SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.31 número68NARRATIVA DE CUENTOS MEDIADA POR COMUNICACIÓN ALTERNATIVA EN EL TEA: ESTUDIOS DE REVISIÓNCUENTOS PARA, CON Y POR NIÑOS EN LA ESCUELA DE INFANCIA índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
Home Pagelista alfabética de revistas  

Servicios Personalizados

Revista

Articulo

Compartir


Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade

versión impresa ISSN 0104-7043versión On-line ISSN 2358-0194

Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade vol.31 no.68 Salvador oct./dic 2022  Epub 13-Ene-2023

https://doi.org/10.21879/faeeba2358-0194.2022.v31.n68.p85-102 

Artigos

CONTAÇÃO DE HISTÓRIAS NO TEMPO-ATENÇÃO DA AULA: CONVERSAÇÕES COM/ENTRE ANCESTRALIDADES

STORYTELLING IN THE TIME-ATTENTION OF THE CLASS: CONVERSATIONS WITH/BETWEEN ANCESTRALITIES

NARRATIVA EN EL TIEMPO-ATENCIÓN DE LA CLASE: CONVERSACIONES CON/ENTRE ANCESTRALIDADES

Maria Alice Gouvêa Campesato*  Universidade do Vale do Rio dos Sinos
http://orcid.org/0000-0002-1965-9564

*Doutora em Educação pela Universidade do Vale do rio dos Sinos (Unisinos). Professora no Programa de Pós-graduação em Gestão Educacional da Universidade do Vale do rio dos Sinos (Unisinos). Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil. E-mail: mcampesato@unisinos.br


RESUMO

Este artigo explora qual o lugar da contação de histórias no tempo-atenção da aula em época de hiperaceleração e excessos e de que maneiras a palavra pode ser tomada como força-potência (trans)formadora de mundos e de modos de existência. Para tal, estabelece aproximação entre práticas ocidentais muito antigas e as tradições africana e ameríndia, desde a perspectiva da oralidade. O texto parte de uma pesquisa arquegenealógica que investigou a aula da Antiguidade aos dias atuais, e de outra pesquisa que investiga a relação da palavra, da voz e da escuta nas tradições africanas e indígenas. Como material empírico, toma textos da tradição greco-romana e os textos A queda do Céu, de Kopenawa e Albert, e A tradição viva, de Hampâté Bâ. Como ferramental teórico-metodológico, utiliza-se da análise do discurso foucaultiana. Conclui que a contação de histórias no espaço áulico é uma possibilidade para provocar outras formas de existência e fabricação de novas verdades.

Palavras-chave: linguagem oral; formação; escuta

ABSTRACT

This article explores the place of storytelling in the attention-time of the class in a time of hyperacceleration and excesses and in which ways the word can be taken as a power-force (trans)forming worlds and modes of existence. To this end, it establishes an approximation between very old western practices and African and Amerindian traditions, from the oral perspective. The text starts from an archegenealogical research that investigated the class from Antiquity to the present day and from another research that investigates the relationship of the word, voice and listening in African and indigenous traditions. As empirical material, it takes texts from Greco-Roman tradition and the texts The Falling Sky, by Kopenawa and Albert, and The Living Tradition, by Hampâté Bâ. As a theoretical-methodological tool, it uses the Foucauldian discourse analysis. It concludes that storytelling in the classroom is a possibility to provoke other forms of existence and the fabrication of new truths.

Keywords: oral language; training; listening

RESUMEN

Este artículo explora el lugar de la narración en el tiempo-atención del aula en un tiempo de hiperaceleración y excesos y de qué manera la palabra puede ser tomada como una fuerza de poder (trans)formando mundos y modos de existencia. Para ello, establece una aproximación entre prácticas occidentales muy antiguas y tradiciones africanas y amerindias, desde la perspectiva oral. El texto parte de una investigación arquegenealógica que investigó la clase desde la Antigüedad hasta nuestros días y de otra investigación que investiga la relación de la palabra, la voz y la escucha en las tradiciones africanas e indígenas. Como material empírico toma textos de la tradición grecorromana y los textos La Caída del Cielo, de Kopenawa y Albert, y La Tradición Viva, de Hampâté Bâ. Como herramienta teórico-metodológica utiliza el análisis del discurso foucaultiano. Concluye que la narración en el aula es una posibilidad para provocar otras formas de existencia y la fabricación de nuevas verdades.

Palabras clave: lenguaje oral; capacitación; escucha

Palavras introdutórias: um breve diagnóstico do presente

Retirado en la paz de estos desiertos, con pocos, pero doctos libros juntos, vivo en conversación con los difuntos, y escucho con mis ojos a los muertos. (QUEVEDO, 2002, 36).

Os brancos não pensam muito adiante no futuro. Sempre estão preocupados demais com as coisas do momento. É por isso que eu gostaria que eles ouvissem minhas palavras através dos desenhos que você fez delas; para que penetrem em suas mentes. (KOPENAWA; ALBERT, 2015, p. 64).

Ouvir as palavras por meio dos desenhos; escutar as palavras com os olhos: duas maneiras de chamar a atenção para as vozes que emanam da escrita. Uma que se coloca em reclusão para que consiga escutar o que aqueles que já não estão mais aqui têm a dizer; outra que se dá a ouvir através da escrita. O primeiro excerto expressa o desejo do homem moderno que já se vê imerso na cultura escrita, buscando retomar a oralidade perdida. O segundo, o desejo de um indígena, cujo empenho se volta para que as tradições dos habitantes da floresta sejam conhecidas pelos brancos.

Independentemente dos propósitos e das formas empregadas, ambos tratam da palavra em sua relação com a escuta e com a voz. E é precisamente essa temática que interessa neste artigo, que busca explorar o lugar da contação de histórias no tempo-atenção1 da aula na Contemporaneidade, a partir de um estudo que vai da Antiguidade aos dias atuais, estabelecendo uma conversação entre a filosofia greco-romana e as filosofias2 africana e ameríndia.

Definida como um testemunho feito oralmente de geração a geração, a tradição oral tem, como características, “o verbalismo e sua maneira de transmissão, na qual difere das fontes escritas. Devido à sua complexidade, não é fácil encontrar uma definição para tradição oral que dê conta de todos os seus aspectos” (VANSINA, 2010, p. 140).

Na tradição africana, o ato de contar histórias é permeado de ritualização, “a reverência que o africano tem pela palavra, o gestual, a interação do narrador com o público ouvinte geram cumplicidade e permitem falar da diferença, reconstruir o velho, pela memória, recepcionar o novo pela fantasia, pela esperança, pela sacralização” (DUARTE, 2009, p. 187). É no sagrado, pois, que a palavra irá encontrar toda sua força.

Hampâté Bâ (2010), em seu precioso texto, A tradição viva, explora a palavra desde sua potência, penetrando no espírito africano; andarilhando pela origem divina, pela fala humana como poder de criação, pela magia, pelo tradicionalismo, pelo ofício, pela memória e pelos griots. Mais do que um estudo sobre a tradição africana, o texto dá a ouvir palavras ancestrais, pois fala da força-potência da palavra, que transcende as culturas, as fronteiras, as epistemologias. Daí a aventura de estabelecer uma aproximação entre as práticas do cuidado de si da Antiguidade, as tradições africanas e as cosmologias ameríndias, desde a perspectiva da oralidade, estabelecendo uma conversação entre essas diversas ancestralidades.

Gestado ao longo do diálogo estabelecido por cerca de quatro décadas entre o xamã yanomami Davi Kopenawa e o etnólogo francês Bruce Albert, o livro A queda do céu (KOPENAWA; ALBERTT, 2015) se constitui como um “tratado sobre a situação político-cósmica dos mais diferentes coletivos que habitam a Terra viva” (VALENTIM, 2021, p. 2). As palavras de Kopenawa, cuidadosamente tra(du)zidas da oralidade à escrita, da voz à visão, e traçadas em “peles de imagens” por seu interlocutor, apresentam um Brasil a partir da perspectiva dos povos “indígenas em constante embate com os não-índios/Brancos (de dentro e de fora das fronteiras geopolíticas brasileiras)” (SANTOS; KOPENAWA; ALBERT, 2017, p. 159-160).

A extremada importância da obra transcende os interesses puramente filosóficos e antropológicos devido à “profundidade abissal com que considera a relação concreta do pensamento com o ambiente cósmico do qual ele participa” (VALENTIM, 2021, p. 2). No decorrer da narrativa, a ideia de que um tipo de vida, pautado pela mercadoria, está colocando em perigo e em vias de desaparecimento todos os outros seres do planeta, é premente. Neste momento em que “assistimos a uma mudança do equilíbrio termodinâmico global sem precedentes nos últimos 11 mil anos da história do planeta, e, associada a ela, a uma inquietação geopolítica inédita na história humana” (VIVEIROS DE CASTRO, 2015, p. 23), as palavras dos Yanomami trazem “um recado da mata alertando para a traição que estamos cometendo contra nossos conterrâneos ⎼ nossos co-terranos, nossos co-viventes ⎼, assim como contra as próximas gerações humanas; contra nós mesmos, portanto” (VIVEIROS DE CASTRO, 2015, p. 23).

