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Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade

versión impresa ISSN 0104-7043versión On-line ISSN 2358-0194

Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade vol.31 no.67 Salvador jul./set 2022  Epub 13-Ene-2023

https://doi.org/10.21879/faeeba2358-0194.2022.v31.n67.p248-267 

Artigos

UMA PEDAGOGIA DAS RETOMADAS: ENSINAMENTOS E APRENDIZAGENS A PARTIR DO POVO INDÍGENA ANACÉ

A PEDAGOGY OF REPOSSESSIONS - TEACHING AND LEARNING FROM THE ANACÉ INDIGENOUS PEOPLE

UNA PEDAGOGÍA DE LAS “RETOMADAS” - ENSEÑANZAS Y APRENDIZAJES DESDE EL PUEBLO INDÍGENA ANACÉ

Luciana Nogueira Nóbrega*  Universidade Estadual do Ceará
http://orcid.org/0000-0003-4766-2418

Lia Pinheiro Barbosa**  Universidade Estadual do Ceará
http://orcid.org/0000-0003-0727-9027

*Doutoranda em Sociologia pela Universidade Estadual do Ceará (UECE). Fortaleza, Ceará. E-mail: lunobrega.adv@gmail.com.

**Doutora em Estudos Latino-Americanos pela Universidad Nacional Autónoma de México (UNAM). Professora Adjunta I no Programa de Pós-Graduação em Sociologia (PPGS) e no Mestrado Acadêmico Intercampi em Educação e Ensino (MAIE) da Universidade Estadual do Ceará (UECE), e na Faculdade de Educação de Crateús (FAEC). Fortaleza, Ceará. E-mail: lia.barbosa@uece.br.


RESUMO

Os Anacé, povo indígena que ocupa tradicionalmente um território localizado a oeste da capital cearense, vem sendo, desde meados da década de 1990, impactado com as construções do Complexo Industrial e Portuário do Pecém. Em contraponto, parte dos Anacé tem realizado retomadas para recuperar parcelas do território e assim garantir seus direitos de existir. Nesse contexto, com base em pesquisa bibliográfica, documental e de campo, investigamos a possibilidade de falarmos em pedagogias das retomadas, compreendendo-as como potentes espaços de aprendizagem partilhada e de construção de pessoas Anacé, o que passa pela mediação dos encantados. Conforme observado, as retomadas possibilitam acessar conhecimentos múltiplos a partir de contextos pedagógicos de formação e de aprendizagens produzidos nas práticas políticas de reaver territórios, memórias, encantados, pelo que se conectam com saberes territorializados e da encantaria.

Palavras-chave: retomadas; povo indígena Anacé; pedagogia da encantaria; pedagogia territorializada

ABSTRACT

The Anacé indigenous people, which has been traditionally ocuppying a territory located West of the capital of Ceará has been impacted by the construction of the Pecém Industrial and Complex Port since the mid 1990s. On the other side, part of the Anacé people have taken back part of their territories in order to guarantee their right to exist. In this context, based on bibliographic, documental, and field research, we investigate the possibility of considering pedagogies of the repossessions, understanding them as powerful spaces for shared learning and the construction of Anacé people, which involves the mediation of the enchanted ones. As observed, the repossessions make it possible to access multiple knowledge from pedagogical contexts of development and learning produced in the political practices of reclaiming territories, memories, and enchanted ones, which connect to territorialized and enchanted knowledge.

Keywords: repossessions; Anacé indigenous people; pedagogy of enchantment; territorialized pedagogy

RESUMEN

Los Anacé, pueblo indígena que tradicionalmente ocupa un territorio situado al oeste de la capital de Ceará, se han visto afectados por la construcción del Complejo Industrial y Portuario de Pecém desde mediados de la década de 1990. Como contrapunto, una parte del pueblo Anacé han realizado las “retomadas”, recuperación de partes de su territorio para garantizar su derecho a existir. En este contexto, a partir de investigaciones bibliográficas, documentales y de campo, investigamos la posibilidad de hablar de pedagogías de las retomadas, entendiéndolas como poderosos espacios de aprendizaje compartido y de construcción de los pueblos Anacé, que pasa por la mediación de los encantados. Como se ha observado, las retomadas permiten acceder a múltiples saberes desde contextos pedagógicos de formación y aprendizaje producidos en las prácticas políticas de recuperación de territorios, memorias y encantamientos, por lo que se conectan con saberes territorializados y de la encantaría.

Palabras clave: retomadas; pueblo indígena Anacé; pedagogía de la encantaría; pedagogía territorializada

Introdução1

Desde a década de 1990, o Estado brasileiro tem investido altas somas de recursos para a instalação do Complexo Industrial e Portuário do Pecém (CIPP), um conjunto de indústrias de grande porte (siderúrgicas, refinarias, termoelétricas) e de logística (porto, ferrovia, rodovias), localizado nos municípios de Caucaia e São Gonçalo do Amarante, a oeste da capital cearense, correspondendo ao principal grande projeto de desenvolvimento do estado do Ceará.

A mesma área escolhida para a implantação do CIPP, contudo, corresponde à parte do território do povo indígena Anacé que, no processo de resistência aos impactos socioambientais, tem mobilizado um amplo repertório de ações no intuito de garantir seus direitos de existir. Dentre essas ações, as retomadas têm sido uma prática empreendida por parcela dos Anacé que permanece reivindicando a demarcação da Terra Indígena.

Muitas vezes tratadas como termos intercambiáveis, as retomadas e as autodemarcações costumam ocorrer em contextos de longa demora em processos de demarcação oficial (AMADO, 2020) e, por vezes, coincidem como atos de resistências a ameaças territoriais e socioambientais iminentes (MARTINS; NÓBREGA, 2019). De acordo com Alarcon (2013, p. 100), “as retomadas de terra consistem em processos de recuperação, pelos indígenas, de áreas por eles tradicionalmente ocupadas e que se encontravam em posse de não índios”. Destacamos que, enquanto categorias que devem ser compreendidas no contexto dos grupos sociais que a exercitam (TÓFOLI, 2010), tais práticas podem receber outras terminologias, como menciona Tonico Benites (2014), ao falar dos territórios reocupados e recuperados pelos Guarani e Kaiowá em Mato Grosso do Sul.2

Essas práticas não são recentes no contexto dos povos indígenas no Brasil (BENITES, 2014; MARTINS; NÓBREGA, 2019), sendo uma forma de ação política, no caso do Nordeste brasileiro, que pode ser compreendida quase como epítome da mobilização indígena (ALARCON, 2013), ou como uma atitude concreta do despertar para os direitos (AMADO, 2020), ou mesmo “equivalem a uma ação direta de caráter anticolonial” (SOUZA, J., 2019, p. 269).

Assim, a partir das experiências empreendidas pelos Anacé no Ceará, entre os anos de 2015 e 2020, investigamos a possibilidade de falarmos em pedagogias das retomadas, compreendendo-as como potentes espaços de aprendizagem partilhada e de construção de novas subjetividades coletivas críticas ao projeto colonial, capitalista, patriarcal ainda em curso. Em nossa análise, identificamos que há todo um conjunto de ações e práticas de ensino-aprendizagem sobre ser Anacé exercitadas antes e durante as retomadas: como se é e se vive junto, como se produz a comida, como se come, como se faz ritual, como se luta junto, como são as histórias dos antepassados, como são divididas as tarefas de sustentação da vida etc. As retomadas estão, ainda, atravessadas por uma mediação pedagógica dos encantados e por uma pedagogia territorializada, ou seja, pensada no, para e com o território.

Este artigo é resultado de uma pesquisa que triangula diversos métodos: documental, junto ao acervo da Pastoral do Migrante e em processos judiciais e administrativos que tramitaram junto ao Poder Judiciário e à Fundação Nacional do Índio (Funai); bibliográfica, com especial enfoque na obra Idade e vida construída e vivida, que reúne os trabalhos publicados pelo Cacique Anacé Antônio Ferreira da Silva, além de trabalhos acadêmicos de indígenas Anacé (LIMA, 2017; SOUZA, R., 2019); e de campo, por meio do acompanhamento das retomadas junto ao povo Anacé.

Em maio de 2020, a pesquisa de campo foi complementada com entrevistas semiestruturadas, realizadas com os caciques do povo Anacé, Roberto Ytaysaba Anacé e Climério Anacé, filhos do Cacique Antônio Ferreira, falecido em 2019. Em dezembro de 2021, realizamos entrevista com a liderança jovem Élber Anacé, e, em março de 2022, com Áurea Anacé, liderança das mulheres indígenas. A partir do avanço da cobertura vacinal para a Covid-19, realizamos incursões em campo ao longo do ano de 2021, acompanhando ocasiões importantes nas retomadas, oportunidade em que pudemos colher relatos dos indígenas sobre diferentes momentos da luta.

O resultado desse material foi cotejado com estudos de pesquisadoras e de pesquisadores que têm se debruçado sobre o tema das retomadas realizadas pelos povos indígenas no Brasil, sobretudo Alarcon (2020), em relação aos Tupinambá da Serra do Padeiro; Jurema Souza (2019), sobre as mobilizações territoriais dos Pataxó Hãhãhãi; e Amado (2020), em relação aos Terena em Mato Grosso do Sul.

