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Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade

versión impresa ISSN 0104-7043versión On-line ISSN 2358-0194

Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade vol.31 no.68 Salvador oct./dic 2022  Epub 13-Ene-2023

https://doi.org/10.21879/faeeba2358-0194.2022.v31.n68.p34-47 

Artigos

A PREPARAÇÃO DO CONTO E DO CONTADOR DE HISTÓRIAS

LA PREPARACIÓN DEL CUENTO Y DEL CUENTACUENTOS

Luciene Souza Santos*  Universidade Estadual de Feira de Santana
http://orcid.org/0000-0002-6751-1070

Mary de Andrade Arapiraca**  Universidade Federal da Bahia
http://orcid.org/0000-0001-9721-5988

Luciana Maria Ávila Carvalho***  Escola Gurilândia
http://orcid.org/0000-0003-2638-4260

*Doutora em Educação pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Professora Titular da Universidade Estadual de Feira de Santana (UESF). Feira de Santana, Bahia, Brasil. E-mail: lssantos@uefs.br

**Doutora em Educação pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Professora Titular da Universidade Federal da Bahia. Salvador, Bahia, Brasil. E-mail: marya@ufba.br

***Especialista em Ludicidade no Desenvolvimento Criativo de Pessoas pelo Instituto de Educação Superior UNYAHNA. Professora da Rede Particular de Ensino de Salvador. Salvador, Bahia, Brasil. E-mail: luciannamariaavila@gmail.com


RESUMO

O objetivo deste artigo é refletir sobre a constituição do sujeito como contador de histórias. O estudo aqui apresentado defende a ideia de que existe um portador de memórias em cada pessoa, que pode se revelar e se constituir em contador ou contadora de histórias, se dessa forma se descobrir. Tomando a Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia (UFBA) como lócus da investigação, de inspiração etnográfica, e estudantes de Pedagogia como sujeitos da pesquisa, o estudo desenvolveu-se seguindo uma combinação de procedimentos e dispositivos de produção e coleta de dados e informações, o que compreendeu uma necessária pesquisa bibliográfica e a criação e implementação de uma oficina de contação de histórias para os sujeitos da pesquisa, com realização de um grupo focal ao final das atividades. A discussão aqui posta é resultado do percurso de contação e escuta de muitas histórias que nasceu a partir da questão norteadora desse estudo: Que caminhos podem ser percorridos para a formação de sujeitos contadores de histórias? Tal questão foi respondida ou, por vezes, desdobrada em muitas outras. As reflexões que o estudo produziu a partir da interação com os jovens estudantes autorizam as autoras a apontar como resultados: o contador de histórias aprende a contar a partir da rememoração das suas histórias fundantes - memória afetiva -, e é contando, muitas e muitas vezes, que ele se forma na arte de contar.

Palavras-chave: conto; contador de histórias; memória afetiva; modos de narrar; preparação

RESUMEN

El propósito de este artículo es reflexionar sobre la constitución del sujeto como cuentacuentos. El estudio que aquí se presenta defiende la idea de que hay un portador de recuerdos en cada persona, que puede revelarse y convertirse en cuentacuentos, si se descubre a sí mismo de esta manera. Utilizando como locus de investigación la Facultad de Educación de la Universidad Federal de Bahía (UFBA), la inspiración etnográfica y los estudiantes de Pedagogía como sujetos de investigación, el estudio se desarrolló siguiendo una combinación de procedimientos y dispositivos para la producción y recolección de datos e informaciones, que incluyó una necesaria investigación bibliográfica y la creación e implementación de un taller de narración de historias para los sujetos de investigación con un grupo focal al final de las actividades. La discusión aquí expuesta es el resultado de un recorrido de narración y escucha de muchas historias que nació de la pregunta orientadora de este estudio: ¿Qué caminos se pueden seguir para la formación de sujetos narradores? Esta pregunta fue respondida o, en ocasiones, desdoblada en muchas otras. Las reflexiones que el estudio produjo a partir de la interacción con jóvenes estudiantes, autorizan a los autores a señalar como resultados: el cuentacuentos aprende a narrar desde el recuerdo de sus historias fundantes - memoria afectiva - y es narrando, una y otra vez, que se va formando en el arte de narrar.

Palabras clave: cuento; cuentacuentos; memoria afectiva; modos de narrar; preparación

ABSTRACT

The purpose of this article is to reflect on the constitution of the subject as a storyteller. The study presented here defends the idea that there is a memory carrier in every person, who can reveal and constitute him or herself as a storyteller, if he or she discovers this way. Taking the Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia (UFBA) as the investigation locus, of ethnographic inspiration, and Pedagogy students as the research subjects, the study was developed following a procedure and device combination of producing and collecting data and information, which comprised a necessary bibliographic research, and the creation and implementation of a storytelling workshop for the research subjects, with a focus group at the end of the activities. The discussion presented here is the result of a storytelling and listening to many stories journey that was born from the guiding question of this study: What paths can be taken to form storytellers? This question was answered or, sometimes, unfolded into many others. The thoughts that the study produced from the interaction with the young students, authorize the authors to point as results: the storyteller learns to tell from the remembrance of his founding stories - affective memory -, and it is by telling, many and many times, that he forms himself into the art of telling stories.

Palavras-chave: tale; storyteller; affective memory; ways of telling; preparation

Introdução

O presente texto versa sobre a experiência vivenciada por meio de uma pesquisa-formação na Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia (UFBA), onde uma disciplina optativa EDCC60 Vamos Contar Outra Vez? Oficina de Contação de Histórias foi criada como proposta de intervenção, especialmente para a pesquisa. O propósito da disciplina foi o de mobilizar os estudantes matriculados a experimentar práticas de performances de narrativas orais em espaços de educação formal e não formal no intuito de compreender o caminho metodológico da constituição do sujeito em contador de histórias contemporâneo.