Essa morte anunciada (de rios, plantas, pedras, animais, humanos “inclusive” etc.) parece não ecoar nos ouvidos dos “povos da mercadoria”, como refere Kopenawa, ocupados demais para atentar ao que outros (povos, culturas, modos de existência) têm a dizer. As muitas crises que o mundo contemporâneo enfrenta dão testemunho desse modo de vida, tomado, por muitos, como “o único possível”.

Se a Modernidade já nasceu mergulhada em crises, ou ela própria “é definida por crise”, como afirmam Hardt e Negri (2001, p. 93), o terceiro decênio do século XXI inicia imerso em um conjunto de tensões em diversos âmbitos (institucionais, ambientais, climáticos, educacionais etc.), que concorrem para o adensamento da crise moderna. A crise sanitária provocada pela Covid-19, que abala o mundo desde o começo do ano de 2020, veio a contribuir para o acirramento dessas tensões. No cenário brasileiro, a pandemia trouxe à superfície a histórica e profunda desigualdade social, em que os direitos, tão caros ao mundo ocidental moderno, ficaram restritos a um contingente de grupos e/ou indivíduos que podiam se dar ao luxo de isolamento social. Grande parcela da população, porém, ficou exposta ao vírus e seus efeitos.

No campo educacional, alunos que tinham acesso a equipamentos e/ou internet, puderam prosseguir com suas aulas, pesquisas e estudos. Outros, no entanto, ficaram apartados de seu direito de aprender, tendo sua vida estudantil suspensa e seus sonhos adiados. Nesse contexto, movimentos negacionistas3 colocam sob suspeição saberes historicamente construídos, vindo a adensar os diversos problemas já existentes. Somam-se a esses movimentos, a propagação de uma quantidade excessiva de informações e notícias falsas, contribuindo para desinformação, confusão e dispersão. Nesse panorama de instabilidade e discrepâncias, potencializado pelo excesso de informações, opiniões, imagens, ruídos e vozes dissonantes de toda ordem, a sensação de incerteza e de insegurança é premente, provocando, dentre os muitos efeitos, uma intensa dispersão.4

Outrora condição de possibilidade para a constituição de uma bela existência,5 a atenção na Contemporaneidade “desliza incessantemente entre fatos e situações, transparecendo uma certa dificuldade de concentração. Numa busca acelerada de novidade a atenção é passageira, muda constantemente de foco e é sujeita ao esgotamento em frações de segundos” (KASTRUP, 2004, p. 7).

Se a Modernidade engendrou novas formas de percepção, sobretudo a partir do século XIX (CRARY, 2013), a Contemporaneidade não se furtou ao esgarçamento dessas formas perceptivas, em que a fragmentação e a instantaneidade do tempo transformam a vida em uma sequência de episódios, modificando “radicalmente a modalidade do convívio humano” (BAUMAN, 2001, p. 27). A Contemporaneidade, pois, pode ser pensada como a cultura do excesso, em que o consumo, o desejo e o discurso assumem protagonismo; uma sociedade em que a abundância de positividade fomenta autoexploração e decorrentes adoecimentos psíquicos (HAN, 2017).

Tais mudanças atravessam o campo educacional e o espaço microfísico da aula, suscitando uma cadeia ilimitada de desafios, mas também de possibilidades, provocando-nos a pensar o aspecto formativo das futuras gerações (ARENDT, 2016). Cabe, então, a pergunta: qual o lugar da contação de histórias no tempo-atenção da aula na Contemporaneidade? No desdobramento dessa questão, pode-se acrescentar: de que maneiras a palavra pode ser tomada como força-potência (trans)formadora de mundos e de modos de existência?

No intuito, por certo ousado, ainda que não-definitivo, de dar uma resposta a tais indagações, este texto busca explorar o território áulico atravessado pela voz e pela escuta atenta que interrompem o ruído excessivo e o tempo hiperacelerado que experimentamos no presente. Para tal, parte de uma pesquisa arquegenealógica6 que perscrutou o tempo-atenção na aula desde a Antiguidade aos dias atuais e de outra pesquisa em andamento que investiga a relação da palavra, da voz e da escuta nas tradições africanas e indígenas. Neste recorte temporal, este artigo toma, como material empírico, as obras da Antiguidade greco-romana Cartas a Lucílio, de Sêneca (2004), do século I; Instituição Oratória, de Quintiliano (2016), do século I; Obras Morais, de Plutarco (2008), do século II, em diálogo com as obras da atualidade A queda do Céu: palavras de um xamã yanomami, de Kopenawa e Albert (2015) e A tradição viva, de Amadou Hampâté Bâ (2010).

Como ferramental teórico-metodológico, utiliza-se da análise do discurso foucaultiana, tomando o discurso como uma prática que “produz os objetos dos quais fala, mais do que apenas os nomear” (CAMPESATO, 2021, p. 59). Nesse sentido, não busca revelar ou descobrir uma verdade dada a priori, pois recusa a origem, a progressão cronológica, a substancialidade do sujeito. O processo analítico, pois, se alicerça em três princípios metodológicos desenvolvidos por Michel Foucault: o da descontinuidade, o da especificidade e o da exterioridade. O princípio da descontinuidade considera os discursos como práticas em que não há uma camada discursiva silenciada ou reprimida sob o discurso pronunciado. O princípio da especificidade considera “os discursos como uma violência que exercemos sobre as coisas, não há providência pré-discursiva; o princípio de exterioridade” (CASTRO, 2016, p. 185), não vai ao encontro encoberto do discurso; volta-se “às suas condições externas de surgimento” (CASTRO, 2016, p. 185).

Para atender aos seus propósitos, o texto está organizado em quatro partes: Palavras em movimento: a aula e o tempo-atenção; Palavras que ensinam: silêncio e voz; Palavra-corpo-espírito: o trabalho do contador de histórias como imagens de leveza; Palavras finais: algumas respostas, ainda que não-definitivas.

Palavras em movimento: a aula e o “tempo-atenção”

Uma aula é uma espécie de matéria em movimento. É por isso que é musical. (DELEUZE; PARNET, 1994, p. 74).

Compreendida e conceituada de diversas maneiras ao longo dos séculos, a aula “é povoada por todo o tipo de imagem que nela transversaliza seus conteúdos” (DALAROSA, 2016, p. 45) e é “atravessada por uma série de dispositivos, composta por elementos que a diferenciam de outro espaço ou acontecimento. Um espaço produzido por uma multiplicidade de afetos, crenças, valores, expectativas e modos de existir” (CAMPESATO, 2021, p. 48).

Da aulè grega, que significava pátio, morada, às aulas mediadas pelas tecnologias digitais experimentadas nas últimas décadas ⎼ e com maior intensidade no decorrer dos dois últimos anos ⎼, muitas práticas pedagógicas, metodologias e priorizações do que e como ensinar vêm sendo adotadas, conforme a concepção que se tem de educação e de escola, como evidenciou o estudo realizado da Antiguidade aos dias atuais. Tais concepções vêm se modificando no curso da história, conforme os valores correntes em cada época, lugar, cultura e suas condições políticas e discursivas de possibilidade. Isso, é importante lembrar, não se dá de maneira homogênea, tampouco consensual: acontece em meio a tensionamentos e embates de relações de forças. O conceito de aula e os modos de subjetivação dela decorrentes, portanto, estão articulados à visão de mundo que se tem em cada contexto.

Na atualidade, há um regime de verdade que coloca a escola e sua maquinaria, incluindo a aula, em posição de obsolescência, cuja defasagem do professorado frente às demandas do mundo contemporâneo é compreendida como um dos grandes empecilhos ao interesse, e consequente não-aprendizagem por parte do alunado. Tais discursos concorrem para a negação da própria escola, como se observa nos movimentos homeschooling, ou para sua total reformulação, em que a inovação e as tecnologias são compreendidas como a grande solução para os problemas apontados. Segundo Aquino (2017, p. 286), “o afã novidadeiro das práticas pedagógicas não tradicionais passa, assim, a mascarar uma esquiva narrativa sem precedentes na história da escolarização; afã embalado pelo mantra da renovação dos negócios deste mundo [...] de desprezo absoluto para com ele”.

Apesar dessa discursividade, diversos pesquisadores do campo educacional percebem a aula como uma força-potência; “lugar do gesto, a aula é o tempo da demora” (DA COSTA; MUNHOZ, 2020, p. 203); “lugar para uma atenção compartilhada” (LARROSA, 2013); “espécie de matéria em movimento” (DELEUZE; PARNET, 1994, p. 74); “casa da artistagem do sonhar” (CORAZZA, 2021, p. 16). Entre gestos, demoras, atenções compartilhadas, matérias em movimento, lugar de sonhos, se ensina e se aprende; produzem-se pensamentos, criações, modos de existência.

Nesse espaço singular, múltiplo e polifônico de encontros e possibilidades, de ensino e de aprendizagem que é a aula, o “tempo-atenção” desempenha um papel fundamental, uma vez que busca interromper, suspender, ainda que momentaneamente, o fluxo acelerado das informações que experimentamos no presente, operando numa lógica que retoma o sentido etimológico da palavra grega skholé (tempo livre, tempo de ócio, tempo não-produtivo). Essa interrupção, ou suspensão, dá condições de possibilidade para a criação, o exercício do pensamento, o estudo aprofundado, a escuta atenta, a formação, oportunizando aos alunos uma outra possibilidade de conhecer o mundo, o outro e a si próprio. Tempo esse que possibilita pensar diferentemente de como se pensava antes: um “tempo-atenção”.