Com base no exposto, este artigo visa a analisar os elementos que estruturam o que denominamos como “pedagogia das retomadas” do território Anacé, a partir da análise de cinco retomadas realizadas entre 2015 e 2020.

Os Anacé e o CIPP - estratégias de resistência

Os Anacé, desde a década de 1990, são impactados pela construção do CIPP, a oeste do Ceará.3 Dentre as ações de resistência ao despojo, podemos mencionar a mobilização de famílias impactadas das localidades de Gregório (os Rocha Moraes), Paú, Torém, Madeiro, Matões, Bolso, Coqueiro, Coité, Pitombeira, Cambeba (Pereira), Caraúbas (os “Naila”) (AIRES; ARAÚJO, 2010), as quais, a partir de um trabalho proposto pela Pastoral do Migrante a uma escola da região, começaram a recontar suas histórias. De acordo com Lima (2017, p. 42):

O objetivo inicial desta gincana era provocar um despertamento para a possibilidade de resistência ao processo de desapropriação por meio da valorização da história do lugar. Quando os professores (muitos deles não indígenas) perceberam que o resultado foi além do esperado, muitos passaram a incentivar que os alunos e outras lideranças comunitárias aprofundassem a proposta e pesquisassem sobre as origens destas comunidades.

Um pouco mais afastados do centro nevrálgico do CIPP, os Anacé de Japuara4 e de Santa Rosa, em Caucaia, tiveram um “despertamento” diferente dos Anacé das comunidades de Matões e Bolso. Nas obras escritas pelo cacique Antônio Anacé e publicadas no livro Idade e vida construída e vivida (FERREIRA DA SILVA, [201-]), esse momento é descrito a partir de uma agência5 dos próprios indígenas que, em 2004, ao descobrirem uma Carta de Sesmaria em nome do povo Anacé, tiveram o encanto quebrado, reestabelecendo as forças para lutar:

[...] por muito tempo este povo ficou escondido e protegido por vários encantos, quando no ano de 2004, no mês de setembro, o senhor Antônio Ferreira da Silva com seu primo Jonas Gomes de Azevedo e seu outro primo Moises Gomes de Azevedo procurando por histórias para construir um livro de cordel encontraram um documento de 1712, documento este com o nome de Sesi Maria6 que limitava terras indígenas de um povo que habitava aquela região chamado de Anassé, começa assim a luta por o reconhecimento deste povo, pois, contava a aldeia central em Japoara localidade onde o Sr. Antônio nasceu e se criou, desde então esta luta por seus direitos não para e nas forças de nosso pai Tupã vamos conseguir nossos objetivos. (FERREIRA DA SILVA, [201-], p. 12).

Em outro trecho da obra, Seu Antônio aprofunda a narrativa desse momento em uma dimensão cosmológica, do pacto estabelecido entre os Anacé e a figura demiúrgica central, o Pai Tupã:

Assim aconteceu, os Anacé fizeram pacto com o pai Tupã de encanto porque perderam sua resistência por algum tempo, mas aí fica toda sua força em dois encontros, um na lagoa do Parnamirim e outro na Pedra Branca da Serra da Japuara até quando der licença o pai Tupã, que renasça um cacique do dito povo dos Anacé que só assim os Anacé com a licença de pai Tupã desencanta um dos contos com o nosso ritual sagrado. Da costa da praia aos 8 léguas para o sertão até Parnaíba as terras que os Anacé andavam e todos estes indígenas da costa da praia a 8 léguas para o sertão pertencem ao povo dos Anacé que foram os primeiros da história do Ceará. Este pacto que os Anacé fizeram com o pai Tupã foi para que quando fossem renascendo os povos eles não sofressem mais, como eles sofreram. Não sofrer escravidão, nem matança, nem perseguição, nem peia. Para ter de volta sua liberdade e de ter suas terras para viver de maneira com seu direito sem ser sujeito a ninguém dentro do seu direito por isso um pouquinho dos Anacé nunca se foi. [...] Custou muito, mas aconteceu no dia 12 de setembro de 2004, às 3 horas da tarde pelo senhor Antônio Ferreira da Silva, nascido em Pau Branco, Japuara, Caucaia do dito povo dos Anacé que foi preparado e concedido pelo pai Tupã o desencanto e renascimento histórico dos Anacé. (FERREIRA DA SILVA, [201-], p. 19-20).7

A agência, portanto, do Cacique Antônio, ao reestabelecer o pacto entre os Anacé e pai Tupã, promoveu um processo de desencanto e de renascimento histórico do povo Anacé. Nascido e criado na Japuara, caberia ao Seu Antônio, que estava sendo preparado por seu avô (João Batista), desencantar um dos contos com o ritual sagrado, o toré Anacé. Assim, a memória Anacé soterrada pelo discurso do apagamento poderia aflorar. Como afirma Pollak (1989, p. 4), “as memórias subterrâneas que prosseguem seu trabalho de subversão no silêncio e de maneira quase imperceptível afloram em momentos de crise em sobressaltos bruscos e exacerbados. A memória entra em disputa”.

Embora fizesse muita questão de se afirmar evangélico, Seu Antônio Anacé criava os rituais e puxava o toré entre os indígenas, não havendo nenhuma incompatibilidade entre professar uma religião evangélica e ser uma das figuras centrais no toré Anacé.8 Sobre o despertamento do povo, costumava cantar o seguinte ritual nas rodas de toré:

Os Anacé renasceram foi como um estrondo do mar

Que mandou foi pai Tupã

Ele se manifestar

Só ele é o verdadeiro e que os índios tem fé.

Já estão todos reunidos na aldeia

Com o cacique Anacé e o pai Tupã

Derrama graças Tupã

Para os índios se fortificarem

Pois a corrente está feita

E Tupã não deixa quebrar

Afasta todos os males e defende do perigo

Com a força de Deus Tupã,

Vamos vencer os inimigos

(TORÉ ANACÉ).

Paralelo a esse movimento e resistindo às remoções, muitas famílias localizadas em Matões, Bolso, Baixa das Carnaúbas e outras aldeias indígenas, passaram a se identificar como Anacé, afirmando-se publicamente enquanto grupo diferenciado, ao tempo em que se articulavam com o movimento indígena estadual e nacional, não estando, entretanto, subordinadas ao cacicado de Seu Antônio.

Embora se organizassem politicamente de forma distinta, ambos os grupos Anacé, localizados em Caucaia, reconheciam-se sob o mesmo etnônimo, havendo relações comuns de parentesco e ritualísticas que os aproximavam enquanto troncos familiares Anacé (FERREIRA DA SILVA, [201-]; GOMES DE LIMA, 2018). A consciência de que constituíam e de que constituem um povo indígena parte das relações peculiares que tecem com o território que habitam; de uma memória coletiva que os interliga a uma população ancestral; das danças, ritos e tradições reconhecidas por eles como indígenas, como o toré e a dança do São Gonçalo;9 e de uma matriz simbólica peculiar: a corrente dos encantados (NÓBREGA, 2020).

A corrente de índios ou corrente dos encantados é um dos elementos reiteradamente presentes nas narrativas entre os Anacé. O Cacique Antônio Ferreira Anacé a descreve do seguinte modo:

Temos mais novidades dos nossos antepassados que choram, nossos espíritos sentindo falta das matas que foram desativadas pelos invasores estranhos de sangue diferente que nos contaminaram de doenças malignas e o choro dos nossos espíritos sai do São Carro passando acima da Mangabeira abaixo da Araticuba passando no Pau Branco, sai abaixo do Garrote acima das Pindobas, entrando na Salgada ficando na mata da aldeia até a mata do Tapacaú, a noite sempre ouve o clamor de muitas vozes não podemos entender, mas sabemos que eram nossos antepassados clamando a manifestação dos Anacé que estava próximo o renascer dos Anacé. Toda essa história vinha sendo contada pelo Manuel Inácio da Silva pai de João Batista da Silva que seu avô dizia para seu filho João Batista e ele contava para o seu neto Antônio Ferreira da Silva. (FERREIRA DA SILVA, [201-], p. 20).

O clamor das muitas vozes ouvidas pelos Anacé lembra-os do pacto que fizeram com o Pai Tupã, de que os indígenas renasceriam na luta. É a corrente dos encantados que representa os antepassados dos atuais Anacé que, ao morrerem, encantaram-se, passando a povoar as matas de seu território tradicional (BRISSAC; NÓBREGA, 2010).

Para esse povo indígena, há um complexo emaranhado que articula os corpos dos Anacé atuais e dos seus antepassados com o território por eles reivindicado e um universo de choro e lamento. A corrente dos encantados nos permite compreender a relação simbiótica entre corpos-território-emoções10 que relembra e ativa os processos de luta, ou o “renascer dos Anacé”, o que gera um fluxo incessante: os atuais Anacé também comporão, quando falecerem na luta, essa mesma corrente, ampliando suas vozes e seu clamor. Destacamos que, na dimensão da encantaria Anacé, outras formas de vida não humanas (GOMES DE LIMA, 2018) também se encontram na simbiose corpos-territórios-emoções.11

Apesar de compartilharem tantos elementos significativos para a construção dos mundos Anacé, a atuação do Estado, entendido aqui em uma perspectiva ampliada, implicou em uma cisão dos grupos Anacé. O fato do Estado brasileiro não reconhecer, nos termos da legislação em vigor, parte do território indígena como tradicionalmente ocupado, a despeito de a Funai ter iniciado os estudos de demarcação em 2010, abriu espaço para que diversas famílias indígenas fossem despojadas.

