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Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade

Print version ISSN 0104-7043On-line version ISSN 2358-0194

Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade vol.31 no.67 Salvador July/Sept 2022  Epub Jan 13, 2023

https://doi.org/10.21879/faeeba2358-0194.2022.v31.n67.p399-411 

Estudos

POR UMA IMAGINAÇÃO ETNOGRÁFICA NA EDUCAÇÃO

TOWARDS AN ETHNOGRAPHIC IMAGINATION IN EDUCATION

POR UNA IMAGINACIÓN ETNOGRÁFICA EN EDUCACIÓN

Ricardo Golbspan*  Universidade Federal de Pelotas
http://orcid.org/0000-0002-6697-9405

Luís Armando Gandin**  Universidade Federal do Rio Grande do Sul
http://orcid.org/0000-0002-8219-2004

*Doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Bolsista CNPq de Pós-Doutorado Júnior (PPGE-UFPEL). Professor Substituto na Faculdade de Educação da Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Pelotas, Rio Grande do Sul. E:mail: ricardo.golbspan@gmail.com

**PhD em Educação pela University of Wisconsin-Madison. Professor Titular da Faculdade de Educação e do Programa de PósGraduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Pesquisador 1D do CNPq. Email: Luis.Gandin@ufrgs.br


RESUMO

Este artigo tem como objetivo apresentar a proposta de imaginação etnográfica como uma ferramenta potente para a pesquisa crítica em educação. A partir de revisão de literatura acerca da etnografia na educação, o texto propõe que há uma rica diversidade de práticas etnográficas em educação. Através deste estudo, realizado no primeiro semestre de 2020, se apontou para a possibilidade de abordar a realidade educacional sob a perspectiva da imaginação etnográfica, de acordo com Paul Willis. O manuscrito, assim, propõe uma discussão teórica sobre esta categoria, estabelece uma proposta de confiabilidade metodológica para a operação da imaginação etnográfica e sugere um passo a passo para sua efetivação. Como resultados, se destacam uma proposta de nova sensibilidade frente ao trabalho etnográfico na educação, um convite à operação rigorosa da perspectiva metodológica e uma reorientação de procedimentos metodológicas de coleta e análise de dados etnográficos.

Palavras-chave: imaginação etnográfica; etnografia na educação; validação de pesquisa qualitativa; procedimentos metodológicos

ABSTRACT

This article aims at presenting the ethnographic imagination as a powerful tool for critical research in education. Learning from a literature review about ethnography in education, the present work proposes there is a rich diversity in ethnographic practices in education. This study points to the possibility of approaching the Brazilian educational reality under the perspective of the ethnographic imagination, according to Paul Willis. This manuscript, therefore, theoretically discusses this category, establishing a methodological liability proposal for the operation of an ethnographic imagination, as well as a stepby-step procedure for its operation. Results indicate the proposal for a new sensitivity towards the ethnographic work in education, the invite to a new methodological perspective and the reorientation of methodological procedures for collecting and analyzing ethnographic data in educational research.

Keywords: ethnographic imagination; ethnography in education; validity in qualitative research; methodological procedures

RESUMEN

El objetivo de este artículo es presentar la imaginación etnográfica como una potente herramienta para la investigación crítica en educación. A partir de una revisión de literatura a cerca de la etnografía en educación, el texto propone que hay una diversidad de prácticas etnográficas en educación,. A través de este estudio bibliográfico hecho en 2020, se apuntó la posibilidad de abordar la realidad educacional bajo la perspectiva de la imaginación etnográfica, de acuerdo con Paul Willis. El manuscrito propone una discusión teórica sobre esta categoría, establece una propuesta de confiabilidad metodológica para la operación de la imaginación etnográfica y indica un paso a paso para su efectuación. Como resultados, se destacan una propuesta de nueva sensibilidad frente al trabajo etnográfico en educación, una invitación a la operación rigorosa de la perspectiva metodológica y una reorientación de procedimientos metodológicos de colecta y análisis de dados etnográficos.

Palabras clave: imaginación etnográfica; etnografía en educación; validación de investigación cualitativa; procedimientos metodológicos

Introdução

A etnografia tem sido uma das mais profícuas e contestadas ferramentas metodológicas na pesquisa educacional crítica. Diversos têm sido os seus usos, e diversos também têm sido os descontentes com a forma como a etnografia vem sendo incorporada no campo da educação. Neste artigo, revisitam-se alguns dos problemas e algumas das possibilidades etnográficas na literatura da pesquisa educacional crítica, apontando para a ideia de uma imaginação etnográfica, de acordo com Willis (2000). Assim, este texto discute como é possível operar com esta categoria e quais os potenciais resultados de se proceder com a pesquisa etnográfica na educação.

Desta forma, inicia-se, no item a seguir, “De quem é a etnografia?”, contextualizando o debate sobre a etnografia na educação, na perspectiva de perceber sensivelmente o desenvolvimento da etnografia na pesquisa educacional. Na sequência, no item 3, “A imaginação etnográfica”, propõe-se uma leitura sobre o conceito a partir de Willis (2000), enfatizando a inclinação da proposta para superar binários como “objetividade” e “subjetividade”, “indução” e “dedução”, em nome de uma valorização tanto da imaginação autoral como do rigor procedimental da etnografia. Após, no item “A validade metodológica da imaginação etnográfica”, procura-se tornar mais concreta a proposta por uma imaginação etnográfica, indicando como construir uma investigação ética e teoricamente confiável em termos etnográficos, sem um enfoque quantitativo cientificista. Na mesma direção de procurar tornar tangível a proposta da imaginação etnográfica, o item 5 refere-se a um quadro metodológico constituído de cinco passos para a realização de um estudo sob esta perspectiva. Finalmente, o item 6 é dedicado às considerações finais.