O tempo-atenção na aula

Ao longo da Antiguidade greco-romana é possível encontrar uma série de práticas e exercícios, aos quais Pierre Hadot (2014) chama de “espirituais”, direcionados ao cuidado de si, tendo na filosofia seu ponto articulador. É importante ressaltar que tais exercícios, juntamente com as normas de vida, eram práticas filosóficas e não religiosas: a religião não se ocupava com “ideias sobre a morte e o além. Havia seitas, mas eram filosóficas, pois a filosofia era a matéria de seitas que propunham convicções e normas de vida a quem isso pudesse interessar” (VEYNE, 2009, p. 188-189). Não obstante tais exercícios se modificassem entre as escolas filosóficas - “mobilização da energia e consentimento ao destino nos estóicos, descontração e desapego nos epicuristas, concentração mental e renúncia ao sensível nos platônicos” (HADOT, 2014, p. 55) -, todas elas possuíam um elemento em comum, tanto nos expedientes utilizados, quanto no fim almejado. Os expedientes concernem às “técnicas retóricas e dialéticas de persuasão, as tentativas de domínio da linguagem interior, a concentração mental. A finalidade buscada nesses exercícios por todas as escolas é o aperfeiçoamento, a realização de si” (HADOT, 2014, p. 55)

Em seus estudos sobre essa tradição do cuidado de si, Michel Foucault (2006) aponta duas grandes formas institucionais que tinham o intuito de modificar o modo de ser do sujeito - a helênica e a romana -, em que a primeira é a skholé, como acontece nas escolas pitagóricas e epicuristas, e a segunda é a do conselheiro privado, encontrada no estoicismo. Independentemente do tipo de relação, o que importa é o exercício de constituição de si, a transformação do sujeito, “em que se é o próprio responsável por um longo labor que é o da ascese (askēsis)” (FOUCAULT, 2006, p. 20).

Ora, tal exercício demanda um tempo apartado da produção, um tempo livre, “ocioso”. Nessa tradição, o ócio, pois, é a condição necessária, o ponto de partida para a prática filosófica. É importante mencionar que isso só é possível para uma elite, para aqueles que podem “pagar o luxo da skholé ou do otium. De todo modo, é uma certa forma de vida particular e, na sua particularidade, distinta de todas as outras vidas, que será considerada como condição real do cuidado de si” (FOUCAULT, 2006, p. 139).

Uma das grandes questões filosóficas para essa tradição consiste em lutar contra os vícios, algo que exige tempo de dedicação; não se trata de um tempo que sobra no intervalo entre uma atividade e outra, como ocorre na atualidade. O filósofo estoico Sêneca (2018), em suas epístolas a Lucílio, aborda, em diversos momentos, sobre a importância desse tempo. Na Carta 59, problematiza essa matéria: “como pode alguém, aliás, aprender suficientemente a lutar contra os vícios se apenas dedica a esse estudo o tempo que os vícios lhe deixam livre?” (SÉNECA, 2018, p. 212-213). Em seguida, o filósofo argumenta sobre a impossibilidade de poder dedicar-se à filosofia ou a um modo de vida filosófico de maneira aprofundada e intensa com apenas alguns momentos do dia: “nenhum de nós aprofunda bastante esta matéria; abordamos o assunto pela rama e, como gente extremamente ocupada, achamos que dedicar umas horas à filosofia é mais do que suficiente.” (SÉNECA, 2018, p. 212-213). O conselho que Sêneca dá a seu aluno é que ele se livre das ocupações para poder dedicarse ao estudo. É importante mencionar que o “estudo” aqui consiste nessa ocupação para consigo próprio, envolvendo as ações do dia, as práticas alimentares, os exercícios físicos, a leitura, o exercício do pensamento, que buscavam modificar o modo de ser dos sujeitos, conforme apontado, almejando uma vida plena na constituição de uma bela existência.

Na Carta 72, Sêneca (2018) chama a atenção para a insuficiência do tempo para o estudo da filosofia, pois mesmo que ele se dê ao longo da vida, jamais será o bastante. Daí a importância da dedicação, de livrar-se das ocupações, pois a interrupção leva a um novo reinício. “Temos de oferecer resistência às nossas ocupações, temos de as eliminar em vez de as multiplicar”, aconselha Sêneca (2018, p. 284).

Em seguida, Sêneca (2018) faz uma crítica, referindo-se às ocupações a que muitos se dedicam, ocupando seu tempo, um tempo que, enfatiza, é finito e insuficiente. O filósofo argumenta que “não há ocasião alguma que seja menos oportuna para um tão salutar estudo e apesar disso muitos homens há que o não praticam por andar envolvidos em situações que precisamente tornam tal estudo imprescindível” (SÉNECA, 2018, p. 284). O tempo-livre, pois, é fundamental para esse estudo, esse cuidado de si, que implica sempre a presença do outro, diferindo muito da compreensão que temos hoje com um cuidado que inicia e encerra no próprio indivíduo. Dessa forma, as recomendações feitas ao aluno sempre caminham na direção de que as ocupações, os “neg-ócios” sejam postos de lado para que possa dedicar-se a esse cuidado. É oportuno ressaltar que essa relação com o trabalho e com o ócio se modificará a partir da Modernidade, em que o tempo produtivo passará a ser uma de suas grandes marcas, e a ociosidade será considerada um grande problema, como a investigação realizada ao longo da tradição ocidental evidenciou. De qualquer maneira, o que importa aqui é perceber a relação do estudo com o “tempo-atenção” na aula dessa tradição. Tempo esse que permite a duração, a escuta atenta, a meditação, uma relação demorada com o próprio pensamento.

Algo muito similar a essa concepção de “tempo-atenção” é encontrado nas tradições africanas. O etnólogo, historiador e escritor africano Hampâté Bâ (2010, p. 208) argumenta que a arte do contador de histórias se encontra naquilo que é um traço característico da “memória africana”: a reconstituição de um fato ou narrativa “em sua totalidade, tal como um filme que se desenrola do princípio ao fim, e fazê-lo no presente. Não se trata de recordar, mas de trazer ao presente um evento passado do qual todos participam, o narrador e a sua audiência”. Nesse sentido, tanto o contador quanto seus ouvintes se convertem em “testemunhas vivas e ativas” (HAMPÂTÉ BÂ, 2010, p. 208) do fato narrado. Um tempo, portanto, em que passado, presente e futuro coabitam em sua totalidade. É por isso, conclui Hampâté Bâ (2010), que o tempo verbal utilizado nessas narrativas é sempre o presente: ele é trazido em bloco.

A formulação bergsoniana de “duração” vem a auxiliar na compreensão desse tempo. Para Bergson (2006, p. 173-174), a tradição ocidental na qual estamos inscritos, tanto filosófica quanto da linguagem, tende a “representar nosso passado como inexistente”, em que somente o presente “existe por si mesmo: se algo sobrevive do passado só pode ser [...] pela intervenção de uma certa função particular que se chama memória e que cujo papel seria o de conservar excepcionalmente tais ou tais partes do passado armazenando-as numa espécie de caixa”. Ao contestar essa tendência, esse filósofo argumenta que quando nós falamos no presente estamos nos referindo a uma duração, que é sempre relacional à atenção que damos a ela, sendo, portanto, impossível de precisá-la.

A diferenciação que estabelecemos entre passado e presente é “senão arbitrária, pelo menos relativa à extensão do campo que nossa atenção à vida pode abarcar. O ‘presente’ ocupa exatamente tanto espaço quanto esse esforço. [...] Numa palavra, nosso presente cai no passado quando deixamos de lhe atribuir um interesse atual” (BERGSON, 2006, p. 175). Assim, o passado sempre se faz presente quando é atualizado, e o tempo torna-se indivisível, uma vez que pode se perpetuar infinitamente, conforme a atenção atribuída ao momento. Essa atualização a que se refere Bergson (2006) torna possível que passado, presente e futuro coabitem em sua totalidade, como acontece na arte do contador de histórias africano.

Outra característica importante da tradição africana, mencionada por Hampâté Bâ (2010), diz respeito à indissociabilidade entre os aspectos materiais e espirituais, diferentemente do que ocorre na tradição ocidental. Advém daí a dificuldade do Ocidente em compreender a “totalidade” referida anteriormente, e que vem a contribuir para que se atribua a outros modos de existência ⎼ que não-ocidentais ⎼ certo caráter exótico e, portanto, não passível de credibilidade. “Ao passar do esotérico para o exotérico, a tradição oral consegue colocar-se ao alcance dos homens, falar-lhes de acordo com o entendimento humano, revelar-se de acordo com as aptidões humanas.” (HAMPÂTÉ BÂ, 2010, p. 169).

Portanto, não há possibilidade, nessa tradição, de resumir uma narrativa, pela simples razão de que ela se dá por completo; e é nessa inteireza de contar e de ouvir que se vão criando imagens, percebendo aromas, mergulhando naquele universo que chega aos ouvidos pela voz do contador. Algo muito assemelhado se dá nas narrativas indígenas, em que as palavras pronunciadas de geração a geração se mantêm presentes.

