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Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade

versión impresa ISSN 0104-7043versión On-line ISSN 2358-0194

Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade vol.31 no.68 Salvador oct./dic 2022  Epub 13-Ene-2023

https://doi.org/10.21879/faeeba2358-0194.2022.v31.n68.p20-33 

Artigos

NARRAR HISTÓRIAS SOB O PENSAR COMPLEXO: COMPREENDER O HUMANO, INCLUIR E RELIGAR SABERES

STORYTELLING UNDER COMPLEX THINKING: UNDERSTANDING THE HUMAN, INCLUDING AND RECONNECTING KNOWLEDGES

NARRACIÓN DE HISTORIAS BAJO EL PENSAMIENTO COMPLEJO: COMPRENDER LO HUMANO, INCLUYENDO Y RECONECTANDO EL CONOCIMIENTO

Flávia Diniz Roldão*  UNIBRASIL Centro Universitário
http://orcid.org/0000-0003-1598-3989

Anderson Francisco Vitorino**  Universidade Federal de Alagoas
http://orcid.org/0000-0002-1826-283X

Ricardo Antunes de Sá***  Universiade Federal do Paraná
http://orcid.org/0000-0001-5979-9265

*Doutora em Educação (UFPR). Professora da UNIBRASIL, Curitiba, Paraná, Brasil. Email: flaviaroldao@gmail.com

**Doutorando em Educação (UFPR). Professor da Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Arapiraca, Alagoas, Brasil. E-mail: anderson.vitorino@arapiraca.ufal.br

***Pós-doutor em Educação (PUCPR). Professor da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Curitiba, Paraná, Brasil. E-mail: antunesdesa@gmail.com


RESUMO

Este artigo apresenta uma investigação teórico-bibliográfica em relação ao ato de contar histórias e como este pode ser compreendido à luz do Pensamento Complexo a partir de escritos selecionados de Morin. Buscou-se construir uma compreensão de como a narração e a fruição de histórias podem ser trabalhadas na educação sob a perspectiva da inclusão. A investigação aponta que, segundo Morin, a literatura pode favorecer à compreensão do humano e sua multidimensionalidade. Sendo assim, desvela a religação entre a razão e a emoção; a dimensão subjetiva e a objetiva; o imaginário e o real, a linguagem lógica racional e a analógico-simbólica; os aspectos da singularidade e da universalidade humana; a dimensão individual e suas tensões com a sociedade. Propõe-se a literatura como um caminho de inclusão na educação.

Palavras-chave: contação de histórias; pensamento complexo; compreensão humana; inclusão; eeligação dos saberes

ABSTRACT

This paper presents a theoretical and bibliographical investigation of the act of storytelling and how it can be understood in the light of Complex Thought based on selected writings of Morin. The aim was to build an understanding of how storytelling and the enjoyment of stories can be used in education from the perspective of inclusion. The research points out that, according to Morin, literature can favor the understanding of the human being and its multidimensionality. Thus, it unveils the connection between reason and emotion; the subjective and objective dimensions; the imaginary and the real, the logical rational language and the analogical-symbolic one; the aspects of singularity and human universality; the individual dimension and its tensions with society. Literature is proposed as a path to inclusion in education.

Keywords: storytelling; complex thought; human understanding; inclusion; reconnecting knowledge

RESUMEN

Este artículo presenta una investigación teórica y bibliográfica sobre el acto de contar historias y cómo puede entenderse a la luz del Pensamiento Complejo a partir de escritos seleccionados de Morin. El objetivo era comprender cómo se puede trabajar la narración y el disfrute de los cuentos en la educación desde la perspectiva de la inclusión. La investigación señala que, según Morin, la literatura puede favorecer la comprensión del ser humano y su multidimensionalidad. Así, desvela la conexión entre razón y emoción; la dimensión subjetiva y objetiva; lo imaginario y lo real, el lenguaje lógico racional y el analógico-simbólico; los aspectos de singularidad y universalidad humana; la dimensión individual y sus tensiones con la sociedad. La literatura se propone como una vía de inclusión en la educación.

Palabras clave: narración; pensamiento complejo; comprensión humana; inclusión; reconexión del conocimiento

Introdução1

“Ah, minha Criatura admirável...

Seja bem-vinda...

Entre, entre...

Estou esperando por você... é, por você e pelo seu espírito!

Fico feliz por você ter conseguido encontrar o caminho...

.... Venha, sente-se comigo um pouco.

Pronto, vamos fazer uma pausa, deixando de lado todos os nossos ‘inúmeros afazeres’.

[...]

Venha, experimente essa poltrona.

Acho que é perfeita para o seu corpo querido.

Pronto. Agora, respire bem fundo...

deixe os ombros caírem até o ponto que lhes seja natural.

Não é bom respirar esse ar puro?

Respire fundo mais uma vez. Vamos...

Eu espero...

Viu? Está mais calma, mais presente agora.

Preparei a lareira perfeita para nós.

O fogo vai durar a noite inteira

- suficiente para todas as nossas

‘histórias dentro de histórias’.”