Após os primeiros levantamentos realizados pelo Grupo de Trabalho instituído pela Funai, o órgão indigenista oficial manifestou-se, em 2012, pela não existência da tradicionalidade na ocupação indígena nas áreas de Matões e Bolso, justamente as mais impactadas pelo CIPP. O fundamento para essa manifestação da Funai é analisado por Tófoli (2012), que ressaltou o contexto político-eleitoral, com eleições presidenciais e estaduais agendadas. Tanto a candidatura de Cid Gomes para Governo do Estado quanto a de Dilma Rousseff para Presidência evidenciavam a promessa de construção de uma refinaria da Petrobrás no Pecém, obras essas articuladas ao Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Para os indígenas, o entendimento da Funai foi um golpe, abrindo espaço para novas remoções (SOUZA, R., 2019).

Desse modo, em 2018, tendo havido a liberação do território indígena para a implantação da refinaria de petróleo, no contexto da expansão do CIPP, o Estado do Ceará e a Petrobrás constituíram, em contrapartida, uma Reserva Indígena para abrigar 163 famílias Anacé de Matões, Bolso, Baixa das Carnaúbas e Currupião, que foram desapropriadas.

Em paralelo a isso, a demarcação da Terra Indígena Anacé permaneceu em suspenso, até que, em fevereiro de 2018, o Presidente da Funai, em visita aos indígenas, comprometeu-se a reativar o Grupo de Trabalho (GT) de identificação e delimitação da Terra Indígena. Em outubro de 2018, foi publicada portaria instituindo um novo GT, cuja composição foi alterada em 2019, não tendo havido, ainda, providências conclusivas quanto à demarcação.

No contexto de avanço do CIPP e, de outro lado, de morosidade no reconhecimento dos direitos territoriais indígenas, possibilitando o despojo, os Anacé iniciaram um processo de retomada de suas terras.

As retomadas Anacé

De 2015 até 2020, os Anacé realizaram cinco retomadas, sendo três em uma região conhecida como Salgadinha/Japuara, uma quarta realizada em uma região conhecida como Lagoa do Barro, e outra próxima à Aldeia Mangabeira (Retomada das Queimadas). Todas elas se inserem no território tradicionalmente ocupado pelo povo indígena Anacé.

Em 2015 ocorreu a primeira retomada. Conforme Climério Anacé, trata-se da Retomada da Salgadinha, também conhecida como Japuara ou Sede, que começou a ser organizada no início daquele ano até se concretizar no dia 30 de março de 2015. Os motivos que levaram à execução da retomada estavam relacionados, segundo nosso interlocutor, à falta de espaços para os indígenas desenvolverem suas atividades e seus projetos:

[...] foram dois meses organizando e planejando ela por um simples motivo, o território Anacé é cercado por grileiros, fazendeiros e posseiros e a maioria do povo tava sem espaço para plantar e já tinha voltado um projeto de um posto de saúde para o nosso território que não tinha, sabe, e esse posto foi remanejado para outra localidade, para a localidade de Santa Rosa, e a gente conversando com algumas lideranças, foi tomada a decisão que a gente ia fazer uma retomada porque não dava mais pra gente perder um posto de saúde, os projetos, porque não tinha espaço para colocar, né? (CLIMÉRIO ANACÉ).

Os Anacé, especialmente da Japuara, vivem em um território encravado por grandes e médias propriedades de terra, algumas delas resultantes de antigos engenhos de cana e de fazendas de criação de gado, muitas delas convertidas em loteamentos ou apenas para especulação imobiliária. A entrada dos fazendeiros nunca foi total, porque os indígenas continuaram mantendo pequenos núcleos de resistência, pequenos sítios, ou vivendo, ainda que de forma subalterna, nos seus territórios de ocupação tradicional, trabalhando para os fazendeiros.

Embora a região da Japuara esteja a cerca de 20 quilômetros do centro nevrálgico do CIPP, os Anacé dessa região também sofrem impactos diretos do Complexo, os quais são impulsionados por outros empreendimentos, como rodovias, loteamentos, projetos de agronegócio e de exploração minerária, muitos deles com o objetivo de se obter insumos para as indústrias e construções do CIPP.

A chegada na primeira retomada não foi tranquila, como, em regra, nunca o é. Embora o planejamento tenha sido realizado por muitos meses e os indígenas contassem com o apoio dos encantados, a Polícia Militar foi acionada por uma moradora da região e parente de Seu Antônio Ferreira, que não concordava com o movimento indígena. O ato dessa senhora é tratado até hoje como uma “traição do sangue indígena”.12

Quando chegou, a Polícia efetuou a prisão de três lideranças, todas com mais de 60 anos, dentre elas Seu Antônio, então cacique do povo Anacé, Seu Adriano Passarinho e Seu Tibúrcio Anacé. Não havia crime imputado a eles, nem mesmo inquérito ou processo em curso. Nesse sentido, tratava-se de prisão arbitrária ou ilegal. Conforme relato dos indígenas, o Coordenador Regional da Funai em Fortaleza à época foi acionado e conseguiu “soltar” as lideranças, após mais de seis horas de detenção. O retorno de Seu Antônio e das demais lideranças à retomada naquela noite fortaleceu a luta e “espírito de guerreiro” Anacé. A primeira cerca havia sido levantada, a aldeia poderia relevantar com a força dos encantados.

Essa retomada é compreendida pelos Anacé como aquela que possui uma significação peculiar. Foi a partir dela que o território foi se descortinando e, se antes eles tinham que viver em pequenos sítios encravados em um território dominado por fazendeiros, grileiros e posseiros, a retomada lhes permitiu garantir espaço para as mobilizações, para as reuniões e para os rituais, fazendo a terra aparecer, na mesma expressão utilizada por Jurema Souza (2019) para falar das retomadas entre os Pataxó Hãhãhãi na Bahia.

Em geral, os Anacé afirmam que o motivo que os move a recuperar terras é a defesa do território e das suas condições de vida. Ter espaço para a agricultura é importante. No entanto, mais que isso, a realização das retomadas está intimamente ligada com a organização indígena. As retomadas podem ser assim percebidas como processos: “[…] porque a retomada faz parte de um pico de organização muito grande, sabe, então, quando acontece uma retomada, o nosso povo se organiza mais, de momentos em momentos.” (CLIMÉRIO ANACÉ).

Perguntado sobre qual retomada, dentre as que Roberto Anacé acompanhou, havia lhe marcado muito, respondeu:

A primeira retomada, ela marcou muito. Quer dizer, cada retomada ela tem uma simbologia, ela tem algo que marca. E eu vou falar das retomadas que eu frequentei, que eu estive e o que foi que marcou todas elas. Elas não são iguais, né? Vamos tratar a retomada como um local da terra, do planeta, aqui onde eu estou não é igual aonde você está, mas está conectada. A terra é conectada. As plantas, as raízes são conectadas. Existe uma espiritualidade que conecta e passa a conectar tudo isso [...] Então, as importâncias da retomada é isso. É trazer para o ser humano essa conexão. É mostrar para o ser humano essa conexão. E a coisa que mais marcou na primeira retomada, é uma coisa que não é física, mas é, foi, não chego a dizer o grito, mas foi a expressão de libertação do povo na primeira retomada. Porque até então, o povo vivia em reuniões, em quintais. Em reuniões em casas de pessoas e não tinha um local específico para se reunir, para reconstruir o laço com a terra e esse momento da primeira retomada foi um bater de asas para se criar uma ideia de que nós podemos avançar e tentar curar as feridas da nossa terra, seja as feridas nas matas, seja as feridas nas agressões. Tentar despoluir aonde nós sempre existimos.

Então, essa primeira retomada teve esse valor e trouxe para os nossos indígenas o que é mais importante para um guerreiro que é a vontade de lutar, a vontade de viver, né? A vontade e a consciência da união do povo Anacé.

No relato, Roberto fala de conexão, de que as retomadas asseguram, trazem de volta para o ser humano essa conexão entre si e com a terra, sendo uma “expressão de libertação do povo”. Esse é um dos aprendizados que as retomadas trazem para os Anacé. Em dois momentos, posteriores à realização da retomada de 2015, pudemos acompanhar, por meio de outros interlocutores Anacé, o sentido dessa conexão de que Roberto falava.

Em dezembro de 2021, colhendo relato de Élber Anacé, liderança jovem da Aldeia Parnamirim que se reconheceu como indígena e levantou sua aldeia em fevereiro daquele ano, o jovem líder Anacé narrou um episódio importante para ele. Em 2016, todas as árvores que constituíam uma mata próxima à lagoa que dá nome à aldeia foram derrubadas pelo maior proprietário de terras e especulador da região, um dos principais antagonistas dos Anacé. Narrando esse episódio, Élber, com os olhos marejados, falou:

Foi em 2016. Eu senti uma dor tão grande vendo os cajueiros da minha idade, que cresceram comigo, e os muito mais velhos que eu sendo retirados e eu olhando pela minha janela sem poder fazer nada. Ainda não me reconhecia como Anacé, senão tinha partido pra cima. Mas tudo tem seu tempo.

