, uma consideração ao que foi construído ao longo do tempo pelos povos e que não temos direito de atropelar sob nenhuma alegação. São os casos da instituição da propriedade privada, do matrimônio, dos regimes de trabalho, dos tratados internacionais, entre outros. O conceito de Direito de Gentes, relativo ao que hoje conhecemos como Direitos Humanos, é importante porque, mesmo sendo um direito que se expressa numa positividade, numa norma escrita, tem na sua base uma racionalidade que considera as culturas, a diversidade de modos de manifestação cultural. E isso ao mesmo tempo em que busca a sua universalidade.” (FACHIN, 2017).

2Lei nº 601, de 1850, que regulamentou a propriedade privada em terras brasileiras e a consolidação de títulos de propriedade, dispondo sobre as terras devolutas. As terras devolutas eram aquelas consideradas vagas, não estando tituladas para particulares, portanto atribuídas ou devolvidas aos estados da Federação, para assim poderem ser tuteladas a favor de quem tivesse interesse em cultivá-las.

3Conforme os grandes xamãs, significa uma pessoa de mente adoecida.

Recebido: 15 de Abril de 2022; Aceito: 11 de Julho de 2022

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