(ESTÉS, 2007)

A epígrafe acima é um trecho do livro A ciranda das mulheres sábias, de Clarissa Pínkola Estés (2007), ela traz um acolhedor convite para que nos acheguemos a uma roda de contação de histórias, que é sempre um espaço regado à imaginação e experiências criativas e renovadoras. Nós, seres humanos, somos seres narrativos. Nós nos renovamos pelas histórias que narramos e fruímos. Contamos histórias sobre as coisas e sobre nós mesmos, e as histórias que contamos e fruímos vão construindo a nossa cultura e nos construindo enquanto humanos. Por meio de nossas muitas histórias, vamos dando significado e sentido ao mundo. Para Estés (1998, p. 9), “o dom essencial da história tem dois aspectos: que nos reste uma criatura que saiba contar a história e que, com esse relato, as forças maiores do amor, da misericórdia, da generosidade e da perseverança sejam continuamente invocadas a se fazerem presentes no mundo”. Ela fala de uma “farmácia de centenas de histórias” (ESTÉS, 1998, p. 10), que são verdadeiros bálsamos para a alma.

Ao longo da História da Arte, podemos perceber histórias de povos que ficaram narradas em imagens das paredes das cavernas, como, por exemplo, em Lascaux, na França, onde encontram-se pinturas realizadas há mais ou menos quinze mil anos atrás (GOMBRICH, 1977). Tais registros rupestres deixam pistas narrativas registradas por meio de imagens, principalmente de animais; elas contam a história de tribos que se utilizavam das pinturas para fins de magia e que acreditavam no poder de sua ação para afetarem de fato a vida real, a caçada e a apreensão de presas. Afirma Gombrich (1977, p. 22): “o pensamento desses caçadores primitivos era que, se fizessem uma imagem de sua presa ― e talvez a surrassem com suas lanças e machados de pedra ― os animais verdadeiros também sucumbiriam ao poder deles”.

Em algumas tribos primitivas, narrações sobre a sua relação com seu totem aconteciam por meio de encenação com o uso de máscaras de animais. Gombrich (1977) assim nos conta:

De fato, eles parecem, às vezes, viver num mundo onírico em que podem ser homem e animal simultaneamente. Muitas tribos têm cerimônias especiais em que envergam máscaras com as feições desses animais e, quando as colocam, parecem sentir-se transformadas, convertidas em corvos ou ursos. É como se crianças que brincam de polícia e bandido chegassem a um ponto em que já não sabem onde terminou a representação e começou a realidade. Mas no caso das crianças, há sempre o mundo adulto à volta delas, as pessoas que lhe dizem: “Não façam tanto barulho” ou “É hora de ir para a cama”. Para o homem primitivo, não existe outro mundo para estragar a ilusão, porque todos os membros da tribo participam nas danças cerimoniais e nos ritos, com seus fantásticos jogos de simulação. (GOMBRICH, 1977, p. 23).

Outra forma dos povos primitivos contarem suas histórias é através de certos objetos por eles criados, como, por exemplo, os seus mastros, que ilustravam por vezes lendas da sua tribo (GOMBRICH, 1977). A feitura de alguns desses objetos consumia muito tempo e trabalho e envolvia a colaboração de numerosos integrantes da comunidade tribal. Algumas das explicações acerca das histórias registradas nesses mastros (tal qual em outros objetos, como algumas máscaras) acabaram se perdendo com o tempo. Nestes casos, os objetos sobreviveram e são passíveis de apreciação, mas as histórias que eles contam se perderam.

Em seu texto Os livros que fizeram a diferença, Edgar Morin lança a seguinte pergunta: “O que é um livro que faz diferença em uma vida?”; e responde: “É um livro que, para seu leitor, constitui uma ‘experiência de verdade’” (MORIN, 2014, p. 285). Ao dar essa resposta, ele completa apontando que isso diz respeito principalmente (embora não somente) a textos de literatura: um poema, um romance.

A propósito da questão de Morin(ano), e focando nas questões da educação e mesmo da inclusão na educação, refletimos: por que não poderíamos pensar em algumas histórias infantis que são verdadeiras obras primas (e que podem ser apreciadas com muito gosto até mesmo pelos adultos) como possibilidades de potência para “experiências de verdade” ou para experiências estéticas na educação? Ou mesmo, ainda, para trabalhar na educação o tema da inclusão? Lembramos, por exemplo, de alguns livros escritos por Rubem Alves que, em sua profundidade e beleza, ultrapassam os estreitos limites etários delimitados: escritas inicialmente para o público infantil ― especialmente para sua filha, como nos informa Gonçalo Junior (2015) ―, tais histórias podem agradar até mesmo aos adultos. Algumas das obras que podem ser citadas, dentre tantas outras desse autor, incluem A menina e o pássaro encantado (ALVES, 1999) e O patinho que não aprendeu a voar (ALVES, 2014). Interessantemente, Rubem Alves também tem histórias inspiradas em suas experiências como psicanalista, tal como Se é bom ou se é mau (ALVES, 2007), entre outras.

Diante do contexto citado por Gonçalo Junior (2015), podemos fazer a seguinte indagação: afinal, para que e a quem lemos e contamos histórias?

Em uma primeira leitura rápida do texto de Edgar Morin A inclusão: verdade da literatura (MORIN, 2004), percebemos o seu destaque para as histórias presentes na literatura como possibilidade de compreensão do humano. Buscamos, então, a partir de suas proposições, construir uma compreensão da contação de histórias no trabalho da educação. Esta pesquisa, de caráter teórico-bibliográfico, buscou responder à seguinte questão: como a contação de histórias pode ser compreendida segundo o Pensamento Complexo?

Para ensaiar a construção de uma resposta a tal questionamento, visto que não temos conhecimento de que o autor tenha abordado, especificamente, o tema da contação de histórias, recorremos a textos de Edgar Morin que abordam a literatura, bem como menções que o autor faz ao tema ao longo de sua obra. Não é nossa intenção fazer uma revisão completa dos textos do autor referentes à literatura, mas, sim, visitar algumas de suas ideias, buscando inspiração para compreender como a narração e a fruição de histórias podem ser compreendidas à luz das ideias do Pensamento Complexo e, assim, trabalhadas na educação.

