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Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade

versión impresa ISSN 0104-7043versión On-line ISSN 2358-0194

Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade vol.31 no.68 Salvador oct./dic 2022  Epub 13-Ene-2023

https://doi.org/10.21879/faeeba2358-0194.2022.v31.n68.p103-116 

Artigos

CONTAÇÃO DE HISTÓRIAS PARA, COM E POR CRIANÇAS NA ESCOLA DA INFÂNCIA

CUENTOS PARA, CON Y POR NIÑOS EN LA ESCUELA DE INFANCIA

Débora Cristina Sales da Cruz Vieira*  Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal
http://orcid.org/0000-0003-1954-6700

*Mestre em Educação pela Universidade de Brasília (UnB). Professora da educação básica na Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal. Brasília-DF, Brasil. E-mail: deborasalesvieira19@gmail.com


RESUMO

Este artigo propõe a análise de performances narrativas de crianças pequenas produzidas na oficina lúdica “Caixinha de guardar o tempo”, realizada presencialmente em dezembro de 2021, em quatro instituições públicas de Educação Infantil localizadas em regiões periféricas do Distrito Federal. Estabelece-se um diálogo entre saberes da Teoria Histórico-Cultural, dos Estudos Sociais da Infância e dos Estudos da Performance como aporte teórico, para discutir a potência da contação de histórias por crianças pequenas na escola da infância, em uma perspectiva de partilha dialógica. O percurso metodológico foi trilhado a partir da etnografia performativa com práticas artístico-pedagógicas de mediação de leitura e contação de histórias, abrindo espaço e tempo para a criação e materialização das performances narrativas das crianças pequenas, com a gravação em áudio, transcrição e produção da obra Crianças Narradoras. Destaca-se a compreensão das formas singulares como crianças pequenas criam e (re)criam, com autoria, as histórias narradas em contextos educativos, que se evidenciam como prática performativa de produção de culturas na infância.

Palavras-chave: infância; educação infantil; performance; contação de histórias; experiência estética

RESUMEN

En este artículo propongo el análisis de performances narrativas de niños pequeños producidas en el taller lúdico “Caixinha de guardar o tempo”, realizado de manera presencial en diciembre de 2021, en cuatro instituciones públicas de Educación Infantil ubicadas en regiones periféricas del Distrito Federal. Establezco un diálogo entre saberes de Teoría Histórico-Cultural, Estudios Sociales de la Infancia y Estudios de Performance como aporte teórico, para discutir el poder de la narración de niños pequeños en la escuela infantil, en una perspectiva de compartir dialógica. El curso metodológico se basó en la etnografía performativa con prácticas artístico-pedagógicas de mediación de lectura y narración, abriendo espacio y tiempo para la creación y materialización de performances narrativas por parte de niños pequeños, con grabación de audio, transcripción y producción de la obra Crianças Narradoras. Destaco la comprensión de los modos singulares en que los niños pequeños crean y (re)crean, con autoría, los cuentos narrados en contextos educativos, que se evidencian como una práctica performativa de producción de culturas en la infancia.

Palabras clave: infancia; educación infantil; performance; cuentacuentos; experiencia estética

ABSTRACT

This article proposes the analysis of narrative performances of young children produced in the playful workshop “Caixinha de guardar o tempo”, held in person in December 2021, in four public institutions of Early Childhood Education located in peripheral regions of the Distrito Federal. A dialogue is established among knowledge from Historical-Cultural Theory, Social Studies of Childhood and Performance Studies as a theoretical contribution, to discuss the power of storytelling by young children in childhood school, in a perspective of dialogic sharing. The methodological course was based on performative ethnography with artistic-pedagogical practices of mediation of reading and storytelling, opening space and time for the creation and materialization of narrative performances by young children, with audio recording, transcription and production of the work Crianças Narradoras (Children Narrators). The understanding of the unique ways in which small children create and (re)create, with authorship, the stories narrated in educational contexts stands out, which are evidenced as a performative practice of production of cultures in childhood.

Keywords: childhood; child education; performance; storytelling; aesthetic experience

Para começo de conversa1

Além do conteúdo da história, os contos e a voz são o pretexto para manter os seres queridos literalmente presos a essa trama de palavras que dá conta da odisseia humana de construção de sentido. (REYES, 2021, p. 16).