De quem é a etnografia?

A discussão metodológica sobre a etnografia apresenta vigor criativo há décadas, gerando assim uma diversidade de contestações e “reconstruções” (BURAWOY, 2009). Um desses desacordos decorre de uma atribuição, que para Burawoy (2009) é indevida, da etnografia como exclusividade da Antropologia. Tal postura tem levado a reações importantes de antropólogos sociais, como as reafirmações de que etnografia não é sinônimo de Antropologia (INGOLD, 2008; PEIRANO, 2014) e o reconhecimento da etnografia como ferramenta utilizada também em outros estudos, como os sociológicos. Não por acaso, afirma Peirano (2008, p. 3) que “todos podem fazer etnografia”. Burawoy (2009), cuja própria obra exemplifica como a etnografia também é própria à Sociologia, recorda não apenas antropólogos(as), mas os/as próprios(as) sociólogos(as) de que há tempos a disciplina é também orientada por uma imaginação etnográfica:

Já é tempo de sociólogos-etnógrafos saírem dos esconderijos e juntarem-se ao resto da Sociologia em novas explorações de história e teoria. Não devíamos esquecer que Marx, Weber e Durkheim fundamentam sua história, assim como sua teoria, em uma imaginação etnográfica, seja das fábricas da Inglaterra do século XIX, seja das bases religiosas do comportamento econômico, seja dos ritos e crenças de sociedades de pequena escala. Foucault fundamentou sua originalidade em uma etnografia virtual de prisões e asilos. De Beauvoir e suas filhas partiram das experiências privatizadas de mulheres, enquanto Bourdieu lançou sua metateoria desde as vilas da Argélia. (BURAWOY, 2009, p. 141-142, tradução nossa).

Assim, da mesma forma que a Sociologia pode aprender com a Antropologia, Burawoy (2009) vê que a Antropologia pode também aprender com a Sociologia. Contudo, quando transpomos esta conversa ao cenário da pesquisa educacional brasileira, multiplicam-se críticas a supostos “usos e abusos” (VALENTE, 1996) da etnografia na tradição brasileira de pesquisa educacional (TOSTA et al., 2011; VALENTE, 1996). Nesta visão, a etnografia aparece suposta como ferramenta própria da Antropologia, e versões “reducionistas” de etnografia estariam sendo “apropriadas” na pesquisa educacional (OLIVEIRA, 2013a; TOSTA et al., 2011), a partir da influência principalmente de André (1995) e Rockwell e Ezpeleta (2007). Nessa leitura crítica, estas seriam visões distorcidas de etnografia, uma vez que não se baseariam em referenciais teóricos da Antropologia (OLIVEIRA, 2013b), pois se preocupariam com o processo de aprendizagem de forma muito separada da cultura de modo geral (OLIVEIRA, 2013b) e porque considerariam, erroneamente nesta problematização, imprescindível assumir um ativismo político (OLIVEIRA, 2013b). Ainda, seria uma produção problemática em virtude de que estes olhares menos ortodoxos à Antropologia seriam responsáveis por pesquisas pouco rigorosas, pois permitiriam que autores e autoras utilizassem apenas “inspirações” ou “influências” etnográficas, ao invés de usar etnografia em seu sentido tido como “estrito” (OLIVEIRA, 2013b).

Note-se que é crucial o incentivo desses autores e autoras para que os saberes antropológicos sejam incorporados adequadamente ao campo da pesquisa educacional. Também é importante a crítica que fazem quanto ao rigor teórico e metodológicos de muitas investigações etnográficas do campo educacional. O que intriga no argumento dessas discussões, contudo, é a aparente necessidade de se rejeitar as contribuições que têm sido feitas a partir de outros referenciais que não a Antropologia, para que só então se possa dar as boas vindas ao olhar apresentado como “estrito”, como “correto”. A etnografia sabidamente implica a escuta sensível ao campo analisado e a operação dos referenciais dos próprios sujeitos que habitam e produzem a cultura em questão. No caso, ao invés de se olhar sensivelmente para o desenvolvimento etnográfico que historicamente se construiu no campo educacional, se propõe abandoná-lo em nome de outro, supostamente mais legítimo. É um estranho caso em que o/a etnógrafo(a) precisa ser menos etnógrafo(a) para se tornar mais etnógrafo(a).