Este artigo está dividido em cinco momentos. No primeiro e no penúltimo momento, abordaremos aspectos centrais da literatura que pudemos escavar no pensamento moriniano, conforme expressos em seus escritos ― com ênfase no texto A inclusão: verdade da literatura (MORIN, 2004) ―, que nos serviram de inspiração para construirmos uma concepção da contação de histórias à luz do Pensamento Complexo. No segundo e terceiro momento, abordamos o tema da contação de histórias e sua potência como estratégia de inclusão. O último momento do texto traz nossas considerações finais.

Narrar histórias: modos de ensaiar compreensões do humano

Para Morin, o problema da compreensão humana é absolutamente crucial. Em uma de suas obras mais conhecidas sobre a educação, a saber, Os sete saberes necessários à educação do futuro (MORIN, 2000), ele propõe que educar para a compreensão humana é uma das finalidades da educação. A partir de outro texto do autor, A inclusão: verdade da literatura, compreende-se que a literatura pode oferecer grande contribuição nesse sentido, pois ela situa-se “[...] na inclusão de todas as dimensões humanas, de tudo o que é humano. Nada de humano lhe é estranho, [ou] estrangeiro” (MORIN, 2004, p. 13).

Observamos que o autor entende a literatura como meio de compreensão da complexidade humana. No referido texto, Morin aponta que, nas histórias narradas na literatura, o ser humano é percebido na sua amplitude sapiensdemens, na sua dimensão subjetiva e objetiva, singular e universal, no seu aspecto emocional e racional, imaginário e real. Ele indica a riqueza da linguagem lógica, racional e analógico-simbólica da literatura, lembrando-nos que, nela, a exuberante vida subterrânea, inconsciente, de alma, de uma pessoa torna-se visível (MORIN, 2004). O autor nos revela ainda que “na literatura encontra-se a inclusão dos problemas humanos mais terríveis, coisas insuportáveis, que [ali] se tornam suportáveis” (MORIN, 2004, p. 16). A partir de tais postulados, compreendemos que, por meio da literatura, como na contação de histórias, os professores podem entrar em contato e abordar temas da existência difíceis de serem tocados diretamente nas aulas, abrindo espaços para dialogar com os estudantes sobre tópicos dolorosos como a morte; as perdas; as doenças; as diferentes formas de abuso e exploração; a dificuldade de lidar com a raiva; a inveja; e outros tantos sentimentos, emoções e temas delicados da existência humana.

Na fruição de uma história, os participantes se engajam na narrativa à medida que se identificam com as personagens e sentem em sua própria vida a ressonância dos temas que fazem parte do relato. Nas palavras de Morin:

Um livro importante revela-nos uma verdade ignorada, escondida, profunda, sem forma, que trazemos em nós, e causa-nos um duplo encantamento, o da descoberta de nossa própria verdade na descoberta de uma verdade exterior a nós, e o da descoberta de nós mesmos em personagens diferentes de nós. (MORIN, 2013, p. 19).

Os livros tiveram um papel muito importante na vida de Edgar Morin. Em seu livro Meus demônios (2013), ele revela que, por volta dos treze ou quatorze anos, descobriu os livros mais importantes de sua existência. Para ele, a literatura “prepara-nos para a vida, [...] dotanos de uma alma, [...] forma a nossa personalidade” (MORIN, 2013, p. 20, grifo nosso). Ele afirma: “pelo romance e pelo livro, cheguei ao mundo. [...] E por acaso e por sorte, encontrei os livros que me falam, me perturbam, me transformam e me formam” (MORIN, 2013, p. 20).

Em nossos estudos da obra moriniana, não encontramos até o momento passagem alguma que relate a importância da contação de histórias na vida de Edgar Morin, embora ele relata que o cinema marcou profundamente a sua história de vida na juventude. Quanto à leitura, porém, temos, por meio de sua obra, ciência da importância que ela teve em sua formação desde a infância. Como ele relata,

Minha paixão pela leitura se exacerbou após a morte de minha mãe, e mergulhei no imenso universo romanesco. Eu lia romances quase sem interrupção, em casa, à mesa durante as refeições, na cama, no metrô, na rua, assim como na escola, durante as aulas, protegendo-os com um estojo ou escondendo-os em meu colo, nas aulas das primeiras séries do segundo grau. Assim aprendi literatura no colégio, mas muito mais nos livros que lia escondido do que nas aulas dos professores. (MORIN, 2013, p. 20).

Na literatura, aspectos densos e sofridos da vida humana são abordados de maneira sensível, estética e, por vezes, através de metáforas, ou seja, de um modo indireto, porém capaz de tocar profundamente as emoções e mobilizar sentimentos, encorajando, inclusive, a conversa aberta sobre eles. Por meio da contação de histórias, é possível abordarmos temas difíceis pela via da imaginação, não somente diretamente pela cognição; isso torna mais leve a lida com determinados assuntos. Pela via da imaginação, é possível construirmos novos modos de pensar e ampliarmos nosso modo de ver o mundo a respeito de temas complexos, favorecendo a alargamento da compreensão humana ou da pessoa. Para Morin, é nas várias obras da literatura em que temos as mais ricas descrições do humano. Ele chega a afirmar que romance e teatro são antropologia (MORIN, 2004) e sustenta que “na leitura, no teatro, no cinema, [e, por que não, na contação de histórias?] desenvolve-se a nossa compreensão do outro” (MORIN, 2004, p. 17).