Na tradição yanomami, nas palavras de Kopenawa e Albert (2015, p. 457), “os dizeres de nossos ancestrais nunca foram desenhados. São muito antigos, mas continuam sempre presentes em nosso pensamento, até hoje. Continuamos a revelá-los a nossos filhos, que, depois da nossa morte, farão o mesmo com os seus”. Ou seja, suas histórias se vão passando da boca ao ouvido, dos mais velhos aos mais jovens. Embora as crianças ainda não conheçam os xapiri,7escutam atentamente sobre eles através dos “cantos dos xamãs8 que os fazem dançar em nossas casas. É desse modo que, aos poucos, as palavras dos maiores vão fazendo seu caminho nos pequenos” (KOPENAWA; ALBERT, 2015, p. 457). Quando as crianças se tornam adultas, é sua vez de dar tais palavras à escuta; palavras que não são “desenhadas”, mas que permanecem arraigadas em seu íntimo e que, portanto, não desaparecem. Desse modo, prosseguem Kopenawa e Albert (2015, p. 457), “quando um rapaz quer, por sua vez, virar espírito, pede aos xamãs renomados de sua casa para lhe darem seus xapiri. Estes então lhe transmitem antigas palavras, que se instalam nele e vão se renovando e aumentando com o passar do tempo”.

De que maneiras penetrar nesse universo em que a oralidade constitui os modos de existência da cultura tradicional africana e da tradição ameríndia yanomami se articula com as práticas do cuidado de si greco-romanas e como tal articulação atravessa a aula no contemporâneo? Qual o lugar do silêncio e da voz na aula em tempos de excesso de palavras e de ruídos que experimentamos na Contemporaneidade? De que modos a contação de histórias no espaço áulico contemporâneo pode promover uma atenção a si, ao outro e ao mundo na constituição de outros modos de existência? Essas perguntas, que poderiam se desdobrar em um perpétuo, incontável e continuum conjunto de tantas outras, alertam-nos para as, também, múltiplas possibilidades de abertura para o inusitado encontro no “tempo-atenção” da aula, com suas variadas vozes.

Palavras que ensinam: silêncio e voz

Há centenas de narrativas de povos que estão vivos, contam histórias, cantam, viajam, conversam e nos ensinam mais do que aprendemos nessa humanidade. (KRENAK, 2019, p. 30-31).

Segundo Hampâté Bâ (2010, p. 208), “o homem moderno, imerso na multiplicidade de ruídos e informações, vê suas faculdades se atrofiarem progressivamente. Está cientificamente provado que os habitantes das grandes cidades perdem cada vez mais sua capacidade auditiva”. Para Ó (2019, p. 124), “nosso modelo cultural parte do postulado segundo o qual a alfabetização e o uso da cultura escrita podem organizar-se, construir-se e enraizar-se totalmente à margem da linguagem oral. [...] Daqui resulta uma progressiva perda do ouvido”.

A perda a que se referem esses autores, no entanto, não se dá de súbito: foi preciso um longo processo para que a visão se tornasse predominante no mundo ocidental e assumisse o status de “sentido privilegiado capaz de fazer uma mediação acurada e fidedigna entre nós e a realidade, ou seja, nos mostrar como é mesmo o mundo” (VEIGA-NETO, 2007, p. 24, grifo do autor). Tal crença tem sua emergência na Modernidade, em que se busca romper com a transcendência divina e estabelecer uma razão centrada no humano: os mitos da Antiguidade e o Deus medieval já não são mais suficientes para explicar o mundo moderno.

Não obstante a escrita já se fizesse presente no tempo de Platão (século IV a.C.), a relação com a palavra se sustentava na oralidade. Daí a importância da escuta ao longo da tradição greco-romana e a quantidade de tratados e textos que encontramos sobre o assunto, como em Sêneca, Plutarco e Epícteto (FOUCAULT, 2006). Tal relevância é extensiva à Idade Média, modificando-se a partir do início do século XIII, com a disseminação do livro e da cultura escrita.

A escuta, pois, considerada uma arte na Antiguidade greco-romana, compunha, junto à leitura, à escrita e à fala, um conjunto de práticas que buscavam promover os discursos verdadeiros para que o indivíduo pudesse estabelecer uma relação completa consigo próprio e tomar, ao mesmo tempo, a si próprio como sujeito desses discursos (FOUCAULT, 2006). Era por meio do dizer verdadeiro que o sujeito podia aprender a virtude, uma vez que ela só era e só podia ser aprendida pelo ouvido, não estando descolada do lógos, ou seja, da linguagem “articulada pela razão. Este lógos só pode penetrar pelo ouvido e graças ao sentido da audição. O único acesso da alma ao lógos é, pois, o ouvido” (FOUCAULT, 2006, p. 404).

O filósofo Plutarco (1995, p. 245, tradução nossa) aponta que “a falta de silêncio traz consigo esse primeiro mal, a incapacidade de ouvir. Pois é uma surdez voluntária de pessoas, a meu ver, que contrariam a natureza por ter apenas uma língua e dois ouvidos”.9 Dessa forma, o filósofo conclui que deveríamos “ouvir mais e falar menos”. Daí a importância de que, aos jovens, seja ensinado “como ouvir”, tanto a si próprio como aos outros. Algo pouco praticado pelas pessoas de sua época, tendo em vista que “exercitam o falar antes de se acostumar a ouvir” (PLUTARCO, 2008, p. 11).

Sêneca (2018), na Carta 94 a Lucílio, alerta para os perigos da palavra, que uma vez pronunciada, não se pode apagar. Por isso a importância de um conselheiro, de um guia espiritual, um mestre, de alguém capaz de “dissipar as opiniões do vulgo”. Isso aponta, também, para outro aspecto fundamental na tradição greco-romana, que diz respeito à relação pedagógica entre mestre e discípulo, que no período imperial, sobretudo em Sêneca, é “fundada na capacidade do mestre em conduzir o discípulo a uma vida feliz e autônoma, por meio de bons conselhos” (FOUCAULT, 2004, p. 355). Essa relação só encerra quando o aluno atinge a vida almejada, pois “palavra alguma não chega impunemente aos ouvidos: uns prejudicam-nos por nos desejar bem, outros prejudicam-nos por nos amaldiçoar” (SÉNECA, 2018, p. 496).

O silêncio e a voz operam, ao longo da tradição greco-romana, conforme o recorte temporal da pesquisa empreendida, como um poderoso expediente formativo, atuando como “suporte primeiro de todos os exercícios de aprendizagem, de todos os exercícios espirituais, como momento primeiro da formação: calar-se e escutar para que, na memória pura, se inscreva o que é dito, a palavra verdadeira dita pelo mestre” (FOUCAULT, 2006, p. 502503). Embora o uso da palavra, do silêncio e da escuta variem entre as diversas escolas ⎼ diálogo, na escola socrático-platônica; silêncio obrigatório, na escola pitagórica; importância da escuta, no estoicismo ⎼, o uso parcimonioso da palavra era crucial para a formação dos indivíduos.

O professor de retórica Quintiliano (2016) aborda essa questão na Instituição Oratória, em que, ao dar conselhos sobre como aprender e memorizar um discurso a ser proferido, aponta a voz como um recurso potente para ativar o espírito que se distrai com outros pensamentos. Segundo esse autor, seria muito bom se pudéssemos realizar isso em silêncio e se

[…] outros pensamentos muitas vezes não invadissem o espírito, por assim dizer, ocioso; por causa deles, o espírito precisa ser ativado pela voz, a fim de a memória ser ativada pelo duplo impulso de falar e de ouvir. Entretanto, que essa voz seja moderada e pouco mais que um murmúrio. (QUINTILIANO, 2016, p. 253).

Walter Ong (1998, p. 16) argumenta que “apesar das raízes orais de toda verbalização, o estudo científico e literário da linguagem e da literatura, durante séculos e até épocas muito recentes, rejeitou a oralidade”. Isso se dá em virtude da relação entre estudo e escrita, pois “todo pensamento, inclusive nas culturas orais primárias,10 é de certo modo analítico: ele divide seu material em vários componentes. Mas o exame abstratamente sequencial, classificatório e explicativo dos fenômenos ou de verdades estabelecidas” (ONG, 1998, p. 17) só se torna possível por meio da escrita e da leitura. Ou seja, a forma como estruturamos nosso pensamento, sobretudo a partir do século XVIII, depende de uma organização na qual a memória já não é mais suficiente. Daí a necessidade, cada vez maior, do registro escrito, em que a universalização do ensino passa a se tornar crucial.

É importante mencionar que o século XVIII é atravessado por uma pluralidade de saberes, que, conforme Foucault (2005), variavam de acordo com o lugar, a estatura das oficinas e fábricas, a posição social, a instrução e a fortuna daqueles que detinham tais saberes. Esses saberes “estavam em luta uns com os outros, uns diante dos outros, numa sociedade em que o segredo do saber tecnológico valia riqueza e em que a independência desses saberes [...] significava também a independência dos indivíduos” (FOUCAULT, 2005, p. 214). Com o desenvolvimento das forças produtivas e das “demandas” econômicas, houve não somente a valorização desses saberes, mas um tensionamento entre eles, em que “as delimitações de independência, as exigências de segredo, tornaram-se mais fortes” (FOUCAULT, 2005, p. 214), sendo essa luta que caracteriza o “desenvolvimento do saber tecnológico do século XVIII” (FOUCAULT, 2005, p. 214-215).