A relação de Élber com os cajueiros não é uma relação de sujeito-coisa. Ele não os vê como bens ou recursos, mas como parentes que cresceram juntos. Daí se refere a uma dor indizível, que só é compreendida a partir da conexão de que Roberto falava. Contudo, Élber não pode fazer nada, porque é o “sentir-se Anacé que vai dar coragem, vai ativar o espírito de guerreiro” (ROBERTO ANACÉ).

Em março de 2022, Áurea Anacé, liderança das mulheres, relatou-nos o episódio de aterramento da Lagoa do Cauípe pela Prefeitura Municipal de Caucaia, para obras de urbanização de interesse de grandes empreendimentos turísticos. Os indígenas lá chegaram para tentar barrar os tratores que aterravam a Lagoa, sem sucesso. Sobre esse momento, Áurea nos disse: “Quando eu vi a Lagoa sendo aterrada, eu senti uma dor tão grande que eu nem sei dizer. Parecia que eu tava perdendo um filho. Por que isso, gente? Será que isso não dói no coração deles [dos não indígenas]?”

A Lagoa do Cauípe, localizada na Aldeia do Cauípe, dista quase 20 quilômetros da Aldeia Japuara. No entanto, a conexão de que Roberto falava fez Áurea sentir que a Lagoa era um parente, um filho que ela estava perdendo com o aterramento. Há uma compreensão mais que ecológica aqui. Nem o humano nem o ecossistema têm centralidade: tudo é profundamente conectado.

São as retomadas que, segundo Roberto, ativam essa conexão, sendo um aprendizado adquirido com e pela luta. Logo, o sentido de retomada empreendido pelos Anacé ultrapassa o de um mecanismo político utilizado pelos povos indígenas para acelerar os processos de demarcação de suas terras e o reconhecimento estatal de seus direitos fundiários. Elas asseguram condições de possibilidade e um horizonte de luta comum para os indígenas. Representam uma expressão de altivez de se fazer Anacé, de se fazer guerreiro, rompendo o ciclo de destruição das matas e dos próprios indígenas. É a “expressão de libertação” e de cura dos territórios, das matas e das feridas em si mesmos.

As retomadas Anacé são formas de promover os fluxos da vida em suas múltiplas conexões. São formas de resistência que não apenas se opõem ao principal projeto de desenvolvimento do Estado do Ceará, capitaneado pelo CIPP, ou à omissão reiterada da Funai, no sentido de não reconhecer os direitos territoriais indígenas. São resistências que criam, que re-existem. Onde se enxerga ruína e vidas precárias, as retomadas criam potência de presente e de futuro.

Mais do que impulsionar a demarcação pelo Estado, portanto, as retomadas compreendem, para os Anacé, reaver uma relação, seja com a terra, seja com os encantados, seja com eles mesmos. Do mesmo modo, observou Alarcon (2020, p. 17, grifo do autor) entre os Tupinambá na Serra do Padeiro:

[…] quem retorna é a terra - conforme são libertadas as porções presas em fazendas, o território mutilado vai recobrando sua integridade. O retorno se desdobra em processos circunscritos, mas conectados: o retorno dos encantados, também impactados pelo esbulho; o retorno dos bichos, que vêm reaparecendo, após terem ficado escassos, em função da penetração de não indígenas no território; e o retorno dos parentes na diáspora, que, mesmo esbulhados e esparramados, mantiveram-se arraigados a seus lugares de origem e à coletividade da qual, de uma forma ou de outra, nunca deixaram de fazer parte.

Nas palavras de Roberto Anacé:

[...] esse motivo da minha existência nessa década, nesse momento, nessa dimensão é para tentar devolver aos nossos antepassados e aos que estão presentes isso que era nosso e que nos foi tirado. [...] Então, nós enquanto guerreiros, estamos aqui para defender tudo isso. E retomada é um nome simbólico, mas na verdade, é a terra que nos interessa. [...] Nós queremos ver as matas como eram, queremos ter as caças como tínhamos, queremos ver os pássaros que tínhamos, porque muitos dos nossos não vê, não temos o prazer de ver. Então são essas coisas que parecem invisível ao olho do branco, mas são essas coisas, são esses laços que são importantes. O pássaro fica lá na sua árvore, mas a gente sente que a gente tem um laço com ele. A terra tá lá, pode ser cultivada ou não mas a gente sente que a gente tem um laço com ela. Então, é muito importante a retomada porque a retomada dá esse gosto ao indígena de curar aquele ser que é a Terra. A gente tenta fazer isso. Enquanto eles avançam com imobiliárias, com indústrias, com agronegócio, a gente tenta avançar também para curar aquela terra que foi devastada, que foi sangrada, que foi destruída, que foi tirada. A terra como um ser que tem cabelos, que são as nossas matas, foi tirado esses cabelos e a gente tenta devolver a essa nossa mãe, o cabelo dela de volta e, consequentemente, todas as outras coisas que fazem parte desse contexto.

As retomadas não recuperam só terras, portanto. Elas recuperam origens, parentes, encantados, bichos. Na fala de Roberto Anacé, é forte a motivação das retomadas como condição para que os diferentes animais e os encantados voltem a habitar o território e, com eles, a própria memória que volta e se reelabora junto com a terra (ALARCON, 2020).

A segunda retomada, realizada em 2016, teve uma motivação um pouco diferente da primeira. Os Anacé se viram em uma situação de defesa de uma indígena que ficava fazendo a “guarda” de uma das entradas do local. As mulheres cumprem importantes papéis no contexto das retomadas Anacé, seja promovendo, junto com os homens, o ato inicial de entrada no território, seja garantindo a alimentação para todos os indígenas, como também a guarda e a vigília dos locais retomados.

Já a segunda retomada foi uma questão não sei se de orgulho ou se foi de defesa. Acredito que foi mais foi de defesa pelo ser feminino. No momento dessa segunda retomada, o posseiro, todos os dias, passava na casa da vizinha, da pessoa que era uma das que cuidava do terreno, e ameaçava ela, você ficou sabendo, e ameaçava, não sei mais o que. Fez BO, levou para a delegacia. E as lideranças pegaram e disseram: olha, isso daí acabou-se. Se ele vai fazer isso com você, ele vai fazer com todos agora. E aí, nós adentramos na segunda retomada. E a gente começou a criar esse laço, esse entendimento das lutas. O povo começou a absolver, a inferir esse espírito dos guerreiros indígenas Anacé. (ROBERTO ANACÉ).

O entendimento das lutas que Roberto menciona levou a uma compreensão, entre os Anacé da Japuara, de que não dá para defender a MãeTerra se se é tolerante com a violência contra as mulheres. Essa, portanto, passou a ser uma questão importante nas reuniões entre os indígenas, motivando a mobilização das mulheres e o debate entre eles sobre a luta contra todas as formas de violência. O espírito dos guerreiros indígenas Anacé também passava pela compreensão dessas lutas articuladamente, tendo a esposa de Roberto, Áurea Anacé, um papel destacado nesse tema.

Em julho de 2017 ocorreu a terceira retomada, que, diferente das anteriores, não seguiu um rito que começa com intensa pesquisa, planejamento e orientação dos encantados, cujos ensinamentos são dirigidos aos guerreiros e lideranças Anacé. É a encantaria Anacé que informa o melhor local e período para as retomadas serem efetivadas.

Porque assim, a ideia dos guerreiros e das lideranças Anacé era fazer mais as coisas não é muitas vezes... É como os encantados quer. A gente entende isso. [...] Mas nesse contexto, surgiu a entrada de uma terra que era ali na Lagoa do Barro. E nesse mesmo dia que eles estavam cortando para fazer suas barracas, suas coisas, eu passei lá em frente. [...] A gente não parou para perguntar quem era, só passamos e voltamos. Com três dias depois, eles vieram aqui falar com o Cacique Antônio porque eles tinham sofrido ameaças. [...] Aí, eles vieram aqui para dizer que tinham sofrido ameaça, que estavam entrando dentro de uma terra. E nesse momento dessa luta, eles mesmos se identificaram e disseram: ‘Ah, mas tem mesmo os indígenas que é parente, mais o quê.’ e vieram aqui saber da certeza e pedir ajuda ao Cacique Antônio. E o Cacique Antônio, como guerreiro, ele não negou ajuda. E nós começamos a intensificar nossa presença na Lagoa do Barro e começamos a mapear quem era e quem não era [indígena]. Porque nesse momento entra pessoas que não são indígenas, e é preciso separar o trigo do joio. E a gente começou a mapear as famílias e dizer, e foi uma coisa que afastou muita gente, claro, que não tinham interesse indígena. A gente disse que a terra não é vendável. Pode-se fazer uma distinção, porque para os Anacé, a terra não é vendável. É tanto que eu perguntei outro dia prus que estavam lá se eles venderiam a mãe deles. Alguns ficaram com a cara meia torta e tal, mas entenderam. [...] Uma coisa importante para nós, a gente retratar isso. Nós Anacé. Pode ser meu irmão, se ele destratar a nossa Mãe-Terra vendendo ela, ele não pertence mais ao nosso povo. Então, isso é regra. É lei. E dado pelo cacique. Ele cansava de dizer: ‘Eu não sou corrupto, e ninguém pega no meu braço.” E esse cacique aqui também é do mesmo jeito. (ROBERTO ANACÉ).