A partir das ideias do autor sobre como a literatura favorece a compreensão do humano, entendemos que a contação de histórias pode ser considerada um momento coletivo de comunhão humana, propício ao alimento da alma, à semeadura da imaginação, à construção de significados e de conhecimentos, regado à partilha de afetos e pela via da imaginação: uma via rica em imagens e metáforas e uma forma mais leve de abrir caminhos para dialogar sobre questões dolorosas, ignoradas, silenciadas ou complicadas.

A potência da Literatura como um caminho para a inclusão

[...] E achei que esta história só caberia no impossível. Mas não; ela cabe aqui também. (BARROS, 2010)

Dois assuntos que ainda se mostram delicados e que precisam ser mais amplamente trabalhados na educação são os temas das pessoas com deficiências e da inclusão. Se recorremos à História da Arte, podemos constatar que ela apresenta uma coleção de pessoas com deficiências que nos inspiram profundamente através de suas produções artísticas e histórias de resiliência e superação; como cita Menenguci (2011, p. 112), temos “Alícia Alonso, Antonio Francisco Lisboa, Frida Kahlo, Helen Keller, Ludwig Van Beethoven, Marquês de Sade, Vincent Van Gogh, entre outros tantos nomes”. Essas celebridades assinavam suas artes e marcavam a sua autoria por meio da sua própria história de vida. Contudo, para alcançar esse patamar, as pessoas com deficiência necessitam de oportunidades de aceitação. É importante notar que todo processo de aceitação do outro inicia com um processo de autoaceitação; senão, como diz Moraes (2004, p. 3), “sem aceitação de si e auto-respeito, é impossível aceitar e respeitar o outro, e sem aceitar o outro em seu legítimo outro na convivência, não há convivência social”.

As celebridades supracitadas podem auxiliar educadores, estudantes e toda a comunidade escolar a compreender o modo como experenciam suas histórias e suas vidas. Contar e recontar suas histórias com atenção e detalhes nas aulas, em rodas de contação de histórias, para além de nos revelar suas produções artísticas, pode nos desnudar outras lógicas e outras racionalidades para tocarmos nos temas da deficiência e da inclusão.

No início da década de 1990, a educação inicia o processo de escolarização das pessoas com deficiência em escola comum de ensino regular. Essa história, até então vivida e cunhada pela segregação e exclusão das pessoas com deficiência, começa, a partir de então, a configurar-se uma nova perspectiva educacional sob um olhar inclusivo.

Pensar em inclusão sob o ponto de vista das pessoas com deficiências - com transtornos globais do desenvolvimento, com surdez, com altas habilidades/superdotação, entre outras - incluídas no contexto da sala de aula da escola é pensar em aprendizado e desafio ao mesmo tempo; é, também, compreender que todas as pessoas, em sua diversidade, possuem garantia de direitos. Em relação à diversidade humana, Morin propõe:

Cabe à educação do futuro cuidar para que a ideia de unidade da espécie humana não apague a ideia de diversidade, e que a da sua diversidade não apague a da unidade. Há uma unidade humana. Há uma diversidade humana. A unidade não está apenas nos traços biológicos da espécie Homo sapiens. A diversidade não está apenas nos traços psicológicos, culturais, sociais do ser humano. Existe também diversidade propriamente biológica no seio da unidade humana; não apenas existe unidade cerebral, mas mental, psíquica, afetiva, intelectual; além disso, as mais diversas culturas e sociedades têm princípios geradores ou organizacionais comuns. É a unidade humana que traz em si os princípios de suas múltiplas diversidades. Compreender o humano é compreender sua unidade na diversidade, sua diversidade na unidade. É preciso conceber a unidade do múltiplo, a multiplicidade do uno. (MORIN, 2000, p. 55).

Partindo desse pensamento de Morin sobre a manutenção da diversidade humana, compreendemos que devemos enxergar o ser humano sem julgamento, respeitando a capacidade psíquica e cognitiva das pessoas. O autor provoca-nos à reflexão de visualizar o sujeito na sua totalidade, analisando o contexto dentro de cada realidade particular. Morin remete-nos a pensar que devemos enxergar o outro de acordo com a característica global e multidimensional de cada um, não observando apenas uma parte isolada do ser humano.

Para nos ajudar a pensar a inclusão em seu aspecto conceitual, recorremos ainda a outros autores que serão apresentados a seguir. De acordo com Ferreira (2010, p. 93), “[...] incluir é o mesmo que compreender, que, por sua vez, quer dizer entender, alcançar com a inteligência”. Essa afirmação de Ferreira permite-nos compreender que a inclusão requer capacidade de compreensão, entendimento do outro.

Corroborando com essa mesma linha de reflexão, Mantoan (2005, p. 96) sustenta que a “inclusão é a nossa capacidade de entender e receber o outro e, assim, ter o privilégio de conviver e compartilhar com pessoas diferentes de nós. A educação inclusiva acolhe todas as pessoas, sem exceção”. Com esse entendimento que Mantoan expõe, consideramos que a arte de contação de histórias pode promover a educação e a inclusão social na vida das pessoas com deficiência. De outro lado, Edgar Morin (2004, p. 67) inspira-nos a pensar que “é preciso enxergar com um novo olhar e não com o olhar já constituído”.