Ainda, outra tensão presente na literatura sobre a etnografia na educação diz respeito à adjetivação que se atribui à ferramenta. Para Sarmento (2011), os três paradigmas dominantes na pesquisa etnográfica em educação são: a) o paradigma positivista, que pressupõe a existência de leis universais a serem descobertas por investigações quantitativas e que, apesar de ser hoje recusado, tem alguns de seus pressupostos epistemológicos ainda presentes nas bases da pesquisa educacional (ROMAN; APPLE, 1990); b) o paradigma interpretativo, que é erigido na crítica ao positivismo e que posiciona o objeto de pesquisa e o pesquisador como inter-relacionados, priorizando metodologias qualitativas e participativas; e, por fim, c) o paradigma crítico, que, para Sarmento (2011), acrescentaria ainda ao modelo interpretativo os contextos econômicos e políticos mais amplos em que a investigação se insere, sendo a pesquisa, portanto, tomada como parte de um projeto emancipatório. Também é importante agregar um quarto tipo de qualificação à etnografia, consagrado na Antropologia (CLIFFORD, 1999; GEERTZ, 1989) e que tem gradualmente se tornado mais comum no campo da educação (CALDEIRA; PARAÍSO, 2016; KLEIN; DAMICO, 2012) - trata-se da etnografia pós-estruturalista, associada à teoria crítica (MAINARDES; MARCONDES, 2011), mas que para alguns autores se diferencia, pois provoca suspensão nas pretensões de verdade ou de totalidade da pesquisa, potencializando o entendimento da etnografia como “algo construído” (GEERTZ, 1989, p. 25), como uma versão autoral de um cenário específico.

Onde está a tensão nessas categorizações? Não no interior de cada paradigma, que são via de regra apresentados por seus defensores como internamente coerentes. A questão está na autoafirmação com base em uma certa competição teórica, como se um paradigma, para se afirmar, exigisse a negação de um outro “anterior”. É esta a crítica que Hall (2003, p. 248) apontou ao se referir, por exemplo, ao pensamento “pós”: “se o marxismo não existisse, o ‘pós-marxismo’ teria que inventá-lo, somente para que os ‘desconstrucionistas’, ao desconstrui-lo de novo, tivessem algo mais a fazer.”. Assim, paradoxalmente, ainda que se posicionem como opostas ou incompatíveis, estas tendências, em grande parte das incorporações propostas na literatura brasileira, compartilham uma racionalidade comum: o que Hall chamou de “ilusão da certeza teórica” (HALL, 2003, p. 274).

Nesse sentido, mesmo versões do pós-estruturalismo ratificam a problemática sugestão binária (que formalmente combatem) de que “rejeitar um paradigma sem o substituir por outro é rejeitar a própria ciência” (KUHN, 1970, p. 131, tradução nossa), ou seja, de uma impossibilidade de conexão interparadigmática, o que talvez explique a recorrente vontade de adjetivação à etnografia. A necessidade de qualificação, é bem verdade, já foi alvo de escrutínio (HAMMERSLEY, 2017), no entanto, este esforço deriva de uma perspectiva de que a etnografia deveria ser ampla o suficiente para dar conta, inclusive, de estudos mercadológicos ou religiosos (HAMMERSLEY, 2017), pois se tratou antes de uma preocupação em se definir “precisamente”, universalmente, o que é a categoria, do que de se definir como, afinal, ela pode ser “instrumento de combate” (DELEUZE, 1971). Neste texto, não cabe definir ontologicamente a etnografia, sendo nosso esforço entender de que forma a ferramenta pode ajudar política e teoricamente nos desafios da pesquisa e da prática educacional.

A imaginação etnográfica

O trabalho de Paul Willis (1991, 2000) permanece como uma inspiração para quem não teme sincretismos etnográficos.1 Seu convite teórico pode ser exprimido por uma perspectiva incorporada até hoje apenas parcialmente nas nossas produções: a “imaginação etnográfica” (WILLIS, 2000). Com esta categoria, Willis (2000) possibilita articular o contraditório: é possível, para esse autor, assumir a provocação de se “estar lá” (GEERTZ, 1989) - sensível às produções de significado dos sujeitos que constituem a cultura do campo investigado - sem que isto signifique atrofiar o “estar aqui”, em uma posição subjetiva própria, que justamente gera a força do ato de pesquisar: gera o imaginar, o relacionar e o criar, a partir das bagagens que nos constituem enquanto agentes sociais.

A justaposição de ‘imaginação’ e ‘etnográfica’ pretende surpreender, condicionar e mudar o significado de ambas. As duas podem parecer muito distantes, etnografia fielmente respondendo à ‘realidade’ do dia-a-dia, imaginação deliberadamente procurando transcender o dia-a-dia. Mas, na verdade, para seu próprio desenvolvimento completo, a etnografia precisa de uma imaginação teórica que ela não vai encontrar ‘lá’, descritivamente no campo. Igualmente, eu acredito que as imaginações teóricas das ciências sociais são sempre melhor formatadas em tensão próxima com os dados observados. [...] Etnografia fornece a disciplina empírica e conceitual. Etnografia é o olho da agulha pela qual os fios de imaginação devem passar. Imaginação deste modo é forçada a tentar ver o mundo em um grão de areia, o genoma humano e social em uma única célula. Experiência e o dia-a-dia são o pão e manteiga da etnografia, mas eles também são os fundamentos e o parâmetro para como teorias maiores devem se testar e se justificar. Estas não devem ser imaginações auto-referenciadas, mas imaginações fundamentadas. (WILLIS, 2000, p. ix, tradução nossa).