Foucault (2005) argumenta que nessas lutas e nesse esforço de “anexação” e “generalização”, o Estado intervém, lançando mão de quatro procedimentos: eliminação e desqualificação de pequenos saberes; normalização dos saberes dispersos; classificação hierárquica; e, por fim, o controle desses saberes. Segundo Foucault (2005, p. 216), “a esse movimento de organização dos saberes tecnológicos correspondeu toda uma série de políticas, de empreendimentos, de instituições”. Portanto, esses quatro procedimentos, ou operações, (seleção, normalização, hierarquização e centralização) constituem o poder disciplinar. Essa ordenação dos saberes que se deu no século XVIII constitui aquilo a que chamamos de “ciência”.

Toda essa ordem está presente, desde muito cedo, nas escolas, se expandindo, paulatinamente, para outras instituições disciplinares, como quartéis, hospitais, presídios e hospícios. Isso nos ajuda a compreender de que maneiras a educação vem se modificando ao longo dos séculos, especialmente a partir da Modernidade. Também nos auxilia a compreender a afirmação de Ong (1998, p. 17, grifo do autor) no que diz respeito ao estudo, quando argumenta que “os seres humanos, nas culturas orais primárias, não afetadas por qualquer tipo de escrita, aprendem muito, possuem e praticam uma grande sabedoria, porém não ‘estudam’”. Ou seja, não estudam da maneira como o Ocidente, imerso em uma cultura escrita, compreende o estudo.

A forma como os povos não pertencentes a uma tradição escrita estudam ocorre de maneira bastante diversa. No caso dos povos yanomami, o estudo acontece por intermédio do pó de yãkoana, junto aos xamãs mais antigos, que os apresentam os xapiri, conforme descrevem Kopenawa e Albert (2015, p. 458):

[...] nós somos habitantes da floresta. Nosso estudo é outro. Aprendemos as coisas bebendo o pó de yãkoana com nossos xamãs mais antigos. Nos fazem virar espírito e levam nossa imagem muito longe, para combater os espíritos maléficos ou para consertar o peito do céu. É assim que os antigos xamãs nos fazem conhecer os xapiri, abrem seus caminhos até nós e os mandam construir nossas casas de espíritos. Nos ensinam também a palavra de seus cantos e a fazem crescer em nosso pensamento. Sem o apoio desses grandes xamãs, nós nos perderíamos no vazio ou despencaríamos na fogueira de mõruxi wakë. É assim que aprendemos a pensar direito com os xapiri. É esse o nosso modo de estudar e, assim, não precisamos de peles de papel. O poder da yãkoana nos basta! É ela que faz morrer nossos olhos e abre nosso pensamento.

O ensino, pois, nessa tradição, transcorre por meio da oralidade, em que o sentido da audição exerce um papel fundamental, muito aproximado de como se dava o estudo no mundo ocidental até a substituição do ouvido pela vista. Segundo Ó (2019, p. 124), “toda uma civilização se foi paulatinamente erguendo no afastamento e na explícita recusa de um regime cognitivo de base acústica, não retilíneo, esférico. A vista substituiu o ouvido como órgão de perceção, receção e de organização da vida social”. Esse deslocamento provocou toda uma mudança na estrutura de pensamento, uma vez que

[...] nossa mente deixou de se organizar a partir de um recurso outrora vital, dialógico e de ação combinada que recorria quer ao ritmo, à música, às canções e à dança, a frases feitas, a fórmulas, provérbios, máximas, ditos e refrãos, a fim de analisar, dissecar, memorizar, rever e revisitar a realidade, quer, ainda, a figuras poéticas como a metáfora, destinadas a produzir a emergência de novas associações, a expandir e ramificar o limiar da imaginação. (Ó, 2019, p. 124).

Os contos, por conseguinte, outrora transmitidos por meio da voz, só conseguiram garantir sua sobrevivência “graças aos folcloristas e aos etnólogos, que os recolheram e guardaram nos livros” (MATOS, 2020, p. 16). Nesse sentido, pode-se dizer que a escrita se constitui desse paradoxo: se, por um lado, ela é responsável pelo rompimento com a tradição oral, por outro, é condição de possibilidade para a transmissão de conhecimentos ancestrais. Tomar essa especificidade da escrita pode auxiliar-nos a perspectivar a contação de histórias em um mundo pautado pela confiança exclusiva no sentido da visão.

Sobre essa questão, Hampâté Bâ (2010, p. 168) aponta que alguns estudiosos concedem demasiada importância à problemática da (im) possibilidade de atribuir à oralidade a mesma credibilidade dada “à escrita quando se trata do testemunho de fatos passados”. Esse pesquisador argumenta que, em seu entendimento, “não é esta a maneira correta de se colocar o problema. O testemunho, seja escrito ou oral, no fim não é mais que testemunho humano, e vale o que vale o homem” (HAMPÂTÉ BÂ, 2010, p. 168).

Ao voltarmos a atenção para o espaço áulico, cabe lembrar que até o sentido da visão substituir o da audição, conforme mencionado anteriormente, a escuta era uma prática usual11 em que o ensino acontecia em forma de diálogo entre mestre e discípulo. Se a produção escrita provocou, por um lado, mudanças nas formas de ensinar e nas relações no espaço microfísico da aula, “no propósito exclusivo de promover a convergência e a adequação à verdade única expressa no texto escolar; o professor passou a tomar a palavra para sublinhar a clareza, a coerência, a unidade interna e a consistência das matérias e dos argumentos expressos no texto” (Ó, 2019, p. 159), por outro, provocou um “alargamento do horizonte de referências que passou a ser fornecido aos estudantes” (Ó, 2019, 160).

Portanto, ao pensarmos sobre a prática da contação de histórias no tempo-atenção da aula na Contemporaneidade, em que predomina a cultura escrita, é importante tomar essa tradição, na qual estamos imersos, desde a perspectiva de sua potência, que torna possível ofertar aos alunos um repertório bastante ampliado de mundos e de modos de vida. Isso exige, por conseguinte, que os professores tenham um repertório também ampliado, a fim de que possam apresentá-lo a seus alunos. A formação inicial e continuada de professores, pois, é de fulcral importância para tal alargamento.

Palavra-corpo-espírito: o trabalho do contador de histórias como imagens de leveza

Cada vez que o reino do humano me parece condenado ao peso, digo para mim mesmo que a maneira de Perseu eu devia voar para outro espaço. Não se trata absolutamente de fuga para o sonho ou o irracional. Quero dizer que preciso mudar de ponto de observação, que preciso considerar o mundo sob uma outra ótica, outra lógica, outros meios de conhecimento e controle. As imagens de leveza que busco não devem, em contato com a realidade presente e futura, dissolver-se como sonhos... (CALVINO, 1990, p. 19).

Observar o mundo sob outra ótica se apresenta como uma possibilidade para enfrentar os muitos desafios, assim como uma potencialidade que se coloca no campo educacional no presente. As imagens de leveza para as quais Calvino (1990) nos conduz vêm a se juntar às vozes ancestrais das narrativas sobre as quais se está a abordar neste artigo, no recorte temporal da Antiguidade à atualidade feito no estudo desenvolvido. Considerar o mundo desde outra perspectiva caminha para uma direção diversa daquela que marca a civilização Ocidental, que entende o mundo e tudo que dele faz parte, “dividido”. Não obstante essa forma de pensar esteja no Ocidente desde há muito, é nos diálogos platônicos que se dá a formulação “filosófica de uma realidade dicotômica, isso é, uma realidade dividida em duas partes contraditórias: uma, do inteligível; a outra, do sensível” (VEIGA-NETO, 2015, p. 122).

Essa divisão está presente no pensamento educacional ainda hoje, em que as discussões entre “teoria” e “prática”, “fazer” e “pensar” vêm a respaldar propostas pedagógicas que defendem a adoção de atividades práticas na aula em detrimento do exercício do pensamento, colocando-os em posição de antagonismo. Tal separação é uma característica peculiar ao mundo ocidental, que tem “uma arraigada dificuldade de estabelecer ligações entre a cabeça e a mão, de reconhecer e estimular o impulso da perícia artesanal” (SENNETT, 2015, p. 20).

Guattari e Rolnik (1998, p. 278) apontam que seria necessário pensar sobre a questão do corpo, pois muito embora “as coisas, nas sociedades industriais desenvolvidas, são representadas como se tivéssemos um corpo”, isso não é tão evidente. Segundo esses autores, a nós é concedido, criado e produzido um corpo voltado para se desenvolver em um espaço produtivo, mas que há outros “sistemas antropológicos onde essa noção de corpo individuado não funciona do mesmo modo; aliás, nesses lugares, a própria noção de corpo, de corpo natural não existe enquanto tal” (GUATTARI; ROLNIK, 1998, p. 278).

Como exemplo, esses autores tomam o corpo arcaico, que de modo algum, argumentam, se apresenta “nu”, mas, de fato, se constitui como “um subconjunto de um corpo social, atravessado pelas marcas do socius, pelas tatuagens, pelas iniciações, etc. Esse corpo não comporta órgãos individuados: ele próprio é atravessado pelas almas, pelos espíritos que pertencem ao conjunto dos agendamentos coletivos” (GUATTARI; ROLNIK, 1998, p. 278). Nas tradições africanas e indígenas é possível perceber esse corpo múltiplo, não individuado, ao qual Guattari e Rolnik (1998) se referem. Hampâté Bâ (2010, p. 184) diz que “na África, tudo é História”, e de todas elas, a história da humanidade é a mais expressiva, pois resulta de tudo que existiu antes dela.