O texto em epígrafe, da escritora colombiana Yolanda Reyes, destaca a trama de palavras narradas e ouvidas que constituem o evento narrativo de contação de histórias, evocando a dimensão ontológica do processo de desenvolvimento da linguagem, no ser e estar no mundo, permeado por palavras. É no encontro afetuoso com as pessoas que contam histórias que vamos nos constituindo como contadoras e contadores de histórias, nessa perspectiva recursiva e dialógica da linguagem.

Neste artigo proponho a análise de performances narrativas de crianças pequenas produzidas na oficina lúdica “Caixinha de guardar o tempo”, realizada presencialmente em dezembro de 2021, em quatro instituições públicas de Educação Infantil, localizadas em regiões periféricas do Distrito Federal. Estabeleço um diálogo entre saberes da Teoria Histórico-Cultural, dos Estudos Sociais da Infância e dos Estudos da Performance (BAUMAN, 2014; BAUMAN; BRIGGS, 2006; GIRARDELLO, 2014, 2018; HARTMANN, 2021; HARTMANN; SOUSA; CASTRO, 2020; PINTO; SARMENTO, 1997; VIGOTSKI, 2003, 2018) como aporte teórico para discutir a potência da contação de histórias por crianças pequenas na escola da infância, em uma perspectiva de partilha dialógica.

O percurso metodológico foi trilhado a partir da etnografia performativa (HARTMANN, 2021), por meio de práticas artístico-pedagógicas de mediação de leitura e contação de histórias, abrindo espaço e tempo para a criação e materialização das performances narrativas das crianças pequenas colaboradoras da pesquisa com a gravação em áudio, transcrição e produção da obra Crianças Narradoras.

O artigo está dividido em quatro seções: a) “Contação de histórias - experiência estética na escola da infância”, onde abordo a potencialidade desta arte para a emergência de experiências estéticas em contextos educativos; b) “Performance narrativa - uma lente teórica para as narrativas orais de crianças pequenas”, em que apresento um breve histórico e princípios do conceito de performance narrativa; c) “O percurso metodológico com as crianças pequenas - de ouvintes a contadoras de histórias”, na qual situo os cenários, participantes e instrumentos da pesquisa empírica; d) “As crianças pequenas como autoras de histórias contadas na escola da infância”, seção em que analiso três performances narrativas de crianças colaboradoras da pesquisa, enfocando o texto narrado e o contexto do evento narrativo.

Contação de histórias - experiência estética na escola da infância

Ouvir e contar histórias são atividades culturais ancestrais, pois desde que a humanidade começa a operar com a palavra há algo a ser contado e que é ouvido por alguém em sua convivência comunitária (ROGOFF, 2005). Coadunando com a perspectiva dialógica que envolve esta prática, a contadora de histórias Kiara Terra (2021) diz que “uma história contada acorda a história do outro”, ou seja, a prática de contação de histórias extrapola o campo linguístico e se constitui como um momento de encontro estabelecido pela emocionalidade e pela subjetividade das pessoas envolvidas nesta experiência estética. Nesse sentido, concordo com Sonaly Torres Silva Gabriel (2021, p. 71), que ao conceituar contação de histórias define-a como “uma prática multissensorial, que envolve interações dinâmicas e simultâneas entre diversas potências corporais, sensoriais, espaço-temporais, a fim de criar uma experiência expressiva e emotiva”.

A linguagem das crianças é um elemento-chave para revelar as culturas infantis, o que elas falam e como falam para interpretar as referências da realidade, ressignificar objetos e conceitos, reelaborar vivências, ler a atuar no mundo. As falas das crianças são reveladoras dos seus modos de ser, pensar e agir. Por meio da linguagem, as crianças dão forma ao conteúdo das experiências infantis. (BRASIL, 2016, p. 62).

A experiência vivida oferece os elementos necessários às narrativas, de modo que vão sendo passadas boca a boca, e esse tipo de narrativa se constitui como a fonte a que recorreram todos os narradores, conforme afirma Walter Benjamin (2012). Nesse sentido, o narrador agrega a esta narrativa elementos da sua experiência, e da experiência dos ouvintes, e este movimento narrativo possibilita ao narrador, ou contador de histórias, articular suas experiências e imaginação na narrativa, que, de certo modo, mobiliza a atenção dos seus espectadores. “O narrador retira o que conta da própria experiência: da sua própria experiência ou da relatada por outros. E incorpora por sua vez, às coisas narradas a experiência dos ouvintes.” (BENJAMIN, 2012, p. 216).