A etnografia segundo Willis (2000) possibilita, deste modo, uma superação original sobre os problemas das oposições clássicas entre dedução e indução, subjetividade e objetividade ou teoria e dado. Dedução, a partir do olhar recheado de teoria do pesquisador, não é incompatível com a indução, resultante dos inesperados dados significados com os referenciais dos sujeitos do campo pesquisado; reconhecer a força da subjetividade, que enfatiza a agência e a imaginação próprias dos sujeitos, não significa rejeitar a objetividade das relações sociais de produção (a “realidade” do dia a dia, nas palavras de Willis); teoria, formulada a partir das imaginações coletivas, não é vista como atividade apenas abstrata, mas como inseparável do dado (ou do que o autor coloca como fundamentação), que testa, tensiona e provoca a mudança teórica. Por tudo isso, Willis (2000) está fornecendo, com a categoria de imaginação etnográfica, um desafio metodológico ao pensamento binário. Não por acaso, Willis, com Trondman (2008, p. 211, tradução nossa), introduz seu manifesto pela etnografia com a seguinte visão:

Não é de forma alguma nosso objectivo construir uma teoria/metodologia ‘acabada’ poderosa, sistemática e à prova de água, em oposição a outras teorias/metodologias académicas ‘acabadas’. Em vez disso, esperamos que este manifesto seja lido como permitindo e ‘sensibilizando’, teórica e metodologicamente, abordagens a uma cultura vivida, a experiências a nível mundial e à construção de um sentido prático. Quer dizer, esperamos que este manifesto seja ‘posto em acção’ para ajudar a produzir um largo número de etnografias, sendo assim desenvolvido, refinado e criticado sem nunca ser encerrado como um sistema de pensamento dado.

Ao invés de servir como um manual engessado ou como uma formalidade encerrada nos capítulos teóricos, a etnografia é aqui compreendida como uma forma de viabilizar a reconstrução (BURAWOY, 1991), em termos de mobilização teórica, metodológica ou analítica, e em termos de produção de texto. Não se ambicionou propor aqui uma etnografia mais estrita, sem abusos ou “à prova d’água”: etnografia, afinal, é “o olho da agulha pelo qual passam os fios da imaginação” (WILLIS; TRONDMAN, 2008, p. 211); é, pois, uma chave para a possibilidade de um olhar autoral sobre um problema pesquisado.

A etnografia, assim, é aqui definida como “uma família de métodos que envolvem um contacto social directo e sustentado com agentes” (WILLIS; TRODMAN, 2008, p. 12), e que implica escrever “ricamente o encontro, respeitando, registando, representando, pelo menos em parte, a irredutibilidade da experiência humana, nos seus próprios termos” (WILLIS, TRODMAN, 2008, p. 12). Uma definição que advém, aliás, da Antropologia, pode ser agregada a este pensamento sem prejuízos:

Uma forma de pesquisa social e educacional que enfatiza a importância de estudar presencialmente o que pessoas dizem e fazem em contextos particulares. Isso geralmente envolve contato bastante duradouro, através de observação participante em campos empíricos relevantes, e/ou através de entrevistas relativamente estruturadas projetadas para se entender as perspectivas das pessoas, talvez complementadas pelo estudo de várias formas de documentos. (HAMMERSLEY, 2006, p. 4, tradução nossa).

O olhar da Antropologia Social (HAMMERSLEY, 2006), principalmente a partir de sua virada cultural (BURAWOY, 2009), com autores como Geertz (1989) e Clifford (1999), não é visto como irreconciliável com o olhar sociológico quando se propõe esta imaginação etnográfica. O viés antropológico contemporâneo sobre a etnografia, em seu avanço anticolonialista (WILLIS; TRODMAN, 2001), contribuiu para esta investigação ao pontuar como, no processo de pesquisa etnográfica, não há uma revelação de verdades, mas uma mediação entre a cultura pesquisada e a cultura do pesquisador, que não deveria ser tomada como neutra ou desimportante. Isto porque o pesquisador, ao significar sua observação, é também autor da realidade observada (GEERTZ, 1989). Como lembra Oliveira (2017, p. 73), “a sensibilidade e a faculdade do sentir supõem condições históricas e sociais de possibilidade inteiramente particulares”. O/A pesquisador/a, encharcado/a por sua biografia e incorporando suas próprias categorias de significação, empreende, desta forma, maneiras específicas não só de conceber o conhecimento e a pesquisa, como também de interpretar os dados (ou mesmo de definir o que é dado) e de produzir uma escrita. Para Geertz (1989, p. 1), o/a etnógrafo(a) pode ser visto como um tradutor(a), ou intérprete em segunda ou terceira mão.

Isso significa que as descrições das culturas berbere, judaica ou francesa devem ser calculadas em termos das construções que imaginamos que os berberes, os judeus ou os franceses colocam através da vida que levam, a fórmula que eles usam para definir o que lhes acontece. O que isso não significa é que tais descrições são elas mesmas berbere, judia ou francesa - isto é, parte da realidade que elas descrevem ostensivamente; elas são antropológicas - isto é, partem de um sistema em desenvolvimento de análise científica. Elas devem ser encaradas em termos das interpretações as quais pessoas de uma denominação particular submetem sua experiência, uma vez que isso é o que elas professam como descrições. São antropológicas porque, de fato, são antropólogos que professam. [...] resumindo, os textos antropológicos são eles mesmos interpretações e, na verdade, de segunda e terceira mão. (Por definição, somente um ‘nativo’ faz a interpretação em primeira mão: é a sua cultura). Trata-se, portanto, de ficções; ficções no sentido de que são ‘algo construído’, ‘algo modelado’ - o sentido original de fictio - não que sejam falsas, não-fatuais ou apenas experimentos de pensamento.