Pudemos acompanhar a retomada da Lagoa do Barro com mais proximidade, em diálogo com as famílias e apoiando o mapeamento de suas histórias e relações com o território. Nas oportunidades em que estivemos presentes, ainda em 2017, identificamos muitas barracas de lona instaladas, embora nem todas contassem com ocupantes no momento das nossas visitas. Crianças e animais, especialmente cachorros e galinhas, disputavam nossa atenção. Muitos queriam saber “como era essa história de terra indígena”. A retomada da Lagoa do Barro não era só Anacé. Havia não indígenas interessados no território e “parentes não formados na luta”.13

A retomada foi motivada pelo cercamento e instalação de placas no local que antes era utilizado pelas famílias para extrativismo, pesca e coleta de frutos. Quando as famílias observaram a instalação de piquetes dividindo o terreno, decidiram retomar, solicitando, depois de terem rompido a cerca, o apoio das lideranças. No entanto, alguns tinham interesse de ficar com uma parte do terreno para depois vender e outros queriam se estabelecer ali, sair do confinamento, do aluguel, da subserviência. Entretanto era preciso ensinar a lei da aldeia: “a terra é a nossa mãe e não se vende”, conforme defendia Cacique Antônio Anacé, falecido em 2019. O ensinamento e a aprendizagem dessa regra são fundamentais para se constituir pessoa Anacé. Pode dividir parentes e famílias, mas se “destratar a nossa Mãe-Terra vendendo ela, ele não pertence mais ao nosso povo”, o que lembra Alarcon (2020, p. 17, grifo do autor) em torno das retomadas entre os Tupinambá da Serra do Padeiro: “O parentesco, vínculo que orienta a recuperação territorial, é atualizado por ela, podendo ser ativado quando latente ou esgarçado e mesmo rompido. Os parentes fazem a luta, a luta faz (e desfaz) parentes.”

A retomada da Lagoa do Barro seguiu, assim, um destino diferente das anteriores. Mesmo contando com o apoio do Cacique Antônio e das demais lideranças Anacé, foi questionada judicialmente, tendo a Justiça estadual determinado a reintegração de posse (Processo nº 0063923-67.2017.8.06.0064). Embora a competência para julgar o caso fosse da Justiça Federal, por se tratar de conflito envolvendo direitos coletivos indígenas, a reintegração de posse foi cumprida, de forma violenta, em janeiro de 2018, deixando inúmeras famílias indígenas sem destino.

Tais famílias foram acolhidas pelos Anacé nas retomadas anteriormente realizadas, ampliando a necessidade de uma nova retomada. Foi nesse contexto que os indígenas realizaram a retomada São Sebastião. Não havia espaço para assegurar as moradias, o local de plantio, de reuniões e de rituais. O espaço retomado havia ficado pequeno para a luta, sendo necessário romper mais cercas e fazer a terra aparecer toda (SOUZA, J., 2019). De acordo com Roberto Anacé:

E já a terceira retomada,14 porque o cacique disse que nós precisávamos ter um local para os nossos rituais, precisávamos ter um local para nós. Como diz alguns estudiosos, a espiritualidade Anacé é pra dentro, então a gente tenta fazer o máximo de segredo possível relacionado a isso. É tanto que o cacique, na terceira retomada, já tinha marcado um canto, a espiritualidade tão grande, o entendimento, já tinha marcado um canto que seria o cemitério do povo Anacé. E esse cemitério ficou lá criado. E o cacique brincando disse que o primeiro velho que fosse dava o nome pro cemitério. E hoje, o nome do cemitério, é cemitério do Cacique. E nessa ideia, da terceira retomada, eu acredito que a terceira retomada é uma retomada da espiritualidade.

Tanto a primeira retomada, em 2015, quanto a Retomada São Sebastião, em 2018, foram momentos de muita tensão vividos pelos Anacé, sobretudo pela reação dos não índios que detinham títulos de propriedade sob os imóveis retomados, os quais mobilizavam a Polícia Militar com o objetivo de expulsar os indígenas. Uma liderança Anacé narrou-nos que a primeira retomada deu experiência para os indígenas suportarem “o tranco” das demais: “Sempre é muito difícil, sempre tem intimidação, sempre a polícia chega pra fazer aquele estrago, aquele destroço, mas a gente aprendeu na experiência mesmo, o que eles podiam e não podiam fazer.” (ADRIANO PASSARINHO). Fazer retomada para os Anacé não é, como visto, uma tarefa tranquila. Para eles, são muitas as dificuldades que aparecem:

As dificuldades que a gente encontra são três, no meu ponto de vista, né? A primeira é a não regularização do nosso território que nos obriga a fazer a nossa autodemarcação e com isso vem um complô, um coletivo, um conjunto de negação por parte do Poder Judiciário, até por parte do próprio poder da Funai, até do próprio Ministério Público, DPU, tudo isso. Então essa articulação ela tem que ser construída e muitas das vezes não encontramos nessas organizações pessoas que tenham simpatia, sabe, a própria Funai no seu papel constitucional de uns 8 anos pra cá ela não vem exercendo de forma esse papel. [...] O segundo é a nossa organização política mesmo que muitas das vezes nós mesmos entramos em conflitos sobre a própria retomada, sabe, sobre como organizar ela, como reger ela, mas essa não seria uma grande dificuldade, é mais no âmbito do debate. E a terceira é a violência que a gente sofre por meio de terceiros, que ameaçam, hostilizam, isso tudo. (CLIMÉRIO ANACÉ).

Importante notar na fala de Climério que as retomadas não são processos estanques, acabados. Não se trata apenas de “romper a cerca”, mas também de estabelecer uma convivência que não está dada. Os conflitos internos são comuns em torno da organização da retomada, mas é no âmbito do debate, da construção coletiva, do fazer junto, que os Anacé vão dando rumos e fortalecendo sua pedagogia do território, constituindo pessoas e guerreiros para a luta. As retomadas se fazem fazendo, o que nos lembra as lições de Paulo Freire (1997, p. 79): “ninguém caminha sem aprender a caminhar, sem aprender a fazer o caminho caminhando, refazendo e retocando o sonho pelo qual se pôs a caminhar”.

O consenso é um processo bastante delicado de costura cotidiana. Como se luta junto não está dado, se aprende fazendo, mas isso, como Climério mesmo diz: “não seria uma grande dificuldade, é mais no âmbito do debate.” O difícil mesmo é dialogar com os não indígenas e, principalmente, com o Estado:

A coisa mais difícil nas retomadas é a compreensão do Estado. Que ele dita as leis, diz que é para seguir as leis e ele mesmo não segue. Como no fato da demarcação, né? Teria que se dar todo o suporte para o estudo da Terra Indígena e no momento em que a gente tá, você tá vendo, né? Eles tiram todo o suporte. Eles teriam que dar todo o suporte para a Terra Indígena. Teria que passar por todo o processo, esse estudo, chegar ao momento da desintrusão, isso no prazo de cinco anos. É regra. Tá na Constituição. Então, essa dificuldade que a gente entende é que o próprio Estado não segue a Constituição. O próprio Estado que cria as constituições, os políticos, eles não seguem. Então a dificuldade maior é a gente entender que a Constituição punitiva ela só é para nós. Então, quando a gente adentra numa retomada, só vêm punição. Nunca vem uma coisa boa, tipo, o reconhecimento da lei: “eles estão certos”. Estão reavendo o que era do povo. Mas isso não é feito. Então, é uma dificuldade muito grande. Um entendimento do Estado para com a nossa existência. (ROBERTO ANACÉ).

A fala de Roberto Anacé evidencia o exercício do rapport pedagógico do Estado (GRAMSCI, 2011), em que são acionados diferentes dispositivos que visam “educar” a sociedade ante o Estado. No caso em análise, é a disputa do território que configura os mecanismos utilizados, como a presença militar, o acionamento jurídico ou a omissão dos órgãos públicos responsáveis pela questão fundiária, nas tentativas de coibição e coerção para manter a propriedade privada dos territórios indígenas para fins de consolidação do CIPP e de outros empreendimentos. A compreensão de que o diálogo com o Estado é sempre muito difícil é partilhada também por Amado (2020, p. 162):

A conduta territorial que antes usurpava, invadia e despejava comunidades inteiras de seus territórios tradicionais hoje se traduz numa ‘conduta política’, sistematizada no conjunto de articulações estatais imbricadas em todas as instâncias de poder da máquina estatal, com o nítido objetivo de impedir o reconhecimento desses territórios tradicionais.