São muitas as inquietações sobre o caminho metodológico constituído para a formação do contador de histórias, especialmente no que tange à preparação desse narrador numa relação dinâmica entre os três elementos que envolvem a arte de contar histórias: o contador, o ouvinte e o conto (MATOS, 2005). Assim, foram muitas também as inquietações que emergiram do grupo de alunos matriculados em EDCC60, disciplina optativa ofertada aos estudantes do curso de Pedagogia da UFBA. Ao observarem a ementa da disciplina - “Fundamentos teórico-práticos acerca da arte de contar histórias; repertório de histórias da narrativa oral e escrita; arte de contação de histórias; memória afetiva de contadores de histórias em espaços de educação formal e não formal.” -, os estudantes matriculados apresentaram expectativas diversas, tais como:

[...] me matriculei nessa disciplina por considerá-la imprescindível no processo de nossa formação enquanto educador que valoriza a tradição popular, tão importante para o resgate cultural e ancestral de um povo. (NARRADOR 1, Grupo de discussão realizado em 16/08/2011).

[...] peguei essa disciplina porque imagino que ela será diferente de tudo que eu já vivi dentro da Faculdade de Educação. Acredito que, através dela, eu vou aprender a contar histórias bem melhor do que faço hoje. (NARRADORA 2, Grupo de discussão realizado em 16/08/2011).

[...] observei que essa era uma das disciplinas mais procuradas e mais recomendadas durante a matrícula, recebi boas referências, principalmente que ela vai enriquecer a minha formação pessoal e profissional... E é isso que eu espero. (NARRADORA 3, Grupo de discussão realizado em 16/08/2011).

[...] essa disciplina, para mim, é como um convite para embarcar num mundo de sonhos, encantos e magia, onde eu vou aprender a contar bem uma história e vou poder passar tudo adiante. (NARRADORA 4, Grupo de discussão realizado em 16/08/2011).

[...] imaginei que cursar essa disciplina seria como encontrar, na Faculdade de Educação, uma porta mágica, cheia de pó de risadas, dourado que nem um sol... Assim como nos livros de histórias, procuro um lugar cheio de fantasia que, ao mesmo tempo, seria real, recheado com algodão doce lá do céu, como as nuvens que a gente come com os olhos em dias ensolarados. (NARRADORA 5, Grupo de discussão realizado em 16/08/2011).

Segundo os atores desta pesquisa, ao mesmo tempo em que desejavam encontrar o universo imaginário presente nos livros, também esperavam interagir com o que há de fantasioso na cultura popular, matéria-prima das histórias. Sinalizaram ainda a vontade de aprender a contar histórias para vencer a timidez, para conquistar a atenção de seus alunos, para melhorar a qualidade de suas aulas e para adentrar no universo infinito das emoções e aprendizagens provocadas pelas narrativas orais, descrito aqui por Abramovich (2005, p. 23):

Ouvir [...] histórias é também desenvolver todo o potencial crítico da criança. É formar a opinião, é ir formulando os próprios critérios, é começar a amar um autor, um gênero, uma ideia e daí ir seguindo por essa trilha e ir encontrando outros e novos valores (que talvez façam redobrar o amor pelo autor ou viver uma decepção... Mas isto tudo faz parte da vida).

Todo o grupo da oficina, depois que conseguiu iniciar a partilha de sua memória afetiva, mobilizou emoções capazes de acionar o desejo de narrar. Prova disso foi a entrega desses sujeitos durante o relato das narrativas fundantes oriundas do contato com um contador tradicional. Histórias trocadas, desejo aguçado, foi o momento de saber um pouco mais sobre a estrutura do conto e sobre a preparação do contador de histórias. Como memorizar um conto? Como narrar com emoção? Como usar a voz de maneira apropriada? E o corpo? É necessário ser ator? Como envolver os ouvintes durante a narração? E foi Abramovich (2005, p. 23) quem os ajudou com as primeiras reflexões:

Para contar uma história, é preciso saber como se faz... Afinal, nela se descobrem palavras novas, se depara com a música e com a sonoridade das frases, dos nomes... Se capta o ritmo, a cadência do conto, fluindo como uma canção... E para isso, quem conta tem que criar o clima de envolvimento, de encanto... Saber dar as pausas, o tempo para o imaginário de cada criança construir seu cenário, visualizar os seus monstros, criar os seus dragões, adentrar pela sua floresta, vestir a princesa com a roupa que está inventando, pensar na cara do rei... E tantas coisas mais...

Contar de memória é uma operação sofisticada, que exige leitura aprofundada do conto, apreensão de sua linguagem simbólica e do seu sentido mais profundo. Para isso, é necessária uma identificação estreita com as personagens, as situações vivenciadas por elas e suas próprias vivências cotidianas como contador de histórias. Como converter o conto lido ou ouvido em performance é o objeto do texto que segue, quando se comenta sobre o processo de memorização da própria narrativa oral.

O conto: da estátua ao corpo em movimento

Para guiar o grupo no intuito de construir os processos de memorização do conto, Matos e Sorsy (2009, p. 9) foram convidadas para apontar os diálogos estabelecidos metodologicamente:

O grande segredo dos bons contadores está na perfeita assimilação daquilo que pretendem contar. Assimilação no sentido de apropriação. Apropriar-se de uma história é processá-la no interior de si mesmo. É deixar-se impregnar de tal forma por ela, que todos os sentidos possam ser aguçados e que todo o corpo possa naturalmente comunicá-la pelos gestos, expressões faciais e corporais, entonação de voz, ritmo etc.

Ao aproximar-se das personagens, ao buscar uma similaridade com as situações vividas por elas na história, ao enxergar o que delas existe em si, mesmo em se tratando de personagens reais ou ficcionais, o contador de histórias dá início ao processo de apropriação do conto. Para isso, é necessário estar aberto à invasão dos contos que o escolhem e, dessa forma, deixar-se possuir pelo prazer ou tristeza que transborda de uma história bem sentida, no corpo e na alma, que por certo encontrará eco no jogo jogado de narrador e seu público.

Quando expõe fisicamente diante do público, o jogador-narrador se defronta com todas as questões de atuação teatral; seu corpo passa a significar tanto quanto significam os corpos dos jogadores-personagens. As variações de seu olhar, sua movimentação, a qualidade da concentração, a diversidade da emissão vocal não pode deixar de ser lidos e interpretados pela plateia. (PROPP, 1984, p. 87).