Não se procede, de tal forma, ao se fazer etnografia, com uma tentativa de reprodução da realidade observada, como se esta pudesse ser capturada em suposta essência, mas, sim, com uma tentativa de reconstrução (BURAWOY, 2009). Esta perspectiva sobre a etnografia ajuda o/a pesquisador(a) a escapar de um pedantismo científico, como se fosse o “normal” frente ao exótico a ser registrado; também ajuda a superar uma ingenuidade em torno de suposta neutralidade e distância do interventor na cultura pesquisada. Entretanto, tão importante quanto despertar uma sensibilidade “construtivista” (BURAWOY, 2009), a teorização sociológica é essencial, a partir do que Burawoy (2009) chama de “realismo”. Isto porque a interpretação, ou ficção, é amarrada não apenas a aspectos da particularidade do(a) pesquisador(a), mas a tradições teóricas coletivas a que se filia, sedimentadas em aspectos históricos e econômicos da sociedade. Nesta direção, a opção por uma imaginação etnográfica tem relação com o desdobramento da perspectiva da Etnografia Crítica:

Desenvolveu-se da insatisfação tanto com a posição ateórica da Etnografia tradicional, que ignorava estruturas sociais como classe, patriarcado e racismo, quanto com o que alguns definiam como abordagens excessivamente deterministas e teóricas da Teoria Crítica, que ignorava a experiência vivida e a agência de atores humanos. (COOK, 2008, p. 148, tradução nossa).

Dessa forma, entende-se a imaginação etnográfica como uma proposta metodológica que procura articular, de um lado, os ensinamentos e inovações provocados pela Antropologia e, de outro, as bases teóricas e éticas proporcionadas pela tradição sociológica crítica. É importante ressaltar, contudo, que rejeitar a metodologia “engessada”, em nome de diálogos teóricos, não implica recusar rigor metodológico - pelo contrário, esta visão crítica exige um zelo ainda maior para a produção de sua legitimidade. Como é possível, no entanto, operar com esta proposta metodológica de forma rigorosa, sem que o foco recaia nas recorrentes métricas quantitativas de validação? A crítica de Laureau e Rao (2016) à hegemonia da racionalidade quantitativa (que se apresenta mesmo na pesquisa qualitativa) é inspiradora neste sentido.

A validade metodológica da imaginação etnográfica

Laureau e Rao (2016) problematizam a confusão entre confiabilidade e validação quantitativa, aludindo a uma distorção sobre onde recai o valor da investigação qualitativa. O cuidado metodológico é essencial no caso da imaginação etnográfica, mas trata-se de um tratamento de outra ordem se comparado à prática de atribuir legitimidade à etnografia através de um checklist de quantidade de procedimentos. Para avançar nesta direção, a proposta de validação de Laureau e Rao (2016, tradução nossa) fundamenta-se na profundidade dos dados:

É a profundidade dos dados qualitativos que determina a qualidade do trabalho. Métodos qualitativos têm a capacidade de iluminar significados - particularmente as nuances de micro-nível das atitudes e dos comportamentos. A pesquisa qualitativa pode sublinhar o impacto de forças sociais estruturais de larga escala nos rituais da vida cotidiana, assim como em muitas outras esferas da vida. Esta profundidade pode de fato ser ligada a um grande número de entrevistas ou a mais tempo gasto no campo, mas não deveria ser vista como redutível a isto. Queremos apontar três fatores que vemos como sendo indispensáveis para atingir profundidade na pesquisa qualitativa: coletar dados de alta qualidade, análise de dados perspicaz e escrita vibrante.

Para essas autoras, portanto, um primeiro aspecto que define um bom estudo qualitativo é a coleta de dados. Segundo Laureau e Rao (2016), o dado qualitativo tem a vantagem de fazer os leitores sentirem que a entrevista ou a cena em questão revela-se em sua frente. Por isso, essas autoras insistem que a confiança no dado qualitativo deveria recair, mais do que normalmente se observa, em quão vividamente o pesquisador ou a pesquisadora captura as nuances de nível micro. A questão, assim, no caso da coleta de dados, seria estudar a interação social, as ações e reações, bem como as reações às reações. Para criar um conjunto de dados de alta qualidade, portanto, Laureau e Rao (2016) recomendam coletar informações sobre expressões faciais, gestos e tom de voz, por exemplo, para melhor compreender as interações sociais em estudo. Os/As pesquisadores(as) qualitativos(as), afinal, querem, segundo essas autoras, que seus/suas leitores(as) sintam como se estivessem nos ombros do(a) pesquisador(a), para assistirem aos eventos que se descortinam. Desta forma, a confiabilidade qualitativa envolveria, em parte, o esmero na coleta de dados demonstrado pelo(a) autor(a) em seu texto