Para Guérios, Petraglia e Freire (2022), a inclusão pode ser compreendida como modo de viver, como forma de estar no mundo numa diversidade de espaços sociais, que permite a compreensão da totalidade humana sob a ótica do modo de ser, pensar e agir no mundo com o outro. Lembramos que o Pensamento Complexo, através de uma ética da religação, propõe que possamos religarmo-nos uns aos outros (MORIN; KERN, 2003).

Assim, Morin instiga-nos a pensar na complexidade da vida como vetor potente de transformação do conhecimento sob a lente da inclusão ― a inclusão do ponto de vista de viver, de respeitar, de compreender a vida, do lugar e do espaço de quem somos e de onde estamos falando; mas, também, da tentativa de compreender o lugar de pertença e de direito do outro no mundo. Com isso, podemos constituir um pensamento inclusivo considerando a complexidade humana com enfoque multidimensional e global.

Tomando tais ideias por base, sustentamos a relevância da inclusão e da educação para compreender a outra pessoa, com ou sem deficiência, sondando atenciosamente toda sua complexidade humana. Ao mesmo tempo, entendemos que devemos promover condições necessárias para o seu aprendizado levando em consideração a prática do amor, da empatia e do cuidado. É desse espaço e lugar que a inclusão e a educação devem partir para que oportunizem às pessoas com deficiência, por meio da estratégia da contação de histórias, criarem, narrarem, encenarem e (re)inventarem-se, potencializando as suas próprias histórias de vida.

Compreendemos que a contação de histórias para as crianças com deficiência inclui uma representação de encantamento que permite transcender dialogicamente do mundo real para o da imaginação, assim como da imaginação para o real. Esse movimento favorece que a criança com deficiência, através do lúdico e do imaginário, compreenda o mundo em seu entorno, conviva e ressignifique os seus próprios sentimentos. A vida é expressa por produção de sentidos e significados. A narrativa, na contação de histórias, pode ser direcionada a essa possibilidade, que provoca e abre um leque de caminhos que conduz os seres humanos ao despertar para o pertencimento histórico-cultural e social. Conforme Busatto (2006):

A intenção de inserir a história no contexto escolar é de propiciar cultura, conhecimento, princípios, valores, educação, ética, além de contribuir para uma boa construção de relacionamentos afetivos saudáveis, como: carinho e afeto bons tratos, cuidados pessoais, reeducação alimentar, autoestima [...]. (BUSATTO, 2006, p. 74).

A contação de histórias promove a interação entre as crianças com deficiência numa rede de coletividade, colaboração, socialização e compartilhamento das histórias vivenciadas por cada uma com base na formação da sua própria realidade de vida. Borsa (2007) aponta que

A socialização é um processo interativo, necessário para o desenvolvimento, através do qual a criança satisfaz suas necessidades e assimila a cultura ao mesmo tempo que, reciprocamente, a sociedade se perpetua e desenvolve. Este processo inicia-se com o nascimento e, embora sujeito a mudanças, permanece ao longo de todo o ciclo vital. (BORSA, 2007, p. 1).

Tal processo de socialização é absolutamente crucial para o desenvolvimento. Na infância, a escola tem papel fundamental na organização dos modos como ela pode acontecer, de maneira a potencializar o progresso dos estudantes.

A contação de histórias como estratégia de inclusão no processo de ensino e aprendizagem

No processo de ensino e aprendizagem, a estratégia da contação de histórias pode promover aptidão cognitiva nas estruturações mentais das crianças com deficiência, aspecto fundamental para o exercício da imaginação, da observação, da expressão de ideias e das emoções. Narrativas fluem na educação das crianças e pré-adolescentes, servindo de recurso para diversificar e potencializar a prática pedagógica utilizada pelo docente.

Compreendemos que, quanto mais cedo as crianças estiverem em contato com o universo mágico das histórias, mais poderão ampliar a sua visão da vida, das situações diárias do seu viver e do mundo. Isso pode ampliar o senso estético, levá-las a uma paixão pelas histórias e fazer delas leitoras por toda a vida. Nesse aspecto da promoção da leitura, o docente pode ser um elemento decisivo para a mudança na vida do seu aluno com deficiência quando este não tem uma família leitora e atenciosa para com esta prática. Também uma ação instrutiva do professor às famílias é estimular seus filhos a lerem, e mesmo conscientizá-las da importância que pode ter o ato de contarem histórias para o desenvolvimento dos seus filhos.

Por meio da arte da contação de histórias, o docente possibilita às crianças com ou sem deficiência o desenvolvimento de sua sensibilidade estética e ética, assim como trabalha a partilha social de conhecimentos, sentimentos e representações, levando-as a viajarem pelo mundo da imaginação, dando-lhes melhores condições para lidarem com os possíveis desafios que a vida oferece. Ele pode, ainda, estimular os estudantes a praticarem o exercício de uma cidadania responsável e feliz (MORAES, 2004).

É na hora da contação de histórias que acontece a religação entre a fantasia e a realidade, capaz de conduzir quem está ouvindo a prazerosos momentos de reflexão. Comumente, o contador de histórias incorpora a personagem, dando-lhe vida e transmitindo emoções. Desse modo,

A contação de histórias é atividade própria de incentivo à imaginação e ao trânsito entre o fictício e o real. Ao preparar uma história para ser contada, tomamos a experiência do narrador e de cada personagem como nossa e ampliamos nossa experiência vivencial por meio da narrativa do autor. Os fatos, as cenas e os contextos são do plano do imaginário, mas os sentimentos e as emoções transcendem a ficção e se materializam na vida real. (RODRIGUES, 2005, p. 4).