Para dar vazão a esse processo, os atores desta pesquisa percorreram um caminho metodológico comum à formação de contadores de histórias, que começa com a narração oral da memória afetiva e a reflexão sobre ela, perpassando o reconhecimento das semelhanças entre as histórias que se gosta de ouvir ou contar e sua própria vida. Foi se afeiçoando aos personagens de um conto, buscando uma identificação com eles, percebendo as nuances da sua própria trajetória e em que elas se assemelham à dos personagens que os atores desta pesquisa viram a narrativa como uma via capaz de “compartilhar com sabedoria, charme, humor e sutileza as próprias experiências de vida” (MATOS; SORSY, 2009, p. 9).

Quando converte um conto em performance, surge uma verdade pela qual o contador revela, de certo modo, sua própria história. Ele empresta a emoção de uma perda, a alegria de um novo amor, a angústia da saudade e toda sorte de sentimentos que um dia já experimentou, compartilhando, dessa forma, experiências e sonhos. Por isso é tão importante que ele tenha as histórias de cor (do latim cor, cordis, coração), que mantenha uma relação estreita com elas e que busque também uma via de mão dupla, em que se alimente da vida e das emoções dos personagens. E é exatamente essa a ligação que as Narradoras 6 e 7 revelam, respectivamente, no grupo de discussão realizado em 13/12/2011:

Eu gosto de contar história de bicho... Aí pode ser histórias de fábulas, de domínio público, até histórias recentes, de conto de autor... É tudo uma mistura [...] Essas histórias têm uma relação direta com o Pássaro Preto, que era contada por minha avó, e também com a minha infância, porque eu vivia na roça - a minha melhor amiga foi uma jabuticabeira...

Eu tento fazer como ele [o irmão], né? De pegar as letras das músicas como eu ouvia e contar...

Eu lembrei de uma vez que a gente estava lá em casa e era no fim do ano, nas férias, e aí tinha um pandeiro de um amigo meu e aí eu peguei o pandeiro - que era só o que eu sabia tocar - aí fui pegando a história da sereia e cantando a música e aí eu via aqueles olhinhos das minhas sobrinhas brilhando... E a pequenininha confirmando que a sereia existe e me contando que um dia foi mergulhar e viu a sereia passar... Aí eu fiquei feliz porque havia uma sementinha das histórias plantada ali...

Para se extraírem as inúmeras mensagens contidas em um conto, faz-se necessário muito estudo, inúmeras leituras e um aprofundamento sobre suas muitas camadas, até que o contador descubra qual é a melhor maneira de trabalhar com ele. Para isso, é preciso pensar no conto como um corpo e enxergar as partes que o constituem. Assim, através dessa analogia, será possível ao contador de histórias enxergar elementos diferentes a cada nova leitura: “Ambos (o conto e o corpo) têm em comum um esqueleto, músculos e tendões. Mas um conto escrito seria como a escultura de um corpo, enquanto, contado, ele seria como o corpo vivo.” (MATOS; SORSY, 2009, p. 18).

Nessa analogia apresentada por Matos e Sorsy (2009, p. 18), o conto é comparado ao corpo: “o esqueleto, os músculos, o sangue e a respiração, o coração.” Traduzindo sua descrição, dizemos que o esqueleto traz a ideia de rigidez, mesmo com as possibilidades presentes nas articulações, e isso faz dele o portador da mensagem do conto, a ideia de começo, meio e fim contida na trama que é passada adiante sem alterações. Os músculos referem-se às imagens que o conto apresenta e que aguçam o imaginário do ouvinte (detalhes sobre locais, características físicas dos personagens, ações, entre outros). O sangue e a respiração são as intenções do contador que conduz a emoção do ouvinte, através da voz, do silêncio, dos gestos, do ritmo, para onde ele deseja. E o coração diz respeito à intenção do conto, que promove a transmissão de uma história de coração para coração e estabelece uma empatia entre o contador e seus ouvintes.

Embora essa analogia tenha sido discutida em sala de aula, o estudo do conto foi realizado nos momentos de solidão, quando os atores da pesquisa se viram diante do desafio de escolher as histórias que desejavam contar, dissecá-las e, ao mesmo tempo, reconstruí-las para o momento da performance. Esse repertório foi constituído a partir de duas matrizes, as histórias ouvidas por eles durante as aulas e as lidas, especificamente, no livro Contos tradicionais do Brasil, de Luís da Câmara Cascudo (2004), base do nosso próprio repertório. E foi ouvindo e lendo essas histórias que as escolhas do repertório e da metodologia de estudo foram sendo feitas, com a opção por memorizar o que se ouve:

Eu acho que foi muito bacana quando você contava história... Não quando você explicava depois que contava histórias, mas no momento em que você iniciava contando... Eu acho que aquilo ali tinha que ter três vezes no dia, né? Porque era aquilo ali que encadeava todo o motivo daquela aula... Era a história que você contava. E você contava histórias de diferentes modos, mas aquela diferente forma daquele dia podia ser tratada em várias histórias e eu acho que isso vem... Caramba! Aprender a contar história... Quase que não tem jeito de você aprender no livro... É vendo você fazendo e depois você contando - é realmente é daquele jeito, né?

Quando você trouxe uma menina que falou de dissecar a história - Keu - do esqueleto, foi super bacana, mas pra gente fazer foi super difícil... Mas vendo ela fazer... Quando ela pegou uma história que todo mundo conhecia e fez... Foi super bacana, porque você aí compreende a estrutura daquela história, sabe? Então, ali foi fantástico! Aquele momento foi um dos puxões da minha formação como contadora de histórias... (NARRADORA 6, Grupo de discussão realizado em 13/12/2011).

Ou então de memorizar o que se lê:

[...] quando eu me via diante do livro e precisava memorizar aquele conto que eu tinha escolhido de cor... De coração, né? Eu tentava ao máximo sempre fazer links com minhas vivencias anteriores... É muito mais fácil a gente internalizar uma história que nos identificamos do que uma que não disse nada, que não toca a gente! (NARRADORA 8, Grupo de discussão realizado em 13/12/2011).