Os ensinamentos referentes ao homem baseiam-se em mitos da cosmogonia, determinando seu lugar e papel no universo e revelando qual deve ser sua relação com O mundo dos vivos e dos mortos. Explica-se tanto o simbolismo de seu corpo quanto a complexidade de seu psiquismo: ‘As pessoas da pessoa são numerosas no interior da pessoa’, dizem as tradições bambara e peul. Ensina-se qual deve ser seu comportamento frente à natureza, como respeitar-lhe o equilíbrio e não perturbar as forças que a animam, das quais não é mais que o aspecto visível. (HAMPÂTÉ BÂ, 2010, p. 184).

O corpo, nas cosmologias amazônicas, “aparece como o grande diferenciador [...] isto é, como aquilo que só une seres do mesmo tipo na medida em que os distingue de outros” (VIVEIROS DE CASTRO, 1996, p. 131). Dessa forma, o uso de pinturas corporais, máscaras, adereços com peles, plumas e penas de animais são o que dão ao corpo a sua diferenciação. “A Bildung ameríndia incide sobre o corpo antes que sobre o espírito: não há mudança ‘espiritual’ que não passe por uma transformação do corpo, por uma redefinição de suas afecções e capacidades” (VIVEIROS DE CASTRO, 1996, p. 132).

Na tradição yanomami, foi Omama quem criou o “líquido que os brancos chamam de tinta” (KOPENAWA; ALBERT, 2015, p. 456) e colocou dentro das árvores. Depois ensinou aos xapiri como utilizá-lo para suas danças de apresentação e, posteriormente, fez o mesmo aos antepassados humanos, para que pudessem adornar seus corpos para as festas reahu,12 a fim de que imitassem “a beleza dos ancestrais animais e não mais exporem a feiura de uma pele cinzenta” (KOPENAWA; ALBERT, 2015, p. 456). Por serem filhos de Omama, os yanomami continuam a seguir a “retidão de suas palavras” e seguem enfeitando seus corpos com pinturas de urucum vermelho e preto, cobrindo seus cabelos com penugem branca, prendendo penas de papagaio nas orelhas e caudais de arara nas suas braçadeiras. Todos esses ornamentos feitos em seus corpos fazem parte dos preparativos para as festas reahu (KOPENAWA; ALBERT, 2015).

A relação entre palavra e corpo nas tradições africanas e indígenas é atravessada por forças, fluxos, movimentos, ritmos, cores, ancestralidades, como “um tecido produzido no tear africano: na trama do tear está o horizonte do espaço; na urdidura do tecido está a verticalidade do tempo. Entrelaçando os fios do tempo e do espaço cria-se o tecido do mundo que articula a trama e a urdidura da existência” (OLIVEIRA, 2005, p. 249).

Esses fios que se vão tecendo a cada palavra, a cada gesto que se dá no ato da contação de histórias, criam imagens, pulsões de vida, sonhos. Como afirma Corazza (2021, p. 3), “sonhar é um processo e uma sensação no corpo por meio dos quais percebemos outros universos e novas dimensões são abertas”. Daí a potência da contação de histórias no espaço microfísico da aula, especialmente em tempos em que o sonho só é possível para poucos e, mesmo para esses, já está marcado por um caráter pragmático e utilitário, em que tudo tem que ter uma aplicação imediata. Urge, pois, pensar sobre o tempo-atenção da aula no contemporâneo, em que o empreendedorismo, a educação financeira e o projeto de futuro assumem protagonismo nos currículos escolares, concorrendo para a produção de um modo de existência pautado pelo mercado, em que pouco tempo sobra para que as crianças e jovens possam pensar sobre a vida, o mundo e si próprios. Ao mesmo tempo, os alunos são convocados a estarem em atividade constante, sem, contudo, pararem para pensar sobre os movimentos de seus próprios corpos.

Corazza (2021, p. 1), em seu belo texto O Sonho da Docência: Fantástico Tear, traz um conjunto de “questões sobre a categoria conceitual e analítica acerca do sonho da Docência” e que vem ao encontro deste artigo, nos ajudando a pensar sobre a aula na contemporaneidade. Para Corazza (2021, p. 3), “o sonho é aquilo que o mito, a poesia, a filosofia, a ciência e a psicanálise dizem que o sonho é. Em nosso caso de professores, o sonho é aquilo que tangencia, que toca, que espaça e que inscreve a Docência; logo, o Currículo, a Didática e a Aula”. Ao tratar sobre as múltiplas dimensões da docência, essa autora põe em cena aquilo que denomina “Docência de Sheherazade”, uma docência quimérica, arriscada “que infiltra a presença maciça do corpo e o deleite das palavras, secretas e sedutoras, derramadas para além dos nefastos adjetivos e da tagarelice” (CORAZZA, 2021, p. 5).

Não é disso que se está a falar neste artigo, que mergulha em tradições muito antigas para pensar qual o lugar da contação de histórias no tempo-atenção da aula em época de hiperaceleração e excessos? Que se arrisca a mergulhar em ancestralidades para pensar de que maneiras a palavra pode ser tomada como força-potência (trans)formadora de mundos e de modos de existência?

Hampâté Bâ (2010) diz que todas as tradições africanas são permeadas por uma visão religiosa do mundo em que o “universo visível é concebido e sentido como o sinal, a concretização ou o envoltório de um universo invisível e vivo, constituído de forças em perpétuo movimento. No interior dessa vasta unidade cósmica, tudo se liga, tudo é solidário” (HAMPÂTÉ BÂ, 2010, p. 189). Nesse sentido, as relações do humano consigo próprio, com o outro e com o mundo se dão com base em um regime ritual específico, que se pode modificar conforme regiões ou etnias.

Habitar, pois, a potência ritualística que compõe essas tradições apresenta-se como uma via possível, no tempo-atenção da aula, de romper com a aceleração ruidosa na qual a sociedade ocidental contemporânea caminha, apresentando outra perspectiva para educar as novas gerações. Não se trata de tomar outra forma de existência como modelo, formas prontas, prescrições; trata-se, pois, de perceber que a sociedade contemporânea carece de rituais, e problematizar tal carência. Tomar a contação de histórias, com seus rituais de voz, de pausa, de silêncios, de gestos e de movimentos é uma forma de habitar uma potência ritualística ancestral e comum a todos os humanos nos primórdios tempos. É uma forma de considerar o mundo de outra(s) maneira(s) com imagens de leveza que não se dissipem como sonhos, como nos convida Calvino (1990).

Palavras finais: algumas respostas, ainda que nãodefinitivas

Sem o acolhimento da casa e sem as memórias de que ela é a fonte primeira, seríamos seres desenraizados; seres sem imaginação porque sem história, e sem história porque sem memória. (VEIGA-NETO, 2012, p. 269).

Este artigo buscou trazer a palavra à “boca de cena da sala de aula” (Ó, 2019, p. 9), a esse espaço de encontros e possibilidades, para pensar qual o lugar da contação de histórias no tempo-atenção da aula em época de hiperaceleração e excessos e de que maneiras a palavra pode ser conjecturada como força-potência (trans)formadora de mundos e de modos de existência. Para tal, fez um recorte temporal da Antiguidade aos dias atuais, num exercício de aproximar práticas muito antigas do cuidado de si da tradição ocidental com as tradições africana e ameríndia desde a perspectiva da voz e da escuta.

Procurou, também, tomar a palavra a partir de sua força ritualística, da qual o mundo ocidental contemporâneo carece. Os rituais, nos diz Han (2021, p. 10-11, grifo do autor), “transformam o estar-no-mundo em um estar-em-casa. Fazem do mundo um local confiável. São no tempo o que uma habitação é no espaço. Fazem o tempo se tornar habitável. Sim, fazem-no viável como uma casa”. Esses rituais, presentes no ato da contação de histórias, possibilitam encontros com o outro, consigo próprio e com o mundo, ou com os muitos mundos, produzindo outros afetos e outras possibilidades de pensamento e de vida.

Em tempos em que sequer os direitos ⎼ supostamente assegurados pelas instituições modernas (não sem críticas) ⎼ conseguem sua garantia de cumprimento; em tempos de excessos e de extremismos; de dúvidas; de falta de credibilidade e de confiança no discurso, como é possível tomar a palavra como uma possibilidade? Como é possível tomar a palavra como uma possibilidade formativa? Retoma-se, assim como quem segura, delicadamente, e com todo o cuidado que o momento exige, as “letras” com uma pinça, ou, nos dizeres de Rodrigues (2020, p. 50), puxa-se “o pensamento pela ponta do lápis”, para afirmar a potência da voz no espaço áulico.

Puxar, pois, o “pensamento pela ponta do lápis” é ousar mergulhar nas ancestralidades que nos constituem. Por isso, adentrar nas práticas ocidentais muito antigas nos ajudam, dentre tantas coisas, a pensar que se fomos de outra maneira no passado, podemos também criar novas formas de existir no presente e perspectivar outro futuro. A conversação estabelecida com um tempo remoto da tradição ocidental e as ancestralidades expostas por Hampâté Bâ e Kopenawa é uma possibilidade de romper com a homogeneidade de pensamento, tributária do racionalismo iluminista. Também nos permite romper com o etnocentrismo e com a dualidade, que coloca, em posição de antagonismo, a civilização e a barbárie; o civilizado e o selvagem; a natureza e a cultura, e que vem a respaldar movimentos genocidas e de extermínio àquele (grupo ou indivíduo) diferente. Não precisamos retornar aos massacres cometidos contra populações ao longo da história: basta atentarmos para acontecimentos muito recentes no cenário local e mundial.

