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Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade

Print version ISSN 0104-7043On-line version ISSN 2358-0194

Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade vol.31 no.67 Salvador July/Sept 2022  Epub Jan 13, 2023

https://doi.org/10.21879/faeeba2358-0194.2022.v31.n67.p384-398 

Estudos

O PROGRAMA PROINFÂNCIA E SEUS DESDOBRAMENTOS EM UM MUNICÍPIO DE MINAS GERAIS

THE PROINFÂNCIA PROGRAM AND ITS CONSEQUENCES IN A MUNICIPALITY OF MINAS GERAIS

EL PROGRAMA PROINFANCIA Y SU EVOLUCIÓN EN UN MUNICIPIO DE MINAS GERAIS

Víviam Carvalho de Araújo*  Universidade Federal de Juiz de Fora
http://orcid.org/0000-0002-3148-5683

Núbia Aparecida Schaper Santos**  Universidade Federal de Juiz de Fora
http://orcid.org/0000-0001-6684-2305

*Doutora em Educação pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Professora da Educação Básica da Prefeitura Municipal de Juiz de Fora, Minas Gerais. E-mail: viviamc@gmail.com

**Doutora em Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Professora Adjunta da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). E-mail: nubiapsiufjf@gmail.com


RESUMO

Este texto tem por objetivo apresentar os dados produzidos em uma pesquisa de Doutorado em Educação que teve como objetivo compreender o processo de implementação do Programa Proinfância em um município de Minas Gerais. A base teórico-metodológica adotada fundamentou-se na perspectiva do círculo de Mikhail Bakhtin em diálogo com a proposta do ciclo de políticas (policy cycle approach), desenvolvida pelo sociólogo inglês Stephen Ball e colaboradores. As políticas públicas no campo da Educação Infantil e dos autores que as analisam constituíram-se também como parâmetro teórico importante na construção do percurso do trabalho. Como instrumentos metodológicos, foram utilizados a pesquisa bibliográfica, a análise documental e entrevistas. Os efeitos do processo de implementação do Programa Proinfância indicam uma política municipal de Educação Infantil dual, fragmentada e focalizada ao estabelecer uma política de conveniamento para a gestão das creches via terceiro setor. Conquanto o Programa tenha trazido uma expansão de vagas nas creches e, de certa forma, uma melhoria na infraestrutura, vem acarretando uma extrema desigualdade nas condições de oferta da Educação Infantil no município.

Palavras-chave: políticas de educação infantil; creche; Programa Proinfância

ABSTRACT

This text intends to present the data produced in a Doctorate program research in Education that aimed to understand the process of implementing the Proinfância Program in a municipality of Minas Gerais. The theoretical-methodological basis adopted was grounded on Mikhail Bakhtin’s circle perspective in dialogue with the policy cycle approach proposal, developed by the English sociologist Stephen Ball and collaborators. Public policies in the field of Early Childhood Education and the authors who analyze them were also an essential theoretical parameter in the construction of the work path. Bibliographic research, document analysis, and interviews were the methodological instruments of choice. The effects of the Proinfância Program implementing process indicate a dual, fragmented, and focused municipal Early Childhood Education policy when establishing an agreement policy for the management of daycare centers via the third sector. Although the Program has brought an expansion of openings in daycare centers and, in a way, an improvement in infrastructure, it has resulted in extreme inequality in the Early Childhood Education provision conditions in the municipality.

Keywords: early childhood education policies; nursery; Proinfância Program

RESUMEN

Este texto tiene como objetivo presentar los datos producidos en una investigación de doctorado en Educación, que tuvo como objetivo comprender el proceso de implementación del Programa Proinfancia en un municipio de Minas Gerais. El fundamento teórico-metodológico adoptado se basó en la perspectiva del círculo de Mikhail Bakhtin en diálogo con la propuesta del ciclo político (enfoque del ciclo político), desarrollada por el sociólogo inglés Stephen Ball y sus colaboradores. Las políticas públicas en el campo de la Educación Infantil y los autores que las analizan también fueron un parámetro teórico importante en la construcción de la trayectoria del trabajo. Como instrumentos metodológicos, se utilizaron investigaciones bibliográficas, análisis de documentos y entrevistas. Los efectos del proceso de implementación del Programa Proinfancia indican una política municipal doble, fragmentada y enfocada al establecer una política de convenio para la gestión de guarderías a través del tercer sector. Aunque el Programa ha traído una expansión de lugares en guarderías y, en cierto modo, una mejora en la infraestructura, ha resultado en una desigualdad extrema en las condiciones de provisión de Educación Infantil en el município.

Palabras clave: políticas de educación infantil; guardería; Programa Proinfância

Introdução

Este texto tem por objetivo apresentar os dados produzidos em uma pesquisa de Doutorado em Educação que teve como objetivo geral compreender o processo de implementação do Programa Proinfância em um município de Minas Gerais.1

A base teórico-metodológica adotada na pesquisa fundamentou-se na perspectiva do círculo de Mikhail Bakhtin, cuja concepção de linguagem, que se constitui da/na relação com a estrutura social, só pode ser compreendida como acontecimento ideológico e dialógico no fluxo da história. As políticas públicas no campo da Educação Infantil e dos autores que as analisam constituíram-se também como parâmetro teórico importante na construção do percurso do trabalho. Para analisar como ocorreu o processo de implementação do Programa no município investigado, utilizou-se a proposta do ciclo de políticas (policy cycle approach), desenvolvida pelo sociólogo inglês Stephen Ball e colaboradores, para os quais há um processo de recontextualização das políticas, que são compostas por arenas de sentidos e negociações. Como instrumentos metodológicos, foram utilizados a pesquisa bibliográfica, a análise documental, além de entrevistas dialógicas com gestores, representantes do Sindicato dos Professores, professoras e coordenadoras das creches construídas pelo Programa Proinfância. Os dados foram organizados a partir das dimensões de qualidade apontadas pelas políticas públicas na área da Educação Infantil: direito à educação, expansão, financiamento, forma de gestão, formação de professores, carreira e condições de trabalho docente, proposta pedagógica e infraestrutura.