Para perceber como esse estudo se efetivou, observamos a performance dos professorescontadores de histórias e inferimos o caminho metodológico que eles usaram para chegar até ali, especialmente a sua interação com o conto. Entretanto promovemos também uma conversa através de grupo de discussão, quando eles puderam contar um pouco sobre como se efetivou esse processo de interlocução com o texto literário, que efeitos estéticos o conto produziu e que catarses foram também provocadas nesse leitor-ouvinte-narrador: “[...] a maneira pela qual é lido o texto literário é que lhe confere seu estatuto estético; a leitura se define, ao mesmo tempo, como absorção e criação, processo de trocas dinâmicas que constituem a obra na consciência do leitor.” (ZUMTHOR, 2007, p. 51).

As ideias de Zumthor (2007) nos levaram à Estética da Recepção e geraram uma reflexão diante dos processos da experiência estética vivenciada pelos atores desta pesquisa no movimento de aproximação e afastamento do conto, de percepção dos fatos da ficção e da realidade, de assimilação entre o perfil dos personagens e o do próprio contador de histórias. É o que, para Lima (1979, p. 19), “[...] consiste no prazer originado da oscilação entre o eu e o objeto, oscilação pela qual o sujeito se distancia interessadamente de si, aproximandose do objeto, e se afasta interessadamente do objeto, aproximando-se de si”. Ver o estudo do conto feito pelo contador de histórias através da Estética da Recepção promoveu a análise do fato artístico e, nesse caso, cultural, focado no texto - escrito ou oral - e no leitor.

E entre os aspectos investigados, destacamos os que foram importantes para a constituição deste estudo e são fundamentais para a compreensão dos processos de estudo e preparação do conto para a conversão da escrita em narrativa oral: 1) a recepção e o efeito que o conto provocou em seu leitor (e fez com que ele fosse escolhido de “cor”); 2) a experiência estética do ato de ler (a emoção que o conto escolhido produziu no leitor a partir dos conhecimentos prévios que ele possui); 3) a possibilidade de preencher os silêncios do conto (a ação de inferência do leitor na construção dos sentimentos que promoveram a verdade do conto no momento da performance); 4) a atemporalidade da obra (a capacidade de o conto ser lido, compreendido e narrado oralmente fora do seu tempo de produção); e 5) o desprendimento do conto (quando a narrativa ofereceu ao leitor outras aprendizagens e, até mesmo, novas dimensões da existência). Esses aspectos foram explicitados através da fala de Narradora 9 no grupo de discussão realizado no dia 13/12/2011:

[...] primeiramente, Lu, para que um conto permaneça em minha memória ou para eu memorizá-lo, ele precisa tocar meu coração me interessar verdadeiramente... Estava falando sobre isso na escola em que eu trabalho... A menina e a figueira é um bom exemplo disso. Eu preciso ter uma ligação afetiva com o conto, salientando que eu não apenas decoro, não é um ‘decoreba’... Eu assimilo, compreendo, me aproprio no sentido de gostar e de ter uma verdadeira relação afetiva com o conto. Então, depois de compreender, assimilar dentro de mim - em meu coração primeiro para depois ir para minha memória, senão não funciona -, a história fica aqui dentro de mim, assimilada de uma forma singular, né? Utilizando a minha forma ou fórmula de ‘decorar’ que é de ‘cor’, de coração. Para que o primeiro passo funcione, também preciso me identificar com o conto, com as situações, com os personagens, lugares. É perceber mesmo o quanto os personagens, as situações, dentre uma infinidade de coisas no conto, têm a ver comigo, com minha trajetória, com minha vida ontem, hoje e o que penso dela para o amanhã. Estruturalmente, depois dos passos acima, eu penso no conto, leio o conto para mim mesma, é o meu teste para ver se conheço muito bem a história que irei contar. Se eu tiver dúvida sobre o que vem depois, eu nem começo a contar... Penso que, se eu conseguir recontar para mim mesma, me emocionar e aprender com o conto e com a história dos personagens, consigo fazer a mesma coisa para qualquer pessoa. Minhas amigas dizem que eu penso em balõezinhos, como história em quadrinhos... Então, assim se dá meu processo com o conto. Como ele está internalizado, eu desenho os lugares e os personagens do conto em minha mente... É algo meu... Então, toda vez que inicio um conto, algumas palavras que geralmente eu destaco em meu estudo antes do conto me remetem a imagens e, como eu tenho a sequência de imagens em minha cabeça, consequentemente sei todas as ações da sequência da história, ou seja, a ordem em que as ações acontecem, mas também o silêncio e as emoções que aparecem. Exemplo: A menina e a figueira. Era uma vez uma menina tão linda que possuía os cabelos dourados como a luz do sol. Nesse caso, a expressão cabelos dourados me remete a uma menina loirinha de cabelos bem claros e longos... Logo sei o que sequencialmente virá depois - que é a mãe penteando os cabelos da menina e por ai sucessivamente... É, na verdade, um esqueleto... Leio a história, escrevo às vezes... Se o conto for muito longo, eu gosto de escrevê-lo, releio para mim mesma, conto para mim mesma e, nesse processo, destaco expressões significativas no início meio e fim da história, que me remetem a imagens, e essas imagens me dão a sequência do conto do início ao fim. Mas o que penso é que tudo depende do primeiro ponto: sempre escolho uma história, um conto que eu gosto, que me toque. Assim, eu conto com prazer e acho que haverá mais chances de que os outros gostem dele também e, principalmente, muito naturalmente eu irei internalizar esse conto. E mais: todo esse processo que eu relatei se dá naturalmente e é intrínseco. Se eu gosto da história e penso em contá-la, faço como descrevi... Ah, isso vale tanto para o escrito quanto para a história oral...

Os aspectos aqui descritos também foram utilizados por outros pedagogos-contadores de histórias, sujeitos desta pesquisa, com o mesmo objetivo de apreender os processos de estudo e de preparação dos contos a serem apresentados. Embora todos os contos apresentados na roda de histórias, produto final da disciplina EDCC60, estivessem registrados em livros, alguns deles foram também apresentados em nossa oficina, ora por nós, ora por outras contadoras convidadas, com outros estilos de narrar, que também influenciaram a performance dos sujeitos de nossa pesquisa.

Por fim, ficou claro com as falas dos atores da pesquisa que a formação do contador é processual, exigente e, principalmente, envolvente, no sentido de criar vínculos entre narrador, narrativas e ouvinte. É esse vínculo que garante a permanência da tradição através da certeza secular de que “contar história é sempre a arte de contar outra vez” (BENJAMIN, 1994, p. 203). Ou, como ensinam Matos e Sorsy (2009, p. 39): “[…] o melhor contador de histórias é aquele cujas histórias são lembradas muitos e muitos anos depois que seu próprio nome tenha sido esquecido.”

A performance: o encontro do contador com o conto para dar corpo à narrativa

O contador de histórias desempenha três papéis importantes para a manutenção da cultura oral: narrar, ouvir e absorver as histórias que lhe são contadas. Isso significa, para Fernandes (2007, p. 56), que, quando o contador

[...] narra, é o performer sensível ao auditório, já que incorpora a voz da comunidade; ouve, troca experiências com outros narradores e absorve as histórias que lhe contam; e cria, torna-se o responsável por constituir um sentido para o que ouviu, bem como para atualizar isso com significantes e significados diferenciados.

Para dar conta desses papéis, o contador de histórias precisa explorar em potencial as narrativas para quem ele empresta corpo e voz, no intuito de potencializar a relação entre ele e o ouvinte no momento em que a performance da narrativa se manifesta por meio de mecanismos diversos: a voz que dá poder às palavras e impregna um colorido ao texto (silêncios, pausas, ruídos, personificação de tipos, mudança de volume, velocidade, entonação); o movimento de corpo, que revela as intenções por trás do texto e potencializa os sentidos das palavras (gestos, expressões faciais, mímicas, imitações); e o olhar, que demarca a cumplicidade entre o público e o contador de história, capaz de lhe dar o combustível necessário para mantê-la viva. E é nessa perspectiva que os contadores de histórias defendem a ideia de que ler e contar são atividades distintas:

Aqui talvez seja oportuno fazer uma distinção entre o contador de histórias e o leitor de histórias. A arte do contador envolve expressão corporal, improvisação, interpretação, interação com seus ouvintes. O contador, como vimos, recria o conto juntamente com seu auditório, à medida que conta. O leitor, por sua vez, empresta sua voz ao texto. Pode utilizar recursos vocais para que a leitura se torne mais envolvente para o ouvinte, mas não recria o texto, não improvisa a partir dos estímulos do auditório. O mesmo se dá com o ator que interpreta um texto literário. Ele não pode recriar o texto, não pode interferir no estilo literário do autor. (MATOS; SORSY, 2009, p. 8-9).

E, para dar vazão ao texto, o contador de histórias, antes mesmo de iniciar a performance, pensa no espaço físico em que irá realizar a roda de contação e investe em objetos que estimulam a imaginação e que podem funcionar como parceiros importantes para a narração do conto. Cuida do figurino, prepara o cenário - que muitas vezes é apenas uma colcha de retalhos - e garante o conforto dos ouvintes durante o espaço e o tempo da criação narrativa. No caso dos atores desta pesquisa, eles foram estimulados a usar roupas coloridas, trazer objetos que dessem vazão ao imaginário - do contador e do ouvinte - e coreografar as entradas e saídas de cada contador na medida em que se iniciava uma nova história. Tudo isso para ajudar o ouvinte a entrar na atmosfera do conto.

Ao analisar a performance desses contadores de histórias em formação, nos deparamos com a questão de que não é possível transcrever todos esses modos de narrar, porque eles se perdem na descrição, especialmente os que surgem do improviso, da espontaneidade. Descrever o tom de voz, a modulação do enunciado que revela exatamente a intenção do narrador e que provoca uma mudança de sentido no próprio texto ou uma pausa, geradora de uma determinada emoção na plateia, embora não tenham sido o foco deste estudo, foram surpreendentemente incorporados nas performances de nossos narradores em formação, o que nos surpreendeu positivamente, considerando sua importância para o ato de narrar.

Começamos a análise da performance refletindo sobre o início da roda de histórias, em que o contador provoca no grupo um sentimento de pertença, de união, em que o indivíduo se sente parte de uma comunidade, a exemplo da própria sala de aula. E esse movimento se dá a partir do compartilhamento de canções encantatórias, ou até mesmo uma conversa introdutória, capaz de suscitar o imaginário do grupo. Trata-se do “momento de aquecimento” (MATOS; SORSY, 2009), quando o contador de histórias promove a criação de uma atmosfera catalisadora da atenção e da integração dos envolvidos. E tais comportamentos se mantêm não apenas no início da roda de histórias, mas durante todo o tempo em que o contador conduz a contação.

Os atores desta pesquisa fizeram uso de atividades diversas para promover o momento de aquecimento nas suas rodas de histórias, através de advinhas, trava-línguas, quadras e cantigas de roda, utilizando instrumentos musicais e objetos diversos que garantiram olhos e ouvidos à disposição deles. Fizeram isso coletivamente, convocando a plateia para todo o espetáculo e, individualmente, quando introduziam um conto novo. A canção de domínio público “Acalanto”, aprendida durante as oficinas, foi usada em todas as rodas de histórias: “Esse menino não é meu/ me deram para criar/ o consolo de quem cria/ é poder acalentar”. Assim como as encantatórias: “Assim me contaram, assim vos contei...”, ou ainda, “Caminha hoje, caminha amanhã, de tanto caminhar se faz o caminho...” ou “Foi lá que isto se passou, além do Mar Vermelho, além da Floresta Azul, além da Montanha de Cristal, além da Cidade de Palha, lá onde se junta água na peneira...”. Geralmente, quem escolhia determinada fórmula encantatória ou canção mantinha a escolha em todas as rodas de histórias, a exemplo da canção “Sabiá lá na Gaiola” , utilizada por um grupo de contadores.