Nas retomadas, o papel do Seu Antônio Anacé era de muito diálogo e mediação. Ele tinha uma centralidade nas questões cotidianas e na gestão da vida nas aldeias, sendo referência na memória e na ciência Anacé. Era a sua palavra a definidora na identificação de famílias como pertencentes ou não ao povo Anacé. Vimos, inúmeras vezes, Seu Antônio tirar do seu próprio sustento, como aposentado, para garantir comida nas retomadas, mantendo a união e a coesão do grupo. Contudo Seu Antônio Anacé, infelizmente, não conseguiu alcançar os trabalhos de campo do GT de Identificação e Delimitação designado pela Funai em 2019. Em 17 de junho de 2019, o cacique faleceu. Entre os Anacé da Japuara, a partida, ou como eles preferem nominar, “o encantamento” do Seu Antônio já era coisa que iria acontecer. Nesse sentido, Áurea Anacé mencionou:

Então, Cacique Antônio, eu própria falo, por conta que em um ritual, em um toré de uma virada de ano, ele chegou para finalizar o ritual e quando eu abri os olhos e levantei a vista, eu não vi. Ele estava na minha frente como nós fica, mas eu só vi a matéria, o espírito não tava mais. O espírito já tinha saído e estava entre nós. Eu não sei nem te explicar, mas não tinha [espírito]. Eu até conversei com o Cacique Roberto: abrace seu pai, beije e conviva com ele cada momento da sua vida, porque ele não tá mais aqui com a gente, ele já está encantado. Então, passou-se 6 meses, que foi junho que ele faleceu, depois desses 6 meses, ele veio a se encantar. Depois disso, ele vem aparecendo para a gente, para os menino, vem se conectando comigo em sonhos, né?

Em 2019, quando do falecimento do Cacique Antônio, a retomada São Sebastião ainda enfrentava bastante resistência dos não indígenas, incluindo boletins de ocorrência, processos judiciais e incursões de equipes armadas para intimidação. No entanto, o desejo do cacique envolvia realizar a autodemarcação15 do território com seu próprio corpo.

O pai foi plantado, né, não se enterrou, foi plantado na nossa última retomada que a gente chama aqui de Retomada São Sebastião como um ato de autodemarcação com o próprio corpo, sabe, foi um espaço que ele, em vida, delimitou, ele, em vida, escolheu o canto que ele queria descansar, sabe? E isso é algo muito forte dentro do nosso povo, porque isso ajuda a gente a continuar no caminho da luta, no caminho da resistência. Os encantados tem esse importante papel, sabe, de escolher, não escolher o canto, né?, mas fazer a guarda, fazer a defesa das retomadas. Antes da retomada, a gente tem adotado rituais pra fazer. A gente tem feito algumas cerimônias e até mesmo o encantado ele vem e fala e dá orientações de como será a retomada, como será não só no dia da retomada, mas como será nos próximos tempos de retomada. Então os encantados tem esse importante papel porque eles também não podem dizer ‘vai ser aquela’, não, eles podem orientar como é que acontece, como é que faz, como é que se organiza sabe. Então esse importante papel do encantado é a defesa do nosso território junto com a gente, nos orientando. (CLIMÉRIO ANACÉ).

Demarcar a terra com o próprio corpo, conectar os indígenas antepassados que morreram na luta com os atuais Anacé pela terra, é algo que, na compreensão dos indígenas, passa tanto pela mediação das retomadas quanto pela mediação dos encantados:

Antes disso tudo, antes da gente recomeçar o movimento, relevantar o nosso povo, reorganizar o nosso povo, a gente sabia que uma parte do nosso povo ela não tinha trabalho, não tinha esperança, era totalmente entregue aos grandes poderosos, sabe, no emprego, nisso tudo. Quando a gente começa uma retomada, a gente começa a dar uma visão pro povo de que é possível ser livre. É possível ser livre dentro do território, não é preciso ser preso dentro desse território. Com a autodemarcação com o corpo do pai, isso se consolida, sabe?, que a gente é livre, a gente pode ser livre em vida, pra que quando a gente tombe, a gente tenha um canto sossegado pra descansar, um canto onde a gente sabe que é o nosso lugar, é o nosso sagrado, é o nosso canto. E isso é muito importante pro nosso povo. É ter consciência que apesar de tudo tenha um canto pra vir, um canto pra voltar. Eles podem rodar o mundo, podem ir pra vários cantos, mas eles sempre vão ter o canto deles, seguro, certo, porque é ali onde vai estar o cacique deles. E isso é o, isso aqui não é um pensamento meu, é um pensamento que a própria comunidade expõe muito forte isso. (CLIMÉRIO ANACÉ).

Ao mencionar que as retomadas garantem a certeza aos Anacé de que, apesar de tudo, têm um canto para ir, para voltar, Climério Anacé nos lembra que as retomadas trazem de volta com a terra os parentes, implicando na reversão da diáspora (ALARCON, 2020) decorrente do processo de expulsão e confinamento de famílias indígenas para a instalação de projetos coloniais dilargados no tempo. Os sentidos Anacé para as retomadas os aproximam dos Guarani e Kaiowá, conforme refletido por Seraguza (2018, p. 227):

Pensar as ‘retomadas’ de terra nesse contexto, levando em consideração a complexidade de sua composição, de que não se trata de recuperar ‘a terra pela terra’ a proposição cosmopolítica nos mostra ‘algo de mais importante’, como o que se retoma com isso: a relação com os parentes, o ato de comer junto, a possibilidade de vivenciar acontecimentos, os bons modos de vidas, os cuidados com as pessoas, e principalmente, a relação com as plantas, os animais, que são mediadas pelas divindades; e as próprias relações estabelecidas com essas divindades.

Ao passo que se mobilizam, os Anacé são mobilizados pelos encantados, informados por uma memória acessada na reconstrução das relações e conectados com um fluxo ininterrupto que, segundo eles, está nos nossos corpos e em todos os existentes.

Seu Antônio foi, ao longo da vida, preparado pelo seu avô e pelos encantados para agir e promover o relevantar do povo Anacé. Agora, enquanto encantado, continua a ter coexistência e coetaneidade com os Anacé atuais. Por diversas ocasiões, vimos o poder da sua agência nas definições estratégicas da vida e da luta Anacé, mesmo após o seu falecimento. Especialmente em outubro de 2020, quando foi realizada a nova retomada Anacé.

Denominada Retomada das Queimadas, os Anacé resolveram retomar esse território, próximo à Aldeia da Mangabeira, após um incêndio muito grave que foi provocado pelo suposto proprietário do imóvel. “O pai não deixaria essa mata pegar fogo não.”, comentou Roberto Anacé. A confiança de que o ato de retomar tinha o aval e a concordância do Seu Antônio, agora encantado, mobilizou os indígenas a ampliarem suas áreas retomadas, mesmo em um contexto de pandemia da Covid-19. As matas, enquanto morada das histórias dos Anacé e dos encantados, não podiam ser destruídas daquele jeito. Assim como as demais, a retomada das Queimadas também está sub judice, sendo questionada em processo de reintegração de posse que tramita perante a Justiça Estadual, a despeito de tratarse de conflito sob direitos territoriais indígenas.

O destino da retomada das Queimadas não está dado, assim como o das demais retomadas empreendidas pelos Anacé também não está. Todavia há um caminho que já foi trilhado e ele é sem volta: o aprendizado Anacé não só de fazer retomadas, mas de se perceberem indígenas, guerreiros curadores das matas e articuladores das encantarias. Os Anacé foram ativados por um saber e uma memória ancestral informada pela força dos encantados que estão fisicamente encravados no seu território de ocupação tradicional (BRISSAC; NÓBREGA, 2010).

As retomadas como pedagogia ou Pedagogias das Retomadas

Pelas narrativas Anacé, podemos afirmar que as retomadas garantem não apenas uma vida possível de ser vivida no presente, uma vida livre e conectada com a corrente dos encantados, mas também possibilitam construir outros mundos, projetando outras formas de existência. Retomar, portanto, não é retornar a um passado idílico, mas garantir condições de possibilidade para se (re)criar mundos e criar coisas novas em mediação com a ancestralidade dos lugares e dos encantados. Estes, agentes ativos no processo de recuperação dos territórios indígenas, agenciam os Anacé e são agenciados por eles.

Nesse processo, as retomadas constituem pedagogias de reversão colonial, patriarcal, racista e classista, restaurando, no âmago dos sujeitos indígenas, a sua potência emancipatória coletiva, podendo ser compreendidas como exemplos de pedagogias sentipensantes e revolucionárias (BARBOSA, 2020).16 Esta autora, a partir da categoria sentipensante de Fals Borda (2009), compreende que o processo de construção do conhecimento entre os movimentos indígenas e campesinos conjuga um movimento dialético entre coração e razão. Além disso, ao trazerem consigo um conjunto de conceitos concebidos à luz da matriz epistêmica da cosmovisão indígena, dos saberes ancestrais e das práticas tradicionais, que foram negados no âmbito da educação formal, os projetos educativo-pedagógicos articulados pelos movimentos indígenas e campesinos podem constituir uma disputa hegemônica enquanto força social e histórica (BARBOSA, 2020).

Não se trata aqui de uma dimensão instrumental do processo de ensino-aprendizagem que caracteriza a ciência pedagógica. As retomadas não espelham práticas escolares e acadêmicas. Estamos pensando a partir de uma compreensão ampliada de educação (BRANDÃO, 2019), em que a oralidade, a observação, a convivência, a partilha, a colaboração, o colocar-se na luta, são metodologias centrais para aprender junto e no território a ser Anacé. Nesse sentido, são as retomadas os espaços que mantêm a vida pulsando. São elas que relembram e ativam cotidianamente nos Anacé a tarefa e o desafio de se fazerem indígenas, evitando a colonização de seus corpos e de seus pensamentos. Constituem, portanto, uma pedagogia do concreto, do chão da aldeia, do colocar o corpo nos arames das cercas e rompê -las, num ato de ressignificação de si mesmos.