Percursos teóricometodológicos: um diálogo entre Bakhtin e Stephen Ball

Fundamentamos nossas discussões nas proposições de Bakhtin e Stephen Ball e colaboradores, buscando, no diálogo entre essas concepções, um caminho para compreender os contextos das políticas e projetos no campo da Educação. Esse caminho se deu também em diálogo com o campo teórico da Educação Infantil em nosso país. A trajetória foi pautada no encontro com muitos textos e discursos, produzindo, a partir dos sentidos evocados, novos enunciados abertos a contrapalavras e interpretações. Para Bakhtin (2003, p. 271), “toda compreensão da fala viva, do enunciado vivo é de natureza ativamente responsiva [...] e toda compreensão é prenhe de resposta”.

Pensar a dinâmica do campo de produção de políticas é mobilizar tanto sujeitos como grupos sociais, espaços e discursos em processos contínuos de interpenetração. É aceitar o convite que nos faz Ball de compreender as complexas imbricações entre local/global e os fatores econômicos, políticos e culturais, numa necessária articulação entre as dimensões da micro e da macrorrealidade (DIAS, 2009). Ao considerar a ideia da produção das políticas como ciclo e pressupor vê-las como uma construção social que envolve sujeitos e contextos, que é marcada pela heterogeneidade, vimos proximidade com a formulação bakhtiniana, quando nos traz a ideia de um sujeito que produz sentidos numa situação de interação e coletividade.

Ball (2006, 2011) trabalha com a perspectiva da política como texto e política como discurso. Ao explicitar a diferença entre esses conceitos, assinala que os textos das políticas sofrem influências, estando sua formulação inserida em um processo de negociação dentro do Estado e também no processo de formulação da política. Em diálogo com Bakhtin, podemos considerar o texto da política em uma perspectiva polifônica. Essa arena discursiva em que se constrói o texto da política é um campo de lutas e está impregnado dos sentidos que são construídos a partir dos pontos de vista que os sujeitos têm sobre o mundo. Sujeitos esses que marcam e que são marcados pela situação social, que, para Bakhtin (2014, p. 113), é a condição real da enunciação: “o ato de fala, ou, mais exatamente, seu produto, a enunciação, não pode de forma alguma ser considerado como individual no sentido estrito do termo [...]. A enunciação é de natureza social.”

Os textos, por terem uma pluralidade de leitores, terão também uma gama de produções de sentidos. Tendo como referência as ideias de Ball, Mainardes (2006, p. 54) aponta que a política como texto e política como discurso são processos complexos que devem ser entendidos de forma complementar: “o passo que a política como discurso enfatiza os limites impostos pelo próprio discurso, a política como texto enfatiza o controle que está nas mãos dos leitores”. Para Bakhtin (2003), o texto é produção de discurso, e a sua compreensão consiste em um movimento dialógico. Para esse autor, “[...] não há limites para o contexto dialógico” (BAKHTIN, 2003, p. 410).

De acordo com Brait (2017), os conceitos de texto e discurso estão no coração da teoria de Bakhtin, sendo elementos centrais para se apreender o conceito de linguagem na perspectiva desse autor. O texto, para Bakhtin, não pode ser compreendido somente a partir de uma análise de seus elementos linguísticos, mas, sim, deve estar inserido em uma perspectiva mais ampla, “ligada ao enunciado concreto que o abriga, a discursos que o constituem, a autoria individual ou coletiva, a destinatários próximos, reais ou imaginados, a esferas de produção, circulação e recepção, interação” (BRAIT 2017, p. 10).

Nesse sentido, o ciclo de políticas, em diálogo com a perspectiva de Bakhtin, permite pensar que os sentidos dos textos das políticas, que foram concebidos e tecidos por uma multiplicidade de vozes, vão depender da sua produção e das relações entre os sujeitos dadas em determinados contextos históricos e culturais.

A abordagem do ciclo de políticas discutido por Bowe, Ball e Gold (1992) considera que as políticas são intervenções textuais, que carregam consigo limitações materiais e possibilidades. As respostas a esses textos têm consequências reais. Essas consequências são experienciadas no âmbito do contexto da prática,2 a arena à qual a política se refere e para a qual se dirige. Uma questão fundamental é o fato de que a política não é simplesmente recebida e implementada dentro dessa arena. Ao contrário, ela está sujeita à interpretação e, em seguida, à recriação. Sujeitos da prática não confrontam textos políticos como leitores ingênuos. Eles vêm com histórias, com experiência, com interesses pessoais, com valores e propósitos próprios. Para Bakhtin, a palavra não está petrificada no seu significado dicionarizado, sendo seu sentido dado pelas condições da enunciação concreta e seu contexto. Segundo Bakhtin (2003, p. 378), “a compreensão completa o texto: ela é ativa e criadora. [...] No ato da compreensão desenvolve-se uma luta cujo resultado é a mudança mútua e o enriquecimento”.

Ao buscar compreender o processo de implementação do Programa Proinfância em um município de Minas Gerais, tendo como aporte teórico-metodológico a filosofia da linguagem e o ciclo de políticas, um caminho precisou ser construído no sentido de considerar ser esse um acontecimento que está inserido na própria política nacional de Educação Infantil, que é histórica e também está em constante movimento e mudança.