Sermos contemporâneos não é uma tarefa isenta de riscos: se estivermos atentos aos sinais do mundo, talvez tenhamos a sorte de eles nos perturbarem a ponto de suscitarem o pensamento; mas isso só ocorrerá se conseguirmos escapar dos perigos que aparecem quando pisamos terrenos tão pantanosos sem evitar a complexidade dos fenômenos nem desprezar suas contradições. O desmoronamento em curso é doloroso e desconcertante, mas, a partir dessa abertura, a visão se expande para outras direções. Em consequência disso, os caminhos podem se multiplicar. (SIBILIA, 2012, p. 10).

Multiplicar os caminhos é uma árdua tarefa, contudo necessária: trata-se de um compromisso e de uma responsabilidade para com o mundo e com o futuro daqueles que estão nele chegando ou dos que ainda estão por vir (ARENDT, 2016). A aula é um espaço potente para essa abertura, e a contação de histórias é uma possibilidade para provocar outras e novas formas de pensar, de agir e de viver, fabricando, também, outras e novas verdades. Como sugere Alyne Costa (2021, p. 45), ao debater sobre as questões climáticas e a problemática das ciências, “talvez os enunciados científicos possam, ainda, abrir espaço para outros modos de existir, criar, imaginar e de contar histórias sobre o mundo que historicamente vinham sendo desqualificados como crenças, ilusões ou fantasias”.

Penetrar nos universos (greco-romano, africano, indígena) trazidos para este artigo permite-nos apostar na possibilidade de estabelecer uma conversação com/entre ancestralidades, tomando a palavra desde sua força-potência ritualística, habitando o terreno do comum, pois “contar histórias juntos é um dispositivo poderoso de produção de confiança e comunidade” (COSTA, 2021, p. 45). A contação de histórias, assim, é uma forma de perspectivar o tempo-atenção na aula do presente, atravessado pelos fluxos ancestrais que nos constituem; nós todos que habitamos essa Terra, carinhosamente tratada, por muitos, como Gaia.

REFERÊNCIAS

AQUINO, Júlio Groppa. Defender a escola das pedagogias contemporâneas. ETD - Educação Temática Digital, v. 19, n. 4, p. 669-690, 2017. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ ojs/index.php/etd/article/view/8648729. Acesso em: 05 jul. 2022. [ Links ]

ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. Tradução de Mauro W. Barbosa. São Paulo: Perspectiva, 2016. [ Links ]

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. São Paulo: Jorge Zahar Editor Ltda, 2001. [ Links ]

BERGSON, Henri. O pensamento e o movente. Tradução de Bento Prado Neto. São Paulo: Martins Fontes, 2006. [ Links ]

CALVINO, Ítalo. Seis propostas para o próximo milênio: lições americanas. Tradução de Ivo Barroso. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. [ Links ]

CAMPESATO, Maria Alice Gouvêa. Do tempo-atenção do estudo ao tempo-interesse do estudante: uma arquegenealogia da aula. 2021. 558 f. Tese (Doutorado em Educação) - Programa de PósGraduação em Educação, Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), São Leopoldo, RS, 2021. Disponível em: http://www.repositorio.jesuita. org.br/handle/UNISINOS/9765. Acesso em: 16 set. 2022. [ Links ]

CARRETO, Carlos F. Clamote. A voz ou a plenitude do texto: performance oral, práticas de leitura e identidades literárias no Ocidente medieval. Medievalista, n. 19, p. 1-36, jun. 2016. Disponível em: http://journals.openedition.org/ medievalista/958. Acesso em: 06 set. 2022. [ Links ]

CASTRO, Edgardo. Vocabulário de Foucault: um percurso pelos seus temas, conceitos e autores. Tradução de Ingrid Müller Xavier. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2016. [ Links ]

CORAZZA, Sandra Mara. O sonho da docência: fantástico tear. Pro-Posições, Campinas, SP, v. 32, p. e20200008, 2021. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/proposic/ article/view/8666813. Acesso em: 05 jul. 2022. [ Links ]

COSTA, Alyne. Da verdade inconveniente à suficiente: cosmopolíticas do antropoceno. Cognitio-Estudos: Revista Eletrônica de Filosofia, São Paulo, v. 18, n. 1, p. 37-49, jan./jun. 2021. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/index. php/cognitio/article/view/53089/35544. Acesso em: 28 jun. 2022. [ Links ]

CRARY, Jonathan. Suspensões da percepção: atenção, espetáculo e cultura moderna. São Paulo: Cosac Naify, 2013. [ Links ]

DA COSTA, Cristiano Bedin; MUNHOZ, Angélica Vier. A aula como gesto: um princípio para a docência. Revista Teias, v. 21, n. 63, p. 191-205, dez. 2020. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/revistateias/article/ view/53637. Acesso em: 04 jul. 2022. [ Links ]

DALAROSA, Patrícia Cardinale. Aula, entre movimentos de vida-escrita-pensamento. 2016. 141 f. Tese (Doutorado em Educação) - Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, 2016. Disponível em: https://lume.ufrgs.br/handle/10183/180971. Acesso em: 07 set. 2022. [ Links ]

DELEUZE, Gilles; PARNET, C. O Abecedário de Gilles Deleuze. 1994. Transcrição integral, para fins exclusivamente didáticos. Disponível em: http:// www.bibliotecanomade.com/2008/03/arquivo -para-download-o-abecedrio-de.html. Acesso em: 05 maio 2022. [ Links ]

DUARTE, André de Macedo; CÉSAR, Maria Rita de Assis. Negação da política e negacionismo como política: pandemia e democracia. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e109146, 2020. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/21756236109146. Acesso em: 15 mar. 2022. [ Links ]

DUARTE, Zuleide. A tradição oral na África. Estudos de Sociologia, v. 2, n. 15, p. 181-189, mar. 2009. Disponível em: https://periodicos.ufpe.br/ revistas/revsocio/article/view/235328. Acesso em: 04 jul. 2022. [ Links ]

FOUCAULT, Michel. A hermenêutica do sujeito. Tradução de Márcio Alves da Fonseca e Salma Tannus Muchail. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. [ Links ]

FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2005. [ Links ]

FOUCAULT, Michel. Tecnologias de si. Tradução de Andre Degenszajn. Verve - revista semestral autogestionária do Nu-Sol. São Paulo, n. 6, p. 321-360, 2004. Disponível em: https://revistas. pucsp.br/verve/article/view/5017/3559. Acesso em: 05 set. 2022. [ Links ]

GUATTARI, Félix; ROLNIK, Suely. Emoção, energia, corpo, sexo: o mito da “viagem” de liberação. In: GUATTARI, Félix; ROLNIK, Suely. Micropolítica: cartografias do desejo. Petrópolis: Vozes, 1998. p. 274-280. [ Links ]

HADOT, Pierre. Exercícios espirituais e filosofia antiga. Tradução de Flavio Loque e Loraine Oliveira. São Paulo: É Realizações, 2014. [ Links ]

HAMPÂTÉ BÂ, Amadou. A tradição viva. In: KI-ZERBO, Joseph. História Geral da África I: metodologia e pré-história da África. 2. ed. Brasília, DF: UNESCO, 2010. p. 167-212. [ Links ]

HAN, Byung-Chul. O desaparecimento dos rituais: uma topologia do presente. Petropólis, RJ: Vozes, 2021. [ Links ]

HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Tradução de Enio Paulo Giachini. Petropólis, RJ: Vozes, 2017. [ Links ]

HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Império. Tradução de Berilo Vargas. Rio de Janeiro: Record, 2001. [ Links ]

KASTRUP, Virgínia. A aprendizagem da atenção na cognição inventiva. Psicologia & Sociedade, v. 16, n. 3, p. 7-16, set./dez. 2004. Disponível em: https:// doi.org/10.1590/S0102-71822004000300002. Acesso em: 15 abr. 2022. [ Links ]

KASTRUP, Virgínia. Políticas cognitivas na formação do professor e o problema do devir-mestre. Educação & Sociedade, Campinas, SP, v. 26, n. 93, p. 1273-1288, set./dez. 2005. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S010173302005000400010. Acesso em: 30 jun. 2022. [ Links ]

KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. Tradução de Beatriz Perrone-Moisés; prefácio de Eduardo Viveiros de Castro. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. [ Links ]

KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. [ Links ]

LARROSA, Jorge. Abecedário com Jorge Larrosa Bondía. 2013. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=5FtY1psRoS4&feature=youtu.be. Acesso em: 20 mar. 2022. [ Links ]

MATOS, Gislayne Avelar. A palavra do contador de histórias: sua dimensão educativa na contemporaneidade. São Paulo: Martins Fontes, 2020. [ Links ]

Ó, Jorge Manuel Ramos do. Fazer a mão: por uma escrita inventiva na universidade. Lisboa: Edições do Saguão, 2019. [ Links ]