Em acréscimo a isso, outra etapa importante na realização do estudo qualitativo seria a análise de dados. Quanto a este ponto, Laureau e Rao (2016) pontuam que, assim que os primeiros dados passam a surgir, os/as pesquisadores(as) poderiam ler suas notas de campo e transcrições de entrevista, para procurar temas emergentes. Ao longo do processo de coleta de dados, pesquisadores(as) então considerariam constantemente o problema de pesquisa e, a partir daí, resolveriam quais temas interessantes estão subindo à superfície. Esta análise, assim, seria quase sempre um padrão, que envolveria discernir um foco, deixando inclusive de lado outras possíveis questões de pesquisa e dados que normalmente aparecem. Essas autoras, porém, reforçam que é importante ser cético durante todo o processo de análise: contra-intuitivamente, uma tarefa importante neste momento seria pesquisar evidências que desconfirmem as ideias emergentes, isto é, é preciso estar sempre atento para a complexidade social do cenário pesquisado e não temer a contradição. Esta postura, inclusive, beneficiaria uma análise sofisticada. Assim, Laureau e Rao (2016) oferecem a ideia de que se indique no texto qualitativo a passagem por esta etapa de validação, pois estas considerações analíticas teriam uma associação mais adequada com os objetivos de uma etnografia, em comparação com meros números de amostras, entrevistas e planilhas de dados.

Por fim, a terceira parte dessa proposta alternativa de validação de pesquisa envolveria uma boa escrita. Como fazer pesquisa qualitativa bem exige, para as autoras em questão, intenso trabalho e tempo, elas entendem que pode ser frustrante para pesquisadores e pesquisadoras o fato de não poderem compartilhar toda a evidência coletada com o leitor. Em vez disso, afinal, investigadores(as) compartilham apenas uma fração muito pequena de seus dados. Contudo pesquisadores e pesquisadoras qualitativos, segundo Laureau e Rao (2016), sabem que têm mais dados para dar suporte a suas afirmações do que podem apresentar. Ainda assim, a escrita e as citações precisam ser certeiras. Leitores(as) gostam quando lhes contam histórias e gostam de se conectar com uma pessoa no texto. Pesquisadores(as) que coletam e analisam detalhes ricos de interação social podem criar argumentos mais lúcidos e sofisticados a partir da escrita. Ademais, é valioso que estes detalhes apareçam na análise. Muito estudos que usam dados de entrevista priorizam incluir numerosas citações no mesmo ponto analítico do que evidência da robustez de seus dados a partir das interpretações autorais. O “indicador de qualidade metodológica”, por assim dizer, está mais na densidade e no detalhamento do texto e menos no cientificismo da transposição literal de dezenas de citações aos dados coletados. Concluem essas autoras, assim, em relação aos três fatores de confiabilidade propostos:

Ao fim, pesquisa qualitativa é sobre palavras. Não é sobre números. A ‘corrida armamentista’ para ter amostras maiores e maiores é uma lástima, já que muitos pesquisadores gastam tempo e energia valiosos coletando dados apenas para deixá-los no ‘chão da sala de edição’. Pesquisadores qualitativos precisam evocar nos leitores o sentimento de estar lá. Mas o conhecimento da vida cotidiana vem de aprender os detalhes de uma amostra relativamente pequena e não-randômica. Isto significa analisar sistematicamente as experiências, olhando para evidências que desconfirmam, e ficando certo que os padrões são sólidos. Isto também significa trazê-los à vida com palavras escritas. O valor da pesquisa qualitativa não é sobre se gabar de um grande número de casos em um estudo. Em vez disso, pesquisas qualitativas precisam focar na qualidade do significado dos dados coletados. Esta é fonte de legitimação. (LAUREAU; RAO, 2016, tradução nossa).

Entrando em contato com a teorização de Willis (2000), bem como com o modelo de validação metodológica qualitativa de Laureau e Rao (2016), podemos posicionar a imaginação etnográfica de forma a estar sensível às contribuições de diferentes linhas teóricas e refinar a maneira como proceder metodologicamente. Deste modo, desenvolve-se uma visão de etnografia que, mesmo com as problematizações que ressaltamos a certas práticas canônicas, não invalida as contribuições importantes das formulações mais consagradas sobre a metodologia, a partir de processos rigorosos de validação e de uma operacionalização teoricamente comprometida.

Proposta de um quadro metodológico

No sentido de contribuir com uma possibilidade de proceder com a imaginação etnográfica, propõe-se um quadro metodológico. Tal quadro, inspirado na visão antropológica proposta por Fonseca (1999) e no modelo sociológico de Carspecken (1995), considerando ainda as condições de validade a partir de Laureau e Rao (2016), posiciona as diferentes etapas de uma pesquisa etnográfica como teoricamente planejadas, sem deixar de abrir espaço para “o inesperado” (WRIGHT, 2017) a partir da sensibilidade frente ao campo empírico. Não se trata, aqui, de uma prescrição ou modelo fechado, mas muito mais como uma forma de traduzir em termos de procedimentos de pesquisa os debates etnográficos até aqui apresentados.