Nessa trajetória, faz-se necessário discutir como se constitui o campo de avaliação de políticas e programas na Educação Infantil, para construir um olhar sobre o processo de implementação do Programa Proinfância no município investigado. É o que será tratado na próxima seção.

A avaliação da Política de Educação Infantil e o Programa Proinfância

O Programa Nacional de Reestruturação e Aquisição de Equipamentos para Rede Escolar Pública de Educação Infantil (Proinfância) foi criado no segundo mandato do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, através da Resolução CD/FNDE nº 6, de 24 de abril de 2007 (BRASIL, 2007). Sua proposição foi uma importante iniciativa do governo federal considerando o regime de colaboração entre os entes federados no campo da Política Nacional de Educação Infantil. O Programa foi criado como a principal ação do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) no campo da infraestrutura educacional, prestando assistência técnica e transferência de recursos financeiros a municípios e ao Distrito Federal para construção de Centros de Educação Infantil, aquisição de equipamentos e mobiliários. Após uma década de existência e já tendo passado por três governos, é possível observar os avanços e as contradições desse percurso. Inicialmente, lançado como um programa pequeno, teve seu auge e expansão no início do primeiro mandato da presidente Dilma Rousseff. Hoje o Programa se vê ameaçado diante da aprovação da Emenda Constitucional nº 95/2016 (BRASIL, 2016), que anunciou o congelamento de investimentos em áreas sociais, o que afeta diretamente a educação e, consequentemente, o Programa Proinfância. Esse fato revela-se um paradoxo em um momento de vigência do Plano Nacional de Educação (PNE 2014-2024) que previu, na estratégia 1.5 da meta 1, que contempla a Educação Infantil, a necessidade de “manter e ampliar, em regime de colaboração e respeitadas as normas de acessibilidade, programa nacional de construção e reestruturação de escolas, bem como de aquisição de equipamentos, visando à expansão e à melhoria da rede física de escolas públicas de educação infantil” (BRASIL, 2014a).

Considerando que compreender o processo de implementação do Proinfância em um contexto específico é, também, uma forma de avaliar os impactos/efeitos desse Programa para a política de Educação Infantil do município, torna-se necessário discutir uma concepção de avaliação da política de Educação Infantil, buscando estabelecer princípios que podem nortear o olhar sobre essa política. Essa discussão ganha contornos importantes já que, numa concepção dialógica de pesquisa nas ciências humanas, o objeto que está sendo tratado, no caso a política de Educação Infantil e, mais especificamente, o Programa Proinfância, é, ao mesmo tempo, objeto já falado, a ser falado e também objeto falante.

O processo de construção do que podemos denominar de Política de Educação Infantil no Brasil foi tecido por muitas vozes. São essas vozes que nos permitem delinear alguns parâmetros para o estabelecimento de dimensões importantes para se pensar em uma avaliação dessa política. No entanto, antes de abordar as características da política de Educação Infantil, é importante situar que essa trajetória das políticas educacionais no Brasil se dá em um contexto muito específico que compõe o nosso modelo federativo.

Cury (2002, p. 178) ajuda na compreensão de que a análise objetiva de uma política educacional requer considerar “os limites, as redefinições e as possibilidades que o regime federativo introduz”. A Constituição Federal de 1988 reconhece o Brasil como uma República Federativa composta pela união dos Estados, Municípios e Distrito Federal. O país possui uma organização federativa que supõe a não centralização do poder e uma autonomia relativa dos entes federados em competências que lhe são próprias. O artigo 24 da referida constituição diz que compete à União, aos Estados e ao distrito federal legislar concorrentemente sobre “educação, cultura, ensino, desporto, ciência, tecnologia, pesquisa, desenvolvimento e inovação”. Cury (2002, p. 172) aponta que,

[…] ao invés de um sistema hierárquico ou dualista, comumente centralizado, a Constituição Federal montou um sistema de repartição de competências e atribuições legislativas entre os integrantes do sistema federativo, dentro dos limites expressos, reconhecendo a dignidade e a autonomia próprias destes como poderes públicos.

Diante disso, é preciso problematizar que esse modelo federado traz alguns entraves para a implementação de políticas públicas, se considerarmos as diferenças regionais que afetam a competência administrativa e financeira dos entes federados, assim como a diversidade presente tanto em relação à composição política, quanto em relação ao seu tamanho e seus aspectos demográficos e de recursos naturais. Dito isso, é preciso agora pensar nas especificidades da política de Educação Infantil em nosso país e em que medida podemos, a partir dela, delinear dimensões para a sua avaliação.

A Constituição Federal do Brasil estabelece a educação como um direito público subjetivo. Sobre essa definição, Hidalgo (2009, p. 8) afirma que

[…] a educação como direito público subjetivo implica no reconhecimento das responsabilidades do Estado na promoção e oferta da educação (na figura da gratuidade) e também dos deveres do cidadão, a fim de que ele cumpra com o compromisso social de utilizar-se desses serviços em prol de seu bem-estar e da comunidade (na figura da obrigatoriedade).