É relevante diferenciar as ações de ler e contar histórias para crianças na escola da infância, como alerta Ana Neila Torquato (2022, p. 27), pois “[...] na contação de histórias, a apresentação da narrativa acontece por meio da oralidade, expondo histórias que foram transmitidas de geração em geração ou que foram lidas anteriormente em algum suporte textual”. Essa autora destaca a memorização e o improviso como estratégias para quem conta histórias, que pode lançar mão ainda de diferentes recursos prosódicos, gestos e objetos para materializar corporalmente a história contada. Contudo, na leitura de histórias “[...] o livro aparece no centro das atenções, pois a intenção é apresentar a obra conforme sua linguagem original, nas palavras do autor, e a partir daí explorar o objeto livro como bem cultural que guarda a literatura.” (TORQUATO, 2022, p. 27).

Essa autora alerta que não se trata de fazer uma leitura mecânica, sem emoção e ou a utilização de diferentes entonações de voz nos processos de mediação de leitura com as crianças, mas permanecer fiel ao texto escrito por quem criou a obra, pois a escuta da leitura é uma atividade simbólica que é ampliada com a experiência estética das crianças frente às ilustrações do livro de literatura. O documento da Base Nacional Comum Curricular - Educação Infantil (BRASIL, 2017) preconiza que as professoras e os professores considerem fundamentais as práticas discursivas em seus cotidianos na organização do trabalho pedagógico na Educação Infantil, conforme o campo de experiências “Escuta, fala, pensamento e imaginação”:

Na Educação Infantil, é importante promover experiências nas quais as crianças possam falar e ouvir, potencializando sua participação na cultura oral, pois é na escuta de histórias, na participação em conversas, nas descrições, nas narrativas elaboradas individualmente ou em grupo e nas implicações com as múltiplas linguagens que a criança se constitui ativamente como sujeito singular e pertencente a um grupo social. (BRASIL, 2017).

Nesse sentido, a escola da infância, como espaço relacional, é um ambiente privilegiado para ouvir e contar histórias. Todavia, ainda

[...] é necessário um engajamento das e dos profissionais da educação para que se organize como uma comunidade narrativa genuína, potencializando práticas dialógicas autênticas entre crianças e adultos, que superem os procedimentos de docilização dos corpos infantis e silenciamento de suas vozes no cotidiano da Educação Infantil. (VIEIRA, 2022, p. 83).

A comunidade narrativa é “um grupo de pessoas que compartilham histórias oralmente, quer sejam histórias de sua vida e experiências importantes, ou ainda, histórias presentes nos livros de literatura infantil” (OLIVEIRA, 2016, p. 68). E assim as histórias contadas pelas crianças pequenas das regiões administrativas da Cidade Estrutural, Planaltina, Recanto das Emas e Riacho Fundo 2 criaram uma circularidade de gestos, vozes e eventos que nos constituíram uma comunidade narrativa, ocupando os tempos e os espaços possíveis na escola da infância, sem desconsiderar os tensionamentos próprios do processo empírico, sobretudo em um período pandêmico.

Contar e ouvir histórias em uma roda não é uma partilha só no plano da linguagem, é também uma troca que se dá através do próprio ar que se respira, pelo sopro compartilhado em que vibra a voz de quem fala no ouvido de quem escuta, pelo calor físico gerado pelos gestos de quem conta e de quem reage, pela vibração motriz involuntária - arrepios, suspiros, sustos - causadas pelas emoções que a história desencadeia. A partilha narrativa que aí ocorre é um respirar junto, íntimo e irrepetível, um tipo de conspiração. (GIRARDELLO, 2014, p. 69).

Ao contarem suas histórias inventadas, recontadas e vividas sentadas em roda, as crianças pequenas assumem o protagonismo e se expressam com autoria através de suas vozes e seus corpos, como produção de culturas infantis. Isso se constitui um desafio no cotidiano da Educação Infantil, como pondera Regina Jodely Rodrigues Campos Aguiar (2020, p. 128) ao problematizar que as professoras e os professores da escola da infância “[...] sabem da importância de ouvir as crianças, mas acabam limitando-se à previsibilidade, ao que está posto seja porque é mais cômodo ou porque a esperança do novo anda adormecida”. Desse modo, é fundamental que as/os profissionais da Educação Infantil organizem o trabalho pedagógico de modo a contemplar espaços e tempos para a contação de histórias partilhadas entre adultos e crianças, adjetivados pela autora Gilka Girardello (2014) como uma clareira no bosque.

