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Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade

versión impresa ISSN 0104-7043versión On-line ISSN 2358-0194

Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade vol.31 no.67 Salvador jul./set 2022  Epub 13-Ene-2023

https://doi.org/10.21879/faeeba2358-0194.2022.v31.n67.p341-363 

Artigos

EDUCAÇÃO INTERCULTURAL NO ENSINO DE HISTÓRIA E CULTURA INDÍGENA EM TEMPOS DE PANDEMIA DA COVID-19

INTERCULTURAL EDUCATION IN THE TEACHING OF HISTORY AND INDIGENOUS CULTURE IN TIMES OF THE COVID-19 PANDEMIC

LA EDUCACIÓN INTERCULTURAL EN LA ENSEÑANZA DE LA HISTORIA Y LA CULTURA INDÍGENA EN TIEMPOS DE PANDEMIA DEL COVID-19

Vilma Aparecida de Pinho*  Universidade Federal do Pará
http://orcid.org/0000-0002-2544-0841

Verusa Almeida da Silva**  Secretaria Municipal de Educação de Atalamira
http://orcid.org/0000-0003-0492-2822

Eglen Silvia Pipi Rodrigues***  Universidade Federal de Rondonópolis
http://orcid.org/0000-0001-8634-7248

*Doutora em Educação pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Professora da Faculdade de Educação do Campus Universitário de Altamira da Universidade Federal do Pará (UFPA). Professora do Programa de Pós-graduação em Educação e Cultura da Universidade Federal do Pará (PPGEDUC/UFPA). Altamira, Pará, Brasil. E-mail: vilmaaparecidadepinho@gmail.com

**Mestre em Educação pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Professora da Rede Municipal de Altamira. Altamira, Pará, Brasil E-mail: verusaalmeida_8@hotmail.com

***Doutora em Educação pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Rondonópolis (UFR). Professora do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal de Rondonópolis (PPGE/UFR). Rondonópolis, Mato Grosso, Brasil. E-mail: eglenrodrigues@gmail.com


RESUMO

Neste estudo, tivemos o objetivo de analisar as transformações dos sujeitos após estudar a História e Cultura dos povos indígenas na perspectiva da educação intercultural no âmbito do Ensino Remoto, implementado em Altamira-PA, durante a Pandemia da Covid-19. O método da pesquisa participante neste estudo vincula-se à teoria-prática e ao pensamento-ação, através do planejamento e estratégias pedagógicas que inserem conteúdos de história e cultura indígena em uma turma da Educação Básica. As análises foram realizadas sob o aporte teórico de Walsh (2009), Grando (2007), Geertz (1989) e Baniwa (2019). Apesar dos limites encontrados com a suspensão das atividades presenciais e dos desafios na utilização de ferramentas digitais, a pesquisa evidencia que à medida que fomos realizando os processos de ensino-aprendizagens na perspectiva intercultural, começaram a sobressair nas narrativas orais, escritas e gráficas (desenhos) das crianças significados de reconhecimentos e respeito pelos povos indígenas que foram, historicamente, invisibilizadas na nossa sociedade. Nesse sentido, comprova-se que o processo intersubjetivo da prática pedagógica intercultural provocou reflexões capazes de transpor as narrativas estereotipadas e estabelecer diálogos que favoreceram o respeito à diversidade étnico-cultural.

Palavras-chave: educação intercultural; práticas pedagógicas; História e Cultura indígenas

ABSTRACT

In this study, we aimed to analyze the transformations of the subjects after studying the History and Culture of indigenous peoples from the perspective of intercultural education within the scope of Remote Teaching, implemented in Altamira-PA, during the Covid-19 Pandemic. The research method on this study is linked to theory-practice and thought-action, through planning and pedagogical strategies that insert contents of indigenous history and culture in a Basic Education class. The analyzes were carried out under the theoretical support of Walsh (2009), Grando (2007), Geertz (1989) and Baniwa (2019). Despite the limits found with the suspension of face-to-face activities and the challenges in the use of digital tools, the research shows that as we carried out the teachinglearning processes in the intercultural perspective, they began to stand out in the oral, written and graphic narratives (drawings) of the children meanings of recognition and respect for indigenous people who have historically been made invisible in our society. In this sense, it is proven that the intersubjective process of intercultural pedagogical practice provoked reflections capable of transposing stereotyped narratives and establishing dialogues that favored respect for ethnic-cultural diversity.

Keywords: intercultural education; pedagogical practices; indigenous History and Culture

RESUMEN

En este estudio, tuvimos como objetivo analizar las transformaciones de los sujetos después de estudiar la Historia y la Cultura de los pueblos indígenas en la perspectiva de la educación intercultural en el ámbito de la Enseñanza a Distancia, implementada en Altamira-PA, durante la Pandemia de Covid-19. El método de investigación que participa en este estudio está vinculado a la teoría-práctica y al pensamiento-acción, a través de la planificación y estrategias pedagógicas que insertan contenidos de historia y cultura indígena en una clase de Educación Básica. Los análisis se realizaron bajo el apoyo teórico de Walsh (2009) Grando (2007), Geertz (1989) y Baniwa (2019). A pesar de los límites encontrados con la suspensión de las actividades presenciales y los desafíos en el uso de herramientas digitales, la investigación muestra que a medida que realizamos los procesos de enseñanza-aprendizaje en la perspectiva intercultural, comenzaron a destacarse en la oralidad., narraciones escritas y gráficas (dibujos) de los niños significados de reconocimiento y respeto a los pueblos indígenas que históricamente han sido invisibilizados en nuestra sociedad. En ese sentido, se comprueba que el proceso intersubjetivo de la práctica pedagógica intercultural suscitó reflexiones capaces de transponer narrativas estereotipadas y establecer diálogos que favorecieron el respeto a la diversidad étnico-cultural.

Palabras clave: educación intercultural; prácticas pedagógicas; Historia y Cultura indígenas

Uma introdução

Neste estudo, tivemos o objetivo de analisar as transformações dos sujeitos (alunos1) após estudar a História e Cultura dos povos indígenas na perspectiva da educação intercultural no âmbito do Ensino Remoto implementado em Altamira-PA durante a pandemia da Covid-19. É importante destacar que o município de Altamira, mais especificamente a região do Médio Xingu, é ocupada por nove etnias indígenas: Parakanã, Assuruni, Kuruaya, Xipaya, Arara, Kayapó, Juruna, Arawete e Xikrin, nativos que vivem em aldeias, áreas ribeirinhas não demarcadas e na cidade de Altamira. Entretanto, é relevante salientar que outras etnias, como os Xukuru, Guarani, Guajajara, Xavante e Kanela, dentre outras, residem na cidade.

A cidade de Altamira é terra de civilizações milenares. Entretanto, no contato colonial, foi fundada a partir das missões jesuíticas no século XVIII. O primeiro levante de exploração na região foi a extração da borracha, que se manteve até metade do século XX, e no processo de interiorização do Brasil, os processos exploratórios na região se intensificaram com a abertura da fronteira amazônica, a partir da década de 1970. Hoje em dia, o que encontramos desses povos são escombros de civilizações que tiveram suas histórias cortadas pela violência de diversos processos coloniais racistas e capitalistas.

Nesse contexto, buscamos desvendar nossos próprios preconceitos, pois nós também fomos frutos de concepções e práticas que invisibilizam esses povos. Interessante sublinhar que eu (uma das pesquisadoras) e muitas outras crianças da região de Altamira, que compreende o Rio Xingu e a Transamazônica, crescemos ouvindo nossos pais relatarem histórias negativas sobre os indígenas, pois seus dizeres os estigmatizavam como pessoas perigosas, que cometiam crimes e delitos, eram preguiçosos, sem cuidado com o corpo e a saúde, que podiam nos roubar, eram “sem futuro”. Nosso imaginário de criança da região era profundamente marcado por esses pensamentos, que desqualificam, estigmatizam esses grupos étnicos.

Sabemos que essas narrativas não eram neutras, mas continham um fundo político e ideológico de extermínio, pelas vias simbólicas e materiais que direcionavam os comportamentos e atitudes na relação com os indígenas pautados na discriminação racial e pelas múltiplas ações do Estado brasileiro, que fragilizou as condições de vida desses povos.