Para assegurá-la e promovê-la a todos os brasileiros, é necessária a elaboração de políticas públicas. A Educação Infantil, primeira etapa da Educação Básica, é considerada direito das crianças de 0 a 5 anos, sendo também um direito de mães e pais trabalhadores(as). Para efetivação desse direito, temos, no Brasil, principalmente após a publicação da Constituição de 1988, uma trajetória que podemos denominar de “Política Nacional para Educação Infantil”. A composição dessa política é realizada através de instrumentos, tais como os planos, os programas e as ações. O Plano Nacional de Educação, por exemplo, estabelece as metas, as diretrizes e as prioridades a serem alcançadas em um prazo de dez anos, visando orientar as políticas educacionais. Os programas seriam ações mais focadas que objetivam operacionalizar determinadas metas estabelecidas nos planos. O Programa Proinfância, portanto, é um programa que está circunscrito a uma meta estabelecida nos Planos Nacionais de Educação, que é o de expansão da Educação Infantil. Esse Programa está alinhado com a Política Nacional de Educação Infantil, que tem, em seus componentes, o financiamento, a expansão, a infraestrutura, a qualidade, a formação de professores, a avaliação, entre outros.

Sobre a avaliação, um dos componentes da política de Educação Infantil podemos considerar tratar-se de um tema que tem entrado para a agenda da Educação Infantil nos últimos anos. Rosemberg (2013) salienta que estamos vivendo um processo de formalização de uma política de avaliação. Se esse tema passa a integrar a agenda, essa construção deve ser pautada em uma distinção entre política de avaliação na/da Educação Infantil e avaliação da Política da Educação Infantil.

Ao assumir o status de problema social, a avaliação na/da educação infantil apela por atenção pública como uma questão de política social. Assim, o tema passa a ser delimitado, enquadrado como problema, entra na agenda e na pauta de negociações de políticas sociais, busca visibilidade e legitimidade públicas, recursos e incita defensores/apoiadores (stakeholders), bem como opositores. (ROSEMBERG, 2013, p. 47).

Para essa autora, há, portanto, um movimento que busca incorporar a Educação Infantil na política de avaliação da Educação Básica, e outro que almeja incorporar o tema/problema da avaliação da política de Educação Infantil. Este é um caminho construído a partir de disputas entre os diversos atores sociais, entre eles os representantes do Estado, da Academia, dos movimentos sociais, dos trabalhadores e, com menor frequência, de usuários de creches e pré-escolas. Nessa trajetória, modelos e concepções de avaliação buscam ganhar seu espaço (ROSEMBERG, 2013).

Sobre a avaliação da política de Educação Infantil, Rosemberg (2013, p. 60) argumenta que a avaliação é, por sua natureza, uma atividade política.

Isso implica também incluir na avaliação os objetivos da política, programas ou projetos sob análise, efetuando perguntas exemplares: em benefício de quem foram propostos tais políticas, programas e projetos em educação infantil? Os objetivos propostos nos projetos, programas e metas estão em consonância com o consensual e instituído legalmente?

A partir de uma problematização do conceito tradicional de avaliação de políticas, programas e projetos em Educação Infantil, Rosemberg (2001) alerta que a avaliação, uma forma particular de pesquisa social, não teria por finalidade somente investigar se os objetivos propostos foram alcançados, mas, principalmente, se eles respondem às necessidades dos interessados, quais sejam pais (especialmente as mães), profissionais e crianças. Questionar quais objetivos orientam as propostas de projetos e programas na Educação Infantil, assim como indagar se os maiores interessados (pais/mães, profissionais e crianças) concordam com tais objetivos são questões que devem orientar as pesquisas de avaliação. Nesse aspecto, algumas questões são relevantes, como o questionamento sobre “por que e para que(m) serve a pesquisa avaliativa da/na educação infantil? Qual a razão de ser da política de educação infantil?” (ROSEMBERG, 2013, p. 52).

Em relação ao direito à Educação Infantil, temos, no Brasil, dois aspectos importantes que precisam ser ponderados: um que preconiza o direito das crianças de 0 a 5 anos à educação em creches e pré-escolas, e outro que afirma o direito de mães e pais trabalhadores(as) o acolhimento dos seus/suas filhos/filhas nessas instituições. No entanto, para Rosemberg (2013), tensões e desafios estão presentes nessa trajetória, considerando que não há, no país, uma ação política suficiente para integrar essas duas perspectivas.

Na construção da agenda da política de Educação Infantil, Rosemberg (2001) aponta que os atores sociais envolvidos não dispõem do mesmo poder de negociação, principalmente considerando que essa demanda responde à necessidade de mulheres e crianças, sobretudo daquelas que sofrem mais diretamente os efeitos perversos da desigualdade social e econômica, atores sociais mais desprestigiados em relação ao acesso ao poder. Ao discutir sobre modelos de avaliação na Educação Infantil, Rosemberg (2001) problematiza que, nos países em desenvolvimento, um viés que foi considerado, principalmente na América Latina a partir dos anos 1990, é a concepção de projetos e diagnósticos de avaliação orientados para aferir cobertura, custo e impacto. Nesse modelo, o indicador principal é a avaliação custo-benefício, com foco nas taxas de retorno. Esta é, portanto, uma concepção pautada no viés economicista, que desprestigia uma avaliação pautada no desenvolvimento social.

A discussão sobre avaliação conduziu o nosso olhar para o Programa Proinfância com base nas dimensões problematizadas pela própria área de Educação Infantil a partir das políticas públicas e dos autores e pesquisadores que são referências nesse campo. Isso foi fundamental porque possibilitou analisar como a produção discursiva dos sujeitos envolvidos na implementação desse Programa contribuiu para pensarmos a política de Educação Infantil no município investigado.

O texto produzido por Vieira (2011) nos ajudou nessa trajetória, ao apontar parâmetros para o estabelecimento de algumas dimensões que devem estar presentes em uma Educação Infantil de qualidade para os bebês, crianças pequenas e profissionais. Na trajetória da política de Educação Infantil do Brasil, especialmente pós-Constituição Federal de 1988, é possível elencar algumas permanências nos textos das políticas, tais como a Educação Infantil como direito da criança e dever do Estado, entendido como poder público, constituir-se como a primeira etapa da Educação Básica; ser atribuição e prioridade da política educacional dos municípios; ter oferta pública ou privada regulamentada pelos sistemas de ensino; possuir caráter institucional, não doméstico; ter garantia de profissional docente devidamente qualificado. Em relação às redefinições e tensões, podemos destacar a integração das creches e pré-escolas aos sistemas de ensino pós LDB nº 9.394/96; obrigatoriedade da pré-escola; implementação efetiva das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil nos contextos institucionais; financiamento.

Importante enfatizar que os discursos que produzem a Educação Infantil são um campo de disputa. Essa etapa educacional é paradigmática do quanto esse movimento de avanços e retrocessos, de luta por concepções, é incorporado no texto da política, sob forma de legislação. Esse processo, que é atravessado pela linguagem, constitui-se de uma arena de disputas. Nesse sentido, o texto da política representa as vozes que ficaram em evidência em determinado contexto e momento histórico.

A partir dessas reflexões, podemos considerar que a Educação Infantil é constituída por algumas dimensões. Partindo do diálogo com os autores escolhidos para dar o embasamento teórico à pesquisa, elencamos como dimensões da qualidade na Educação Infantil: atendimento do direito à Educação; expansão; financiamento; forma de gestão; formação de professores; carreira e condições de trabalho; identidade; proposta pedagógica; infraestrutura. As dimensões estão imbricadas entre si, ou seja, relacionadas de forma dialógica e foram elas que permitiram um olhar para o processo de implementação do Programa Proinfância no município investigado. Para efeito de organização e análise, algumas foram agrupadas, sem perder de vista que refletem e refratam aspectos da política nacional e local, o que nos possibilitou uma compreensão dos efeitos da política no contexto da prática.

Os efeitos da política no contexto da prática: alguns apontamentos

Para buscar responder o objetivo da pesquisa, foram realizadas dezessete entrevistas. Os participantes da pesquisa, considerados como sujeitos do contexto da prática, foram oito gestores locais envolvidos na implementação do Programa Proinfância no município, dois representantes do Sindicato dos Professores, três professoras e três coordenadoras de instituições construídas pelo Programa.3 Em nível federal, foi entrevistada a coordenadora geral da Educação Infantil do MEC, que atuou no período de 2008 a julho de 2016.

As entrevistas coletivas4 e individuais, feitas de acordo com a disponibilidade dos sujeitos, foram previamente agendadas e realizadas na Secretaria de Educação do município, em duas creches construídas pelo Programa Proinfância, no Sindicato dos Professores e na Universidade Federal da cidade. Em média, cada entrevista durou 60 minutos.

Em momento anterior ao da realização da entrevista com as profissionais das creches, foi realizada uma visita em duas unidades inauguradas pelo Programa Proinfância, com o intuito de conhecer esses espaços e construir uma primeira aproximação com os sujeitos desse contexto da prática. O material produzido foi utilizado para compor a análise.

Para as entrevistas, foi realizado um roteiro prévio com questões relacionadas às dimensões da implementação do Programa no município. As entrevistas foram gravadas e transcritas, sendo possível, a partir da narrativa produzida, construir um histórico do Programa Proinfância no município desde sua gênese até a data de recorte do estudo.

Para efeito de análise dos dados, organizamos o texto a partir das nove dimensões definidas pela própria política de Educação Infantil, e que foram a referência para a construção do roteiro prévio das entrevistas: atendimento do direito à educação; expansão; financiamento; gestão; formação de professores; carreira e condições de trabalho docente; identidade; proposta pedagógica; infraestrutura.

Considerando a dimensão do direito à educação, expansão, financiamento e relação público/privado para gestão das creches, os dados da pesquisa possibilitaram problematizar como vem ocorrendo a expansão do atendimento educacional de bebês e crianças bem pequenas nas creches do município investigado, que não possui uma rede direta para gestão das instituições. Sendo assim, toda a gestão é realizada através de convênio com entidades privadas, incluindo as quatro creches já construídas pelo Programa Proinfância.5

A inauguração das novas creches do Proinfância no município acarretou uma expansão por vagas e, em certa medida, a melhoria da infraestrutura das instituições ao trazer um modelo arquitetônico mais adequado ao trabalho na Educação Infantil. Por outro lado, desvelou para a sociedade as nuances da face privada em relação à gestão das creches do município. Esse não foi um processo linear, mas marcado por idas e vindas, processos de ressignificação, embates e envolvimento de diversos atores e instituições. Os dados apontam para a perpetuação de uma antiga dicotomia presente no modelo com que a creche e a pré-escola se constituíram em nosso país e que ganhou novos contornos no município investigado, que vem legitimando a política de conveniamento e entrega para entidades privadas de toda a gestão das creches via financiamento público.

Um marco importante desse processo foi a partir da inauguração da primeira creche do Proinfância no ano de 2015, quando os gestores locais revelaram suas intenções para com o setor das creches, ao publicar um edital de chamamento público para gestão privada dessas unidades. A história da expansão da Educação Infantil no município, sobretudo em relação às creches, viabilizada através de convênio entre a prefeitura e entidades privadas, ganhou novo capítulo e foi tema de debates na sociedade civil a partir da repercussão da publicação de um novo chamamento público, ocorrido no final do ano de 2017, quando o município marca, de forma importante, sua política de conveniamento para a gestão das creches.6

A discussão da dimensão da carreira e condições de trabalho docente ganhou uma forte centralidade considerando que as quatro creches inauguradas no município via Programa Proinfância foram entregues para a gestão privada com uma especificidade: veio acompanhada da precarização e desconsideração da carreira das professoras que trabalham nas instituições, já que o edital permite a contratação de educador, em detrimento do professor. Ao delegar à empresa conveniada a contratação dos profissionais permitindo o contrato do educador em detrimento do professor, há uma desconsideração da profissão, visto que esses profissionais não recebem o piso salarial dos professores e muito menos têm a carga horária correspondente à função docente.7 Essa é uma situação que difere totalmente dos professores da Rede Municipal de Ensino que possuem carga horária de 20 horas semanais, um terço das quais é destinada à realização de atividades extraclasse, possuem carreira com progressão salarial por tempo de serviço e também por formação.

Importante ressaltar que a opção dos gestores, ao entregarem a gestão das creches para instituições privadas que contratam educadores, recreadores e auxiliares em detrimento do professor, permitem a criação de categorias paralelas, destituindo do espaço educativo da creche o professor. Tal fato enfraquece a profissionalização docente e desvirtua o que constitui a identidade da Educação Infantil.

A dimensão da formação de professores/ identidade/proposta pedagógica/infraestrutura revelou uma arena de tensões entre questões políticas e pedagógicas e um aprofundamento de questões históricas de precarização do atendimento educacional das crianças de 0 a 3 anos no município investigado.

A relação entre o cargo ocupado na creche e um desconhecimento da natureza da docência na Educação Infantil é percebida pela fala das professoras que apontam para uma dicotomia entre o cuidar e o educar, o que traz consequências para a construção de sua identidade no magistério. Sobre essa questão, E108 diz não se identificar com a função do magistério: “Por mais que eu tenha a parte pedagógica, o cuidado que eu exerço é bem maior do que a parte pedagógica. Até porque, muitas vezes, a minha parte pedagógica é camuflada”. E12 diz se identificar um pouco com o magistério e E11 expressa a questão da falta de identidade:

Então... eu me identifico um pouco. Em uma parte. Primeiro, porque eu estou com uma turma um pouco menor, então as coisas que eu faço não entram no magistério. (E12).

Aí fica uma coisa meio confusa. A gente é professora, mas a gente não pode falar que é professora. A gente tem que falar que é educadora, mas a gente não é educadora, a gente é recreadora. (E11).

Interessante observar como a professora coloca o debate do cuidar/educar sob a égide de uma cisão, acompanhando a cisão explicitada por ela sobre o seu fazer, entre ser ou não ser professora ou educadora e ter que se adequar/ conformar na condição de recreadora.

Há uma complexidade apontada por autores que se debruçam sobre a formação de professores para atuar com bebês e crianças pequenas. Pesquisas como as realizadas por Nunes (2015), Côco (2015) e Campos (2018) demonstram o quanto precisamos avançar em relação a esse campo dos direitos dos profissionais da Educação Infantil em relação à sua formação e valorização, especialmente na creche.

Para Campos (2018), em relação à formação específica do professor da Educação Infantil, o marco legal inaugurado pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação em 1996 e o sucessivo crescimento das matrículas na Educação Infantil, nas duas últimas décadas, ocasionaram um aumento significativo na demanda por docentes para o trabalho nas creches e pré-escolas. No entanto, essa autora aponta que, apesar desse contexto, pesquisas demonstram uma demora em rever os padrões de formação inicial e continuada desses profissionais, assim como a instituição de carreira e condições adequadas de trabalho para as professoras. Campos (2018) observa uma disparidade: a crescente importância que a Educação Infantil passa a ocupar como primeira etapa da Educação Básica não foi acompanhada por uma revisão nos padrões de oferta de formação inicial e continuada, desenhos de carreira e condições de trabalho, que ainda seguem modelos herdados no passado.

A questão da desvalorização e da ausência de carreira própria contribui para uma alta rotatividade das profissionais e, consequentemente, para dificuldades da instituição de construir vínculos com as professoras que ali atuam. Essa situação foi observada em diversos momentos das entrevistas com as professoras. Um dos exemplos foi quando perguntadas sobre o que elas consideram que poderia contribuir para melhorar a atuação delas como professoras da Educação Infantil e elas relataram: “A gente ser valorizada!” (E10). “Acho que a primeira coisa é a carteira mudando, a gente ser reconhecida [...] Porque a gente é muito desvalorizada” (E11).

No centro da discussão sobre como vem ocorrendo a implementação do Programa Proinfância no município investigado, aspectos importantes situam-se nas conquistas legais que preconizam um atendimento educacional de qualidade na Educação Infantil, orientações e estabelecimentos de padrões de infraestrutura, gestão, financiamento, proposta pedagógica, formação e condições de trabalho dos professores.

Os dados produzidos pelas entrevistas realizadas revelam que as estratégias que vêm sendo adotadas no município foram constituídas pelos discursos e ações de diferentes atores e suas convicções ideológicas, concepções e compromissos políticos. Essa trajetória vem apontando que o município caminha no sentido de perpetuar com a política residualista para as creches, que não possuem uma rede direta de gestão pública. Os fatores aqui apresentados remetem a questões que estão inter-relacionadas e que constituem os pontos frágeis que trazem entraves ao fortalecimento da política de Educação Infantil no município: aspectos relacionados à gestão das instituições, às condições de trabalho dos profissionais e à sua formação inicial e continuada.

O caso da implementação do Programa Proinfância no município é constituído pelas mesmas tensões e contradições presentes na história da Educação Infantil de nosso país. Exemplo disso são as condições históricas desiguais de oferta e atendimento entre creche e pré-escola. Um descompasso fica bastante evidente, ao constatarmos que existe uma trajetória importante de orientações e legislações pós-Constituição Federal de 1988 garantindo o direito dos bebês e crianças pequenas a uma educação de qualidade, mas que, na prática, não se traduziram em políticas e ações efetivas para a garantia desses direitos, especialmente para creche.

A expectativa da inauguração desse Programa no município seria a de que houvesse um fortalecimento da política de Educação Infantil e, especialmente em relação à creche, pudesse se estabelecer um marco de atendimento educacional direto através da gestão pública e de carreira própria para as profissionais. Entretanto, o que se vem observando é o fato de que o Programa vem revelando um aprofundamento de questões históricas de precarização do atendimento educacional das crianças de 0 a 3 anos no município.

Considerando o amplo cenário das políticas nacionais, o município, por constituir um sistema municipal de ensino, deve integrar as orientações das políticas públicas federais para a educação em seus projetos e propostas locais. É papel do poder público municipal trabalhar em parceria com os governos estadual e federal, buscando a formulação de políticas que estejam em consonância com as legislações em vigor. Ao trabalhar para garantir o acesso dos bebês e crianças pequenas a creches e pré-escolas, é necessário que o município caminhe no sentido de possibilitar a sua permanência em instituições que primem pela qualidade das práticas e propostas desenvolvidas.

Algumas considerações

A pesquisa, que teve como objetivo compreender o processo de implementação do Programa Proinfância no município de Minas Gerais, buscou uma relação entre a concepção de linguagem discutida pelo círculo de Bakhtin, o campo teórico da Educação Infantil e as proposições do ciclo de políticas de Stephen Ball. Foi construída em diálogo e encontros com muitos textos e discursos, produzindo, a partir dos sentidos evocados, novos enunciados abertos a contrapalavras e interpretações.

Esse caminho possibilitou tomar o texto a partir de uma concepção dialógica e passível de construção de sentidos. Para Bakhtin (2003, p. 307), “onde não há texto não há objeto de pesquisa e pensamento”. Nessa trajetória, estiveram presentes, além dos enunciados, o contexto de enunciação e as múltiplas vozes que o compõem. A partir da concepção da natureza social do enunciado, as políticas foram consideradas em uma perspectiva ampla, de incompletude, de acontecimento ideológico e dialógico, de movimento que se dá no fluxo da história, produzidas em intertexto e reinterpretadas nos contextos. A proposição do Programa Proinfância, que se constituiu a partir da Política Nacional de Educação Infantil, buscou responder a um dado problema, mas também produziu outros sentidos e outros contextos de enunciação.

O ciclo de políticas proposto por Ball possibilitou considerar que temos, hoje, uma Política Nacional de Educação Infantil que pode ser compreendida a partir do seu contexto de influência, do contexto de produção do texto, do contexto da prática, do contexto dos resultados (efeitos) e do contexto da estratégia política. Essa política possui dimensões, como o atendimento do direito à Educação; expansão; financiamento; forma de gestão; formação de professores; carreira e condições de trabalho docente; identidade; proposta pedagógica; infraestrutura. Essas dimensões são compreendidas como processos dialógicos que estão em constante relação, movimento e mudança.

Vimos que uma importante conquista da integração da creche e pré-escola na Educação foi a afirmação de ser esse um direito das crianças desde que nascem, sendo de responsabilidade do Estado seu provimento. No entanto, como a política é campo de contradições, na prática, especialmente em relação às creches, vários desvios apresentaram-se como entraves à consolidação da Educação Infantil como primeira etapa da Educação Básica. As políticas educacionais se constituem sob as tensões decorrentes do modelo federado do país que se configura como uma arena de negociação e entraves. A forma como se constitui o pacto federativo e as fragilidades dos municípios evidenciaram a necessidade de uma melhor articulação entre os entes federados para que as políticas possam ser implementadas de forma efetiva.

Considerando o contexto mais amplo das políticas e seu contexto de influências externas, podemos considerar que a trajetória da Constituição Federal de 1988 é marcada por uma contradição, pois, ao mesmo tempo em que há um avanço nas conquistas e no reconhecimento dos direitos sociais, que passam a ser legitimados, no contexto de influência mundial, a ordem neoliberal ganhou força nesse período. Em relação ao direito à Educação Infantil, esse contexto se tornou mais preocupante, se considerarmos que o país historicamente apresenta entraves para a consolidação de uma política de Educação Infantil na prática.

Vimos, em diálogo com diversos autores, que o convênio com entidades privadas para oferta da Educação infantil está ancorado em uma lógica da oferta paliativa e residual, o que aprofunda as desigualdades já presentes no campo da Educação Infantil do país. Com a política de conveniamento, a dimensão da expansão ocorre em detrimento do direito à qualidade, ocasionando novas formas de discriminação e subalternização. Para Campos (2013, p. 207), essa conjuntura anuncia a entrada “em um novo ciclo expansivo, via terceiro setor, subvencionado com recursos públicos, mas agora não mais de assistência e sim de educação”. De acordo com Campos e Barbosa (2018), a política de conveniamento, em um contexto que nunca teve uma política nacional de Educação Infantil consolidada, apresenta-se como um ameaça na luta pelos direitos sociais.

O Programa Proinfância está inserido na Política Nacional de Educação Infantil do país, tendo seu contexto de influência, seu contexto de produção do texto, seu contexto da prática, contexto dos resultados (efeitos) e o contexto da estratégia política. Em tese, esse Programa seria completo, pois, ao perpassar todas as dimensões da política de Educação Infantil, estaria fortalecendo a Política Nacional de Educação Infantil.

Podemos considerar que o Programa Proinfância traz consigo elementos importantes para se estabelecer um fortalecimento da política de Educação Infantil a partir do atendimento ao direito à Educação. Em relação à infraestrutura, o Programa avança, ao financiar a construção de equipamentos mais adequados ao trabalho com essa etapa educacional e a consequente expansão das matrículas. As demais dimensões, tais como formação de professores, carreira, identidade profissional e proposta pedagógica, em tese, deveriam ser fortalecidas, se consideramos que as dimensões da política dialogam e possuem interfaces. No entanto, pôde-se observar que, a partir da ressignificação do Proinfância nos contextos, fragilidades dos municípios e escolhas dos gestores foram evidenciadas e até mesmo acentuadas. No caso do município investigado, o Programa colocou uma “lente de aumento” em questões históricas relacionadas à forma como organiza a oferta e a gestão das creches.

Conquanto o Programa tenha trazido uma expansão de vagas nas creches e, de certa forma, uma melhoria na infraestrutura, a partir de uma concepção de política fragmentada e focalizada, evidenciou uma extrema desigualdade nas condições de oferta da Educação Infantil no município.

Dados produzidos na pesquisa demonstraram que as dimensões do direito à educação, relacionado à expansão, financiamento, forma de gestão, formação de professores, carreira e condições de trabalho docente, proposta pedagógica e infraestrutura, articulam-se e fazem parte da construção da política de Educação Infantil, influenciando na identidade com que essa política é constituída no contexto local. A transferência do poder público para o setor privado da responsabilidade pela efetivação do direito à Educação caminha na contramão do que lutamos, ou seja, uma educação pública de qualidade como direito de todos e todas.

Neste momento, é preciso reafirmar o papel do Estado, como responsável e executor das políticas sociais, e a Educação Infantil na arena dos direitos e não na concepção de modelos incompletos de prestação de serviços. Direitos sociais não são negociáveis, devendo o Estado ser seu principal executor. A secundarização do papel do Estado em detrimento das entidades privadas o afasta do seu dever constitucional de prover as políticas educacionais. A estratégia do conveniamento potencializa a entrada do mercado na gestão das políticas universais, que, no caso do município investigado, são políticas focais executadas por entidades privadas, desvirtuando a carreira docente, ao abrir precedente e legitimar carreiras paralelas, desvalorizadas e precarizadas.

Diante desse cenário, torna-se necessário firmar nosso compromisso e posicionamento no campo da Educação como um direito inalienável e não uma mera prestação de serviços. A história da Educação Infantil aqui retratada demonstra que a luta e a resistência de quem milita nesse campo faz-se necessária para que os direitos sociais universais sejam garantidos na forma do Estado enquanto provedor e executor da política educacional.

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1A referida pesquisa foi aprovada pelo comitê de ética, tendo sido observados os protocolos e os procedimentos éticos durante a realização do trabalho que deu origem ao texto apresentado.

2Ball e colaboradores trabalham com a ideia de um ciclo contínuo de políticas composto por vários contextos: contexto de influência, contexto da produção de texto, contexto da prática, contexto dos resultados (efeitos) e contexto da estratégia política.

3Contando com recursos do Programa Proinfância, o município, até o momento de término da referida pesquisa, possuía quatro creches já inauguradas e em funcionamento e mais nove centros sendo construídos. As creches já em funcionamento foram inauguradas entre maio de 2015 e junho de 2016.

4Ao todo foram realizadas quatro entrevistas coletivas com: duas gestoras locais; três professoras das creches; a coordenadora administrativa e a coordenadora pedagógica de uma das creches; dois representantes do Sindicato dos Professores.

5Até no término da pesquisa, ano de 2019, o município possuía 46 creches conveniadas que realizavam o atendimento educacional das crianças de 0 a 3 anos em período integral.

6Para os gestores locais, a publicação desses editais foi motivada para realizar as adequações necessárias da situação local em atendimento à legislação federal, considerando a Lei nº 13.019/2014 (BRASIL, 2014b), conhecida como Marco Regulatório do Terceiro Setor, que estabelece o regime jurídico das parcerias entre a administração pública e as organizações da sociedade civil, em regime de mútua cooperação, para a consecução de finalidades de interesse público e recíproco, mediante a execução de atividades ou de projetos previamente estabelecidos em planos de trabalho inseridos em termos de colaboração, em termos de fomento ou em acordos de cooperação. Essa Lei determina a realização de procedimento isonômico destinado a selecionar organizações da sociedade civil no firmamento de parcerias entres essas instituições e o poder público. Tais regras são obrigatórias a partir do ano de 2018.

7Ainda que o edital aponte uma formação mínima para o cargo de educador, que, no caso, é o curso de Magistério nível médio, Normal Superior ou licenciatura plena em Pedagogia para trabalhar por 40h semanais, ao transferir para a empresa conveniada a responsabilidade pelo contrato e condições de trabalho dos profissionais que atuarão nas instituições, o poder público cria um novo texto para a política local, legitimando a precarização do trabalho docente e permitindo que a empresa responsável por assumir o convênio desconsidere a carreira dos professores. Em relação ao auxiliar de turma, o documento orienta que tenha formação no Ensino Médio e cumpra, também, 40h semanais.

8Foram resguardados o anonimato dos sujeitos entrevistados e as professoras foram identificadas como Entrevistada 10, 11, 12 (E10; E11; E12).

Recebido: 03 de Julho de 2020; Aceito: 01 de Junho de 2022

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