Desse modo, destaco que esses momentos de escuta de histórias na escola da infância sejam compreendidos como espaços de experiências estéticas singulares para as crianças e adultos envolvidos, pois como Jorge Larossa Bondía (2002, p. 21) afirma, a partir dos escritos de Walter Benjamin, “a experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca”, destacando o caráter de subjetivação e de significação dos sujeitos frente aos acontecimentos cotidianos, e às vivências estéticas. Lev Vigotski (2003) evidencia que as experiências estéticas criam um estado muito sensível para ações posteriores e deixam marcas no comportamento humano, de modo que a arte reverbera na existência dos sujeitos de maneira singular.

Performance narrativa - uma lente teórica para as narrativas orais de crianças pequenas

Neste artigo parto da perspectiva de performance de Richard Bauman (2014, p. 8) como uma comunicação habilidosa, delimitada pelo autor na poética da performance, “com uma ênfase especial nas relações que ligam a forma linguística, a função social e o significado cultural” da linguagem oral. Esse autor explica que o conceito de performance emergiu como um princípio organizador conceitual na etnografia da fala nos anos de 1960, sendo utilizado como um termo alternativo para prática discursiva. Contudo, conforme iam avançando as discussões e construções teóricas, a performance foi sendo compreendida também como realização criativa e prática. Todavia, Bauman (2014, p. 733) atenta para a tomada de posição recíproca evocada pela performance narrativa.

Isto é, a pessoa que faz a performance, ao invocar o enquadramento (frame) da performance, adota uma determinada postura reflexiva, ou alinhamento, para seu ato de expressar-se, assumindo responsabilidade por uma exposição de habilidade e eficácia comunicativas. Cada comunidade terá seus próprios enquadramentos (frameworks) orientadores metapragmáticos por meio dos quais um indivíduo poderá projetar-se para o público.

Em outro artigo, em parceria com Charles L. Briggs (BAUMAN; BRIGGS, 2006, p. 189), os autores afirmam que os estudos de performance podem contribuir para uma reflexão crítica sobre os processos comunicativos, pois uma performance está ligada a diversos eventos de fala que a precedem e sucedem, de modo que a análise de uma performance “requer então estudos etnográficos sensíveis a como sua forma e significado são índices de uma gama mais ampla de tipos de discurso, alguns dos quais não são enquadrados como performance”.

Diante do desafio da análise de performances citado por esses autores, há uma divergência na literatura sobre a ênfase no texto e no contexto, e as dimensões e limitações em uma perspectiva analítica dicotômica, contudo há um movimento de deslocamento da ênfase no contexto para a contextualização:

Para evitarmos reificar ‘o contexto’ é necessário estudar os detalhes textuais que iluminam a maneira como os participantes constroem coletivamente o mundo ao seu redor. Por outro lado, tentativas de identificar o significado dos textos, performances ou gêneros inteiros em termos de conteúdos puramente simbólicos e independentes do contexto desconsideram a multiplicidade de conexões indiciais que permitem que a arte verbal transforme, e não simplesmente reflita, a vida social. Afirmar que pesquisadores devem escolher entre análises de padrões poéticos, interação social ou contextos sociais e culturais mais amplos é reificar cada um destes elementos e impedir uma análise adequada de qualquer um deles. (BAUMAN; BRIGGS, 2006, p. 201).

Há permeabilidade entre as narrativas infantis, de modo que as histórias narradas por crianças materializam as histórias narradas para crianças, destacando que as culturas infantis são produzidas constantemente a partir de um viés narrativo adultocêntrico. Ou seja, os livros literários, filmes, desenhos animados e programas de TV são criados por adultos e direcionados às crianças, como destaca Guilherme Fians (2015). Ressalto que o contexto social possui um papel essencial junto ao mecanismo psicológico da imaginação e da atividade criadora a que estão relacionadas as práticas discursivas, entendendo que este mecanismo pode ser compreendido a partir da vinculação existente entre elementos da fantasia e da realidade das crianças materializadas em suas narrativas, como afirma Paula Oliveira (2016).

Corroborando com as autoras e os autores citados, considerarei as duas dimensões (textuais e contextuais) das performances narrativas das crianças pequenas, sobretudo por concordar com Paul Zumthor (2018, p. 62, grifo nosso) que a performance “[...] é um ato de presença no mundo e em si mesma. Nela o mundo está presente”. O caráter recursivo da performance é presente também na abordagem de Dell Hymes, comentada por Zumthor (2018, p. 31), na qual a performance se situa num contexto cultural e situacional, pois “[...] ela aparece como uma ‘emergência’, um fenômeno que sai desse contexto ao mesmo tempo em que nele encontra lugar”.

A performance narrativa articula dois planos dialeticamente, o do contador de histórias que cria ao narrar a história com sua voz, presença e imaginação, e o plano da plateia, que cria ao produzir sentidos sobre a experiência estética vivenciada na escuta da história narrada. Desse modo, narrar não está restrito aos aspectos linguísticos, cognitivos, mentais, nem somente às produções que constituem valores socioculturais de um conjunto de pessoas. Narrar como performance vivenciada envolve a produção ativa simbólico-emocional de quem vive essa experiência e produz individualmente para singularizá-la como sua.

O percurso metodológico com as crianças pequenas - de ouvintes a contadoras de histórias

Pesquisar as narrativas de crianças pequenas em espaços de escolarização tem sido parte de minha experiência como professora da educação básica e pesquisadora das/com as infâncias. Todavia, a pandemia da Covid-19, o isolamento social e o ensino remoto, híbrido e presencial neste período histórico colocaramme em contato com uma nova escola da infância e os inúmeros desafios epistemológicos de pesquisa que emergiram nesse contexto. Neste artigo apresento parte da tese de doutorado em andamento no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade de Brasília, que investiga as percepções de crianças pequenas de seus contextos sociais, por meio de suas próprias narrativas, em instituições públicas de Educação Infantil do Distrito Federal.

Ao vivenciar essa experiência juntamente com as crianças e as colegas professoras das quatro escolas pesquisadas (Ipê Amarelo, Ipê Roxo, Ipê Rosa e Ipê Branco),2 fui afetada de modo singular, pois os tempos e os espaços da Educação Infantil foram reconfigurados, bem como os fazeres docentes e a ação das crianças pequenas em contextos educativos. De tal forma que muito do que se “sabia” sobre ser docente na escola da infância foi substituído pelas novas condições materiais e objetivas, explicitando as fragilidades do atendimento educacional às crianças pequenas durante a pandemia de Covid-19.

A pesquisa empírica foi realizada com quatro turmas de 2º período, compostas por crianças com faixa etária entre 5 e 6 anos, em quatro unidades escolares públicas de Educação Infantil localizadas em regiões periféricas do Distrito Federal: Cidade Estrutural, Planaltina, Recanto das Emas e Riacho Fundo 2, durante os meses de maio a dezembro de 2021, delineada em uma abordagem etnográfica performativa (HARTMANN; SOUSA; CASTRO, 2020) por meio de práticas artístico-pedagógicas de mediação de leitura e contação de histórias em contexto virtual e presencial.

A ampliação dos direitos da criança à participação não pode ignorar a diversidade de contexto em que as crianças vivem; não podem ter um caráter de universalidade; devem considerar as crianças reais, em seu cotidiano, com as suas experiências diárias de vida carregada de conflitos e contradições. (OLIVEIRA, F., 2015, p. 15, grifo nosso).

Coadunando com os princípios elencados por essa autora, procurei desenvolver uma abordagem metodológica ampliando a participação das crianças no processo empírico. Nesse sentido, optei por fundamentar-me pela etnografia performativa (HARTMANN; SOUSA; CASTRO, 2020), que preconiza a ampliação das ações de observação e participação da etnografia tradicional, na qual a dimensão artística (performativa) se engendra na produção dos sujeitos colaboradores da pesquisa, neste caso as crianças pequenas, no movimento epistemológico em performance. Para essas autoras e o autor, a performance é “[...] como algo que ocorre na interação humana e que é capaz de gerar transformações em quem a executa e em quem a observa [...]” (HARTMANN; SOUSA; CASTRO, 2020, p. 258). É no encontro da tríade pesquisador, sujeitos colaboradores e experiência estética vivida no processo empírico que a etnografia performativa avança para uma epistemologia ativa e viva no cenário de pesquisa, na qual é possível acessar múltiplas dimensões simbólicas das crianças colaboradoras da pesquisa.

No nosso caso, acreditamos que a investigação por meio de práticas estéticas, lúdicas, performáticas permite constatar coletivamente como determinados comportamentos, ações e discursos são gerados e transmitidos, conferindo aos atores envolvidos uma percepção em relação a sua própria situação social. (HARTMANN; SOUSA; CASTRO, 2020, p. 258).

Como já foi dito anteriormente, a pesquisa empírica se deu nessa perspectiva epistemológica, em que tentei romper com as hierarquias intergeracionais hegemonicamente constituídas, mantendo, assim, o movimento dialógico presente e constante, favorecendo o estabelecimento de relações menos assimétricas entre a pesquisadora e as crianças pequenas, colaboradoras da pesquisa, no qual pudessem opinar, escolher e rever estratégias metodológicas coletivamente. Os seguintes instrumentos foram utilizados durante o processo de investigação: a) observação participante; b) dinâmicas conversacionais; c) oficinas de histórias; d) oficinas de atividades lúdicas; e) registros escritos, pictóricos e audiovisual da produção narrativa das crianças pequenas. Busquei construir uma unidade teórico-metodológica com a indissociabilidade entre teoria e prática nos processos dialógicos da pesquisa, nos quais a participação das crianças pequenas fosse marcadamente presente nos fazeres da pesquisa, constituindo-as como copesquisadoras de histórias narradas na escola da infância.

Neste artigo abordarei três histórias contadas pelas crianças na oficina “Caixinha de guardar o tempo”, realizada em dezembro de 2021. No início da oficina perguntei para as crianças pequenas se gostariam de produzir um livro com as histórias narradas por elas, e a proposta foi bem aceita por todas. Expliquei como seria o processo de produção do livro e informei que no final do projeto Crianças Narradoras plantaríamos juntos uma muda da árvore ipê da cor referente à escola, e que seria identificada na pesquisa como celebração pela finalização da obra, e presentearíamos a escola com um exemplar do livro.

A atividade lúdica realizada com as crianças pequenas a partir da leitura do livro de literatura Caixinha de guardar o tempo, escrito pela autora Alessandra Roscoe (2012), que narra a história de Sofia, que guardava suas memórias em uma caixa, foi inspirada no jogo do limão.3 Para a dinâmica narrativa fluir, as crianças pequenas estavam sentadas em círculo no chão da sala de referência, uma caixa de madeira passava de mão em mão ao som de uma música escolhida e cantada pelas crianças, e quando acabava, a criança que estivesse com a caixa na mão era convidada a contar a história que quisesse para as crianças pequenas da sua turma.

As histórias narradas pelas crianças pequenas foram gravadas em áudio, transcritas e revisadas por mim para a elaboração do livro Crianças Narradoras, que contou ainda com as ilustrações feitas pelas crianças, fotos e algumas informações pessoais sobre elas. Foram compiladas no total 57 histórias contadas pelas crianças nas quatro instituições educativas pesquisadas. A obra foi impressa em uma gráfica, dividida em quatro volumes, um para cada escola. Os exemplares de cada escola foram distribuídos para as pequenas autoras e os pequenos autores no término da pesquisa empírica, concomitantemente ao encerramento do ano letivo de 2021.

As crianças pequenas como autoras de histórias contadas na escola da infância

A concepção de autoria presente nesta pesquisa ancora-se na dimensão dialógica de Mikhail Bakhtin (1895-1975), pois “[...] o sentido das histórias contadas oralmente não está só no enredo, nem no narrador, nem no ouvinte, mas na centelha do encontro que ocorre no evento único de cada performance” (GIRARDELLO, 2018, p. 80). Nesse sentido, a autoria, que “[...] durante muito tempo foi desconsiderada ao se tratar de formas orais, volta a ganhar espaço, pois é como autores que essas crianças-performers, quando incentivadas, se apropriam de diferentes estratégias do narrar, revelando-se e identificando-se por meio destas frente ao grupo” (HARTMANN, 2021, p. 84). A participação das pessoas adultas como interlocutoras das crianças pequenas é fundamental no processo inicial de desenvolvimento do discurso narrativo. O jogo do contar (PERRONI, 1992), que se constitui a partir das perguntas indutoras dos adultos às crianças, funciona como estratégia dialógica intergeracional na produção narrativa. Entretanto, considero crucial a disponibilidade para a escuta das crianças pelos adultos para potencializar as produções simbólicas infantis. “Nos primeiros esboços de narrativa e faz de conta da criança, a escuta atenta do adulto funciona como incentivo e sustentação, até que a criança assume a palavra, convoca o adulto para o diálogo e, pela palavra, cria situações imaginárias.” (BRASIL, 2016, p. 89).

Como adulta escutadora de histórias4 de crianças, selecionei três histórias contadas por crianças pequenas no projeto Crianças Narradoras para um exercício de análise que acomode a dupla dimensão textual e contextual do evento narrativo (BAUMAN, 2014). Compreendo que a atividade criadora é “[...] aquela em que se cria algo novo. Pouco importa se o que se cria seja algum objeto do mundo externo ou uma construção da mente ou do sentimento, conhecida apenas pela pessoa em que essa construção habita e se manifesta” (VIGOTSKI, 2018, p. 13), sendo histórica e culturalmente situada como produção de culturas infantis, e materializa as infâncias plurais, constituídas por marcadores sociais como classe, raça e gênero, que se interseccionam com a categoria geracional.

Ariel

Era uma vez uma princesa que se chamava Ariel. E ela era tão sozinha. Ela ficava sem os pais. Aí em dia ela viu um monte de dragões. E mataram ela. Mas um dia ela ficou bem feliz porque ela tinha pai, mãe, irmãos, princesa e uma bonequinha. E teve um dia em que aconteceu uma coisa bem ruim com ela. A mãe dela deixou ela sozinha. E a mãe dela estava no mercado. Aí ela procurou ela por todos os lugares. Ela sumiu. Aí um dia, a Branca de Neve viu ela, que estava chorando. Daí a Branca de Neve falou: ‘Cadê a sua mãe?’ e ela disse: ‘Eu não sei onde que ela está.’ Aí um dia aconteceu uma coisa com ela. As portas da casa dela fecharam todas e ela ficou sem sair com as amigas. E fim. (NICOLLY, 5 anos, Escola Ipê Amarelo).

Nicolly é uma menina negra, moradora do Riacho Fundo 2, comunicativa com adultos e crianças na escola da infância. Desenvolveu uma relação próxima comigo durante o período da pesquisa empírica presencial, no qual conversávamos sobre diversos assuntos a partir das dinâmicas conversacionais. Ela gostava de sempre relembrar que não morava no Riacho Fundo 2, mas no Jardim Ingá,5 e que estava “passando um tempo na casa da madrinha”. Ao contar a sua história para mim e para as crianças, ela utiliza diferentes recursos suprassegmentais como pausas, alterações do timbre da voz para caracterizar as personagens, evocando a presença de seus ouvintes através do contato visual.

A narrativa de Nicolly apresenta de forma sincrética elementos de contos de fadas e de situações cotidianas vividas por crianças pequenas e está dividida em três partes: a) a princesa Ariel era sozinha, sem família e foi atacada e morta por dragões; b) Ariel ficou feliz porque tinha uma família e uma boneca, mas sua mãe a deixou sozinha em casa; c) Ariel ficou presa em casa sem poder sair e ver outras pessoas. A ausência, a solidão e o abandono da família fazem parte da trajetória de Ariel, que embora tenha nome de princesa e uma amiga chamada Branca de Neve, está longe do final feliz, marcado pela célebre frase “E viveram felizes para sempre”, vivenciado nos contos de fadas. O desaparecimento da mãe coloca Ariel em busca de possibilidades de encontro com ela, todavia esse encontro não se concretiza e o desfecho da história é marcado pela impossibilidade de encontrar com outras pessoas, devido às portas da casa que se fecharam. Ariel inicia e finaliza a história sozinha, e a solidão é configurada como algo negativo pela autora Nicolly.

Os elementos fantásticos na narrativa como os dragões e as portas mágicas trazem sofrimento para a princesa Ariel com a morte e aprisionamento, assim como os elementos cotidianos, como a mãe deixar uma criança sozinha em casa para ir ao mercado, sobretudo em tempos de isolamento social. Como uma história inventada, os processos imaginativos de Nicolly são materializados em performance ao criar essa narrativa, que engendra elementos da realidade vivenciada por crianças pequenas no período pandêmico, como a morte, a solidão, o abandono e o isolamento social. Nesse sentido, reitero a autoria narrativa das crianças pequenas na escola da infância como uma possibilidade de interlocução entre adultos e crianças, diminuindo as hierarquias intergeracionais ao aproximá-los dos contextos vivenciados nas infâncias.