Com base na fala supracitada, concordamos que os docentes são os responsáveis por selecionarem as histórias a serem narradas com base na faixa etária, no contexto sociocultural e no nível de compreensão das crianças. Compete aos docentes, também, utilizarem a ferramenta pedagógica de contação de histórias como prática de ensino em sala de aula e como instrumento de trabalho para promover a reflexão crítica e o aprendizado dos seus estudantes.

Com base nisso, compreendemos que o docente deve adotar uma proposta educacional que promova reflexão-ação, inserindo o sentimento de amor. É o que Torre (1998) chama de sentipensamento. Segundo o próprio autor, é a integração entre o sentir e o pensar que permitirá ao docente visualizar o outro na sua inteireza, com a proposta de colaborar com o processo de construção do ser humano, levando em consideração o amor, a criatividade, as emoções, os sentimentos e os diálogos. Oliveira (2009) aborda que:

O melhor instrumento e a técnica mais eficiente são o amor e a criatividade, unidos à preocupação com os objetivos do trabalho, com o nosso público e com a mensagem a ser transmitida. É preciso que o professor goste de Literatura Infantil, que ele se encante com o que lê, pois somente assim poderá transmitir a história com entusiasmo e vibração. Se o professor for um apaixonado pela Literatura Infantil, provavelmente os alunos se apaixonarão também. Para ler um texto de Literatura Infantil é preciso ter o coração de criança. Muitas vezes lemos uma mesma história e não gostamos, uma criança lê a mesma história e fica encantada. Isso pode acontecer porque lemos com a cabeça de adulto. (OLIVEIRA, 2009, p. 15).

Quadro 1 Tipos de narrativas 

TIPOS DE NARRATIVAS FUNÇÕES
ROMANCE É uma narrativa sobre um acontecimento ficcional no qual são representados aspectos da vida pessoal, familiar ou social de uma ou várias personagens. Gira em torno de vários conflitos, sendo um principal e os demais secundários, formando assim o enredo.
NOVELA Assim como o romance, a novela comporta várias personagens, sendo que o desenrolar do enredo acontece numa sequência temporal bem marcada. Atualmente, a novela televisiva tem o objetivo de nos entreter, bem como de nos seduzir com o desenrolar dos acontecimentos, pois a maioria foca assuntos relacionados à vida cotidiana.
CONTOS
CONTOS POPULARES
CONTOS DE FADA
É uma narrativa mais curta, densa, com poucos personagens, e apresenta um só conflito, sendo que o espaço e o tempo também são reduzidos.
Os contos populares remetem às questões folclóricas de um grupo, os mitos, que se assemelham em muito com os contos, pois contam histórias oriunda de um povo.
Nos contos de fadas são retratadas ações mágicas representadas por seres imaginários.
CRÔNICA Também sendo um gênero literário, a crônica é um texto mais informal que trabalha aspectos da vida cotidiana. Muitas vezes num tom muito “sutil”, o cronista faz uma espécie de denúncia contra os problemas sociais através do poder da linguagem.
FÁBULA Geralmente composta por personagens representados na figura de animais, é de caráter pedagógico, pois transmite noções de cunho moral e ético. Quando são representadas por personagens inanimados, recebem o nome de “Apólogo”, mas a intenção é a mesma da fábula.
As fábulas são baseadas em lições que se espera que sejam absorvidas pelas crianças, possivelmente levadas para a vida adulta.

Fonte: adaptado de Duarte (2022).

De acordo com a referida autora, esse feedback que recebemos é crucial quando realizamos a contação de histórias, pois as crianças com deficiência transmitem reações de entusiasmo ou não ao ouvir e/ou perceber a história contada pelo docente. Cabe ao professor capturar a devolutiva dada pela criança. Cabe também a ele perceber a atenção, a participação e o entusiasmo dos estudantes, para que possa permanecer contando a história ou utilizar outros recursos para enriquecer o contexto da narração, mudando assim as suas formas de narrar.

Segundo Duarte (2022), há vários tipos de narrativas, subdivididas em: Romance, Novela, Conto, Crônica e Fábula. Nesse sentido, o quadro 1 descreve os tipos de narrativa e a função exercida por cada uma delas.

Sabendo disso, compreendemos que os docentes podem escolher intencionalmente entre as diferentes formas narrativas com o intuito de estimular o despertar da imaginação das crianças, para conduzirem-nas ao encantamento pela leitura e pela narração. Agregado a isso, o docente pode fazer uso de outros objetos que também potencializam a contação de histórias, tais como: sacolas de livros de literatura diversificados, dentre os quais as crianças podem escolher a história que desejam ouvir naquele momento; fantoches, dedoches e bonecos para auxiliarem na narrativa; aventais de contação de histórias, com personagens adesivos a serem integrados no cenário do avental à medida que a história vai sendo narrada; realização da encenação de um teatro a partir da história; álbum seriado; e diversos outros meios (podem ser explorados, inclusive, recursos midiáticos).

Compreendemos ainda que há várias maneiras e técnicas de contar histórias. Por isso, o docente que realiza a contação de histórias deve selecionar a maneira mais oportuna de contar e recontar as histórias por meios de várias e diferentes técnicas, explorando-as. Nesse sentido, Edi Fonseca (2012) apresenta algumas ferramentas:

BAÚ DE HISTÓRIAS: Pode ser utilizado nos momentos em que o professor contar histórias ou pelas crianças. Dentro dele sãos guardados os objetos que farão parte da narração. Uma simples pena pode ser o pássaro; um lenço, o mar; um pandeiro, a lua; uma caixinha o tesouro; um leque, uma borboleta... São infinitas as possibilidades de escolha de objetos para representar personagens ou símbolos significativos de uma história. [...] CENÁRIOS DE PAPEL: por serem confeccionados em tamanho reduzido (aproximadamente meia folha de cartolina ou papel cartão), são utilizados nas narrativas orais para grupos pequenos. Todos precisam ficar bem de frente para o cenário que se abre. Na junção entre a história narrada, a imagem apresentada e os possíveis personagens de papel, criam-se um clima gostoso e uma nova proposta para a narrativa oral. (FONSECA, 2012, p. 114; 121; 125)

Com base no que foi apresentado, o docente pode construir o seu próprio repertório de recursos que tornará sua aula bem mais atraente, capturando a atenção das crianças com deficiência. Mas é importante lembrar que a técnica não é tudo. Ao contar uma história, o docente necessita estar bem emocionalmente para que a narração flua naturalmente; assim,

Para contar uma história, seja qual for, é bom saber como se faz, afinal, nela se descobrem palavras novas, se entra em contato com a música e com a sonoridade das frases, dos nomes [...] Se capta o ritmo, a cadência do conto, fluindo como uma canção. [...] Ou se brinca com a melodia dos versos, com o acerto das rimas, com o jogo das palavras. [...] Contar histórias é uma arte [...] e tão linda!!! É ela que equilibra o que é ouvido com o que é sentido, e por isso não é nem remotamente declaração ou ‘teatro’ [...]. Ela é o uso simples e harmônico da voz. (ABRAMOVICH, 2009, p. 18).

Conforme a referida autora, a contação de histórias é uma arte em que o docente é promovido a artista, porque é através do professor que as pessoas com ou sem deficiência sentirão a voz como instrumento que vai modular os movimentos corporais para prender a atenção dos estudantes. O docente que narra deve colocar à disposição da contação a agilidade e originalidade na entonação da voz para expressar o amor, a ternura, o carinho e o suspense. Outra técnica que maximiza a narração é a música, pois toca as emoções e auxilia as crianças a imaginarem o cenário, o momento e o lugar em que ocorre a cena da história.

Uma estratégia importante é fazermos com que os alunos se sintam parte da dinâmica daquele momento. Para isso, os professores podem começar a contação de histórias, na inclusão de estudantes com deficiência, falando sobre alguma história da sua infância, por exemplo. Logo depois, é interessante pedirem aos estudantes que participem e contem alguma história que já conhecem ou sua própria história. Entretanto, pode acontecer de nem todos se sentirem à vontade para se expressarem. Ainda assim, oferecer essa oportunidade coparticipativa e colaborativa pode ser um processo significativo e transformador para as crianças com ou sem deficiência. Desse modo, “para que se tenha uma educação humana e transformadora, é preciso conceber a educação de forma dialógica. Assim, [...] é essencial que a concepção de educação que permeia a sua formação se fundamente no diálogo entre os sujeitos” (KULISZ, 2004, p. 44). O diálogo, na relação entre docente e estudante, é fundamental para a integração e para a formação de um sujeito dinâmico, reflexivo, crítico e autocrítico.

Também é importante que o docente tenha à disposição oportunidades de formação que lhe permitam um bom desempenho ao trabalhar com a contação de histórias, pois sabemos que não é tarefa fácil e exige preparação; é necessário o desenvolvimento de competências e habilidades por parte do docente. Nesse sentido, Abramovich (2009) sustenta a relevância que o professor tem no processo de narrar com eficiência para as crianças:

[...] para a criança, não se pode fazer isso de qualquer jeito, pegando o primeiro volume que se vê na estante... E aí, no decorrer da leitura, demonstrar que não está familiarizado com uma ou outra palavra (ou com várias), empacar ao pronunciar o nome de um determinado personagem ou lugar, mostrar que não percebeu o jeito que o autor construiu suas frases e dando as pausas nos lugares errados [...] Por isso, ler o livro antes, bem lido, sentir como nos pega, nos emociona ou nos irrita... Assim, quando chegar o momento de narrar a história, que se passe a emoção verdadeira, aquela que vem lá de dentro, lá do fundinho, e que por isso, chega no ouvinte [...]. (ABRAMOVICH, 2009, p. 18-20).

Com base na fala da autora, observamos o quanto o docente deve planejar e investir nas suas aulas que serão ministradas para os estudantes com ou sem deficiência, com a intenção de favorecer e participar do processo de formação dos cidadãos que precisam de atenção, amor, carinho, respeito e autonomia.

Narrar e religar saberes

“As narrativas e a imaginação podem nos ajudar a vermos, pensarmos e colocarmos a nossa atenção em construir o mundo de um jeito novo e diferente, a começar pela educação”. (ROLDÃO, 2022)

A proposição central do Pensamento Complexo é a necessidade da religação dos saberes que foram fragmentados ou mutilados sob a cultura disciplinar da modernidade, assim como a busca pela constituição de uma “inteligência da complexidade” (LE MOIGNE, 2000, p. 14). Como apontado por Le Moigne nesse texto, para Morin, esse caminho da religação dos saberes, da construção de uma inteligência da complexidade, de um conhecimento que é multidimensional, é algo a ser construído. E, para essa construção, não há um caminho único ou “receitas” estabelecidas (MORIN, 2005).

Roldão (2022, p. 31) apontou a estratégia da narrativa como “[...] um dos momentos de ápice (ao modo eureca!)” em seu estudo de doutorado, ao perceber que as narrativas favorecem a religação de diferentes saberes que podem ser apresentados de modo integrado, compondo uma totalidade textual relativamente coesa e não fragmentada. Morin apontou as obras primas [narrativas] como “cosmos culturais, incluindo conhecimentos históricos, religiosos, sociológicos, éticos, filosóficos” (MORIN, 2004, p. 17). Há uma riqueza multidimensional contida neste cosmos, “de sensibilidade, de conhecimento e, também de pensamento” (MORIN, 2004, p. 19). Entendemos que algumas histórias são um pequeno holograma da vida e da sociedade.

Tendo essas ideias por base, apontamos que a participação nos momentos de contação de histórias nas aulas pode ser explorada pelos professores de diversas formas, assumindo-os como momentos de aprendizagem em que o conhecimento pode ser trabalhado de maneira integrada e não fragmentada. Diferentes saberes podem ser trabalhados e discutidos a partir da narração e fruição de histórias; não apenas saberes da geografia ou da matemática, mas também saberes referentes à dimensão ética, estética e filosófica da existência, dentre outras.

A contação de histórias pode ser muito bem acolhida no trabalho pedagógico realizado a partir de diferentes abordagens teóricas devido ao seu caráter lúdico e ao seu envolvimento com o imaginário ― aspectos bastante pertinentes à educação infanto-juvenil em geral. Contudo, devido ao seu caráter integrador, destacamos de modo especial sua natureza particularmente potente como estratégia no trabalho educativo na abordagem de uma Pedagogia Complexa, que, a partir das diretrizes trazidas pelo Pensamento Complexo, investe, conforme explicita Sá (2019, 2021), em uma compreensão multidimensional e complexa da constituição da realidade educacional implicada em um processo auto-eco-organizador. Corroborando as ideias trazidas por Morin (MORIN; LE MOIGNE, 2000), Sá (2019, p. 53) afirma que “é preciso que a escola contemporânea, [...] à luz de uma Pedagogia Complexa, referenciada pelo Pensamento Complexo, fomente, semeie, proponha a religação dos saberes”. A contação de histórias pode despertar tal curiosidade pelos diferentes saberes.

Há muitas e variadas formas de se contar uma história, e toda história traz em si múltiplos saberes inclusos em seu enredo. Daqueles que são trazidos na própria narrativa, alguns podem ser salientados; outros podem ser desdobrados; outros podem ser abraçados com novos saberes, em um diálogo reflexivo que se desdobra na geração de novas histórias. São histórias dentro de histórias, saberes em diálogo com outros saberes.

As narrativas são prenhes de saberes múltiplos. Todavia, é preciso saber trabalhar esses saberes, explorando ao máximo o potencial que cada narrativa traz em si. Por sua vez, essa exploração pode ser realizada por múltiplas entradas; diversos caminhos podem ser abertos para isso, tal qual a própria exploração da religação dos saberes. Puxa-se um fio da trama aqui, enreda-se esse fio com outro fio ali, e uma nova trama pode ir sendo entretecida a partir da narrativa inicial.

Morin, Ciurana e Motta (2003) propõem um conjunto de princípios metodológicos que podem funcionar como guias para o pensar complexo. O primeiro desses princípios, conhecido como Princípio Sistêmico ou Organizacional, propõe que é impossível conhecer o Todo sem conhecer as partes, e vice-versa. Ainda, o Todo é mais e menos do que a soma das partes, devido às emergências que surgem como efeitos organizacionais.

No trabalho com a contação de histórias, essa relação dialógica entre as partes e o todo que compõem as histórias narradas e fruídas nas aulas vão sendo trabalhados por meio dessa estratégia, que pode ser intencionalmente explorada pelos professores na sua prática docente. Certamente, há na contação de uma boa história a vivência de uma experiência estética pelo fruidor. Contudo, não é necessário que finalizemos a nossa relação com uma história nessa experiência. Ela pode ter outros desdobramentos, que gerem também outras experiências, intencionalmente organizados na aprendizagem.

Considerações finais

Buscamos neste artigo investigar como o ato de contar histórias pode ser compreendido à luz do Pensamento Complexo. Com vistas a tal objetivo, visitamos escritos de Edgar Morin que abordam o tema da literatura. A partir daí, foram destacados três aspectos que nos inspiraram a construir uma possível compreensão da contação de histórias à luz do pensamento moriniano: contação de histórias, ou o trabalho com a literatura, como modo de ensaiar uma compreensão do humano; o trabalho com a contação de histórias como modo de inclusão; e a contação de histórias e o trabalho com a literatura como modo de religar saberes no processo ensino-aprendizagem na educação.

Como demonstrado ao longo do texto, a contação de histórias pode ser uma rica estratégia na educação infanto-juvenil de um modo geral, devido aos seus aspectos lúdicos e imaginativos e, sobretudo, na Pedagogia Complexa (SÁ, 2019, 2021), dada a sua ampla possibilidade estratégica no trabalho com a religação dos saberes.

Embora, até onde tenhamos conhecimento em nossos estudos, Edgar Morin não tenha se detido em escrever especificamente sobre a contação de histórias, a investigação mostrou ser possível inspirarmo-nos em algumas das ideias de Morin sobre o tema da literatura para construirmos uma concepção acerca da contação de histórias à luz do Pensamento Complexo e a sua associação à dimensão formativa da educação.

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1Artigo revisado por Thaís Luisa Deschamps Moreira

Recebido: 08 de Julho de 2022; Aceito: 05 de Outubro de 2022

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