Esta pesquisa se realiza nas práticas pedagógicas na perspectiva da educação intercultural com problematizações entre a relação de conteúdos de ensino e as mudanças e/ou transformações de perspectivas das crianças que são os sujeitos afetados pelos nossos processos de formação. Nossa questão central é: em que medida os conteúdos que se pautam no ensino de História e Cultura indígenas modificam as concepções das crianças para uma perspectiva de alteridade? Seremos pessoas transformadas nos nossos preconceitos étnico-raciais com os conhecimentos que produzimos e ensinamos? Essas questões centrais são colocadas a toda prova no contexto da pandemia, que exigiu de nós práticas pedagógicas com uso das tecnologias da informação e em processo de distanciamento, tanto das crianças quanto dos parceiros de ensino e pesquisa.

Abordagem metodológica da pesquisa

É na perspectiva de uma Educação Intercultural que este texto aborda a História e Cultura dos povos indígenas no Brasil. Nascida das demandas sociais do país e propondo atender às recomendações do artigo 31 da Convenção 169 da OIT, em 10 de março de 2008 foi sancionada a Lei nº 11.645 (BRASIL, 2008), que altera a Lei 9.394 (BRASIL, 1996) e modifica a Lei 10.639/2003, a qual estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial dos estabelecimentos de ensino fundamental, médio, oficiais e particulares a obrigatoriedade da temática “História e Cultura afro-brasileira e indígena”, reforçando a ideia de diversidade cultural e étnica no país.

A pesquisa foi realizada durante o ano de 2020 com alunos de uma turma do 4º ano da Escola Municipal de Ensino Fundamental (EMEF) Mário da Silva na cidade de Altamira, por meio de intervenções das professoras que compõem o Grupo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas (GEABI) do Campus Universitário de Altamira. As professoras-pesquisadoras realizam articulação entre universidade e escola por meio de processos de ensino, pesquisa e extensão, e para tanto se realizam estudos sobre as práticas pedagógicas interculturais, tanto pelos conteúdos de ensino que se pautam na Lei nº 11.645 (BRASIL, 2008), como pelas relações que se estabelecem com as crianças na escola, com gestores e professores e com parceiros da comunidade.

A teoria do método se pauta na perspectiva da pesquisa participante que nos ajuda a pensar formas de inserções sociais na escola e propor processos de transformações desde o seu interior, que é considerada por nós como instituição de ensino e formação em constante processo de flexibilização de suas práticas pedagógicas curriculares mediadas pelas reformulações de seus Projetos Políticos Pedagógicos (PPC). Trata-se de empreitadas comprometidas e articuladas entre universidade e escola que pautaram as concepções de pesquisa participante.

O ponto de origem da pesquisa participante dever situado em uma perspectiva da realidade social, tomada como uma totalidade em sua estrutura e em sua dinâmica. [...]. Deve-se partir da realidade concreta da vida cotidiana dos próprios participantes individuais e coletivos do processo, em suas diferentes dimensões e interações - a vida real, as experienciais reais, as interpretações dadas a estas vidas e experiências tais como são vividas e pensadas pelas pessoas com quem interatuarmos. A relação sujeito e objeto, entre investigador-educador e os grupos deve ser progressivamente convertida em uma relação do tipo sujeito-sujeito, a partir do suposto de que todas pessoas e culturas são fontes originais de saber. (BRANDÃO; BORGES, 2007, p. 54).

O método pesquisa participante nos situa dentro da escola com os objetivos de propor intervenções pedagógicas. Contudo os procedimentos formam uma categoria importante, pois realizamos um processo cíclico de organização que se localiza mesmo em uma dialética, visto que se constitui numa dinâmica de intervenções, avaliações, proposições com rigor metodológico de construção de conhecimento. A sequência principal foi a seguinte: 1º) planejamento, pesquisa diagnóstica, avaliação; 2º) planejamento, contatos e inserções de lideranças indígenas; as práticas pedagógicas de ensino e aprendizagens, os exercícios pedagógicos e os processos de avaliações.

Nas etapas de exercícios e avaliações que propusemos às crianças utilizamos os desenhos e, neste processo, houve produção de conteúdos que expressam por suas formas estéticas e significativas, considerando os temas da pesquisa. As narrativas orais, escritas e artísticas que serão vistas nas análises são produtos das percepções, ou seja, pensamentos das crianças. Em Vygotsky, conforme consta em Oliveira (1995), compreendemos que os desenhos são representações mentais da realidade exterior; na verdade, eles funcionam como uma linguagem mediadora das representações mentais das crianças-sujeitos da pesquisa que irão expressando suas concepções modificadas a partir da inserção delas nos novos conhecimentos. Então, na medida que fomos avançando nos processos de ensino e aprendizagens dos conteúdos, fomos observando as modificações das crianças, por meio daquilo que elas expressam nos desenhos e narrativas orais e escritas. Fundamentadas em Derdyk (1989), podemos afirmar que os desenhos representam as percepções e significações das crianças:

Podemos elevar o sentido do olhar e do desenhar às idéias de ‘fábrica de imagens’, ou então fábrica de significações. O desenho ‘fábrica de imagens’ conjuga elementos oriundos do domínio da observação sensível do real e da capacidade de imaginar e projetar, vontades de significar. O desenho configura um campo minado de possibilidades, confrontando o real, o percebido e o imaginário. A observação, a memória e a imaginação são as personagens que flagram essa zona de incerteza: o território entre o visível e o invisível. (DERDYK, 1989, p. 115).

Os desenhos são, portanto, produtos das concepções das crianças sobre as realidades vividas e refletidas por meio dos processos de ensino e aprendizagens que tematizam esta pesquisa. Observamos as produções das crianças antes e depois das práticas pedagógicas interculturais. Nesse sentido, a abordagem qualitativa deste trabalho vincula teoria-prática e pensamento-ação, através de planejamento e estratégias pedagógicas.

Em um primeiro momento, observamos que os alunos apresentaram suas pré-noções sobre o “ser indígena”; percebemos também que várias crianças que são descendentes de indígenas negam suas ancestralidades, algumas por medo de sofrer preconceitos, outras por não terem conhecimento de suas origens. Assim, planejamos e desenvolvemos atividades remotas sobre a temática indígena nas matérias de História, Língua Portuguesa, Geografia e Educação Física; os conteúdos foram abordados dentro das propostas de uma educação intercultural. Para dar legitimidade à proposta, foram convidados dois indígenas, um da etnia Kuruaya e outro da etnia Xipaya, para uma aula colaborativa.

O encontro ocorreu através do Google Meet e de vídeos trabalhados na plataforma digital Google Classroom, possibilitando, assim, lugares de fala aos protagonistas da história. Após as aulas remotas, com os relatos históricos a partir dos próprios indígenas, foi possível observar através de relatos escritos que as crianças/alunos desenvolveram uma nova concepção sobre o “indígena”. Os relatos que outrora era preconceituosos e racistas, agora se apresentaram com nuances de respeito e equidade. O diálogo com as diferenças é capaz de promover um novo olhar entre o “Eu-Todos nós”. As reflexões e questionamentos que entrelaçam a pedagogia intercultural crítica constroem pontos de vista que vão ao encontro de uma educação para a alteridade.

Educação intercultural no ensino de história e cultura indígena

Nossos questionamentos e reflexões acerca da temática indígena se intensificaram quando transportei meu olhar para o espaço escolar no qual estava inserida. Constatei que os alunos descendentes de indígenas não se autodeclaram como tais; uns porque não sabem que são indígenas, alguns por preconceito de ser indígena, outros por medo do preconceito dos outros colegas.

Depreendemos, além disso, que as crianças possuem uma visão homogênea e estereotipada acerca do ser indígena, assim como todos nós; concepções marcadas pelas narrativas eurocêntricas que prevalecem nos estabelecimentos de ensino desde o processo de colonização.

A pluralidade étnica no contexto escolar nos obriga a repensar metodologias educativas que superem as barreiras racistas e preconceituosas existentes entre indígenas e não indígenas, seja nas ações dos seus protagonistas, seja nas ações pedagógicas e metodológicas propostas pela escola para enfrentar os desafios da diversidade cultural e do acesso a uma educação de qualidade, uma educação para a alteridade.

A interculturalidade é concebida como um projeto político-social-epistêmico e ético de descolonização, transformação e criação; é capaz de entender que a diferença se constrói dentro de uma estrutura de matriz colonial, racista e hierarquizada, em que os “branqueados” ocupam o cume de poder da pirâmide estrutural, e os indígenas e afrodescendentes, os andares da subalternidade. A partir dessa noção, a interculturalidade assume um projeto contra-hegemônico de transformação de (re) existência das relações sociais, das condições de ser, pensar, estar, sentir, compreender valores, vivências distintas. Walsh (2009) salienta que a Interculturalidade Crítica não é um projeto étnico, mas de existência, de vida. E mesmo que essa proposta não dependa totalmente da escola, a decolonialidade do saber passa por ela.

Na perspectiva de Baniwa (2019, p. 24), a interculturalidade deve estar alinhada ao diálogo qualificado e simétrico, pois somente dessa maneira será possível compreendermos que somos “constituídos e construídos ancestral, sociológica e epistemologicamente de modos tão distintos, cultural, espiritual e cognitivamente”. Esse autor pontua que essa interpretação civilizatória e sociocultural eleva a equidade social e o reconhecimento mútuo das nossas diferenças e diversidades de concepções e visões de mundo, de nossos modos distintos de ser, fazer, viver, conhecer, relacionar-se entre si, com a natureza e com o mundo.

A educação humanizadora, dialógica e sistemática, embasada na autonomia da subjetividade humana e no poder de ser diferente, tem sua ênfase no fenômeno do multiculturalismo “como o grande desafio para o exercício da democracia a nível internacional, nacional e regional, bem como nas instituições sociais, como as de trabalho e de educação” (SIDEKUM, 2003, p. 236).

Nesse sentido, as práticas pedagógicas interculturais possibilitam novas reflexões sobre o outro, pois o currículo intercultural cria um processo dialógico entre as diferenças. No cotidiano escolar, é necessário que os sujeitos envolvidos na organização e planejamento das práticas educativas compreendam os processos de construção social das identidades.

Embebida pelas contribuições desses e de outros autores, percebemos que é urgente uma ação pedagógica que fortaleça as narrativas dos grupos que secularmente foram estigmatizados pelo poder eurocêntrico dominante. Buscando reconstruir perspectivas, destacamos nesse trabalho o discurso decolonial que viabiliza possibilidades para ouvir, refletir e socializar as narrativas indígenas a partir do próprio indígena, que evidencia a importância dessa população no processo histórico, social, político e cultural do Brasil.

Foi mediante essas reflexões teóricas e experimentais que surgiu a problemática desta pesquisa, que gerou o seguinte questionamento: Quais são as percepções dos alunos da Educação Básica sobre os povos indígenas presentes na região? Com a intervenção pedagógica mediada pela educação intercultural ocorrem quais transformações nos sujeitos/ alunos após estudar a História e Cultura dos povos indígenas? Quais os principais desafios e possibilidades ao ensinar História e Cultura indígena, na perspectiva da educação intercultural crítica?

Tais questionamentos nos levaram ao objetivo desta pesquisa, que é: analisar e refletir sobre as transformações nos sujeitos/alunos após estudar a História e Cultura dos povos indígenas na perspectiva intercultural; assim como refletir sobre os limites, desafios e possibilidades de uma educação intercultural crítica no ensino de História e Cultura dos povos indígenas, no município de Altamira. Nesse sentido, destaca-se que Altamira está na segunda colocação em relação aos municípios do Pará com as maiores proporções de população indígena por situação de domicílio. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), pelo menos 22% desses povos vivem na zona urbana de Altamira, com vemos na Tabela 1.

Tabela 1 População indígena em Altamira/PA no Censo 2010 

Total 3.711
Área Urbana 823
Área Rural 2.888

Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2019).

As informações expostas na Tabela 1 indicam que 22% da população indígena vive na área urbana do município. Levando em conta que este trabalho aborda a educação intercultural crítica nas práticas pedagógicas, realizamos uma visita à Secretaria Municipal de Educação (SEMED) de Altamira em busca de dados que fossem possíveis nos informar a quantidade de crianças e jovens indígenas que estudam nas escolas da área urbana. Com os documentos em mãos, pudemos constatar que em 2019 foram matriculados, na área urbana do município, 148 (cento e quarenta e oito) alunos autodeclarados indígenas, sendo que 61 (sessenta e um) são do sexo feminino e 89 (oitenta e nove) do sexo masculino (SECRETARIA MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO DE ALTAMIRA, 2019).

É pertinente acentuar que os indígenas que vivem no Médio e Baixo Xingu têm Altamira como cidade polo, e foram fortemente impactados com a implantação da Usina Hidrelétrica do Belo Monte,2; centenas deles precisaram sair de suas terras para ir morar na cidade, por conta dos abalos ambientais da obra da referida empresa. E, em decorrência desse fato, várias famílias tiveram que matricular seus filhos nas escolas regulares do município. A Tabela 2 mostra o quantitativo de alunos indígenas matriculados por ano escolar.

Podemos verificar que, desses alunos, 26 (vinte e seis) estão matriculados na Educação Infantil, 113 (cento e treze) no ensino fundamental e 9 (nove) na Educação de Jovens e Adultos; as informações referentes ao ensino médio não estão contempladas nesta pesquisa. Assim, 76% dos alunos autodeclarados indígenas matriculados na área urbana do município fazem parte do ensino fundamental. Ainda de acordo com os dados da Secretaria de Educação, esses alunos estão distribuídos em 48 (quarenta e oito) escolas urbanas, sendo 8 (oito) Creches, 7 (sete) Pré-escolas e 33 (trinta e três) escolas de 1º a 9º ano.

Tabela 2 Alunos autodeclarados indígenas matriculados no ano letivo 2019 em Altamira-PA 

Ano letivo Quantidade de alunos
Berçário II 1
Maternal I 1
Maternal II 1
Jardim I 11
Jardim II 12
1º ano 13
2º ano 19
3º ano 20
4º ano 11
5º ano 17
6º ano 10
7º ano 12
8º ano 07
9º ano 04
EJA 09
Total Geral 148

Fonte: Secretaria Municipal de Educação de Altamira (2019).

As informações nos mostram que há uma significativa presença de crianças e jovens indígenas nas escolas da cidade. O índice reforça ainda mais a necessidade de se realizar um estudo sobre a temática das práticas educativas interculturais críticas no ensino de História e Cultura dos povos indígenas. É relevante que a temática da Educação Intercultural esteja não apenas no currículo de formação de professores indígenas, mas, especialmente, no currículo de formação inicial e continuada de professores não indígenas.

Primeira etapa da pesquisa: diagnóstico sobre os livros didáticos e concepções dos alunos sobre o ser indígena

Na etapa exploratória e diagnóstica, nosso objetivo foi conhecer sobre as concepções que as crianças possuem sobre o “ser indígena” antes das práticas pedagógicas interculturais e ensino de História e Culturas Indígenas. Nessa etapa obtivemos informações e ampliação sobre a realidade na qual iríamos fazer as intervenções, portanto a pesquisa diagnóstica e exploratória é importante, pois subsidia as tomadas de decisões e os processos de mudanças.

As práticas pedagógicas se organizam para atender, potencializar e interpretar as intencionalidades de determinadas expectativas educacionais, solicitadas por uma comunidade social; incluem desde o planejamento à sistematização da dinâmica dos processos de aprendizagem, e configuram-se como uma ação consciente e dialética, que possuem múltiplas contradições que só podem ser compreendidas na perspectiva de sua totalidade. A educação intercultural é uma possibilidade para o desenvolvimento de formas educativas diferenciadas e humanizadas.

A interculturalidade crítica deve ser entendida como uma ferramenta pedagógica, que põe em questionamento contínuo a racionalização, subalternização e inferiorização e seus padrões de poder, tornar visíveis maneiras distintas de ser, viver, e saber, e busca o desenvolvimento e criação de compreensões e condições que não só articulam e fazem dialogar as diferenças num marco de legitimidade, dignidade, igualdade, equidade e respeito, mas que também - por sua vez - alentam a criação de modos ‘ouros’ de pensar, ser, estar, aprender, ensinar, sonhar, e viver, são projetos, processos e lutas - políticas, sociais, epistêmicas e éticas - que se entrelaçam conceitual e pedagogicamente, alentando uma força, iniciativa e agência ético-moral que fazem questionar, transformar, sacudir, rearmar e construir. Esta força, iniciativa, agência, e suas práticas assentam as bases do que eu chamo pedagogia descolonial. (WALSH, 2009, p. 160).

Compreendemos que a educação intercultural é um projeto político de intervenção que considera aspectos históricos de colonização, respeito às diferenças, ressignificando e inserindo socialmente o protagonismo de outros grupos não eurocêntricos no contexto histórico e cultural. Nesse sentido, investigamos os livros didáticos para aprimorar nossas propostas pedagógicas que tinham os objetivos de ser na perspectiva da educação intercultural.

1) Sobre os conteúdos dos livros didáticos

Os livros de Geografia, História, Ciências, Português e Matemática - Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD) de 2019, 2020, 2021, 2022 -, disponibilizados para os alunos do 4º ano da EMEF Mário da Silva, onde a pesquisa foi realizada, demonstram como a educação monocultural, fundamentada nas narrativas da elite colonial, ainda é fielmente reproduzida no interior das instituições de ensino. Observe que a única citação referente aos povos indígenas no livro de Geografia é sobre o calendário indígena. A alusão feita aos indígenas do Parque do Xingu aparece de maneira fragmentada e descontextualizada, como verificado na Figura 1 a seguir.

Fonte: Alves, Lucartel e Boligian (2017, p. 145).

Figura 1 Abordagem sobre os indígenas no livro de Geografia 

O Parque Indígena do Xingu é formado por 16 (dezesseis) etnias, cada uma possui seus próprios costumes e luta para manter suas diferenças culturais e linguísticas, embora eles tenham em comum “um calendário” que os auxilia na plantação, colheita, caça e pesca; importante ressaltar que são povos com culturas diversificadas. Contudo, é possível observar, no material didático, uma uniformização e padronização cultural sobre os povos indígenas da região do Alto Xingu. Quando discutimos os povos indígenas de forma homogênea, invisibilizamos uma rica e incalculável diversidade étnico-cultural. Cada povo tem sua língua, costumes, religião, cosmologias e rituais bem definidos.

O livro de Ciências contempla assuntos sobre alimentação, origem do universo e outros, porém não há referências a sociedades indígenas. Seria uma ótima oportunidade para discutir com os alunos os distintos modos de alimentação, a etnoastronomia, enfatizar que cada povo tem o seu modo de ser e estar no universo, ressalvar o respeito e valorização aos diferentes costumes.

A única citação encontrada no livro de Ciências, referente ao indígena, foi de uma criança da etnia Guarani Mbya recebendo uma dose de vacina para gripe (evidenciado na Figura 2), produzida por não indígenas. Não há menção aos medicamentos naturais reproduzidos pelos indígenas, deixando claro que cada etnia utiliza e extrai da natureza substâncias diferenciadas, de acordo com os ensinamentos de seus respectivos antepassados.

Fonte: Yamamoto (2017, p. 42).

Figura 2 Abordagem sobre os indígenas no livro de Ciências 

O livro do ensino de Matemática (DANTE, 2017) também não apresenta nenhuma exposição curricular acerca das diversas formas de conhecimento que as diferentes etnias desenvolvem e utilizam no seu cotidiano. Nesse sentido, D’Ambrosio (2001, p. 5) salienta que “[...] a geometria dos indígenas é colorida, enquanto a geometria grega eliminou a cor. E a aritmética do índio é qualitativa, enquanto a aritmética do branco é pura codificação quantitativa”. Com essa afirmação, esse autor ressalta a existência de uma real diferenciação do conhecimento matemático indígena com relação ao conhecimento matemático dos não indígenas.

2) Sobre os alunos e seus modos de compreender os povos indígenas

Em relação aos 54 (cinquenta e quatro) alunos pesquisados, não identificamos nenhum indígena, como exposto na Tabela 2. Entretanto, na EMEF Mário da Silva - que atende 323 (trezentos e vinte e três) alunos, segundo dados da Secretaria Municipal de Educação de Altamira (2019) - 2 (dois) são indígenas (GESTOR ESCOLAR WEB, 2020),3 da tribo dos Kuruaya, contudo não se autodeclaram, como demonstra a ausência desse grupo étnico na Tabela 3 a seguir.

Tabela 3 Número de alunos por grupo étnico ou cor de pele 

Branco Indígena Pardo Preto Total
14 0 32 8 54

Fonte: Elaborada pelos autores com base em dados da pesquisa.

Notamos que os alunos são majoritariamente autodeclarados como pardos e, embora alguns sejam filhos de indígenas, não se autodeclaram como tais. Após a realização dessa pesquisa de autodeclaração étnico e racial (GESTOR ESCOLAR WEB, 2020), no final de fevereiro de 2020, realizamos com os alunos das duas turmas do 4º ano a primeira atividade de ensino: antes de qualquer explanação acerca do tema “indígena”, solicitamos aos alunos que respondessem à seguinte pergunta: Para você, o que é ser indígena?

Logo surgiram várias dúvidas: “Professora, não sei o que é indígena” (VALÉRIA, 9 anos, 2020); “Professora, o que é indígena?” (FERNANDA, 9 anos, 2020). Então, explicamos a eles que indígenas são povos originários do Brasil e da nossa região, que eles conhecem como “índios”, e que tal palavra foi uma identificação imposta pelo colonizador europeu (os portugueses), que classificou de maneira indiscriminada e homogênea as diversas populações indígenas que viviam no Brasil.

O termo linguístico “indígena” não é uma expressão que faz parte do cotidiano das crianças, seu conceito e significado ainda não estão incluídos no contexto social e escolar, por isso os educandos não conseguiam discorrer sobre um termo que eles não conheciam. Esse fato ocorre porque tanto no ambiente familiar quanto no escolar, os diversos povos indígenas são classificados racialmente e genericamente como “índios”.

Uma vez explicado o conceito da palavra “indígena”, as crianças manifestaram por meio da escrita as suas concepções sobre o “ser indígena”. As respostas foram diversas, e foi possível testemunhar o quanto ainda são expressivas as questões referentes aos estereótipos enraizados pelas narrativas coloniais da elite dominante, conforme se observa:

Para mim, ser indígena, em 1º lugar, é ser índio, e, em 2º lugar, é uma coisa diferente de nós. As pessoas indígenas moram em cabana de palha e caçam em toda floresta, as pessoas indígenas têm danças comemorativas e elas são feitas ao redor de uma fogueira, e elas têm tatuagem com grandes significados, cada pessoa cresce, e quando deseja faz sua tatoo. E pra mim, ser indígena é isso! (NICOLE, 9 anos, 2020).

Ser índio é morar na aldeia, viver na floresta, andar descalço na lama, correr livre, morar na casinha de palha de árvore e comer carne de animal, de onça, porco, jabuti, tatu, tamanduá, jacaré e comer insetos, adorar usar animação na cabeça, isso é ser indígena. (FERNANDA, 9 anos, 2020).

Ele pesca: ele pega a lança dele e pega o peixe. Ele caça: ele se esconde e pega seu arco e flecha e ataca.

Ele toma banho: ele toma banho no rio. Eles fazem pinturas: eles pegam as plantas e pegam o pó para fazer pinturas. Eles moram: eles moram em casa de palha. Eles matam: se aparecer um desconhecido no território deles eles matam.

A infância: as crianças brincam em todo lugar, mas sabem ajudar na aldeia.

O fogo: na época da fogueira fazem comidas e espantam o leão. (MARA, 9 anos, 2020).

Para os alunos, o “ser indígena” ainda é representado pelo estereótipo do “ser índio”, o ser primitivo, exótico e hegemônico, selvagem, perigoso, caracterizado pelo pensamento racista que é reproduzido socialmente pela cultura dominante que, historicamente mantém uma compreensão hierarquizada da diferença humana.

Fonte: Acervo da pesquisa de campo (2020).

Figura 3 Texto da aluna Isabela (9 anos) 

Isabela (9 anos, 2020) relata que não sabe muita coisa sobre indígenas, porém retrata fielmente suas preconcepções por meio do texto imagético. Notemos que ela apresenta uma imagem que é sutilmente reproduzida pelos meios midiáticos, principalmente desenhos infantis, por instituições, pelos livros e revistas.

Fonte: Acervo da pesquisa de campo (2020).

Figura 4 Texto do aluno Ricardo (9 anos)  

A descrição do aluno nos chama atenção, pois para ele “o indígena é um ser muito perigoso, e devemos ficar longe deles” (RICARDO, 9 anos, 2020). Observemos que era essa mesma concepção que, outrora, a pesquisadora também possuía sobre esses povos, o que comprova que essas narrativas racistas e preconceituosas estão enraizadas nos discursos das famílias e se reproduzem de forma arguciosa e constante nas instituições escolares. Destaca-se que à medida que fomos realizando processos de ensino e aprendizagens na perspectiva intercultural, começaram a sobressair nas narrativas orais, escritas e gráficas (desenhos) das crianças significados de reconhecimentos e respeito pelos povos indígenas que foram, historicamente, invisibilizados na nossa sociedade. É nesse sentido que alunos e professoras vão se transformando em pessoas mais sensíveis e respeitosas com o outro que é diferente de nós.

Segunda etapa da pesquisa: reorganizando as práticas pedagógicas interculturais durante a pandemia da Covid-19

Com o diagnóstico em mãos, partimos para as intervenções pedagógicas, e todas as práticas pedagógicas ocorrem durante a pandemia da Covid-19, mas as etapas diagnósticas da pesquisa foram feitas no ano anterior. O processo educativo foi modificado pela adaptação dos docentes e discentes, por meio de diversos programas, aplicativos e ferramentas digitais que passaram a ser utilizados no processo de ensino e aprendizagem.

O ensino remoto apresenta uma perspectiva desafiadora para as práticas docentes: lidar com as imprevisibilidades do cotidiano, com os limites impostos no desenvolvimento de atividades escolares, visando a uma educação universal, de qualidade, para a alteridade, o que nos tem compelido a (re)aprender e (re) inventar novas formas de ensino.

De acordo com Contreras (1990), o ensino é uma prática social bastante complexa, pois trata-se de algo construído e realizado por seres humanos que é transformado pela ação e relação entre sujeitos, em contextos diversos. Segundo esse autor, o ensino não é uma prática orientada pela didática; se fosse, lhe daria caráter prescritivo, no entanto a Didática permeia as diferentes esferas das ações políticas, administrativas, econômicas e culturais - o que significa a práxis do ensino.

Compreender o ensino como prática social é compreender que se trata de um objeto de estudo de múltiplas formas e configurações. Por esta razão, no processo educativo há compassos e descompassos, acertos e desacertos, pois a aula é um encontro, um acontecimento da vida, e não se tem controle sobre a vida, sempre seremos surpreendidos por diferentes situações e imprevistos.

Dessa forma, é pertinente acentuar que, mesmo diante das dificuldades encontradas no contexto de pandemia e aulas remotas, foi possível vislumbrar oportunidades para efetivar práticas pedagógicas na perspectiva da educação intercultural. Nesse sentido, os recursos tecnológicos foram importantes aliados para planejarmos atividades dinâmicas e interativas, ainda que com o isolamento social. As plataformas digitais, como WhatsApp, Google Meet e Google Classroom, nos subsidiaram em aulas interativas, permitindo um contato mais aproximado com os povos indígenas, suas histórias e culturas.

Diante do quadro de pandemia e da suspensão das aulas presenciais, os professores foram orientados a rever suas programações, bem como suas atividades escolares, no sentido de repensar novas estratégias de ensino, garantindo aos alunos viabilidade no processo de ensino e aprendizagem de maneira remota. O planejamento pedagógico foi redirecionado, visando à prática pedagógica por meio de plataformas digitais.

1) Processos de ensino e aprendizagens com a professora

Ao pensar as novas metodologias de ensino, a E.M.E.F. Mário da Silva criou grupos de Whatsapp com os alunos para a disponibilização de atividades pedagógicas diariamente, mantendo, sobretudo, a interação social com pais e alunos. Nesse contexto, as ações envolvendo a participação de indígenas na escola foram redirecionadas para as plataformas digitais.

Fonte: Acervo da pesquisa de campo.4

Figura 5 Atividades desenvolvidas com os alunos  

Discutimos com os alunos sobre a origem das águas da região do Rio Xingu, que sua nascente no Mato Grosso representa o Alto Xingu, onde vivem, hoje, várias etnias, como os Bororo, Xavante e Yudjá, entre outros. Após a divisa com o estado do Pará, inicia-se o Médio Xingu, que tem Altamira como cidade polo. Nessa área residem outros povos indígenas, como os Arara, Assurini do Xingu, Xipaya e outros, que se estendem até o Baixo Xingu, como proferido por Miléo (2007, p. 55):

Existem também na região territorial de Altamira 12 áreas indígenas. São elas: Araras-Laranjal; Araweté-Igarapé; Ipixuna; Baú; Araras-Cachoeira Seca; Curuá; Kararao; Koatinemo; Menkragnoti; Panará; Trincheira Bacajá e Xipaias. As mesmas ocupam um total de 12.309.547 ha, cobrindo mais de 50% do território altamirense, sendo que a área do Curuá se encontra em processo de ampliação e a dos Xipaias em processo de identificação.

Discorremos com os discentes a respeito das áreas indígenas no Médio Xingu, sempre evidenciando a pluralidade étnica dessa região, a importância vital que seus afluentes possuem na vida dos povos indígenas que sobrevivem na bacia do Xingu. Descrevemos aos alunos que a Terra Indígena (TI) são extensões de conservação ambiental onde vive uma etnia específica, por exemplo, na TI Baú habitam os indígenas da etnia Xipaya, na TI Koatinemo mora o povo Asurini do Xingu; nessas áreas, os indígenas utilizam recursos naturais sustentáveis para sobreviver, como caça, pesca, lavoura.

Enfatizamos que moramos no Médio Xingu, e que, de acordo com os dados da Fundação Nacional do Índio (2020), essa região conta hoje com 9 (nove) etnias indígenas registradas. Como citamos a Funai, esclarecemos o seu contexto histórico e o significado desse órgão para os povos indígenas. Posteriormente, escrevemos no quadro o nome das 9 (nove) etnias que vivem no Médio Xingu: Xipaya, Kuruaya, Juruna, Kaiapó, Xikrin, Parakanã, Arawete, Arara e Asurini do Xingu, sempre contextualizando com o mapa. É interessante destacar que a maior parte dos alunos não tinha ideia da existência dessa diversidade étnica na região. Durante a explicação, um deles, Bernardo (11 anos, 2020), relatou: “Tia, eu pensei que índio ou indígena era tudo igual [risos] [...] eu já vi eles lá no cais, meu pai me levou pra ver as pinturas deles.”

A continuidade das aulas foi pelo Google Meet e Classroom devido à pandemia, e para tanto realizamos uma parceria com as lideranças indígenas Lorena Kuruaya e Xipaya, que é das etnias Kuruaya e Xipaya, e Claúdio Kuruaya. Ambos foram nossos parceiros especiais, pois eles trouxeram para dentro da escola, ainda que pelo uso das tecnologias, conhecimentos da história e das culturas Xipaya e Kuruaya, sem os quais não conseguiríamos, visto que nossa formação tem essa lacuna. Doravante o aceite, ambos se tornaram professores e realizaram aulas colaborativas sobre as culturas e história dos povos dos quais são originários. Ela abordou questões relacionadas à língua indígena, cultura, ancestralidade, educação, pinturas corporais e seus significados; também sobre respeito às diferenças, preconceito, racismo, preservação da natureza; e relatou algumas dificuldades que os povos indígenas estão passando por ocasião da pandemia.

2) Processos de ensino e aprendizagens com Lorena Kuruaya e Xipaya e Cláudio Kuruaya

Lorena Kuruaya e Xipaya trouxe para o debate situações que retratam a diversidade dos grupos indígenas na região, momento ímpar, pois envolveu e despertou a curiosidade dos alunos. Nesse momento, a jovem reflete sobre as variadas características que abrangem as pinturas corporais, as vestimentas, os adereços, festas, rituais e outras questões, como podemos verificar em sua fala:

E nós temos os rituais, que são as festas, as festinhas que vocês têm aqui na cidade, que os brancos têm na cidade, a gente tem lá também. Na aldeia, né? A nossa aldeia é grande, né? Como vocês, eu acho que já viram, têm aquelas casas todas de palha, ali é onde fica a concentração das festas dos nossos povos. E aí a gente utiliza o cocar, eu trouxe pra vocês verem um cocar aqui que eu utilizo, né? Que ele é de pena, vocês já viram que ele é todo de pena, mas esse cocar ele só é usado em festas. Em luta, né? Quando a gente vai exigir algum direito, alguma coisa que a gente não tá tendo, né? Como foi na pandemia, que muitos ficaram sem comida, né? Agora no covid… E a gente precisa. Então, é um símbolo pra gente, o cocar ele não é só pra botar na cabeça e ficar enfeitando, ele é um símbolo pra gente. Isso aqui é um símbolo de resistência, de força pra gente, e a gente usa ele, né? (LORENA KURUAYA E XIPAYA, 2020).

Na Figura 7, a indígena apresenta aos alunos duas pulseiras feitas de miçanga. Nossa entrevistada fala como foi confeccionada e seus significados, com distinção entre o adorno masculino e feminino.

Fonte: Acervo pessoal dos autores deste artigo (2020).

Figura 6 Pulseiras de miçangas masculina e feminina  

Ao diferenciar as pulseiras em cores, espessuras, trama, traços e desenhos, a entrevistada fala sobre os significados desses adereços para a cultura Kuruaya. A pulseira vermelha representa um casco de jabuti. “Esse significado aqui é do casquinho do jabuti e, pra gente, o jabuti, coele, significa inteligência, tá? Ele significa inteligência, ele significa resistência também, então, por isso que a gente utiliza muito nas nossas pinturas.” (LORENA KURUAYA E XIPAYA, 2020). Um diálogo acontece nesse momento:

Mas é, porque assim, o avô da gente conta, né? Que tinha uma disputa, né? Era o jabuti e o coelho, aí ele, aí ele pergunta: quem vai ganhar é o jabuti ou é o coelho, né? Aí todo mundo fica e o coelho, né? O coelho é mais rápido, né? Aí os netos, todo mundo falando, não vô, é o coelho, é o coelho, e meu vô sorria kkkkkkkk, aí ele, não, gente, é o jabuti. Mas como, vô, como é que é o jabuti? Não, porque eles faz uma fila deles. Então, eles são mais inteligentes, né? Porque o coelho, ele vai sozinho correndo, sozinho, e o coelho olhava pro lado e sempre via o jabuti, não entendia, né? Por forma a fileira até a chegada, entendeu? Aí chega mais rápido (Risos). E a gente, a gente vê que a resistência do jabuti, né? Do casco dele, né? E os animais pra pegar ele também é muito difícil, geralmente eles estão em lugares como um buraquinho, uma arvorezinha, né? Eles sempre tão nesses lugares. E isso demonstra inteligência deles, né? Inteligência e resistência da parte deles, de tentarem sobreviver, existindo, né? Mas que legal, sem contar a estratégia de quando ele se esconde dentro do casco, né? (LORENA KURUAYA E XIPAYA, 2020).

De forma dinâmica e muito espontânea, Lorena Kuruaya e Xipaya mostra e explica os significados do cocar, das pinturas corporais e das tramas utilizadas nas pulseiras de miçanga. As crianças e nós observávamos atentos cada detalhe, porque era um conhecimento novo, aprendíamos também juntamente com os alunos.

Quando Lorena nos falou sobre os significados das pinturas corporais, que cada povo tem a sua e seus respectivos significados, estávamos rompendo com um imaginário hegemônico, que muitas vezes é reproduzido na escola, ao pintar as crianças e não contextualizar esses saberes.

Tanto os Kuruaya como outros povos indígenas, em interação com artefatos não indígenas, passaram a produzir diversos tipos de adereços: colares, pulseiras, brincos e outros. Entretanto, cada adereço produzido pelos indígenas tem marcas personalizadas que identificam a etnia que fabricou o artefato, assim como a pintura corporal.

Apreciamos que os símbolos culturais não perderam seus sentidos, que são próprios de cada etnia. Nesses termos, o antropólogo Geertz (1989) destaca que a cultura é uma teia de significados tecida pelo homem, e é ela que orienta a existência humana; o homem e a cultura só podem ser compreendidos e interpretados a partir dessa teia. Trata-se de um sistema de símbolos que interage com outro sistema de cada indivíduo, numa interação recíproca. Esse autor define símbolo como qualquer ato, objeto, acontecimento ou relação que representa um significado.

Outra atividade proposta foi a utilização do Google Classroom, em que criamos uma pasta com os exercícios da disciplina de História, e dentre esses, dois foram referentes à “História dos povos Kuruaya de Altamira”, uma tarefa com formato de texto e outra com vídeo. Para esse conteúdo de ensino convidamos o senhor Cláudio Kuruaya, indígena descendente da etnia Kuruaya, na ocasião, presidente da Associação Indígena IKURI, para falar a respeito da cultura dos povos indígenas da região. Senhor Cláudio, que é uma liderança indígena, mostrou diversos vídeos, alguns adornos produzidos pelo povo Kuruya, fortalecendo, assim, as narrativas expostas na aula anterior com a indígena Lorena Kuruya e Xipaya. O material didático foi disponibilizado pelo aplicativo Google Classroom, uma sala virtual onde é possível anexar textos e vídeos e realizar diversas atividades.

Claudio Kuruaya enfatizou que os indígenas não são como as narrativas coloniais reproduzem e ressaltou que devemos superar os preconceitos arraigados no nosso imaginário, ressignificando concepções acerca dos povos indígenas. Pontuou também a relevância histórica e cultural das pinturas corporais, das pertenças indígenas, dos adereços produzidos pela sua etnia. Durante a entrevista, gravada em vídeo, ele destaca o orgulho de ser indígena e das dificuldades enfrentadas pelo acesso aos direitos adquiridos por meio de lutas constantes.

Bem, boa tarde crianças! Meu nome é Cláudio Kuruaya, eu pertenço à etnia Kuruaya aqui do Médio Xingu, no Município de Altamira. A gente tá aqui e eu queria também falar um pouco em relação às etnias que hoje estão concentradas dentro do contexto de Altamira, né? No contexto urbano. Falar também um pouco da nossa história no tempo dos missionários, dos Jesuítas, dos Portugueses, no tempo do caos, né? Que nossos antepassados, tanto faz os índios Xipaia, Curuaia, Jurunas e Araras, né? Em mil novecentos e pouco é... tinha uma missão, Tavaquara, a missão Tavaquara, que concentrava índios dessas etnias, dessas quatro etnias, é... através dos missionários dos português e do Jesuíta, e essa missão, ela se concentrava bem ali, que era um aldeamento aqui no Xingu, Praia Clube, no Município de Altamira, e essa missão, ela já foi quem deu o processo de tudo pra se criar o Município de Altamira, né? Então, pertence a esse tronco um pouco da etnia Curuaia... quero dizer também pra vocês que o índio não é só aquele índio que vive na aldeia, né? Quero dizer pra vocês que o índio também, ele usa o sapato, ele calça o sapato, ele veste a calça, a camisa, e o índio também, ele tá integrado no meio da sociedade. No meio da sociedade, mantendo a nossa cultura. (CLÁUDIO KURUAYA, 2020).

Após sua apresentação, Cláudio fala sobre a importância de se abordar nas escolas a questão da educação intercultural:

É importante também a gente salientar que esse trabalho é muito importante pra vocês, ter o conhecimento do nosso processo, ter o conhecimento do que aconteceu com os nossos antepassados, e o que vem acontecendo com os índios que hoje convivem dentro do contexto de Altamira. Aliás, na nossa terra, né? Em Altamira. Então, é isso! Quero contribuir pra vocês, né? Eu quero passar pra vocês essa confiança, que não é aquilo que muitas pessoas falam mal do índio, que o índio mata, que o índio... o índio come gente, isso não existe, né? O índio é amigo, o índio e parceiro, o índio tem amor, o índio tem sentimento, o índio é um grande amigo, né? Então, é isso! (CLÁUDIO KURUAYA, 2020).

Fonte: Acervo da pesquisa de campo (2020).

Figura 7 Miscelânea de imagens dos vídeos  

Nos vídeos postados na plataforma, Cláudio Kuruaya apresenta alguns adereços e imagens de pinturas corporais, exibidos na Figura 8 a seguir.

A miscelânea de imagens é referente aos vídeos produzidos juntamente com o indígena Cláudio Kuruaya, a saber: a) parte superior - primeira: colar produzido com fruto do coco babaçu; segunda: colar confeccionado com miçanga e sementes de inajá e açaí; terceira: adereço fabricado com miçanga e dente de macaco; b) imagens do centro - primeira: Cláudio mostra a parte superior da borduna, feita e personalizada pelo povo Kuruaya; segunda: parte inferior da borduna, a arma utilizada na caça; terceira: imagem que está pintada na parede central da Associação indígena IKURI, que retrata o indígena utilizando o cocar, a borduna e a pintura da cobra; c) parte inferior - primeira: gráfico representando o indígena pintado e segurando o Maracá; segunda: o que os indígenas utilizam para fazer a pintura do jabuti; e, finalmente, terceira: imagem dos antepassados dos povos Kuruaya, em uma expedição em 1909.

Análise das etapas de trabalho com a educação intercultural: como nossas concepções foram transformadas?

O método de pesquisa elaborado inclui planejamento, execução e avaliação, e, aqui nesta etapa, indica que devemos verificar com os alunos o que apreenderam das aulas nas quais tínhamos o objetivo de estudar as culturas e a história dos povos indígenas da região, com a finalidade de analisarmos os processos de transformação dos sujeitos envolvidos (os alunos e nós, as professoras). Com essa finalidade, após as aulas colaborativas on-line, com a presença da Lorena Kuruaya e Xipaya e do Claúdio Kuruaya, solicitamos aos alunos que elaborassem um texto contando o que eles tinham aprendido na aula sobre “História e cultura dos indígenas Kuruaya e Xipaya”. Todos estavam entusiasmados, observaram cada detalhe das explicações, a aprendizagem ficou evidente nas narrativas textuais.

A aluna Simone (9 anos, 2020) destaca no seu texto os significados simbólicos da cultura indígena Kuruaya; entende-se, aqui, que a cultura está entrelaçada ao homem, isto é, dentro de suas raízes. No momento em que ocorre a interação social, desencadeia movimentos culturais em que estão interligados conhecimentos de pessoas, ou seja, acontecem aprendizagens de várias culturas juntas. Geertz (1989, p. 10) elucida que “O homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu, sendo a cultura estas teias. Os indivíduos sentem, percebem, raciocinam, julgam e agem sob a direção destes símbolos.”

Contemplamos na escrita dessa aluna um sentimento de respeito à diversidade étnica, em que já é possível notar um discurso de alteridade, ressignificando conhecimentos acerca dos povos indígenas, que por séculos têm padecido com a sociodinâmica da estigmatização coletiva, que lhes têm fixado rótulos de valores culturais inferiores.

Esse movimento cognitivo nos faz (re) pensar o papel do professor mediador, que se coloca como articulador do processo educativo, implementando práticas pedagógicas no sentido de ampliar a capacidade do ser humano em seu desenvolvimento cognitivo e afetivo, tornando-o propenso às descobertas e redescobertas que surgem nas interações pedagógicas.

Testemunhamos, nas narrativas textuais dos alunos, movimentos que vão ao encontro da perspectiva da educação para a alteridade. Mesmo diante de uma tímida prática pedagógica intercultural crítica é possível evidenciar que há um deslocamento de concepções relativas aos povos indígenas.

Walsh (2009) anuncia que a interculturalidade acontece no diálogo entre sociedades diferentes; nessa ótica, Baniwa (2019) proclama que esse diálogo deve ser qualificado e simétrico. Grando (2007) notabiliza que a educação intercultural promove o desenvolvimento de habilidades e competências referentes à diferença, à peculiaridade e à diversidade.

Toda sociedade humana consiste em indivíduos distintos e todo indivíduo humano só se humaniza ao aprender a agir, falar, sentir no convívio com os outros (ELIAS, 1994). Nessa perspectiva, Paulino (2014) sublinha que é por meio dos significados adquiridos que ocorrem a formação das identidades sociais. Comungando das contribuições desses autores, observamos, nas narrativas escritas dos alunos, após a aula com a participação da indígena Lorena Kuruaya e Xipaya, novas concepções ao abordar a temática indígena, em que as identidades sociais se apresentam sutilmente ressignificadas.

Julgando que a alteridade propõe o reconhecimento das diferenças, o respeito étnico ao outro como singular, conforme nos apresenta Lévinas (1980 apud COSTA; DIEZ, 2014), ela é um convite para pensar o encontro com o Outro a partir da sensibilidade, estima e responsabilidade. Por esse ângulo, presenciamos, nos relatos escritos pelos alunos, alguns elementos que caracterizam ressonâncias do sentimento de alteridade, adquiridos após alguns ensaios de prática pedagógica intercultural crítica.

Fonte: Acervo da pesquisa de Campo (2020).

Figura 8 Texto da aluna Simone (9 anos)  

Utilizamos, na atividade, técnicas de resumo, interpretação de texto e vídeo, por acreditarmos que esses métodos proporcionam uma fixação cognitiva do que foi apreendido. De acordo com Frege (2009), a fixação cognitiva é a ideia de que toda e qualquer referência ou pensamento sobre um objeto deve envolver um estado mental que determine ou identifique esse objeto para a cognição.

Observamos pelas produções textuais dos alunos uma relevante compreensão acerca do material pedagógico disponibilizado. A escrita ressalta os conhecimentos adquiridos por meio de aulas presenciais e remotas. É interessante sublinhar que alguns alunos fizeram uma breve, porém importante, contextualização entre os saberes conquistados nas aulas com os indígenas Lorena Kuruaya e Xipaya e Cláudio Kuruaya.

Fonte: Acervo da pesquisa de campo (2020).

Figura 9 Texto do aluno Ricardo (9 anos) 

A aluna Beatriz (9 anos, 2020) descreve em seu texto que “Os povos indígenas são igual a nós [...] tem alguns que moram na cidade e outros na aldeia [...] tem pessoas que acham que os povos indígenas matam, mas isso não é verdade [..] os índios não tem tatuagem, eles usam pinturas corporais.” Observamos que os alunos apresentaram concepções que enaltecem as diversidades culturais dos povos indígenas, em consonância com os processos de ensino e aprendizagens apresentados nas aulas presenciais e remotas.

Veja que a Lorena havia comentado, durante sua exposição oral, que os povos indígenas possuem uma cultura riquíssima. Assim, notamos que o aluno Caio (9 anos, 2020) organizou conhecimentos referentes às narrativas orais, realizadas pelos indígenas Lorena e Cláudio Kuruaya, um processo que evidencia que os alunos demostraram atenção e interesse nas explanações, desconstruindo estereótipos coloniais e fortalecendo, por outro lado, a construção de concepções antirracistas.

Eu aprendi que os indígenas têm uma cultura riquíssima, e são muito criativos e de fácil convivência. Eles constroem sua própria arma para caçar e batalhar, com sementes fazem pulseiras e colares, as crianças brincam com brinquedos feitos por eles mesmos, os indígenas são pessoas boas, que ajudaram a construí Altamira, devemos respeitar os indígenas, porque eles são igual a nós, mas com costumes diferentes. (CAIO, 9 anos, 2020).

Para a atividade de “Interpretação de Textos”, na disciplina de Língua Portuguesa, apresentamos aos alunos um texto escrito pelo professor indígena Tempty Suiá: “Como aconteceu antes dos brancos chegarem.” Cremos que seja relevante proporcionar esse contato dos alunos com a literatura escrita pelos próprios indígenas. Essa proximidade flexibiliza a interação social entre indígenas e não indígenas. O convívio com as narrativas não eurocêntricas, com as narrativas orais indígenas e com as criações literárias indígenas possibilita a desconstrução de conhecimentos descontextualizados, produzidos e reproduzidos socialmente sobre os povos originários.

Após a leitura do texto, pedimos que os alunos realizassem as atividades de interpretação de texto e, ao final, relatassem que histórias têm ouvido sobre os indígenas. A análise dos textos foram acontecendo concomitantemente às postagens dos educandos. Destacamos, aqui, a quinta pergunta da atividade: “E você, quais histórias você tem ouvido sobre os povos indígenas?” Testemunhamos que as narrativas já apresentam entonação discursiva diferenciada; os discentes fazem narrativas de conhecimento acumulado de outras atividades com temática indígena. Nesse panorama, Breno (10 anos, 2020) acentua:

Minha professora falou que os indígenas são pessoas igual nós, mas com costumes diferentes, que devemos respeitar esses povos, eles são muito importantes para a construção do Brasil, e que a gente temos a cultura indígena, a moça indígena Lorena Curuaya falou que cada povo tem seu modo de viver, eu gostei das pinturas corporais, não são tatuagem, são pinturas corporais, gostei, índio Curuaya que falou que os indígenas ajudaram a construir nossa cidade. A professora disse que aqui tem várias etnias, arara, curuaia, chipaia, caiapó, ela disse que são nove, eu gostei de saber dos índios eu pensei que índio e indígena era tudo igual, pensei que ele fosse muito brabo, mas eles são do bem, por isso não devemos ter preconceito e nem racismo, nem com os indígenas nem com outras pessoas.

O processo de ensino e aprendizagem, a partir do ensinamento oriundo do outro, é um caminho que se descortina ao longe, pois a educação ainda carrega marcas de uma colonialidade que anula o outro para se construir e se constituir. Nessa percepção, Costa e Diez (2014, p. 150) salientam que:

Processos educativos que acontecem, não mais numa cronologia linear, mas na provisoriedade, conflitividade e pluralidade de movimentos são cada vez mais possibilidades que se abrem e necessitam de um conjunto articulado de análises para efetivar o que se chama de formação, de educação e abertura à alteridade.

Práticas pedagógicas interculturais estão calcadas na educação para a alteridade, exigindo desprendimento no sentido de acolher, dar voz e responder ao outro, de questionar nossas relações familiares, sociais, culturais e educacionais. Nessa perspectiva, a educação intercultural proporciona condições, secularmente caracterizadas, subalternas, que conseguem romper com a sociodinâmica da estigmatizacão e com a configuração e equilíbrio estável do poder dominante.

Destacamos as contribuições de Geertz (1989, p. 10), quando reforça que os indivíduos julgam e agem em direção aos significados simbólicos da cultura e que a “experiência humana é assim uma sensação significativa interpretada e aprendida”. Por isto é tão importante a perspectiva de educação intercultural na escola, pois é a possibilidade de quebrar com as relações de poder que existem na sociedade devido à falta de conhecimento e promover mudanças de atitudes e comportamentos.

Resultados e algumas considerações

Apesar de sabermos que mais de um terço da população indígena (315 mil indígenas) vivem em áreas urbanas - de acordo com o último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística -, vale ressaltar que o Censo de 2010 é o primeiro a reconhecer, por meio de um processo de autodeclaração, a presença indígena em cômputos populacionais em terras indígenas, áreas rurais e urbanas, bem como suas 300 etnias que falam vários idiomas. A ocupação dos indígenas nas cidades é consequência de seu deslocamento durante o período colonial, e outros também procuram as áreas urbanas em busca de melhores condições de vida (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2019).

Apesar de os números confirmarem que muitos indígenas vivem nas cidades, tal população continua sendo discriminada, perseguida e invisibilizada, tanto nas áreas rurais e remotas da Amazônia, que sofrem com invasões de terras, exploração de mineração e tantas outras problemáticas infraestruturais, quanto nas áreas urbanas.

Os povos indígenas são parte da nossa história, da nossa cultura. Não podemos deixar de ensinar a verdadeira história desses povos nas escolas, pois enquanto não descolonizarmos essa história do Brasil, não poderemos romper com a discriminação, com o preconceito, com o racismo.

Dessa forma, este estudo buscou analisar as transformações dos sujeitos após estudar a História e Cultura dos povos indígenas na perspectiva da educação intercultural no âmbito do Ensino Remoto implementado em Altamira-PA durante a pandemia da Covid-19.

Foi possível perceber que, no início da pesquisa, as percepções que os alunos da Educação Básica tinham em relação aos povos indígenas da região eram bastante discriminatórias e excludentes. Observamos que eles apresentavam ideias preconcebidas a respeito do “ser indígena”, concepções preconceituosas, fragmentadas, racistas e homogeneizadas, o que provocara um sentimento de medo e indiferença em relação aos indígenas.

Esse olhar preconceituoso que os não indígenas têm em relação aos indígenas é fruto de um processo colonizador violento e que historicamente vem disseminando que esses povos são bárbaros, preguiçosos. Não conhecemos a história narrada a partir do colonizado e a escola, muitas vezes, continua reproduzindo a concepção eurocêntrica e hegemônica do colonizador, negando o valor das diferentes culturas étnicas e seu modo de ser e viver.

Com a intervenção pedagógica mediada pela educação intercultural ocorreram transformações nos sujeitos/alunos após estudar a História e Cultura dos povos indígenas. Realizamos alguns ensaios na implementação de práticas pedagógicas interculturais, como aulas colaborativas com a interlocução dos sujeitos da cultura; exposição oral do contexto histórico (re)contando a história indígena a partir de uma perspectiva decolonial; videoaulas com a participação do próprio indígena, interagindo, contando a história de seu povo, relatando processos e significados culturais.

Constatamos que as práticas didático-pedagógicas interculturais críticas oportunizaram diálogo entre os envolvidos na pesquisa, possibilitando reflexões que resultaram em relevantes ressignificações no que diz respeito às concepções, comportamentos e atitudes dos alunos em relação aos indígenas. Foi possível observar a mudança do olhar dos alunos, na medida em que o conhecimento vai sendo produzido, a partir da produção dos seus textos, das suas narrativas, de seus desenhos. Esse trabalho pedagógico dialógico propicia a construção do respeito à diversidade, às diferenças étnicas, religiosas, culturais.

Podemos afirmar que mesmo no contexto da pandemia, com aulas que utilizaram estratégias tecnológicas, houve avanços significativos, no sentido de mudar-transformar as concepções antes pautadas nos estigmas raciais e preconceituosos para concepções de diversidades culturais.

Nesse sentido, podemos considerar que durante a investigação, com as severas transformações didático-metodológicas no âmbito educacional por consequência da pandemia da Covid-19, as práticas pedagógicas interculturais utilizadas e desenvolvidas através do ensino remoto se apresentaram como ferramentas para descontinuidades das estruturas de poder, que racializam, inferiorizam e marginalizam diversos grupos étnicos.

É importante destacar que a construção do saber didático não se dá apenas por meio da pesquisa, mas também pela experiência da prática docente, por meio daquilo que fazem, aprendem, refletem e reorganizam a fim de potencializar o trabalho docente. Defendemos que a prática pedagógica de professores pode ser rica de possibilidades para a construção da teoria, pois contém saberes que vão além dos conteúdos escolares e esses saberes resultam na inteligência cultural que cada ser em si adquire na interação social com o outro ao longo da vida, em especial quando se coloca nos desafios de enfrentamento das questões urgentes como a do reconhecimento dos povos indígenas em nossos lugares, como na cidade de Altamira.

Esse diálogo com as diferenças é capaz de promover equidade e respeito, proporcionando um novo olhar entre o “Eu-Todos nós”; as reflexões e questionamentos que entrelaçam a pedagogia intercultural crítica constroem pontos de vista que vão ao encontro de uma educação para a alteridade.

O principal desafio e possibilidade encontrada ao ensinar História e Cultura indígena, na perspectiva da educação intercultural crítica, é a construção de uma relação horizontalizada e dialógica permanente na escola. A interculturalidade crítica se consolida no diálogo entre diferentes culturas, e serve para indicar um conjunto de propostas de convivência dialógica e de relação democrática, permitindo outras lógicas históricas.

Não negamos a responsabilidade das políticas públicas de investimento na formação de professores indígenas e não indígenas, nas condições de trabalho, na formação docente continuada que contribua para ampliação dos conteúdos e da história indígena brasileira, visando à superação do racismo contra os indígenas.

REFERÊNCIAS

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BANIWA, Gersem Luciano. Antropologia colonial no caminho da antropologia indígena. Novos Olhares Sociais, v. 2, n. 1, p. 22-40, 2019. [ Links ]

BRANDÃO, Carlos Rodrigues; BORGES, Maristela Correa. A pesquisa participante: um momento da educação popular. Revista Educação Popular, Uberlândia, MG, v. 6, p. 51-62, jan./dez. 2007. Disponível em: https://seer.ufu.br/index.php/ reveducpop. Acesso em: 17 jul. 2022. [ Links ]

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1A ética na pesquisa funcionou em conformidade com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) no que se refere à preservação de nomes, imagens e identidades das crianças. O nome da escola é fictício. As lideranças indígenas autorizaram a publicação de colaboração que eles gentilmente realizaram nas aulas/pesquisas colaborativas em pesquisa-ação na educação intercultural.

2A Usina Hidrelétrica Belo Monte, instalada no rio Xingu, possui capacidade de geração de energia de 11.233,1 MW e se firma como a maior hidrelétrica 100% brasileira (NORTE ENERGIA, 2019).

3Gestor Escolar Web é um sistema de gestão educacional de gerenciamento de informações direcionado às instituições de ensino. Trata-se de um software que automatiza os processos internos de escolas e instituições de ensino superior, facilitando o monitoramento do dia a dia acadêmico. No ato da matrícula dos alunos, os pais e/ou responsáveis devem fazer a autodeclaração racial que fica registrada no software.

4A imagem do quadro e dos desenhos representam fielmente os recursos materiais didáticos e pedagógicos com os quais as professoras realizaram processos de ensino e aprendizagens.

Recebido: 15 de Abril de 2022; Aceito: 16 de Julho de 2022

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