OLIVEIRA, Eduardo David de. Filosofia da ancestralidade: corpo e mito na filosofia da Educação Brasileira. 2005. 353 f. Tese (Doutorado em Educação) - Programa de Pós-graduação em Educação Brasileira, Universidade Federal do Ceará (UFC), Fortaleza, 2005. Disponível em: http://www. repositorio.ufc.br/handle/riufc/36895. Acesso em: 05 jul. 2022. [ Links ]

ONG, Walter Jackson. Oralidade e cultura escrita: a tecnologização da palavra. Tradução de Enid Abreu Dobránszky. Campinas, SP: Papirus, 1998. [ Links ]

PLUTARCO. Obras morales y de costumbres (Moralia). Madrid: Editorial Gredos, 1995. [ Links ]

PLUTARCO. Obras morais: da educação das crianças. Tradução do grego, introdução e notas de Joaquim Pinheiro. Coimbra: Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos; Universidade de Coimbra, 2008. [ Links ]

QUEVEDO, Francisco de. Antología poética. Alicante: Biblioteca Virtual Miguel de Cervantes, 2002. [ Links ]

QUINTILIANO. Instituição Oratória. Tradução de Bruno Fregbi Bassetto. São Paulo: Editora da Unicamp, 2016. [ Links ]

RAMOSE, Mogobe. Sobre a legitimidade e o estudo da filosofia africana. Tradução Dirce Eleonora Nigo Solis, Rafael Medina Lopes e Roberta Ribeiro Cassiano. Ensaios Filosóficos, v. IV, p. 6-23, out. 2011. Disponível em: http://www.ensaiosfilosoficos.com.br/#edicoes. Acesso em: 01 jul. 2022. [ Links ]

RODRIGUES, Elisandro. Montagem: por uma escrita em educação. 2020. 464 f. Tese (Doutorado em Educação) - Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), São Leopoldo, RS, 2020. Disponível em: http://www.repositorio.jesuita.org.br/handle/ UNISINOS/9181. Acesso em: 05 jul. 2022. [ Links ]

SANTOS, Thaís Dias Luz Borges; KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu. Palavras de um xamã Yanomami. Revista Habitus, Goiânia, v. 15, n. 1, p. 159-164, out. 2017. Disponível em: http:// seer.pucgoias.edu.br/index.php/habitus/article/ view/5905. Acesso em: 04 jul. 2022. [ Links ]

SÉNECA, Lúcio Aneu. Cartas a Lucílio. Tradução de José António Segurado e Campos. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2018. [ Links ]

SENNETT, Richard. O artífice. Tradução de Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Record, 2015. [ Links ]

SIBILIA, Paula. Redes ou paredes: a escola em tempos de dispersão. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012. [ Links ]

VALENTIM, Marco Antonio. sonho de fogo: a cosmologia onírica de Davi Kopenawa. PERI - Revista de Filosofia, Florianópolis, v. 13, n. 2, p. 1-16, 2021. Disponível em: https://nexos.ufsc.br/ index.php/peri/article/view/5217. Acesso em: 21 jun. 2022. [ Links ]

VANSINA, Jan. A tradição oral e sua metodologia. In: História geral da África I: metodologia e préhistória da África. 2. ed. rev. Brasília, DF: UNESCO, 2010. p. 139-166. [ Links ]

VEIGA-NETO, A. Anotações sobre as relações entre teoria e prática. Educação em Foco, v. 20, n. 1, p. 113-140, 2015. Disponível em: https://periodicos. ufjf.br/index.php/edufoco/article/view/19627. Acesso em: 05 jul. 2022. [ Links ]

VEIGA-NETO, Alfredo. É preciso ir aos porões. Revista Brasileira de Educação, v. 17, n. 50, p. 267-282, maio/ago. 2012. Disponível em: https:// doi.org/10.1590/S1413-24782012000200002. Acesso em: 04 jul. 2022. [ Links ]

VEIGA-NETO, Alfredo. Olhares. In: COSTA, Marisa Vorraber (org.). Caminhos investigativos: novos olhares na pesquisa em Educação. Rio de Janeiro: Lamparina, 2007. p. 23-38. [ Links ]

VEYNE, Paul. O Império Romano. In: VEYNE, Paul (org.). História da vida privada: do Império Romano ao ano mil. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 17-212. [ Links ]

VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia. São Paulo: Ubu, 2020. [ Links ]

VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Metafísicas canibais: elementos para uma Antropologia pósestrutural. São Paulo: Ubu, 2018. [ Links ]

VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Os pronomes cosmológicos e o perspectivismo ameríndio. Mana, v. 2, n. 2, p. 115-144, 1996. Disponível em: https:// doi.org/10.1590/S0104-93131996000200005. Acesso em: 16 set. 2012. [ Links ]

VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Prefácio: o recado da mata. In: KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. p. 11-42. [ Links ]

1Utiliza-se aqui o conceito desenvolvido por Campesato (2021, p. 49), que diz que o tempo-atenção é “um tempo próprio, voltado para o estudo, para o exercício, para o pensamento. É um tempo apartado dos outros tempos não-escolares. Mesmo que dividido, em se tratando das aulas modernas, em períodos marcados pelo relógio, no interior da aula, no instante entre o toque de uma sirene e outra, o tempo é o da duração: um tempo em que o trabalho escolar é tão intenso, que se pode transportar para um feudo em questão de segundos. Por isso, poderíamos tomar o tempo bergsoniano [...] para pensarmos o que constitui o tempo-atenção da aula”.

2Essa questão da filosofia ou “não-filosofia” indígena e africana são discutidas, respectivamente, por Eduardo Viveiros de Castro (2018), em Metafísicas Canibais elementos para uma Antropologiapós-estrutural, e por Mogobe Ramose (2011), em Sobre a Legitimidade e o Estudo da Filosofia Africana.

3“O negacionismo é um fenômeno social não apenas porque implica a produção e difusão em massa de teses controversas em relação a consensos científicos validados, mas também porque teses negacionistas provocam impactos diretos no comportamento de milhões de pessoas. Simultaneamente, o negacionismo é um fenômeno político porque, o mais das vezes, está associado com a extração de vantagens por parte de grupos econômicos interessados em negar ou questionar teses e conhecimentos científicos. Isto ocorre, sobretudo, quando tais conhecimentos inspiram políticas públicas destinadas a transformar comportamentos e modos de vida coletivos, os quais afetam interesses econômicos poderosos.” (DUARTE; CÉSAR, 2020, p. 9).

4Segundo Kastrup (2005, p. 1283), “a dispersão consiste num repetido deslocamento do foco atencional, que impossibilita a concentração, a duração e a consistência da experiência”.

5Aqui refere-se à Antiguidade, conforme será abordado posteriormente.

6A arquegenealogia combina os procedimentos arqueológico e genealógico desenvolvidos por Michel Foucault, em que “a arqueologia seria o método próprio da análise das discursividades locais, e a genealogia, a tática que faz intervir, a partir dessas discursividades locais assim descritas, os saberes dessujeitados que daí se desprendem” (FOUCAULT, 2005, p. 16). Pode-se dizer que a arqueologia faz a escavação na história, ao passo que a genealogia trata de descrever as emergências, em que as práticas discursivas e não-discursivas são analisadas.

7Todo ente possui uma “imagem” (utupë a, pl. utupa pë) do tempo das origens, que os xamãs podem “chamar”, “fazer descer” e “fazer dançar” enquanto “espírito auxiliar” (xapiri a). Esses seres-imagens (“espíritos”) primordiais são descritos como humanóides minúsculos paramentados com ornamentos e pinturas corporais extremamente luminosos e coloridos. Entre os Yanomami orientais, o nome desses espíritos (pl. xapiri pë) designa também os xamãs (xapiri thë pë). Praticar o xamanismo é xapirimuu, “agir em espírito”, tornar-se xamã é xapiripruu, “tornar-se espírito”. O transe xamânico, consequentemente, põe em cena uma identificação do xamã com os “espíritos auxiliares” por ele convocados. (KOPENAWA; ALBERT, 2015, p.610).

8Viveiros de Castro (2020, p. 309-310) aponta que “o perspectivismo ameríndio está associado a duas características recorrentes na Amazônia: a valorização simbólica da caça, e a importância do xamanismo. [...] O xamanismo é um modo de agir que implica um modo de conhecer, ou antes, um certo ideal de conhecimento. Tal ideal é, sob vários aspectos, o oposto polar da epistemologia objetivista favorecida pela modernidade ocidental.”

9La falta de silencio lleva consigo este primer mal, la imposibilidad de escuchar. Pues es una sordera voluntaria de personas, a mi ver, que reprochan a la naturaleza por tener una sola lengua y dos oídos.”

10Ong (1998, p. 9) compreende “culturas orais primárias” como aquelas “culturas que ignoram completamente a escrita”.

11Ocorre, segundo Carreto (2016, p. 25), “entre o início do século XII e meados do século XV, um certo desgaste devido à generalização da escrita (e não da leitura) no seio da cultura ‘mista’ que define o Ocidente medieval”.

12“O reahu, grande festa intercomunitária, é ao mesmo tempo uma cerimônia de aliança política e um ritual funerário.” (KOPENAWA; ALBERT, 2015, p. 613).

Recebido: 07 de Julho de 2022; Aceito: 06 de Setembro de 2022

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons