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Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade

versión impresa ISSN 0104-7043versión On-line ISSN 2358-0194

Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade vol.31 no.67 Salvador jul./set 2022  Epub 13-Ene-2023

https://doi.org/10.21879/faeeba2358-0194.2022.v31.n67.p364-382 

Artigos

LITERATURA INDÍGENA: DO LIVRO DIDÁTICO À EDUCAÇÃO INTERCULTURAL

INDIGENOUS LITERATURE: FROM TEXTBOOK TO INTERCULTURAL EDUCATION

LITERATURA INDÍGENA: DEL LIBRO DE TEXTO A LA EDUCACIÓN INTERCULTURAL

Ivonete Nink Soares*  Universidade Federal de Mato Grosso do Sul
http://orcid.org/0000-0002-0040-1811

*Doutoranda em Estudos de Linguagens na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). Professora da Educação Básica do estado de Rondônia. Porto Velho (RO), Brasil. E-mail: ivonetenink@hotmail.com


RESUMO

O artigo tem por objetivo analisar o tratamento dado à literatura indígena no livro didático da coleção Singular e Plural, da editora Moderna, Ensino Fundamental, anos finais, 6º ano, no quadriênio 2020-2023, utilizada pela rede estadual de Rondônia, a partir dos textos sugeridos para leitura, das atividades propostas aos alunos e das orientações destinadas ao professor. Além disso, há discussões acerca da escolha do livro didático no Brasil, sua importância e interferência no contexto educacional. Trata-se de uma pesquisa bibliográfica e documental, ancoradas, principalmente, em Silva e Costa (2018), Bonin (2008), Oliveira (2008) e Munduruku (2016). Importantes opiniões e teses que contribuem para problematizações sobre a literatura indígena, educação intercultural e a efetivação da Lei 11.645/08: que fala da obrigatoriedade do estudo da história e cultura indígena na educação básica. Ao concluir, defendo que no livro didático há questões e posicionamentos que podem ser revistos, alguns assuntos podem ser aprofundados, observados por outras perspectivas, enaltecendo a história e as culturas dos povos originários, todavia esse material contribui, de certa forma, para a execução da referida Lei.

Palavras-chave: literatura indígena; educação intercultural; lei 11.645/08; livro didático

ABSTRACT

The article has by objective to analyze the treatment given to indigenous literature in the textbook of the Singular e Plural collection, published by Moderna, elementary school, final years, 6th year, in the quadrennium 20202023, used by the Rondônia state government, based on the texts suggested for reading, the activities proposed to students and the guidelines for the teacher. In addition, there are discussions about the choice of textbook in Brazil, its importance and interference in the educational context. This is a bibliographic and documentary research, anchored mainly in Silva and Costa (2018), Bonin (2008), Oliveira (2008) and Munduruku (2016). Important opinions and theses that contribute to problematizations about indigenous literature, intercultural education and the effectiveness of the Law 11.645/08: which speaks of the mandatory study of indigenous history and culture in basic education. In conclusion, I argue that in the textbook there are issues and positions that can be reviewed, some issues can be deepened, observed from other perspectives, extolling the history and cultures of indigenous peoples, however this material contributes, in some way, to the implementation of that law.

Keywords: indigenous literature; intercultural education; law 11.645/08; textbook

RESUMEN

El artículo tiene por objetivo analizar el tratamiento dado a la literatura indígena en el libro de texto de la colección Singular e Plural, publicado por Moderna, escuela primaria, últimos años, 6º año, en el cuatrienio 2020-2023, utilizado por el gobierno del estado de Rondônia, a partir de los textos sugeridos para la lectura, las actividades propuestas a los alumnos y las orientaciones para el profesor. Además, se discute la elección del libro de texto en Brasil, su importancia e injerencia en el contexto educativo. Se trata de una investigación bibliográfica y documental, anclada principalmente en Silva y Costa (2018), Bonin (2008), Oliveira (2008) y Munduruku (2016). Importantes opiniones y tesis que contribuyen a problematizar la literatura indígena, la educación intercultural y la efectividad de la Ley 11.645/08: que habla de la obligatoriedad del estudio de la historia y la cultura indígena en la educación básica. En conclusión, sostengo que en el libro de texto hay cuestiones y posiciones que pueden ser revisadas, algunos temas pueden ser profundizados, observados desde otras perspectivas, exaltando la historia y las culturas de los pueblos indígenas, sin embargo este material contribuye, de alguna manera, a la aplicación de esa ley.

Palabras clave: literatura indígena; educación intercultural; ley 11.645/08; libro de texto

Introdução1

A literatura de autoria indígena não começou a ser produzida recentemente. Graça Graúna menciona que o poema “Identidade indígena” de Eliane Potiguara, escrito em 1975, “inaugurou o movimento literário indígena” (2013, p. 78-79). Depois disso a produção foi intensificada. Hoje são mais de 60 escritores, mais de 200 títulos.

“Resistência, sobrevivência; [...] literatura que trafega na contramão”: essas são algumas das características elencadas por Graúna (2013, p. 61) para definir a literatura indígena. Uma literatura com pouco apoio financeiro, apenas um “pequeno percentual de livros [...] editados pelo MEC, considerando que nesse período um grupo de autores indígenas enfrentou o mercado editorial, por conta própria” (GRAÚNA, 2013, p. 89). Ainda assim, sobrevive(u) às tentativas de apagamento, insistindo, persistindo e resistindo. Alcançou os livros didáticos (LDs), as salas de aula, a possibilidade de uma educação intercultural.

Alcançar o livro didático (LD) foi um grande avanço, visto que as escolas públicas brasileiras, quase todas, recebem esse material. Daí a oportunidade de problematizar as versões dos (f)atos já veiculados nesse instrumento pedagógico, romper com reproduções estereotipadas, (re)construir concepções e a cristalização delas. Conhecer outras narrativas da mesma história, outros povos e outras culturas, a ancestralidade do povo brasileiro. A prática docente aliada ao livro didático (LD) é um tema que gera grandes discussões. “Para alguns, eles são o apoio fundamental que economiza tempo de planejamento e organiza a rotina em sala. Na visão de outros, eles são amarras a comprometer a autonomia do magistério” (HAMINE; RATIER; SOARES, 2015). Ou seja, enquanto alguns docentes têm afeição por esse recurso pedagógico, outros admitem aversão, não há uniformidade de opiniões. Todavia, os posicionamentos divergentes não implicam em uma dicotomia, não há apenas relação de amor e ódio.

Para alguns professores, o livro didático não é um instrumento basilar nem um impedidor de tomada de decisões, funcionam como um apoio didático e metodológico para as suas aulas. Por meio dele, esses educadores observam, analisam, aprimoram e constroem os seus planos de ensino, geralmente, adaptados à realidade escolar, ao perfil dos estudantes, aos conteúdos exigidos pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC), à parte diversificada, exigida pelas características regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e outros.

Em se tratando da presença da literatura indígena no LD é de suma importância que o professor, por ter papel fundamental no aprimoramento e na aquisição de novos conhecimentos, avalie, analise, seja crítico diante das sugestões didáticas e pedagógicas, das orientações sobre as respostas, das notas explicativas, dos textos complementares, entre outros. Assim poderá complementar seu plano de ensino, corroborar para o agenciamento de uma educação intercultural, de interação, compreensão e respeito entre as diferentes culturas e grupos étnicos. Valorizar a “literatura indígena contemporânea [que] tem procedência na rebeldia que nasce também da exclusão” (GRAÚNA, 2013, p. 168).

No tocante às práticas metodológicas, classicamente utilizadas, e ao LD, de modo geral, os impasses se iniciam ao mobilizar o modo de dar aulas. Não cabe mais ao professor, rotineiramente, anotar no quadro as páginas que o aluno deve ler, copiar e responder até o final da aula, para, no próximo encontro, escrever as respostas no quadro, tais quais estão no manual do professor. Exigir que o aluno apague as suas respostas, as suas compreensões, sem ouvi-las, sem dialogar sobre elas, e copie, exatamente, o que está no manual do professor, certamente, é uma função equivocada para esse recurso pedagógico. Todavia, se criticamente empregadas, as orientações aos docentes podem servir de apoio pedagógico, mostrar em qual eixo as respostas podem estar ancoradas, dialogar com outros materiais, com outros recursos.

O LD não foi pensado para ser um instrumento ditador de regras, respostas únicas, uma rejeição ao saber construído pelos alunos, suas apreensões. Cada pessoa aprende a seu modo, a seu tempo, com recursos diversificados, por esses motivos os professores precisam avaliar, conversar com os alunos, sondar o que eles compreenderam para, a partir daí, provocar reflexões que culminem nos objetivos propostos para as atividades aplicadas. De outra maneira dificilmente haverá aprendizagem. O trabalho de quem ensina e o esforço de quem deseja aprender ficam sem sentido.

O livro didático é muito importante para as escolas. Constitui um material que reflete o que tem nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), está respaldado e amparado no documento da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), é planejado para contribuir com o desenvolvimento de diversas habilidades do alunado. Além disso, como mencionado por Pires (2008), eles são ricos artefatos culturais:

[...] tanto pela carga de significados que eles possuem, carregando marcas de classe, de etnia, de religião, de gênero, de sexualidade e de geração, quanto pelo fato de que estão presentes no dia-a-dia escolar, ora manifestando, ora silenciando vozes, constituindo e legitimando, assim, determinadas representações e identidades. (PIRES, 2008, p. 57).

Dentro dessa perspectiva, considero oportuno e instigador promover reflexões acerca do LD nas práticas docentes, em especial na minha. À vista disso, este estudo terá como corpus um livro da coleção Singular e Plural, da editora Moderna, Ensino Fundamental, anos finais, 6º ano, aprovado e disponibilizado pelo Programa Nacional do Livro e Material Didático de 2020 (PNLD/2020), no quadriênio 20202023 e terá como objetivo principal analisar o tratamento dado à literatura indígena na obra, a partir dos textos sugeridos para leitura, das atividades propostas aos alunos e das orientações destinadas aos professores.

Em relação à utilização de obras literárias que abordem a temática indígena:

[...] dependendo da sensibilidade dos professores que delas fizerem uso, pode se constituir em valioso recurso pedagógico para atrair a atenção, a curiosidade dos alunos e, consequentemente, motivá-los a refletir sobre suas visões antes e depois de conhecer as obras sugeridas (SILVA; COSTA, 2018, p. 140).

Não basta indicar a leitura, é preciso acompanhar o processo, propor atividades que contradigam as imagens estereotipadas. “Os alunos, se bem estimulados por professores preparados para lidar com a diversidade étnica e cultural, poderão educar os olhares e as sensibilidades para perceberem detalhes, nuances e indícios na compreensão das histórias e das culturas indígenas” (SILVA; COSTA; 2018, p. 141).

Para Bonin (2008, p. 122), “os povos indígenas adquirem, na maioria das produções escolares, feições genéricas, fixas, homogêneas, sendo esse um efeito de relações de poder”. Daí a relevância, sobretudo dos docentes, de terem o olhar atento e crítico para promoverem debates e reflexões que legitimem a tentativa de apagamento das culturas desses povos, o processo de colonização, a escravização e outros (f)atos da história narrados, até pouco tempo, apenas pela ótica do colonizador.

Silva e Costa (2018, p. 121-122) alertam que os “professores devem estar atentos à utilização de obras literárias que não sirvam apenas à introdução ou leitura de determinado assunto, pois isso empobreceria as maneiras como a linguagem pode ser aproveitada em sala de aula”. O texto literário é rico em saberes, basta explorar com as ferramentas adequadas.

Quando um conteúdo está no plano de ensino não quer dizer que ele, ao ser aplicado, resultará em aprendizagem significativa, para que isso ocorra há muitos obstáculos a serem superados, caminhos para serem trilhados, entre outros fatores, será necessária a execução de metodologias eficientes e atividades múltiplas.

Nesse viés, Oliveira (2008, p. 36) explana que, ao “privilegiar determinados conteúdos e formas de viver, a escola tem se mostrado mais ou menos excludente, classificatória e hierarquizante, marginalizando os conhecimentos produzidos por muitos grupos socialmente desprestigiados”. Em se tratando da questão indígena, muitos fatores podem contribuir para que os povos originários sejam considerados inferiores, um deles é não problematizar os (f)atos que chegaram até nós sobre eles pelos colonizadores, outro é contribuir para a veiculação de narrativas estereotipadas. Quando isso acontece, corre-se o risco de abordar a temática indígena e reforçar a subalternização. Sendo assim, como os livros didáticos, por meio da literatura de autores indígenas, têm tratado essa questão?

O anseio para realizar esta análise surgiu a partir da constatação, em minha prática docente, de que essas literaturas nem sempre recebe(ra)m o tratamento adequado. Nas raras vezes em que são contempladas nos livros didáticos são expostas em fragmentos, excertos. Além disso, são feitas interpretações pouco profundas, solicita-se que o aluno retire o explícito do texto, outras vezes seu uso é apenas pretexto para questões gramaticais. A história e as culturas dos povos autóctones ficam à margem, não são temas elencados para reflexões, debates e posicionamentos críticos.

Nesse sentido, a intenção é verificar se a referida obra, ao trazer a literatura indígena, contribui para a efetivação da Lei 11.645/08, que versa sobre a obrigatoriedade do estudo da história e cultura indígena. Afinal, “os povos indígenas estão por aqui buscando traçar um caminho para manter suas culturas apesar de tantas dificuldades e incompreensão porque ainda passam” (WAPICHANA; MUNDURUKU, 2019, p. 87).

Dentro deste estudo, após conhecer o livro da coleção Singular e Plural, 6º ano, PNLD 20202023, por meio de uma leitura panorâmica, o foco foi o capítulo dois da obra. Nesse capítulo o gênero textual autobiografia é contemplado: um texto literário do professor, pesquisador e escritor indígena Daniel Munduruku. Por ser um escrito que favorece a educação intercultural, analisei, nesse material, a forma como a literatura indígena foi tratada.

O objetivo ao realizar essa análise era suscitar reflexões acerca da efetivação da Lei 11.645/08, que fala da obrigatoriedade do estudo da história e cultura indígena, por meio da literatura indígena apresentada no LD. Para isso foi realizada uma pesquisa bibliográfica e documental. Uma investigação em material teórico e fonte primária que diz respeito à questão indígena. Opiniões e teses que favorecem as problematizações sobre a literatura indígena, a educação intercultural e a efetivação da Lei 11.645/08 deram suporte à análise. Dentre esses, destaco Silva e Costa (2018), Bonin (2008), Oliveira (2008) e Munduruku (2016).

Diante dos desafios para o cumprimento da referida Lei, o intento das reflexões levantadas neste estudo é contribuir para uma educação intercultural, com múltiplos olhares sobre as identidades e as sociedades, bem como, problematizar práticas educacionais vinculadas ao texto literário presente no livro didático.

O texto foi organizado da seguinte forma: a seção dois menciona algumas atribuições dos professores e o importante papel desempenhado por esses na escolha do LD, assim como uma breve explanação sobre o surgimento do livro didático, os caminhos percorridos para que esse instrumento pedagógico chegasse às escolas; a seção três apresenta a coleção Singular e Plural do ensino fundamental II, editora Moderna, especialmente os capítulos 4, 10 e 11 do livro do 6º ano, corpus deste estudo; a seção quatro trata da produção de literatura por autores indígenas e como esse escrito está presente nas escolas e nos livros didáticos. Há também a análise da literatura indígena “Meu vô Apolinário: um mergulho no rio da (minha) memória”; e, por fim, a seção cinco fala sobre as dificuldades e motivações que alguns professores podem ter para problematizar assuntos referentes à questão indígena e como a literatura dos povos originários pode contribuir para uma educação intercultural, desconstruir imagens estereotipadas e colaborar para uma sociedade formada por pessoas mais tolerantes, conscientes e com menos preconceitos.

Livro didático: surgimento, escolha e prática docente

O trabalho docente envolve muitos afazeres: estudar, planejar, fazer avaliações diagnósticas, sondar aprendizagens, proporcionar o nivelamento, enfim, uma lista quase infindável de atividades. Em meio a essas funções, também é necessário escolher o LD: tarefa extremamente relevante, visto que é uma oportunidade de conhecer, previamente, quais percursos poderão ser seguidos no ano letivo, como os conteúdos foram contemplados, a partir de quais gêneros, se há veiculação de estereótipos. Enfim, avaliar, optar por um ou outro livro que estará disponível nas escolas nos próximos 4 anos. Um material que fará parte do processo de ensino e aprendizagem e, em certa medida, interferirá na relação entre docentes, alunado e conhecimentos.

O acesso ao LD faz parte de um programa desenvolvido pelo governo federal brasileiro, o Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD) que surgiu em 1985, após outros programas sobre políticas educacionais relacionados ao livro didático. O PNLD é, portanto, uma política ampla que possui implicação em todo o território nacional. Para que um livro possa fazer parte das opções a serem escolhidas pelos professores nas escolas, pertencer ao Guia do Livro Didático, primeiro ele deve ser inscrito, por meio de um edital de seleção, e, posteriormente, assim como acontece desde 1993, ser aprovado por uma comissão de professores escolhida pelo Ministério da Educação (MEC).

De acordo com o Guia do PNLD 2020, 7 obras de Língua Portuguesa, para os anos finais do Ensino Fundamental, foram inscritas pelo Edital para participarem do processo de seleção, dentre essas, uma inscrição foi anulada por critérios de validação e apenas seis foram aprovadas. Um dos pontos verificados na avaliação foi “o grau de adequação dos materiais didáticos apresentados à proposta pedagógica da coleção e sua conformidade com os aspectos legais e pedagógicos, em especial aqueles relacionados à BNCC” (FNDE, 2019). Sendo assim, é perceptível o empenho em garantir a qualidade dos materiais aprovados e enviados às instituições de ensino.

Mesmo após a comissão escolhida pelo MEC deixar um leque de opções de livros didáticos a serem escolhidos nas escolas, pelos professores, selecionar dois livros, um como primeira opção e o outro como segunda, não é tarefa fácil, aliás, é uma atividade que requer, dentre outras incumbências, seriedade, responsabilidade, alinhamento com o Projeto Político Pedagógico (PPP) da escola e análise crítica que identifique incorreções teóricas e conteúdos que veiculem preconceitos.

Diante dessas reflexões, tendo em vista a complexidade inerente à tarefa de escolher um LD, há três pontos que desejo ressaltar, tendo por base minha experiência docente: Primeiro, alguns professores, ao fazerem a opção por um livro didático, são atraídos por aquele que dispõe do maior número de atividades gramaticais e textos que “ditem” as regras. Esse movimento é relativo aos resquícios das metodologias de ensino tradicionais, que valorizam muito mais a gramática em regras do que em (con)textos; O segundo ponto é referente ao tempo que o professor dispõe para avaliar a obra. Geralmente, a escola disponibiliza as obras deixadas pelas editoras e os docentes precisam carregar todo esse material para seu lar, realizar a escolha em seu horário de descanso, fora do planejamento. Nessas circunstâncias, a análise é feita com um grande dispêndio de tempo e gasto físico dos profissionais. Outras vezes, eles não são avisados, com antecedência, e a escolha é feita em um curto espaço de tempo, em alguns casos, no intervalo entre as aulas; Por último, e talvez o mais decepcionante, nem sempre a opção dos professores é considerada. Em alguns contextos, o que chega à escola não é nem a primeira nem a segunda escolha indicada pelos docentes. Como afirma Gonzáles (2015, p. 227), “se numa certa região determinado título foi muito pouco escolhido, ele é preterido em favor do livro mais escolhido na região, para que a quantidade de livros adquiridos force as editoras a baixarem seus preços”.

Sobre o primeiro ponto ressaltado, nas palavras de Ferrarezi Jr. e Carvalho:

Os professores acham que sua tarefa se resume em dar uma aula teórica sobre algum tópico gramatical trabalhar mais ou menos uma interpretação de texto - normalmente seguindo o que está no livro didático e copiando as respostas do seu livro do professor no quadro para os alunos copiarem no caderno, sem qualquer discussão... - passar tudo no quadro, blá blá blá. (FERRAREZI Jr; CARVALHO, 2015, p. 57).

Infelizmente essa constatação ainda se faz presente nos ambientes escolares, vestígios de “extensões de instituições religiosas, uma espécie de escolas-igrejas, em que ficar quieto diante da sabedoria do professor-sacerdote era considerado respeito e disciplina e falar era considerado ‘pecado’” (CARVALHO; FERRAREZI JR., 2018, p. 22). Daí a necessidade, na visão de alguns professores, de ter um LD com muitos exercícios, muitas atividades, muitos afazeres que contribuam para o silenciamento dos alunos, a ordem em sala de aula, um material que não demande outras listas infindáveis de atividades.

Como se sabe, ou deveria saber, a educação, por meio da prática docente, precisa ir além da realização de exercícios repetitivos, monótonos, que nem sempre produzem uma aprendizagem significativa. É imprescindível, nessa direção, que a ação de promover o ensino esteja aliada às práticas instigadoras, desafiadoras, voltadas para a formação de cidadãos críticos, aptos a exercerem sua cidadania, serem autônomos, pensadores, questionadores e - por que não dizer? -, fazedores de balbúrdia.

A questão indígena no livro da coleção Singular e Plural, editora Moderna, ensino fundamental II, 6º ano

É incontestável que há muitos equívocos e (f)atos a respeito da história e das culturas indígenas que nunca foram ensinados de forma justa na escola e fora dela. Ciente disso, e, enquanto professora que se sente atravessada pela questão indígena, ao ter um livro didático do 6º ano para complementar o meu planejamento anual na disciplina de Língua Portuguesa, surgiu o desejo de analisar como essa obra abordava essa temática, como se posicionava diante do cumprimento da Lei 11.645/08 que fala da obrigatoriedade do estudo da história e da cultura indígena. Iniciemos este estudo.

Em relação ao livro analisado, destaco que faz parte da coleção Singular e Plural, aprovado pelo PNLD/2020, quadriênio 2020-2023, foi produzido por Balthasar e Goulart, no ano de 2018 e destina-se ao 6º ano do Ensino Fundamental. Segundo a avaliação do MEC, “Esta coleção oferece para leitura e análise um bom conjunto de textos expressivos dos vários gêneros textuais discursivos e da diversidade regional, étnica, cultural e linguística do Brasil, assim como de autores de países africanos de língua portuguesa e de Portugal” (FNDE, 2019, p. 154). Sendo assim, esse LD é um instrumento satisfatório de apoio pedagógico e será muito importante para a ampliação do contato do aluno com um repertório diversificado de gêneros e textos.

Fonte: Balthasar e Goulart (2018)

Figura 1 Livro da coleção Singular e Plural, editora Moderna, 6º ano. 

Ainda sobre a coleção mencionada, cabe destacar que ela é composta por quatro volumes, 6º, 7º, 8º e 9º anos, os quais possuem versão para os estudantes e para os professores. Do manual do professor há duas versões: digital e impressa. Cada livro tem uma seção introdutória de boas-vindas e uma apresentação da estrutura da obra. No sumário é possível observar a divisão do livro em quatro unidades, o que na maioria das escolas corresponde aos quatro bimestres. Em cada unidade há três capítulos, divididos em seções e subseções, com linearidade referente aos eixos estipulados pela BNCC: primeiro capítulo - eixos de leitura e produção de texto, segundo - leitura e escrita de textos literários e terceiro - análise linguística/semiótica.

Ao ler o livro do 6º ano e as orientações aos docentes, para sondar a presença de conteúdos que tratam da questão indígena, além do capítulo dois, que será discutido na próxima seção, outros capítulos abordam a temática. No capítulo quatro, junto aos gêneros jornalísticos, há a notícia: “Crianças indígenas são retratadas em exposição fotográfica no Acre”. Nesse texto, além de muitas temáticas que podem suscitar reflexões para uma educação intercultural, também é mencionada a Lei 11.645/08 e a importância de seu cumprimento. Nas orientações aos professores é solicitado que, ao falar da notícia, a atenção fosse para a exposição, com o objetivo de

[...] fomentar discussões sobre os indígenas com a finalidade de diminuir o preconceito, por meio da difusão da história e da cultura indígena (conforme a lei citada). Você pode propor questões que os ajudem a dar destaque a esses trechos da notícia que evidenciam a relevância da exposição e, portanto, a relevância da notícia. (BALTHASAR; GOULART, 2018, p. 96).

Em outras palavras, os professores deveriam construir andaimes, a partir da notícia, para gerar discussões que colaborassem com a efetivação da lei citada. As características do gênero não precisariam ser deixadas à margem, deveriam fazer parte dos debates. Assim sendo, o livro, na função do professor, cumpriria o que está no Guia do PNLD (2020, p. 163): “Através de suas atividades, a coleção incentiva a reflexão sobre questões multiculturais atuais, que colocam o estudante diante de múltiplas realidades, cuja compreensão leva a análises críticas e ao respeito à diversidade e à diferença”. Isso é extremamente relevante. Quando a escola trata de temas recorrentes na sociedade brasileira ela está qualificando a educação, atenta à formação do cidadão atuante com criticidade.

No capítulo 10, Espaços de divulgação científica, há um artigo intitulado Anhanguera, abacaxi, Tietê: a contribuição das línguas indígenas para o português que falamos hoje que divulga a contribuição das línguas indígenas para o português brasileiro. A proposta ao expor esse texto é que o aluno se reúna em grupo, leia, estude e prepare uma exposição oral para a turma sobre o que foi lido. Durante a leitura o aluno deve tomar nota das informações e preencher um quadro com questões preestabelecidas. São elas:

a) Qual é o título do texto? b) Onde ele foi publicado? E qual pode ser seu público leitor? c) Considerando as características gerais do texto, que nome você daria a esse gênero? d) De quem é a autoria ou a responsabilidade sobre o texto: do jornal ou de um jornalista específico? e) De que fala o texto? E como é a linguagem usada: formal, informal, com muitos termos específicos das ciências? f) Como é desenvolvido o assunto? (Que informações importantes há sobre o assunto? Qual é a posição das vozes que aparecem no texto em relação ao assunto? O texto apresenta informações confiáveis? Como você pode comprovar isso?) g) O que o texto trouxe de novidade para você? h) Qual é a sua opinião sobre o texto? (BALTHASAR; GOULART, 2018, p. 208).

Todas essas perguntas são respondidas no manual do professor, exceto as questões G e H que são indicadas como resposta pessoal do grupo. Como é possível perceber, pelo que foi solicitado tomar nota, as respostas não demandam reflexões profundas sobre as questões indígenas. O texto é colocado com outro objetivo, uma sumarização voltada, principalmente, para as características do gênero estudado, o que deve resultar em uma exposição oral. Se apenas isso for feito, perde-se a oportunidade de (re)conhecer a importância dos povos originários na nossa história, na nossa cultura, nas contribuições para o nosso léxico.

Ainda em relação ao artigo, por ele rememorar a chegada dos europeus ao solo brasileiro, um dos mais pontos relevantes da história indígena, outras propostas poderiam ter sido mencionadas ao professor. Uma sugestão seria problematizar a escrita da palavra “descobrimento”, também, entre aspas no texto, e o processo de colonização. Por estar em um livro do 6º ano, esse processo histórico pode ser desconhecido pelos alunos.

A história oficial do Brasil que conhecemos sempre nos foi contada segundo a visão eurocêntrica, ou seja, os referenciais foram sempre os da Europa, que, no século XVI, era a todo-poderosa, sobretudo no comando das grandes navegações. Era um período conturbado politicamente e o poder da Igreja Católica estava em baixa. Somado tudo isso ao fato de que os turcos otomanos haviam tomado Constantinopla, em 1453, fechado um caminho por terra pelo norte da África e ampliado seu poder sobre as iguarias indianas, tão apreciadas pelos nobres europeus, iniciou-se uma busca insana por um caminho alternativo que os conduzisse os europeus às Índias e às suas preciosidades culinárias. Assim, foram iniciadas as grandes navegações. Espanha e Portugal, as duas potências bélicas e econômicas da época, investiram nessa aventura. [...]E essa aventura de encontrar um caminho marítimo para as Índias por meio da costa africana trouxe à América o perdido Cristóvão Colombo - que nunca acreditou ter chegado a um outro continente, pois jurava de pés juntos que chegara às Índias (WAPICHANA; MUNDURUKU, 2019, p. 54).

Daí surgiu não apenas o nome “índio”, também iniciou-se a colonização. “Quando os colonizadores europeus por aqui aportaram, [...] foram incapazes de valorizar a experiência dos indígenas e tiveram as atitudes que lhes pareceram mais natural: a escravização, o extermínio, a desmoralização cultural” (WAPICHANA; MUNDURUKU, 2019, p. 44). Os europeus julgavam-se “civilizados” e não aceitavam outros modos de pensamento. Diziam que os indígenas precisavam adquirir cultura, por isso tentaram impor, entre outras coisas, seus costumes, suas crenças, seus valores aos povos originários.

No capítulo 11, Quando a palavra ganha vida no palco: leitura de textos teatrais, há uma fotografia que mostra uma cena da peça teatral “Meu Vô Apolinário”, dirigida por José Sebastião Maria de Souza e encenada pelos artistas Wesley Leal e J. Lopes Índio. É um diálogo com a literatura indígena contemplada no capítulo dois, em outro gênero textual.

Fonte: Balthasar e Goulart (2018, p. 230).

Figura 2 Cena teatral - Meu vô Apolinário 

Nas atividades, é orientado ao professor que solicite previamente, como lição de casa, a releitura do fragmento no capítulo 2 de “Meu vô Apolinário”, de Daniel Munduruku. O objetivo é que o aluno, além de responder as questões propostas sobre a fotografia e o texto teatral, também fale sobre o texto relido numa conversa com a turma. Nessa conversa, o foco das questões 4, 5 e 6 giram em torno da adaptação do texto de Munduruku (2005) para o teatro. O aluno é instigado a falar sobre o que pensa ou sabe da arte do teatro, quais diferenças pode haver entre ler um texto e vê-lo representado e quais interferências faria, se pudesse, na recriação da cena exposta na fotografia.

Nas duas primeiras questões é possível perceber que houve, em certa medida, uma repetição do que o aluno já fez. As perguntas foram: “1. O que você achou de ler o texto Meu vô Apolinário, que conhecemos juntos no Capítulo 2, p. 46? Por quê? 2. Como você contaria resumidamente a história?” (BALTHASAR; GOULART, 2018, p. 231). No capítulo dois: “1. Você gostaria de comentar o que achou da história? Ou prefere reler algum trecho e comentá-lo? 4. Faça um resumo do enredo, ou seja, da sequência de acontecimentos” (BALTHASAR; GOULART, 2018, p. 48). Acredito que essas questões poderiam ser reelaboradas, não ser repetitivas. Por insistir em algo tão similar, o aluno perde a oportunidade de ser instigado a realizar outras associações entre o texto lido e a fotografia.

Diferente das questões 1 e 2, a questão 3: “Observe a fotografia da abertura do capítulo: o que você vê? Que relações estabelece com as personagens e passagens do texto de Daniel Munduruku?” (BALTHASAR; GOULART, 2018, p. 231), suscita uma reflexão de extrema relevância. O professor recebe orientação para explorar junto aos estudantes a roupa usada pelos atores. De fato, esse tema precisa ser debatido. Inclusive, nas orientações destinadas aos docentes, a palavra “típicas” justifica a necessidade:

Professor(a), aproveite para explorar com os(as) estudantes como as personagens aparecem com roupas não típicas das culturas indígenas e de que modo isso ajuda a criar representações de povos indígenas que vivem em cidades, com costumes que também vêm dos contatos entre as diferentes culturas. (BALTHASAR; GOULART, 2018, p. 230, grifo meu).

Quais roupas definem ou definiam um indivíduo como indígena ou não indígena? A partir da leitura dessa orientação, percebe-se a incidência de um estereótipo. O indígena é representado como alegoria, como reflexo de uma imagem ou de um conceito estagnado no tempo e isso não pode mais ser aceito, principalmente, porque, independente do indígena viver em uma aldeia ou não, sua identidade não está atrelada ao uso de roupas.

Um brasileiro que estuda outros idiomas, se veste com calça jeans e consome Coca-Cola não deixa de ser brasileiro e nosso dia a dia contemporâneo não é o mesmo que nossos ascendentes viveram. Da mesma forma que podemos nos modificar, ter acesso às novas tecnologias e contato com bens vindos de diversos cenários, as comunidades indígenas não precisam permanecer estáticas no tempo e isoladas para que sejam admitidas como tais. Toda manifestação cultural é vívida e inexiste cultura estática, seja ela do homem branco, seja oriunda dos coletivos indígenas (GONZAGA, 2021, p. 18).

Dito de outro modo, nenhuma cultura é engessada. No caso dos povos indígenas, desde a chegada dos europeus ao Brasil, em alguma medida, suas culturas foram alteradas. A convivência, ainda que não espontânea, contribuiu para isso. Não se pode negar que ainda existem povos que vivem isolados e com pouca, ou nenhuma, interferência em suas culturas. A escola precisa falar sobre essas questões.

Quando um material didático que foi avaliado a partir da BNCC, que tem o propósito de desenvolver diversas habilidades no alunado, dentre elas a de estabelecer múltiplos olhares sobre as identidades, sociedades e culturas, deixa margem para interpretações equivocadas, algo precisa ser repensado, especialmente, porque, por meio dessa orientação aos docentes, o ensino escolar pode contribuir para a promoção do estereótipo de que os indígenas aldeados - ignorando aqui as aldeias urbanas - em sua totalidade, vivem nus, com tangas, com cocar...

Sobre essa reflexão, na assertiva de Gonzaga (2021, p. 125): “A problemática da estereotipia dos indígenas não é exclusividade dos livros didáticos. Isto porque o conceito de um povo atado ao passado colonial do país ainda prevalece no inconsciente coletivo dos brasileiros”. Em outros termos, a inquietude acima exposta não invalida outros pontos assertivos da coleção ao abordar a questão indígena, todavia deve servir de alerta.

Ainda no capítulo 11, o gênero textual teatro traz o folclore brasileiro. As personagens Boitatá, Curupira, Caipora, Mãe-d’água e Saci Pererê são protagonistas. Assim, o material do professor orienta que se coloque “em discussão a relevância de valorizarmos nossa tradição, por meio do resgate de personagens e estórias que foram criados por diferentes antepassados e fazem parte de nosso imaginário, de nossa cultura” (BALTHASAR; GOULART, 2018, p. 232). Isso é muito importante e necessário. O professor precisa aproveitar o conteúdo escolar para ampliar o conhecimento dos alunos sobre as culturas indígenas. Quando a escola aborda essa temática, para Wapichana e Munduruku (2019, p. 92-93): “É um bom momento para ir desmistificando certos equívocos que ainda estão muito presentes na sociedade brasileira. Aqui valeria a pena falar sobre o sobrenatural nas culturas indígenas, a relação espiritual com o meio ambiente, ritos e celebrações”.

A literatura indígena no capítulo dois do livro da coleção Singular e Plural, editora Moderna, 6º ano

A produção de literatura escrita por indígenas no Brasil tem aumentado consideravelmente. Esse movimento começou de modo mais intenso nos anos noventa, tendo como representantes os sujeitos que moravam na zona urbana, mas que, nem por isso, se consideravam/são menos indígenas que os aldeados rurais. Dentre eles cabe destacar Daniel Munduruku, Eliane Potiguara, Yaguarê Yamã, Marcia Kambeba, Cristino Wapichana, Olívio Jekupé, Kaká Werá Jekupé, Lia Minápoty etc. Cada um desses escritores retrata, do seu ponto de vista, sua história, suas culturas, sua identidade, seus mitos, suas crenças etc.

Quando os livros didáticos utilizam literatura, na maioria das vezes, quase totalidade, o texto aparece em excertos, fragmentos. Infelizmente, essa é uma realidade que constato há mais de 15 anos em meu trabalho como docente na educação básica. Muitas vezes, para o professor ter acesso ao texto no íntegra, ele precisa comprar o material. A biblioteca da escola, quando essa existe, geralmente, também não dispõe do exemplar. Isso, de certa forma, é um problema que pode trazer inúmeros prejuízos aos alunos.

Partindo dessa premissa, nesta seção, este estudo irá analisar a literatura indígena “Meu vô Apolinário: um mergulho no rio da (minha) memória”, de Daniel Munduruku (2005), presente no capítulo dois, a partir das atividades propostas aos alunos e das orientações destinadas aos professores. Pretende-se suscitar reflexões acerca da efetivação da Lei 11.645/08, que fala da obrigatoriedade do estudo da história e cultura indígena, por meio da literatura indígena apresentada no livro didático. Diante dos desafios do cumprimento da referida Lei, o intento das reflexões levantadas nesse estudo é contribuir para uma educação intercultural, com múltiplos olhares sobre as identidades, sociedades e culturas, e problematizar práticas educacionais vinculadas ao texto literário presente no LD. A primeira orientação ao docente para trabalhar a subseção do livro é:

Professor(a), sugerimos que a seção Converse com a turma funcione como uma roda de conversa, apoiada nas questões propostas e em outras que você julgar serem importantes para o contexto de sua turma, para a troca de conhecimentos prévios e mobilização para a leitura, com formulação de expectativas a partir do título e do que os(as) estudantes já sabem sobre o autor e a cultura munduruku. (BALTHASAR; GOULART, 2018, p. 46, grifo do autor).

Com um olhar mais atento, percebe-se que as autoras do LD, Balthasar e Goulart, entendem que os professores, de modo geral, possuem conhecimentos suficientes sobre os povos Munduruku para conduzir uma roda de conversa. Essa afirmativa parte do princípio de que nem no material digital nem no manual do professor, impresso e digital, há dados suplementares sobre essa temática. Entendo que o LD deve ser um apoio pedagógico, porém sei que há muitas lacunas que precisam ser preenchidas sobre o estudo da história e das culturas indígenas. Ainda que haja a Lei 11.645/08, que torna obrigatório esse ensino, a efetivação não acontece como deveria, como preestabelecido.

Em relação às questões iniciais, elas buscam sondar o conhecimento do aluno sobre o autor, as obras dele, a cultura, os costumes do povo Munduruku e possíveis vivências relativas a esse contexto. Dentro dessa perspectiva, o professor precisa oferecer o suporte para essa aprendizagem, no entanto, é preciso admitir que nem sempre o docente possui esse saber: esse era o meu caso. Até aquele momento eu, professora há mais de 15 anos, graduada e mestra, não tinha todos os conhecimentos necessários para agenciar aquelas aprendizagens, por isso fui atravessada por essa questão. Precisava estudar, aprender, conhecer para fazer a mediação das atividades propostas.

Sendo assim, é perceptível que nem sempre a escola, a universidade e outros ambientes de aprendizagem, foram/são suficientemente capazes e dão conta de difundir conhecimentos sobre os povos originários, de forma justa, apropriada e respeitosa. Gonzaga (2021), Wapichana e Munduruku, (2019), Silva e Costa (2018), Funari e Piñón (2016) e Freitas (2011), alguns pesquisadores da temática, também compartilham dessa constatação. Ou seja, estamos diante de uma triste realidade que não pode ser negada, pelo contrário, deve ser colocada à mostra para que surjam discussões, problematizações, políticas públicas, capazes de preencher essas lacunas.

Retomando a análise das questões propostas no capítulo dois, verifica-se que o livro traz uma breve biografia, quase um currículo Lattes, do escritor indígena:

Daniel Munduruku nasceu em 1964, no Pará. Estudou Filosofia, História e Psicologia e, como escritor, já escreveu cerca de cinquenta livros para crianças, jovens e educadores. Possui Doutorado em Educação pela Universidade de São Paulo e Pós-Doutorado em Literatura pela Universidade Federal de São Carlos. Entre suas várias atividades, é diretor-presidente do Instituto UKA - Casa dos Saberes Ancestrais. (BALTHASAR; GOULART, 2018, p. 46).

Acredito que essa apresentação é insuficiente, porque estamos diante de um escritor indígena, autor de literaturas de resistência, de sobrevivência. Assim, outras informações poderiam ter sido acrescentadas para contribuir com as reflexões provocadas pelas atividades.

Em outro texto, ao falar sobre a literatura de indígenas, Munduruku (2016, p. 204) expõe que essa “literatura é um grito de libertação. E este nasce quando há opressão entalada na garganta. O Brasil tem esse grito entalado, mas ainda não conseguiu descobrir como libertarse porque foi educado para ser submisso, para aceitar sem questionar”. O brasileiro, com exceção de poucos, não consegue se desvencilhar dos moldes fabricados pelos colonizadores. Ainda está “deitado eternamente em berço esplêndido”, não consegue ouvir os gritos “abafados pelo interesse econômico de uma parcela gananciosa e egoísta” (MUNDURUKU, 2016, p. 204). Por isso é imprescindível propagar a cultura desse povo, compreender suas crenças, seus valores, seu modo de vida e, acima de tudo, respeitar.

Voltando às atividades, é proposto ao aluno que pense sobre o uso da palavra “rio”, presente no título da obra: “Meu vô Apolinário: um mergulho no rio da (minha) memória”, se foi usada em seu sentido mais usual ou se sugere outros sentidos e, a partir do título, o que esperar do texto. Na sequência, há uma introdução sobre a história que será narrada: “O narrador, que vive na cidade, um dia é ridicularizado, por ser indígena e por declarar seu afeto para uma colega de escola. Quando o avô o encontra, logo percebe os sentimentos do garoto”. (BALTHASAR; GOULART, 2018, p. 46).

Antes de começar a leitura, assim como sugere o LD, o professor deveria decidir de que modo ela seria realizada, individual e silenciosa ou em duplas colaborativas, outra sugestão seria deixar a sala de aula, explorar outros espaços, outros ambientes.

O livro “Meu vô Apolinário: um mergulho no rio da (minha) memória”, de Daniel Munduruku (2005), tem 39 páginas, os excertos expostos no LD correspondem a um trecho médio da página 7, um pequeno trecho da página 26, as páginas 29 e 30 na íntegra e o trecho inicial da página 31. Assim sendo, apenas, aproximadamente, 7,69% da obra foi contemplada. Dada a relevância desse excerto para este estudo, optei por citá-lo na íntegra:

Meu vô Apolinário

1 Gosto muito de contar histórias. Histórias moram dentro da gente, lá no fundo do coração. Elas ficam quietinhas num canto. Parecem um pouco com areia no fundo do rio: estão lá, bem tranquilas, e só deixam sua tranquilidade quando alguém as revolve. Aí elas se mostram.

2 Tem estórias que a gente inventa e cria na cabeça, fruto da imaginação ou da inspiração de algum espírito que quer que a gente as ofereça às outras pessoas. Podem ser estórias engraçadas, românticas ou tristes. Estórias ajudam as pessoas que as leem, de alguma forma que eu ainda não descobri. Apenas sei que elas tocam lá no fundo e é por isso que as pessoas gostam delas.

3 Tem histórias - estas, sim, escritas com H - que aconteceram de verdade e que fazem parte da gente, são a vida da gente. Acontecimentos que fizeram a gente pensar. Mas são sempre fortes porque marcam a nossa personalidade, nosso saber sobre nós mesmos, ou fatos que fizeram a gente rir; ou chorar; ou só pensar. Mas são sempre fortes porque marcam a nossa personalidade, nosso modo de ser e agir no mundo.

4 A história que vou contar não é sobre a minha pessoa. Ou melhor; é sobre a minha pessoa, mas não a que sou hoje - porque já não sou o mesmo que fui ontem - e sim a pessoa que fui me tornando ao longo dos poucos anos de convivência que tive com meu avô, um velho índio que se sentava de cócoras para nos contar as histórias dos espíritos ancestrais a quem ele chamava carinhosamente de avós e guardiões.

[...]

5 Meu avô Apolinário [...] surgiu ao meu lado como num passe de mágica. Passou a mão suavemente sobre minha cabeça e disse: - Hoje vamos tomar banho só nós dois. Em seguida, começou a andar em direção ao igarapé e eu senti que devia acompanhá-lo.

[...]

6 Quando chegamos ao igarapé onde a gente sempre tomava banho eu parei. Apolinário apenas balançou a cabeça negativamente e apontou um lugar mais adiante. Fui atrás dele. Eu nunca tinha tido coragem de subir o rio, mas não fiquei surpreso com o convite de meu avô. Ele me levou para um lugar belíssimo, com uma queda-d’água mais ou menos alta. Abaixo dela havia um poço. Fiquei encantado com a beleza do lugar. Apolinário me disse simplesmente:

7 - Está vendo aquela pedra lá na cachoeira?8 Respondi que sim.

9 - Então sente nela e fique lá. Não saia enquanto eu não mandar. Você só tem que observar e escutar o que o rio quer dizer pra você.

10 Foi o que fiz. Lá embaixo, Apolinário entrou na água e com as mãos em concha começou a jogar água sobre seu corpo velho e cansado. Ficou ali por bastante tempo, sem sair do rio. Eu olhava fixamente para as águas pensando no que eu deveria ouvir. Não ouvi nada, é claro. Não daquela vez.

11 Quando a tarde já estava caindo, meu avô me chamou.

12 - Agora já pode tomar banho.

13 Mergulhei com vontade na água fria. Ao subir à tona, me vi sozinho. Olhei para todos os lados. Meu avô tinha me deixado. Vesti correndo meu calção e comecei a gritar por ele. Ele reapareceu de surpresa, como sempre.

14 - Por que você está gritando?

15 Fiquei envergonhado, mas ele compreendeu.

16 - Fui fazer xixi. Você não sabe que não se deve fazer xixi no igarapé? O igarapé é de água pura e o xixi o contamina, enfraquece seu espírito. Espero que tenha aprendido alguma coisa com nossa vinda até aqui.

17 Fiquei quieto. Não tinha aprendido nada, pelo menos não tinha me dado conta ainda.

18 - Você chegou à aldeia muito nervoso estes dias, não foi? Veio assim da cidade, lugar de muito barulho e maldade. Lá as pessoas o maltrataram e você se sentiu aliviado quando soube que viria para cá, não foi? Sei que está assim porque as pessoas o julgam inferior a elas e seus pais não o ajudam muito a compreender tudo isso. Pois bem. Já é hora de saber algumas verdades sobre quem você é. Por isso eu o trouxe aqui. Você viu o rio, olhou para as águas. O que eles lhe ensinam? A paciência e a perseverança. Paciência de seguir o próprio caminho de forma constante, sem nunca apressar seu curso; perseverança para ultrapassar todos os obstáculos que surgirem no caminho. Ele sabe aonde quer chegar e sabe que vai chegar, não importa o que tenha de fazer para isso. Ele sabe que o destino dele é unir-se ao grande rio Tapajós, dono de todos os rios. Temos de ser como o rio, meu neto.(BALTHASAR; GOULART, 2018, p. 46-48, grifo do autor)

Após a leitura dos fragmentos, as primeiras atividades deveriam ser feitas de forma oral, como uma roda de conversa. Na primeira questão, o aluno deveria comentar ou reler algum trecho da história. Na segunda, resumir a diferença entre estórias e histórias proposta pelo autor e dizer de quem poderia ser a voz do texto. Na terceira, mencionar o que contribuía para que o texto parecesse uma “história”, realidade. Na quarta, resumir o enredo, os acontecimentos. Na quinta, concluir, com base na fala do avô, se o neto estava feliz em viver na cidade e por que ele poderia se sentir dessa forma. Na última questão, dar a opinião sobre atitudes como as que foram experimentadas pelo narrador fora da aldeia e como evitar que isso aconteça.

Como pode ser observado, na primeira questão há oportunidade para o aluno falar sobre a leitura. Isso é muito importante, afinal, cada leitura é recebida de forma diferente por cada leitor. Outro ponto positivo é que, a partir dos comentários que os estudantes trouxerem, o professor pode promover discussões necessárias a respeito da história e das culturas indígenas. Por exemplo, caso algum aluno fale sobre o seu avô ou o da história, o docente terá a oportunidade de falar sobre a importância, o respeito e a cultura Munduruku diante dos avôs, dos anciões. Sobre essa temática, o próprio Daniel Munduruku, em outra obra, afirma:

Eles servem para educar nosso espírito. São pessoas que já passaram pela vida e carregam no corpo as marcas do passado. Trazem consigo a experiência de ter vivido e compreendido os sentidos de existir. [...] Lá de onde vim, os velhos não abrem mão de seu papel de formadores de espírito dos mais jovens. Eles não querem ser jovens para sempre. Querem ser velhos para sempre. Querem ajudar os jovens a não perderem o rumo. Sabem que tem um papel importante na vida da comunidade, na sua continuidade. (MUNDURUKU, 2016, p. 30-31).

Em outros termos, ancião é sinônimo de sabedoria, ensinamento. Eles carregam o conhecimento das tradições e no contato com eles é que os jovens conhecem a sua ancestralidade. Por isso, compreender o respeito, a valorização e o tratamento dado a essas pessoas, dentro dessa cultura, contribui para a compreensão do texto. É uma discussão imprescindível, sobretudo quando se relaciona à continuidade desses povos, seus saberes. À vista disso, em relação ao LD, percebi que o material destinado ao professor, impresso e digital, não mencionam essa necessidade. O título do livro destaca a figura do avô, todavia as atividades propostas pelo livro não incitam, diretamente, essa discussão.

Ao retomar a última questão da roda de conversa, quando o aluno deve opinar sobre as atitudes que foram experimentadas pelo narrador fora da aldeia e como evitar que isso aconteça, percebe-se que o evento maior, causador da tristeza e mágoa do narrador, não foi anunciado no LD. Como responder então sobre a situação? Segue o trecho:

O motivo da minha crise foram os apelidos. [...] Um dia tomei coragem e fui falar com minha “paixão” secreta. Ela era linda e tinha Linda no nome. Lindalva. Quando a chamei para conversar, ela veio meio a contragosto.

- Oi, Lindalva. Eu queria muito falar com você. Sabe, faz tempo que sinto algo por você. Não percebeu isso, não? [...]

- O quê? Você acha que sou besta, é? Acha que vou trocar o gato do Edmundo por um, um, um... índio feito você? Você tem é titica de galinha na cabeça. [...] O pior, contudo, veio depois. Linda contou para todo mundo o que tinha acontecido e meus colegas caíram matando em cima de mim, repetindo tudo o que eu não queria ouvir: o índio levou o fora da Linda porque é feio, porque é selvagem, porque é índio. Foi a gota d’água. (MUNDURUKU, 2005, p. 22-23).

A meu ver, mencionar esse acontecimento pode oportunizar uma discussão muito importante, especialmente pelo uso da palavra “selvagem”. A construção da imagem dos indígenas atrelada a essa alcunha, desde à época do “descobrimento”, precisa ser assunto de reflexão dentro e fora dos ambientes escolares. Muitos pontos da história podem ser compreendidos caso esses estereótipos sejam problematizados.

Essa visão [...] surgiu desde a chegada dos portugueses, através principalmente do seguimento econômico, que queria ver os índios totalmente extintos para se apossarem de suas terras para fins econômicos. As denominações e os adjetivos eram para justificar suas práticas de massacre, como autodefesa e defesa dos interesses da Coroa (LUCIANO, 2006, p. 35-36).

Nas onze atividades seguintes, propostas pelo LD, sob o título “O texto em construção”, ainda sobre os excertos apresentados, as questões foram pensadas para abordar os recursos da linguagem e os procedimentos narrativos. Na questão 1, o estudante deveria estabelecer relação de comparação entre o modo como o avô surgiu e um passe de mágica. Na 2, produzir frases, a partir do trecho inicial: “Fiquei encantado com o lugar, que era bonito como...”. O objetivo dessas construções era para o leitor, por comparação, ter mais elementos para imaginar a beleza do lugar. Na 3, a literatura indígena deveria ser relida para que o aluno listasse, preenchesse um quadro, com todos os verbos e locuções verbais que foram usados nele, distribuindo os verbos e as locuções identificadas de acordo com a função que seus usos ganharam no texto.

Fonte: Balthasar e Goulart (2018, p. 49)

Figura 3 Quadro de atividades 

Sobre essa questão, em específico, compreendo e defendo que o estudo sobre os verbos precisa partir de situações de usos reais da língua, escrita ou falada. Por outro lado, vejo que, a partir da literatura contida no livro, seria possível desenvolver outras questões que, com a habilidade e a capacidade construtiva, crítica, dos professores, contribuiriam para a desconstrução de estereótipos e preconceitos sobre as culturas indígenas. Nesse sentido, possibilitaria problematizar as informações explícitas e implícitas no texto, por exemplo, o espírito do rio, as crenças, os valores, os costumes indígenas etc.

Na sequência das atividades em “O texto em construção”, na questão 4, o aluno precisa localizar, no texto, os momentos em que as próprias personagens falavam, sem a mediação do narrador, melhor dizendo, perceber o uso do travessão. Na 5, o trecho: “Vesti correndo meu calção e comecei a gritar por ele”, deveria ser reescrito empregando o travessão ou as aspas e verbos no presente que expressassem a fala do narrador na adolescência. Na questão 6, há sete parágrafos que deveriam ser enumerados de acordo com a ordem dos acontecimentos, quer dizer, o aluno deve demonstrar uma compreensão global do texto. A questão 7 traz o uso do pronome possessivo “minha”, entre parênteses no título do livro: Meu vô Apolinário: um mergulho no rio da (minha) memória. O enunciado do exercício diz: “Ao colocá-la entre parênteses, o autor convida o leitor a pensar nela de modo diferenciado. a) Considerando essas informações, responda: a memória narrada diz respeito apenas ao “eu” do narrador? b) Por que a palavra “minha” foi colocada entre parênteses”? (BALTHASAR; GOULART, 2018, p. 50)

Posto isso, observa-se que a questão 7, anteriormente mencionada, exige uma interpretação do implícito, o que pode ser um empecilho para alguns alunos, mas, como alertaram as autoras do LD, Balthasar e Goulart: os professores devem ajudar, se necessário, os “estudantes a perceberem que esse recurso estilístico reforça a ideia de uma memória que é individual - a do “eu” que narra, mas também coletiva, na medida em que a lembrança do avô traz conhecimentos da comunidade, do grupo cultural, a que ele e o neto pertencem”. (BALTHASAR; GOULART, 2018, p. 50). Ou seja, somos constituídos por muitas memórias, “fragmentos de sujeitos que atravessa(ra)m nossa existência” (CORACINI, 2010, p. 126).

Nas questões 8 e 9 as atividades exploram o sentido das palavras. A primeira a ser examinada é a palavra “como”, dentro da frase: Temos de ser como o rio, meu neto. Nesse viés, o aluno é instigado a estabelecer relação de comparação entre o “ser” indígena e as características do rio: permanecer constante, seguir o fluxo, independente dos obstáculos, das dificuldades que encontrar. Essa é uma temática muito importante para ser problematizada, afinal, os povos indígenas nunca deixaram de ser resistência. Em relação a segunda palavra, rio, no título da obra, o aluno deveria apresentar suas conclusões sobre a escolha e o uso dessa palavra. Por ser uma questão aberta, as possibilidades de discussões são inúmeras, o que é propício para compartilhar outros saberes a respeito das culturas indígenas.

[A escola], por seu papel de formação de criança, adquire um potencial estratégico capaz de atuar para que os índios passem a ser considerados não apenas um ‘outro’, a ser observado a distância e com medo, desprezo ou admiração, mas como parte deste nosso maior tesouro: a diversidade (FUNARI; PIÑÓN, 2016, p. 116).

A questão 10 retoma os conceitos de história e estória, que deveriam ser repensados. Não mais com a definição apresentada pelo narrador no início do texto, mas, a partir da elaboração do texto em si. Para isso, no enunciado da atividade, há indicações de itens que o aluno deve observar sobre o processo de escrita do texto: a organização dos eventos, as experiências, as falas, os acontecimentos, a exposição das emoções, o uso de linguagem figurada, comparações etc. Com base nisso, o aluno deve expôr sua opinião sobre a diferenciação que o autor propõe no início do texto entre estória e história. A orientação dada pelo LD ao docente diz:

[...] essa questão pretende provocar nos(nas) estudantes a percepção de que, mesmo que a matéria do texto literário seja “verdadeira”, no caso, autobiográfica, ela não foi simplesmente recordada e contada. Ela passou por um trabalho de elaboração, recriação, muito maior do que o que costuma acontecer nos relatos. Nesse sentido, ao se tornar “literária” toda “história” é também “estória”. (BALTHASAR; GOULART, 2018, p. 50).

Essa orientação é apropriada à finalidade de refletir sobre a memória, todavia, é preciso ter o olhar atento para não invalidar a narrativa. As memórias são ficcionais, são vestígios dos atravessamentos sociais, culturais, temporais, isto é, fragmentos da subjetividade. Isso não quer dizer que são inventadas, mentirosas. Portanto, a orientação dada ao docente, na questão 10, torna-se um motivo de preocupação, sobretudo quando ainda há tantos olhares que invalidam os povos indígenas, sua história e suas culturas. Caso o docente não esteja preparado para a mediação, outras tentativas de apagamento podem ocorrer.

Por fim, a última questão desse capítulo pede a opinião do aluno sobre ter conhecido, pela literatura, parte da biografia de um autor da etnia Munduruku. A meu ver, esse é um modo muito proveitoso de encerrar o capítulo, visto que os professores podem falar de outros povos indígenas, indicar outros livros, enfim, concluir deixando abertura para novas leituras e aprendizagens.

Reflexões para o início de outras conversas

No ambiente escolar, os docentes devem se apropriar de diversos meios e suportes para promover o ensino e a aprendizagem. Todavia, nem sempre quem está exercendo a profissão teve uma formação que atendesse as demandas necessárias para a mediação de debates em torno de assuntos que corroborem para a formação cidadã de modo integral. Se a vivência, a educação básica, a graduação ou os cursos posteriores não propiciaram os entendimentos requisitados para tais atividades, possivelmente os professores serão autodidatas.

Em alguns casos, isso acontece quando o profissional se sente afetado com alguma temática ou percebe que necessita de um domínio maior para problematizar algumas questões. Um exemplo disso foi o meu atravessamento frente à literatura indígena. Eu não tinha os conhecimentos necessários para explorar, mediar, de forma satisfatória, o texto Meu vô Apolinário, de Daniel Munduruku. Por isso, precisei estudar, aprender e, a partir daí, trabalhar de forma respeitosa, crítica e reflexiva na mediação das atividades propostas.

O livro didático é um material de apoio ao fazer pedagógico, ele não dá conta, nem foi criado com o propósito de oferecer formação docente, base teórica, para todos os assuntos abordados. Desse modo, enquanto suporte para a prática docente, execução dos planejamentos das aulas, o LD da coleção Singular e Plural, editora Moderna, 6º ano, dentro dos itens analisados, da observação dos textos sugeridos para leitura, das atividades propostas aos alunos, das orientações destinadas aos professores e, principalmente, frente ao tratamento dado ao texto literário do escritor indígena Daniel Munduruku, mostrou-se expressivo para a efetivação de uma educação intercultural, de certa forma, contribui para o cumprimento da Lei 11.645/08.

Nas atividades propostas, em sua maioria, há subsídios para que os profissionais da educação problematizem a construção de estereótipos em relação aos povos originários, provoquem os alunos para refletirem sobre as prováveis intenções dos colonizadores ao disseminarem imagens negativas dos primeiros habitantes do Brasil. Além disso, busquem conhecer mais sobre a cultura do povo Munduruku por meio de uma autobiografia, da exposição da memória de um indígena.

De modo geral, no tocante aos conteúdos referentes à história e às culturas dos povos indígenas brasileiros, o livro analisado expôs um espaço aberto ao diálogo, sobretudo quando utilizado de modo crítico. A escola precisa trazer uma (re)visão para os conhecimentos históricos, contestar alguns ensinamentos. Os livros didáticos, como um material pedagógico avaliado, inspecionado e elaborado para promover uma educação cidadã de forma íntegra são extremamente importantes nesse cenário. Ao trazer excertos de uma literatura indígena, o LD oportunizou debates sobre algumas questões que precisam ser (re)pensadas, isso, a depender da mediação, contribui muito para um olhar crítico frente aos (f)atos históricos amplamente divulgados.

A literatura no ensino de histórias e culturas indígenas pode ser importante aliada de professores e alunos na transversalização de conteúdos sobre a temática. Além de diversificar a prática pedagógica, os usos de obras literárias como documentos interdisciplinares introduzem conhecimentos históricos. (SILVA E COSTA, 2018, p. 122).

Dito de outra forma, os textos literários, quando escritos por indígenas, é a história contada, retratada por outro ângulo, pelos colonizados, atualização de quem sofre/sofreu à margem de uma sociedade capitalista: prova da resistência desses povos que lidaram com a tentativa de apagamento, escravização e outras barbáries, um escrito dos subalternizados.

Ao realizar esta pesquisa bibliográfica e documental, expor opiniões e teses de diferentes autores sobre a questão indígena, partindo dos textos sugeridos para leitura, das atividades propostas aos alunos e das orientações destinadas aos professores no livro da coleção Singular e Plural, editora Moderna, 6º ano, foi possível constatar que há questões e posicionamentos que podem ser revistos, melhorados, mas, na maioria das situações de aprendizagem, de acordo com a postura adotada pelo professor, há possibilidade para a promoção de muitas reflexões. Há aspectos, tópicos, que precisam ser melhorados, todavia muito já foi e está sendo realizado. Alguns assuntos podem ser aprofundados, observados por outras perspectivas, enaltecendo a história e as culturas dos povos originários, isso demandará determinados conhecimentos dos docentes sobre o assunto, a fim de que possam conduzir, de forma satisfatória, as atividades propostas.

Em relação ao tratamento dado à literatura indígena, cabe destacar que intervir na história por meio da literatura escrita pelos povos originários, nas palavras de Munduruku (2016, p. 192), é “desconstruir a imagem negativa que fizeram de nós e mostrar que somos parte da aventura de ser brasileiros”. Em outras palavras, por meio dessa literatura de resistência podemos confrontar o discurso de pessoas que, ainda, dizem, insistem, acreditam que os povos originários são seres do passado. Esses indivíduos, na maioria das vezes, negam ou desconhecem a própria ancestralidade.

Desse ponto de vista, o estudo da história utilizando a escrita de autores indígenas é uma excelente oportunidade de questionar e reconhecer a pluralidade de modos de vida, etnias, culturas, costumes, tudo que faz parte da composição da sociedade brasileira. Aproveitá-las é, antes de tudo, um bom-caminho para garantir uma educação de qualidade, implicada com questões sociais e políticas pertinentes à nossa vida cotidiana.

Assim sendo, finalizo esta discussão pensando em novas conversas. Acredito que as reflexões levantadas caminham no sentido de suscitar contribuições para uma educação com múltiplos olhares sobre as identidades, sociedades e culturas, somando voz com tantas outras reivindicações no campo da educação intercultural e das políticas públicas. Necessitamos de uma sociedade formada por pessoas mais tolerantes, conscientes e com menos preconceitos. Portanto, não é possível pensar em uma conclusão em torno desse assunto. O fim, aqui, é uma reticência...

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1O texto foi revisado por Adel Malek Hanna.

Recebido: 14 de Abril de 2022; Aceito: 11 de Julho de 2022

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