Trata-se, aqui, de uma pedagogia preocupada com a educação, e não com a escolarização, a partir de processos educativos forjados na vivência do território, que são profundamente mediados e agenciados pelos encantados. Ou seja, um tipo de pedagogia territorializada, “que significa o vínculo indissociável entre o pedagógico e os elementos culturais que emergem do território e do contexto sociocomunitário na construção do conhecimento e de seu vínculo com os processos políticos” (BARBOSA, 2020, p. 285, tradução nossa).

As retomadas, ao possibilitarem que a memória longa dos processos comuns de opressão emerja e, junto com ela, os encantados, as práticas alimentares, os modos de ser, estar, fazer e de socializar-se, vão reescrevendo corpos-territórios (TAVARES, I., 2019) que se constroem e se reconhecem na luta. Parafraseando López Inztín (2013 apud BOLDT; BARBOSA; SALAZAR, 2021): retomar, reaprendendo a viver. Assim, os aprendizados enterrados e soterrados pelo peso da opressão colonial, racista, patriarcal e capitalista, que, como sementes, aguardam o tempo certo para germinar, podem, enfim, emergir.

Percebe-se um exercício endógeno e exógeno: reconhecer-se como indígena, fazendo-se na luta; e fazer a terra aparecer (ALARCON, 2020) para os de fora, revertendo o longo processo de ocultação, silenciamento e extermínio físico e simbólico intrínseco à história dos povos indígenas, não só no Ceará. Nesse sentido, Amado (2020, p. 227) reforça a importância de trabalhos com povos indígenas retratarem esses coletivos como um “conjunto de atores sociais que não ficaram estanques no tempo, mas que sofreram mudanças, ressignificaram vários símbolos e, nem por isso, deixaram de pertencer a seus povos”.

O sentimento de pertencimento e a percepção da alteridade (AMADO, 2020) seriam centrais no processo de reversão da colonialidade e das relações tutelares impostas pelo Estado em relação a esses povos. As retomadas Anacé, portanto, possibilitam que esses fundamentos (pertencimento e alteridade) aflorem em condições mais favoráveis para as existências indígenas. Na situação limite de colocar seus corpos como alvos ao romperem cercas, os Anacé produzem mundos e práticas que dão sentido às suas inquietações e angústias: “agora eu tenho certeza do que sempre soube: sou indígena”, como ouvimos tantas vezes nos espaços retomados.

Nesse contexto, são centrais as figuras dos encantados. Daí falarmos de uma pedagogia territorializada, que é fundamentada, formulada e praticada nos territórios específicos e considerando os elementos que os compõem, mas que também é uma pedagogia da encantaria. Além de sujeitos políticos e religiosos, que orientam a luta a partir de suas ações observadas e materializadas pelos Anacé, os encantados são sujeitos pedagógicos. São eles que possibilitam as descobertas de histórias, de memórias, de fazer a luta, que estavam encobertas pela historiografia do apagamento indígena. São os encantados que possibilitam “buscar fundo” na memória a partir de uma história longa, mediada pelos lugares, pelos encontros e pelas reelaborações. Os encantados trazem ensinamentos sobre o que, como e de que modo fazer. Ensinam a curar, a lutar, a dançar, a pintar, e o fazem, entre os Anacé, por meio de escolhidos para recebê-los e por meio de sonhos, mais amplamente acessíveis aos membros do povo indígena. Áurea descreve o seguinte sobre a encantaria Anacé:

Eu vou falar de mim, do que eu sinto aqui dentro, nesse território [na Retomada da Salgadinha]. Logo quando eu cheguei aqui, eu passei a sentir algumas coisas, a ouvir. Eu não vejo assim, diretamente, como tem algumas pessoas que vê. Eu vejo quando eu estou em rituais ou em rodadas de toré. […] nos rituais, nos torés, eu passo a sentir as tristezas, as alegrias, das pessoas que estão dentro dos territórios, que não só as vivas e sim as encantadas. É por isso que se chama assim de encantados, porque nos rituais e nos torés a gente sente, eu sinto a presença deles. Se é alguma angústia, eu sinto angústia, se é alegria, eu sinto alegria. Dentro do nosso território existe isso tudo. Conexão com os pássaros, conexão com as árvores, conexão com a água e conexão até com a espiritualidade, porque quando eu repasso para você que nós somos as folhas dos troncos e as sementes, porque é aonde vai renascer, vai plantando-se e o restante vai nascendo, os frutos que vão caindo vão nascendo.

Sendo folhas dos troncos e sementes, os atuais Anacé se conectam não apenas com aqueles que já se foram e estão presentes na encantaria, mas também com aqueles que ainda virão, mantendo vivo e incessante o fluxo da corrente dos encantados, um fluxo que é mantido pela luta e pelos conhecimentos partilhados na vivência cotidiana das aldeias.

As retomadas geram um senso de pertencimento: algo além de si mesmo e que se conecta com uma memória ancestral. Revelam o poder dos encontros e a potência das lutas coletivas onde o sistema colonial e capitalista separou. As separações e individualizações são postas em xeque, porque “é uma luta que só se luta junto” (CLIMÉRIO ANACÉ). Desse modo, geram uma consciência crítica para dentro do movimento indígena Anacé, mas também para fora, em um processo incessante e inacabado de reconstrução coletiva de si nos territórios. A exemplo da pedagógica de semilla17do movimento zapatista, no México, a pedagogia da retomada potencializa “múltiplas relações intersubjetivas entre diversos sujeitos e contextos através de geografias e gerações, compartilhando o propósito comum ético-político-educativo de avançar em uma vida digna para todos” (BOLDT; BARBOSA; SALAZAR, 2021, p. 3).

Seguindo a trilha de Lacerda (2021, p. 197), também compreendemos que existe uma transcendência da categoria retomada que, além da noção de recuperação de espaços territoriais, também engloba uma dimensão mais ampla “enquanto projeto e prática pedagógica intercultural e emancipatória, de confronto e libertação do poder tutelar do Estado e das amarras do padrão colonial de poder”. No entanto, preferimos nominar essas práticas como “pedagogias das retomadas”, pluralizando os sentidos de luta a partir das múltiplas experiências dos povos indígenas, que possuem, não obstante, um horizonte comum: ao retomarem territórios, retomam a si mesmos, abrindo fissuras na ordem colonial, as quais permanecerão a partir de uma práxis educativa que se constrói com, na e pela luta.

Considerações finais

As retomadas Anacé não estão só relacionadas com a necessidade de impulsionar o Estado brasileiro a cumprir sua missão constitucional de demarcar os territórios indígenas. Para os Anacé, esse agir está fundado em uma visão cosmopolítica que relaciona os territórios com os corpos Anacé e com a dimensão da encantaria, não subsumíveis às formas capitalistas de ser, fazer e existir. Dentro de um processo de resistência histórica dos povos indígenas latino-americanos, representa a disputa e a defesa de outra concepção de território, em estreito vínculo com outro paradigma onto-epistêmico (BARBOSA, 2019).

As retomadas possibilitam acessar conhecimentos múltiplos a partir de contextos pedagógicos de formação e aprendizagens produzidos nas práticas políticas de reaver territórios, memórias, encantados, conectados, assim como saberes territorializados.

Na pedagogia das retomadas Anacé podemos perceber que não só modos de vida e compreensões de mundo são postos em confronto com o modelo ocidental capitalista. Os indígenas não estão preocupados somente em expor o conflito existente entre suas formas de se relacionar com o território e as formas capitalistas de exploração e despojo. Estão preocupados em recuperar os laços, em “fazer guerreiros”, em constituir pessoas Anacé, dispostas para a luta. Fazem isso sem dizer que efetivamente estão fazendo, porque o mundo não é organizado em caixinhas apartadas: aqui é território, aqui é meio ambiente, aqui é educação. O mundo Anacé é complexo e profundamente inter-relacionado.

No trabalho curativo da mata empreendido por eles nas retomadas, em março de 2022, os Anacé receberam a visita de um tamanduá-mirim que há anos não aparecia mais no território profundamente impactado pelos empreendimentos. A presença ilustre significou para os Anacé a confirmação de que a luta precisava seguir. Pessoas, memórias, lugares estavam voltando, e com eles os não humanos. Nesse sentido, a pesquisa com os Anacé tem nos mostrado a possibilidade de falarmos em pedagogias das retomadas, formas de ensinamentos e aprendizagens que são, ao mesmo tempo, territorializadas e da encantaria.

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1Este artigo foi construído a partir de intenso diálogo com o povo indígena Anacé. As pessoas entrevistadas autorizaram a reprodução de suas falas, de seus nomes e de suas aldeias, sendo o resultado final do trabalho apresentado para as lideranças indígenas, antes da submissão à Revista. A utilização dos nomes próprios e não de pseudônimos para as lideranças entrevistadas objetiva ampliar o reconhecimento da sociedade não indígena quanto à existência e à luta do povo Anacé, sendo uma forma de registro da autoria das reflexões e das produções intelectuais indígenas. Apesar de as autoras do artigo não serem antropólogas vinculadas à Associação Brasileira de Antropologia (ABA), buscamos atender às normas insertas no Código de Ética da ABA.

2Benites (2014) utiliza a terminologia nativa de jaike jevy para falar das retomadas de terras ou processo de recuperação de quatro tekoha na bacia do rio Iguatemi: Jaguapiré, Potrero Guasu, Ypo’i e Kurusu Amba, todas em Mato Grosso do Sul.

3Até o início da década de 1990, o estado do Ceará afirmava não haver indígenas, resultado de um amplo processo de extermínio físico e simbólico dessas sociedades (TAVARES, C., 2015). Entretanto, a mobilização dos povos Tapeba, Pitaguary, Jenipapo-Kanindé e Tremembé rompeu com esse silenciamento, permitindo que, na atualidade, falemos de mais de 15 povos indígenas no Ceará, articulados em torno da Federação dos Povos e Organizações Indígenas do Ceará (Fepoince). Desse modo, nominar os povos e suas lideranças faz parte da estratégia atual do movimento indígena de se afirmar no presente, acessando uma memória longa não subsumida ao silenciamento a que foram expostos.

4O nome da aldeia ora é escrito com “u” ora com “o” - Japuara ou Japoara. Embora se trate do mesmo lugar, decidimos manter o uso corrente e atual entre os Anacé: Japuara.

5Utilizamos, aqui, o conceito de agência em aproximação à ideia de agenciamento, formulada a partir das contribuições de Deleuze e Guattari (1995), para quem os agenciamentos são sempre coletivos, pressupondo segmentos, linhas de fuga e coexistências que conectam multiplicidades, que ao mesmo tempo os formam e são formados por eles. Refletindo sobre os agenciamentos indígenas Xakriabá, em Minas Gerais, Fernandes (2020, p. 26) destaca que “os agenciamentos coletivos pressupõem a relação entre diversas entidades, que, em nosso caso, incluem seres humanos, não-humanos e o que, da perspectiva ‘ocidental’, costuma-se compreender por ‘natureza’. As relações entre essas entidades são, ao mesmo tempo, sujeito, objeto e expressão de uma experiência. Nesse sentido, a noção de ‘agenciamento’ afasta-se das análises centradas na dicotomia sujeito-objeto ou causa-efeito, que implicam uma separação entre realidade, representação e subjetividade”. A descoberta da carta de Sesmaria pelos indígenas não se trata apenas de uma ação direta de uma pessoa, mas ela articula tempos (presente, passado e futuro) e múltiplos sujeitos, inclusive encantados e não -humanos, em um processo complexo de redescobrir-se e de reconectar-se. Ao longo de todo o texto, utilizaremos as expressões agência e agenciamento neste sentido.

6Mantivemos a escrita original da obra do Cacique Antônio.

7Interessante perceber que, apesar de transmitida em relato escrito, a memória desse episódio inaugural do povo Anacé não estava presa e enrijecida. Seu Antônio mantinha a vitalidade criadora de suas memórias apesar de elas estarem em livros por ele escritos. Sempre havia um pouco mais a falar, a indicar que um mesmo episódio contado mais uma vez estava sempre em (re)elaboração.

8Brissac e Nóbrega (2010), estudando as múltiplas camadas da religiosidade Anacé, concluíram que mais apropriado do que pensar em termos de sincretismo é refletir na perspectiva do englobamento e da experiência vivenciada pelos indígenas, destacando os movimentos pelos quais continuamente mistura e diferença se põem em confronto, articulam-se e se ressignificam.

9A dança do São Gonçalo performatizada pelos Anacé atravessa a ação política, aglutinando pessoas, narrativas e memórias, dando sentido simbólico, emocional e ritualístico aos argumentos que publicamente - para os não índios - justificam a luta em torno da terra, sendo, entretanto, praticada, principalmente, pelos Anacé de Matões.

10A 1ª Marcha das Mulheres Indígenas no Brasil, realizada no ano de 2019, em Brasília, foi convocada sob o tema “Território: nosso corpo, nosso espírito”. No documento final desse grande encontro consta a seguinte afirmação: “A vida e o território são a mesma coisa, pois a terra nos dá nosso alimento, nossa medicina tradicional, nossa saúde e nossa dignidade. Perder o território é perder nossa mãe. Quem tem território, tem mãe, tem colo. E quem tem colo tem cura.” (CONSELHO INDIGENISTA MISSIONÁRIO, 2019). De acordo com Inara Tavares (2019, p. 59), “com esse grito [Território: nosso corpo, nosso espírito], afrontamos esse sistema-mundo branco/racista/patriarcal/ militar/capitalista: dizemos que passa pelos nossos corpos físico-culturais e simbólicos a nossa existência nesse mundo. É pelos nossos corpos que se constituem nossos territórios. E nossos corpos nada o são sem nosso espírito. E podemos falar de espíritos, tantos são os nossos corpos e culturas. Podemos dizer dos nossos mundos, das nossas vivências, do nosso protagonismo no cuidado com a terra, ela, mulher como nós”. A partir dessa potente contribuição das mulheres indígenas, pensamos na relação dos Anacé com o seu território, incluindo mais um elemento: as emoções, já que o sentir-se Anacé passa por uma conexão com a encantaria que se expressa no corpo e no próprio território.

11Sobre essas outras figuras que compõem a encantaria Anacé, identificados por eles como encantados das matas ou das águas, são exemplos o Saci, a Caipora, a Mãe d´água.

12Atualmente, os familiares dessa senhora têm livre trânsito no movimento indígena, sendo, inclusive, pessoas importantes na luta, dominando, especialmente, a arte da pintura indígena. Embora ela não seja bem-vinda nas reuniões do movimento indígena, seus parentes o são, porque “Anacé se prova é na luta, não só no sangue”, como afirmam as lideranças. Em sentido semelhante, sobre como se constituem as pessoas Anacé, ver Gomes de Lima (2018).

13 Ou seja, aqueles que mesmo parentes consanguíneos do Cacique Antônio ou das demais famílias Anacé não compreendem a dinâmica da luta, não se dispondo a enfrentar juntos os inimigos Anacé. Essa diferenciação é realizada pelos próprios Anacé.

14Roberto não havia inicialmente contabilizado a retomada da Lagoa do Barro como uma das retomadas Anacé, preferindo não mencionar essa experiência não exitosa. Apenas quando questionado por nós se compreendia a tentativa de reaver a área da Lagoa do Barro como retomada é que afirmou ter, sim, se tratado de uma retomada, mas não como as outras. Nesse sentido, a indicação numérica aqui se referia à contagem antes desse questionamento. Cronologicamente, portanto, a retomada São Sebastião seria a quarta retomada.

15Embora retomada seja o termo mais corrente entre os Anacé, também encontramos as lideranças afirmando, em algumas oportunidades, que o ato de reaver parcelas do seu território tradicionalmente ocupado era um ato de autodemarcação. Desse modo, os termos são cambiáveis entre si, havendo, entretanto, uma prevalência no uso da categoria “retomada”.

16De acordo com Barbosa (2020, p. 286): “Las pedagogías sentipensantes y revolucionarias han aportado aprendizajes significativos para la lucha de los pueblos en por lo menos cuatro perspectivas: (1) en la trascendencia de la concepción de lo educativo y de lo pedagógico más allá de la escuela; (2) en la comprensión de que el conocimiento no es atributo exclusivo de una matriz dual, de la razón y de la ciencia, una vez que prescinde también de los sentimientos, de los pensamientos, de la cosmovisión, es decir, el conocimiento en clave pluriversa; (3) en una perspectiva de teorización desde/con/para los movimientos indígenas y campesinos.”

17Pedagógica de Semilla é como Boldt, Barbosa e Salazar (2021) denominam o processo político, educativo e ético implementado pelo movimento zapatista, no México. Diferente da pedagogia, limitada à ciência ou à técnica de transmitir conhecimento, a pedagógica é uma parte da filosofia que, atrelada à ética, à política e à economia, considera as relações interpessoais em contextos múltiplos de desigualdade. Assim, uma educação política e ética se vai construindo a partir de encontros e de intercâmbios interculturais. Um movimento de movimentos que inclui e transcende as lutas singulares (BOLDT; BARBOSA; SALAZAR, 2021), mas sem desconsiderar o valor de cada grão, de cada semente à subsistência comunitária e a construção de uma história longa. De acordo com essas autoras: “Desde esta concepción, miramos a la Pedagógica de Semilla Zapatista como un proceso de amplia construcción autorreflexiva que se lleva a cabo a través del tiempo y del espacio, formando una subjetividad revolucionaria colectiva en diversas geografías tanto dentro como fuera de las comunidades autónomas. Esta subjetividad colectiva exógena, en el caso de la Pedagógica de Semilla Zapatista, se va tejiendo a partir de diversos encuentros de personas, colectivos, y movimientos sociales con el Zapatismo.” (BOLDT; BARBOSA; SALAZAR, 2021, p. 4).

Recebido: 14 de Abril de 2022; Aceito: 05 de Julho de 2022

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