Quadro 1 Quadro metodológico 

QUANDO? O QUê? COMO? POR QUê?
1 Projeto de pesquisa Imersão teórica e escrita do material. Para que o/a autor(a) estabeleça, mesmo que provisoriamente, uma justificativa, um problema e um aporte teóricometodológico que discutam o quê, por quê e como investiga.
2 Trabalho de campo Observação participante, entrevistas semi-estruturadas e coleta de documentos Para experimentar a cultura pesquisada: para que haja uma “co-residência extensa, uma observação sistemática, uma interlocução efetiva (língua nativa), uma mistura de aliança, cumplicidade, amizade, respeito, coerção e tolerância irônica” (CLIFFORD, 1999, p. 94).
3 Desconstrução e Esquematização Organização dos dados Para mapear os referenciais da cultura pesquisada, com a sensibilidade seletiva do/a pesquisador/a, propondo uma versão etnográfica da cultura observada.
4 Análise Relacional Exame teórico a partir da articulação dos dados empíricos com os conceitos sociológicos Para relacionar a cultura interpretada com a sociedade em que esta cultura se insere, de forma a caracterizar as determinações e contradições envolvidas nessas relações.
5 Escrevendo a cultura, reescrevendo a teoria Descrição densa da cultura observada a partir dos modos de significação produzidos pelos estudantes, porém não de maneira “pura”, ou de maneira solipsista, mas no diálogo com o debate educacional crítico Para traduzir os modos de significação dos estudantes sobre a cultura observada ao vocabulário do debate corrente na literatura educacional, em busca de uma contribuição à tarefa do campo de constante reconstrução teórica.

Fonte: Elaborado pelos autores deste artigo.

O primeiro passo que se propõe é constituído pela elaboração de um projeto da pesquisa. Esta é uma etapa crucial porque, por mais que em muitas vezes se enfatize a insegurança envolvida na indeterminação, a pesquisa é enriquecida justamente pelos questionamentos mais fundamentais. Estes costumam ser negligenciados por serem elementares, ao invés de celebrados justamente por estas propriedades. No processo, o potencial mais criativo e significativo da prática investigativa se aproxima das perguntas “básicas”, do tipo “o que é pesquisa?”, “o que quero saber?”, “por que estou fazendo isso?” Dedica-se uma ênfase a esta etapa, portanto, pelo “passo atrás” que ela representa - somos aqui induzidos a confrontar com o quê pesquisar (a revisão teórica, neste caso, é fundamental), por quê pesquisar (aqui sou direcionado a refletir sobre minha justificativa) e como pesquisar (quanto a este item, a teoria metodológica é central). Neste momento, pode-se estar mais aberto e sensível à própria identidade, às próprias utopias, e assim a descobertas. O mais importante, dentro deste primeiro processo, é a imersão no mundo da pesquisa, em que as certezas podem permanecer suspensas e o registro sobre o que (não) se reconhece é prioritário.

Quanto ao segundo passo, indica-se, ao ingressar em campo, registrar as informações adquiridas e as reações e emoções (GEERTZ, 1989) em um diário de campo, buscando absorver ao máximo os significados que os sujeitos atribuem à sua experiência diária. É neste momento também que é proposta uma observação participante ostensiva, entendida aqui como uma etapa de permanência prolongada na rotina. Também se sugerem entrevistas de forma semiestrutural sobre a rotina, de forma que estes dados sejam registrados em diários de campo. Ademais, podem-se usar outras estratégias complementares, como o oferecimento de cadernos em branco para cada sujeito pesquisado, pedindo que passem a usar como diário, compartilhando assim suas impressões sobre a rotina pesquisada. Outro recurso de coleta que pode ser utilizado são grupos de discussão. Ainda, outros sujeitos, que não do foco da pesquisa, podem ser entrevistados como apoio, além de ser importante consultar documentos atuais e antigos referentes à instituição pesquisada. Além desta listagem de procedimentos, é importante ressaltar que nesse estágio, mesmo que haja já análises pré-desenhadas, ainda não é preciso se comprometer com interpretar o que se começa a enxergar (CARSPECKEN, 1995). Esta postura, afinal, permite priorizar assimilar, o melhor possível, os referenciais produzidos pelos sujeitos da cultura em questão.

O terceiro estágio, “Desconstrução e Esquematização”, sob inspiração de Fonseca (1999), serve para ajudar na tarefa de olhar para a agência dos sujeitos. As informações e sentimentos registrados na etapa 2 servem agora de “matéria-prima” para a interpretação dos significados e lógicas que os sujeitos constroem sobre sua experiência. Aqui, elementos observados, como as regularidades em relação a como significam práticas e pertencimentos passam a ser apreciados em razão de se compreender as lógicas que estruturam as decisões dos sujeitos. Juntas, essas lógicas procuram mapear um sistema, construindo um olhar complexo sobre o que ocorre. Além disso, pode-se combinar as observações com dados e documentos requisitados e, ainda, desenvolver desenhos e mapas que ajudam a entender como a dinâmica pesquisada é operada.

Chamamos o quarto estágio de Análise Relacional, em virtude do conceito epistemológico definido e empregado por Michael Apple para a pesquisa sociológica em Educação (CORRêA, 2017; GANDIN; LIMA, 2016). Ao articular esta perspectiva ao quarto estágio da imaginação etnográfica, a proposta é que o diferencial sociológico passa a ser enfatizado. Assim, mobilizam-se conceitos teóricos que sustentam o problema de pesquisa, conectando-se os sentidos dados pelos sujeitos com o contexto educacional e social mais amplo em que se inserem. Deste modo, dois “atos” (CORRêA, 2017), conforme define Apple (2008), podem conduzir epistemologicamente as análises nestes pontos de interação entre macro e micro: o “ato se situar” e o “ato de reposicionar”. Situar implica “contextualizar o conhecimento que ensinamos, as relações sociais que dominam as salas de aula, a escola como mecanismo de preservação e distribuição cultural e econômica e, finalmente, nós mesmos como pessoas que trabalham nessas instituições” (APPLE, 2008, p. 37). Ao mesmo tempo, o ato de reposicionar é também inseparável desta perspectiva porque “Este ato de ler nossa formação social de forma diferente é um ato criativo. [...] precisamos assumir a posição daqueles que são cultural, política ou economicamente desprivilegiados ou oprimidos.” (APPLE, 1989, p. 13). Assim, a Análise Relacional implica também este outro tipo de localização, do próprio pesquisador ou pesquisadora como sujeito em privilégio que utiliza este poder para posicionar narrativas subalternizadas como centrais. Deste modo, este quarto momento metodológico é essencial para produzir a articulação assim definida, afinal, para uma Análise Relacional:

[...] envolve compreender a atividade social - sendo a educação uma forma particular dessa atividade - como algo ligado ao grande grupo de instituições que distribuem recursos, de forma que determinados grupos e classes têm historicamente sido ajudados, ao passo que outros têm sido tratados de maneira menos adequada. [...] as coisas recebem significados relacionais, pelas conexões e laços complexos com o modo pelo qual uma sociedade é organizada e controlada. (APPLE, 2008, p. 44).

Finalmente, para o quinto estágio, “Escrevendo a cultura, reescrevendo a teoria”, é proposta a apresentação, ou tradução, da pesquisa. A descrição densa, neste sentido, é a estratégia utilizada neste momento, sendo valorizado o esforço do autor ou autora em interpretar em detalhes as construções diversas que permeiam o cotidiano. Neste ponto, aprendendo com as lições da Antropologia Social (CLIFFORD, 1999; GEERTZ, 1989), reconhece-se que a escrita final da pesquisa não é a revelação da verdade única sobre a cultura pesquisada, mas uma versão do(a) pesquisador(a). Desta maneira, partese da ideia dos antropólogos James Clifford e George Marcus (1986) de que etnografia é escrever a cultura. Todavia, é impossível ignorar que a cultura é parte condicionada e condicionante de um contexto econômico e social mais amplo. Aqui, a aprendizagem com etnografias se mistura com a leitura de pesquisas sociológicas da educação, que servem, em conjunto, de inspiração para um esforço de diálogo da descrição densa articulada com o olhar analítico crítico. Deste modo, propõe-se que é preciso olhar sensivelmente não só para o que sujeitos pesquisados produzem do ponto de vista de seus referenciais: também é o objetivo entender como esta agência ocorre em um contexto com condicionamentos geográficos e históricos específicos, encarnados na experiência que cada pesquisador ou pesquisadora elegerá para si.

Considerações finais

A despeito de alguns desafios que permanecem, a etnografia como modo de fazer pesquisa tem influenciado continuamente o campo da educação crítica brasileira. No intuito de contribuir para esse desenvolvimento, este trabalho salientou o conceito de imaginação etnográfica de acordo com Paul Willis (2000). A partir desta ideia, argumentou-se, a partir do item 2, em favor do rigor teórico e metodológico, sem que se desconsidere a tradição produzida aos moldes brasileiros dos estudos educacionais críticos. Pelo contrário, ratificou-se que é o compromisso teórico e ético que permite reconhecer os avanços do trabalho desenvolvido até aqui, apesar dos obstáculos de caráter teórico ainda por serem superados.

Desse modo, apresentou-se, no item 3, a imaginação etnográfica como um caminho que concilia o compromisso com os modos de produzir significados nativos do campo de pesquisa - o compromisso etnográfico - com a imaginação, a posição subjetiva, enviesada teórica e contextualmente e criativa de um pesquisador ou de uma pesquisadora. Com o convite para que as empreitadas etnográficas na educação não apenas permitam, mas deem uma centralidade a esta relação (ao invés da reificação de um dos polos), pretende-se oferecer ferramentas e incentivar a prática etnográfica eticamente informada no estudo das instituições educativas.

Uma das maneiras com que esse compromisso com o rigor teórico e ético se materializa, neste trabalho, é através de uma validação qualitativa dos dados etnográficos, conforme critérios apresentados a partir da proposta de Laureau e Rao (2016). O artigo, portanto, procura contribuir com o campo oferecendo não apenas uma perspectiva etnográfica, como indicado no item 3, mas a própria maneira como avaliar a confiabilidade da pesquisa, conforme o item 4. No item 5, em continuidade à tarefa de indicar caminhos para a efetivação da imaginação etnográfica, o raciocínio segue com a indicação de um quadro metodológico. Ao contrário de uma pretensa prescrição, esta indicação refere-se a uma possibilidade de materializar a imaginação etnográfica, tendo como função abrir possibilidades, a serem consideradas nos processos diversos de pesquisa. Como resultados, portanto, o trabalho oferece uma reorientação epistemológica efetiva sobre a etnografia na educação, a partir da imaginação etnográfica, considerando o cenário contemporâneo dos debates do campo. Assim, buscou-se contribuir através de reconstruções teóricas e técnicas para a validação metodológica de pesquisas etnográficas em educação e de caminhos para proceder com a operacionalização metodológica da etnografia.

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1Para uma contextualização mais ampla das contribuições de Paul Willis para a pesquisa etnográfica na educação, recomendamos consultar Gordon (1984), Arnot (2004), Martínez (2005) e Trondman e Lund (2018).

Recebido: 01 de Dezembro de 2020; Aceito: 05 de Janeiro de 2022

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