As fórmulas encantatórias têm como principal função resgatar o prazer de ouvir e, consequentemente, levar o ouvinte a universos distintos, carregados de magia e encantamento. Levam-nos ao espaço do “Era uma vez”, onde o impossível é possível, onde heróis e vilões se enfrentam e o bem sempre vence, onde os contadores de histórias em formação, atores desta pesquisa, levaram o seu público a conviver, pela via das narrativas, com o mundo às avessas, como aconselha Chevrier (1986 apud MATOS; SORSY, 2009, p. 134):

Um mundo radicalmente diferente onde o sobrenatural é a regra e onde a ordem habitual das coisas é inversa. É o momento em que todos se encontram unidos, e essa integração ao espaço psíquico do relato favorece plenamente o sentimento de solidariedade e de tomada de consciência de um destino comum.

Para analisar com maior precisão as “boas práticas da contação de histórias” efetivadas por esses contadores, demarcamos alguns itens a serem considerados como indispensáveis na performance do contador de histórias: Ritmo, Energia, Expressão, Poder, Memorização e Improviso (CARAM; MATOS, 199_).

Para analisar o Ritmo impresso às narrativas apresentadas em sala de aula (ensaios) e durante o evento “Uma vez todo mês”, promovido pelo Grupo de Pesquisa Educação e Linguagem (GELING), remetemo-nos à ideia de Ítalo Calvino (2001, p. 52) quando compara a narrativa a um cavalo: “[...] um meio de transporte cujo tipo de andadura, trote ou galope, depende do percurso a ser executado, embora a velocidade de que se fala aqui seja uma velocidade mental.” Embora se refira, com essa metáfora, à narrativa escrita, tomamos emprestada a mesma ideia para falar de ritmo nas narrativas de tradição oral, em que também é necessário que o narrador não interrompa o galope (o texto) com o uso de expressões que gerem desconforto no ouvinte (aí, né, tá...) e que comprometam o ritmo da história.

Se por ritmo entendemos este galopar seguro, com energia e também suavidade, podemos também entender ritmo como a musicalidade da narrativa, ora mais ágil, ora mais vagarosa, ora com mais volume de voz, ora com menos, ora jogando mais com os graves, ora com os agudos. Enfim, estes predicados colaboram para se criar uma partitura, uma melodia que embala os contos. Aqui se faz necessário aquele olhar atento para perceber onde é possível cavalgar velozmente, e onde parar para um rápido respiro. (BUSATTO, 2008, p. 65).

Quando falamos em velocidade mental, destacamos o ritmo impresso às narrativas e a destreza do cavaleiro (o contador de histórias) em segurar as rédeas do animal (o conto) com firmeza e guiá-lo pelo caminho escolhido, às vezes com mais velocidade, outras com ritmo mais lento, e até mesmo imprimindo uma pausa em determinado momento. É através da consciência de ritmo que o contador de histórias promove a harmonia e a musicalidade necessárias à boa narrativa. Para isso, quem conta precisa estar seguro da história escolhida, no intuito de equacionar equilibradamente o ritmo necessário para dar colorido ao texto.

Imprimir ritmo na narrativa não quer dizer apenas iniciar a narrar velozmente até o final da história. Por ritmo não se entende a velocidade na emissão da voz, onde o narrador chega ao fim exausto e sem ar, mas sim uma relação entre esta velocidade mental, que é a capacidade de pensar ágil, de se adaptar às situações que forem apresentadas pelo conto, e a percepção correta do momento de silenciar. (BUSATTO, 2008, p. 66).

Sentimentos como apreensão, raiva, desespero, coragem, entre outros, foram vividos intensamente nas narrativas apresentadas pelos atores desta pesquisa, especialmente porque promoveram o ritmo necessário para dar vida ao conto. Os narradores aqui em destaque souberam fazer uso equilibrado dos contrários - do silêncio ao grito, da fala ao sussurro, do riso ao choro - e de toda forma de expressão que fez pulsar a história nos corações e mentes dos presentes, conferindo a nossos jovens outra marca necessária à boa prática do contador: a Energia.

Quando o contador de histórias entra em contato com o conto e começa o processo de escolha e estruturação do texto para a narrativa oral, o desenvolvimento do que denominamos energia já começa a acontecer. Segundo Caram e Matos (199_, p. 55):

A energia é a vida na história. Um contador utiliza de sua experiência de vida para falar dos sentimentos dos personagens, descrever os lugares, dar vida àquilo que narra, pois não estará repetindo palavras vazias, mas carregadas de experiência. Nesse caso, elas têm energia.

Quando são tocados pelas histórias, os narradores entram num processo de triangulação entre essas narrativas, as emoções fundantes que dialogam diretamente com elas e as emoções vivenciadas pelo ouvinte durante a escuta do conto. E é essa energia que poderá leva-los ao desejo de narrar. Assim também pode ter acontecido com os contadores de histórias em formação envolvidos com esta pesquisa: no momento da roda de contação, seus ouvintes, em maior ou menor proporção, podem ter sido tomados por uma energia que abriu o desejo de contar uma ou muitas das histórias.

E, para que essa energia se processasse, foi necessário também que o contador de histórias usasse todo o tipo de expressão, no intuito de mobilizar seu ouvinte. Para isso, os atores desta pesquisa precisaram ter uma consciência de corpo - gerada pelos jogos teatrais promovidos nas aulas - que lhes desse a capacidade de reconhecimento, no rosto e no corpo, das expressões capazes de definir sentimentos: “A expressão está ligada à energia e é traduzida em gestos, coisas, ocupação do espaço com o próprio corpo. Usar as mãos, o jeito de se deslocar no espaço imitando o estado de espírito do personagem.” (CARAM; MATOS, 199_, p. 55).

E, mesmo sabendo que contar histórias é diferente de teatralizar o conto, há uma apropriação por parte do contador de histórias da linguagem teatral, recurso didático muito rico e que pode ter determinados aspectos aproveitados na hora da contação. Todavia o limite entre uma arte e outra está no fato de dar ao ouvinte a possibilidade de imaginar ações, personagens, cenários, sem ter de, necessariamente, imitar esses elementos:

No teatro buscamos o gesto exato de cada personagem, sua voz, seu pensamento, de tal maneira que ele se apresente inteiro para quem esteja assistindo. Na narrativa este personagem será concebido pelo ouvinte através de elementos oferecidos pelo narrador, muitas vezes não mais que meia dúzia de palavras, as quais fornecem elementos suficientes para que o personagem crie vida na imaginação do ouvinte. (BUSATTO, 2008, p. 74).

Para Matos e Sorsy (2009), é preciso repensar a função do ator e a função do contador de histórias, pois, assim, a demarcação das diferenças entre eles se dará com maior clareza. Para essas autoras, a principal diferença entre os dois ofícios se encontra na figura do diretor: enquanto o ator precisa de um olho externo, o contador de histórias tem um diretor interior que funciona como um olho interno. E é a partir daí que essas autoras definem: “[…] qualquer pessoa que tenha voz, algum poder de memória e uma capacidade de observação, de reflexão, e que seja capaz de tirar lições da vida é um contador de histórias em potencial.” (MATOS; SORSY, 2009, p. 37).

Entretanto é a Narradora 10 quem, diante do comentário de uma aluna da EDCC60, define o híbrido entre o ator e o contador de histórias e entre esse último e o próprio professor:

Eu queria comentar o que Luiza falou que, de certo modo, o contador de histórias é um ator. Todos nós vivemos representando papéis. O tempo todo, não é? Representando o papel de professor, papel de comprador, papel de falador, papel de pai, papel de mãe, não é? Então, a gente vive o tempo todo representando... É... Agora, quanto mais a gente adentra esse papel, mais natural ele se torna [...] Lembro que ela disse assim: ‘Fiquei impressionada com Keu que ela, assim, séria etc., ela vai adentrando aquilo, internalizando cada vez mais esse papel (de contadora de histórias) que ela não precisa nem entrar sorrindo e fazendo pantomimas e palhaçadas... Aquilo já está internalizado, não é? E então, ela conta aquilo cada vez mais com naturalidade. E é esse o nosso caminho, o caminho de quando se assume o papel de professor, não é? Você está representando aí um papel, um papel social... Importantíssimo!. Então, quanto mais você penetra nesse papel... É quase que erótico... Os papéis sociais que a gente desempenha são eróticos. Você vai tendo um movimento de penetração cada vez maior... Pra você assumir esse papel cada vez com mais naturalidade. Então, não precisa eu ficar preocupada com: E então, agora Mary está representando o papel de professora... Então, agora eu tenho que mudar o meu olhar, a minha voz, os meus gestos etc...’ Cada vez a gente vai se tornando mais natural. E contação de história é isso... [...] Mas Lu, na vida tudo é assim, um universo de representações... A gente está representando o tempo todo. O importante é fazer isso tudo com naturalidade. (NARRADORA 10, Grupo de discussão realizado em 13/12/2011).

E foi essa naturalidade que o grupo de contadores de histórias em formação imprimiu aos contos que vieram para a roda. Sempre que preciso, buscaram o ator no contador e descreveram espaços e cenários com gestos feitos com as mãos, com a expressão facial ou com todo o corpo.

No momento em que faz uso de sons, gestos, mímicas, no momento em que olha para os seus ouvintes, o contador de histórias consegue transmitir a verdade do conto e, com isso, ele promove outro elemento das boas práticas de contação de histórias, o poder, que diz respeito à capacidade de “seduzir” o ouvinte, de reter sua atenção e de mantê-lo em estado de encantamento. Para isso, é imprescindível lançar mão dos elementos descritos até aqui: ritmo, energia e expressão, todos em dosagem certa para provocar o compartilhamento da história: “O poder é em suma a capacidade de conduzir o outro numa viagem ao imaginário. Para isto é necessário que haja prazer. O contador precisa sentir prazer ao contar. Se não há prazer, o conto não acontece”. (CARAM; MATOS, 199_, p. 55).

O poder é o elemento que dá ao contador a capacidade de captar o ouvinte no momento da roda de histórias. É o que, para Zumthor (2007, p. 222), significa o momento da performance que se processa pelo diálogo, mesmo que a palavra esteja apenas na boca do contador de histórias: “A comunicação oral não pode ser monólogo puro: ela requer imperiosamente um interlocutor, mesmo se reduzido a um papel silencioso. Eis por que o verbo poético exige o calor do contato.”

É através do diálogo que o narrador sente quando é hora de seguir ou de concluir a narrativa, quando é hora de ampliar elementos, de dar mais detalhes, ou de ir desenhando um final. É a metáfora do barco e do capitão, do vento e da vela, descrita por Gislayne Matos (2005) em palestra realizada em Salvador. A história é o barco, o contador está no leme, prestes a seguir viagem. O ouvinte é o vento que sopra a vela do barco através do olhar. Quando o contador olha para o seu ouvinte e estabelece um diálogo silencioso com ele, quando faz a leitura desse ouvinte através do balançar da cabeça, das expressões suscitadas pela história (medo, alegria, tristeza), do murmúrio entre eles, é possível imprimir um ritmo à viagem, é possível alterar o sentido da narrativa e ressignificá-la.

Um outro aspecto importante para dar corpo à narrativa é a memorização. Quando falamos de memorização, nos referimos também à capacidade do contador de histórias de memorizar o conto, criando as imagens que posteriormente serão descritas para o seu ouvinte.

Quando trouxemos à tona a metáfora do esqueleto para falar, entre outras coisas, da estrutura da narrativa, estávamos nos referindo também ao movimento de memorização do conto, que, para Coelho (1999, p. 21), não é sinônimo de decorar uma história, mas: “[...] é, em primeiro lugar, divertir-se com ela, captar a mensagem que nela está implícita e, em seguida, após algumas leituras, identificar os seus elementos essenciais, isto é, os que constituem a sua estrutura.” Garantir a memorização da estrutura da narrativa é essencial para que o contador de história fique à vontade para explorar melhor o ritmo, a energia, a expressão e o poder da arte de contar histórias, desencadeadores da improvisação, elemento que garante a renovação de uma mesma história cada vez que ela é contada.

A ideia de improviso, no senso comum, é atribuída a algo que não estava previsto e que, mesmo assim, precisou acontecer, geralmente de maneira desorganizada e às pressas. Às vezes, esse tipo de improviso até dá certo. No caso da contação de histórias, improvisar “é deixar acontecer em cena, sem nenhuma preparação prévia, uma criação pessoal que tenha qualidade como se fizesse parte do script” (CARAM; MATOS, 199_, p. 56). A técnica do improviso se dá de acordo com o momento vivenciado pelos personagens da história e deve acontecer de maneira espontânea: “A improvisação é uma arte complexa e que consiste em associar o aleatório ao rigor.” (CARAM; MATOS, 199_, p. 56).

A improvisação, ensina Matos (2005), pode nascer de um objeto, de alguém na plateia, de um tropeço, de um barulho e até mesmo de um ato involuntário, como um espirro. Diante disso, o contador de histórias precisa concentrar-se para provocar um esvaziamento que o deixará disponível para a história e precisa ainda ter flexibilidade para aguçar o imaginário e atribuir, com certa rapidez, uma saída para a situação não prevista. Esse, talvez, seja um dos itens mais importantes para a construção de boas práticas de contação de histórias e, por certo, o mais difícil de ser internalizado, pois exige do contador de histórias uma sutileza para captar e fazer uso de imagens, desejos, emoções, impulsos e todo tipo de sentimento que possa eclodir em uma roda de histórias.

É isso leitor: o percurso desencadeado na EDCC60 e nas atividades dela decorrentes, como o grupo de discussão, a participação em “Uma vez todo mês”, as rodas de histórias em espaços de educação formal e não formal, deixaram marcas indeléveis em todos nós envolvidos, sujeitos da pesquisa, pesquisadora e orientadora.

Considerações Finais

E foi por isso que os atores desta pesquisa chegaram de todos os lados, vindos de semestres letivos diferentes e por razões bem diversas, mas sempre com uma certeza: eles queriam contar, contar e contar! Como se o interesse pelas narrativas orais nunca tivesse se perdido, e a necessidade da arte fosse sempre uma constante, como nos revela Rocha (2010, p. 325):

Ainda assim, um número cada vez maior de pessoas busca, no novo, o velho contador de histórias. Procuram-no, motivados talvez pela fome de fantasia, de beleza e de religiosidade, ou talvez pela secura ou aridez da solidão barulhenta dos tempos modernos... Pois, lembrando Fischer (2007), em uma época em que o homem já pode ir à lua, continuamos e continuaremos precisando de poetas fazendo da lua temas para as suas canções.

E foi buscando - pois, segundo Lispector (1999, p. 180), “é do buscar e não achar que nasce o que eu não conhecia” - que eles encontraram, em seus parceiros de trajetória, a inspiração para contar histórias. Foi na memória afetiva do outro que a emoção se definiu e funcionou como dispositivo capaz de comunicar outras tantas narrativas e de unir as pessoas através das emoções que estão no âmbito do humano e do sagrado. A partir daí as histórias encontraram terreno fértil para desabrochar e agregar valores, como também promoveram experiência estética capaz de imprimir à arte de narrar a transformação necessária que levou o pedagogo em formação até o contador de histórias.

Para isso, o espaço de formação dos jovens contadores de histórias aqui apresentados possibilitou a interação entre narradores, ouvintes e muitas narrativas, numa perspectiva poética que perpassou pesquisa de acervo, contação de histórias em espaços de educação formal e não formal e muitas atividades corporais, musicais, plásticas e cênicas. Foi na experiência que o percurso formativo desses sujeitos se deu, ora pelas rodas de histórias, ora pelos estudos individuais que os conduziram a experiências de aprendizagem articuladas, promotoras da percepção estética e do conhecimento sobre a arte de narrar.

As aprendizagens dos jovens contadores de histórias apresentadas neste estudo perpassaram a imaginação e a criatividade. Tiveram como matéria a própria humanidade, personificada em experiência estética, o que os colocou em contato com imagens internas que, por serem encantadas, tomando emprestada a poesia de Djavan, para nós se revelaram, transportando-nos para o lugar dos saberes, dos sentidos e significados impressos na materialidade da voz, que impõe a função criadora da palavra do narrador:

Segundo Zumthor, a palavra é o sopro criador que emana do corpo e é sua parte mais leve. Ultrapassando sua dimensão acústica, a voz é também a parte menos limitada do corpo.

Ela é habitada pela palavra, mas é anterior a ela. Seu nome é espírito: em hebraico rouah; em grego pneuma, mas também psique; em latim animus. O que ela nos traz, anterior e interiormente à palavra que veicula, é uma questão sobre os começos, sobre o instante sem duração em que os sexos, as gerações, o amor e o ódio eram um. (MATOS, 2005, p. 70).

Escutar as memórias dessa “gente das maravilhas” em pleno processo formativo, ouvir suas histórias - reais e ficcionais -, triangular essas histórias com as que trazemos, tudo isso foi a chave para a produção do conhecimento entranhado nesta pesquisa. Ouvir e contar muitas histórias foram atos que integraram presente, passado e futuro, potencializando o respeito pela tradição oral, portadora de mistérios e sabedoria que se perpetuam até os tempos dos tempos.

E essa história não termina aqui, pois ela agrega outras histórias e personagens incorporados na pesquisa de campo, ela se abre em moldura para que muitas outras histórias dentro dela sejam contadas. Assim como “As mil e uma noites”, ela funciona como espaço de chegadas e partidas para narrativas diversas que foram contadas e vividas no corpo do caminho. Tais histórias ensinam as coisas que cabem nos espaços formais do educar, mas trazem também um novo ensinamento, o dos que se encontram em processo de crescimento pessoal. Nesse percurso, aprendemos... Seguimos com as histórias, sempre carregadas de muitas possibilidades... Sabemos mais de nós do que antes... Pelo menos, tentamos nos entender mais e a tantos que povoam o mundo, por meio do conhecimento outorgado pelos griots, contadores de histórias que nos pegaram pela mão e conduziram ao reino das palavras, onde fomos capazes de procurar um tesouro.

REFERÊNCIAS

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Recebido: 02 de Julho de 2022; Aceito: 28 de Setembro de 2022

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