As histórias inventadas pelas crianças pequenas estão sedimentadas nos processos imaginativos que constituem as suas performances narrativas, na indissociabilidade entre as dimensões emocionais e intelectivas e na base material de tais processos. As temáticas abordadas pelas crianças contadoras de histórias em suas performances narrativas foram diversas, envolvendo personagens da cultura infantil, animais e pessoas de suas comunidades, e apresentam um panorama simbólico das infâncias pesquisadas.

Malévola

Era uma vez um rei e uma rainha que tiveram uma filha, até que a Malévola estava chegando ao seu reino e todos tiveram que abandonar a sua filha. Aí a Malévola decidiu fazer uma poção para todos os súditos dela tomarem, até que ela destruiu o reino de sua linda bebê. Até que ela cresceu e virou uma mulher bem linda. Ela dançou com os príncipes em uma floresta bem linda, com rios e águas. E também ela foi até o castelo em sua Malévola e pegou sua voz de volta, porque tirou sua voz. Ela adormeceu. O príncipe beijou ela, do amor verdadeiro e os dois viveram felizes para sempre. (SOPHIA, 5 anos, Escola Ipê Amarelo).

Sophia é uma menina branca, moradora do Riacho Fundo 2, extremamente comunicativa com os adultos e as crianças na escola da infância. Ao contar a sua história para mim e para as crianças, também utiliza diferentes recursos suprassegmentais como pausas, alterações do timbre da voz para caracterizar o encandeamento dos fatos narrados na história, evocando a presença de seus ouvintes através de gestos e expressões faciais diversas.

A narrativa de Sophia é um reconto oral, compreendido aqui como “uma atividade complexa, que envolve três processos psicológicos distintos (emoção, memória e imaginação) de maneira articulada que se expressam em unidade na produção narrativa da criança” (VIEIRA, 2021, p. 176). Nesse sentido, percebi que os recontos orais realizados pelas crianças colaboradoras da pesquisa estavam sedimentados em outras produções culturais como os contos de fadas, e em produtos da indústria audiovisual como os filmes da Disney, séries da Netflix e jogos de videogame. As crianças reelaboraram criativamente os enredos, e as personagens, em suas performances narrativas ao recontarem histórias na escola da infância.

Sophia apresenta um domínio do enredo do filme Malévola (2014),6 estrelado pela atriz estadunidense Angelina Jolie, que apresenta uma nova versão dos fatos da história do conto clássico A Bela Adormecida (Irmãos Grimm) pela ótica da bruxa, antagonista da personagem principal. Ao escolher contar essa história para seus colegas e para fazer parte do livro, é possível inferir que o filme é uma referência cultural importante para a menina, bem como o mundo dos contos de fadas, como se pode perceber através do vocabulário dela, como as palavras: “reino”, “súditos” e as expressões: “Era uma vez”, “beijo de amor verdadeiro” e “viveram felizes para sempre”.

O conto de fadas se constitui em objeto de expressão da emocionalidade, é um facilitador na organização de sentimentos e é o constante ir e vir naquilo que nos desperta encantamento, que toca a essência do ser com uma força que nos move neste mundo fantástico, que só experimenta aquele que se permite vivenciar a imaginação. (SILVA; VIEIRA, 2018, p. 87).

Assim como no texto original do conto clássico, na história de Sophia é o sono encantado que aproxima a princesa do encontro com seu príncipe, o beijo e o “felizes para sempre” tão aguardado no universo dos contos de fadas. Entretanto, o conflito do feitiço da tomada da voz da princesa por Malévola é solucionado pela própria princesa, que a recupera na ida ao castelo. Ou seja, a agência da princesa é demarcada na história contada pela menina, opondo-se à representação passiva da Bela Adormecida no conto clássico. A escolha de Sophia pelo reconto oral do filme Malévola (2014) pode ser compreendida como a preferência da criança por enredos nos quais a lógica dicotômica de caráter de personagens de contos de fadas é borrada pela complexidade, percebida no drama da Bela Adormecida, que tem sua vida transformada pela ação da bruxa Malévola. A princesa rompe com a passividade e a sua antagonista é humanizada ao ter seu sofrimento e afetos representados no filme.

Meu cachorrinho Caio

Eu estava brincando com o meu cachorrinho. Aí meu cachorrinho caiu lá do teto. Caiu dentro da água no poço, no rio. Ele caiu lá dentro e afundou. E ele não conseguiu respirar. Aí ele foi para o médico de cachorro e ele disse que não conseguiu fazer nada pelo cachorro. Aí então, ele jogou o cachorro no lixo. O nome do meu cachorro era Caio. (ANA VITÓRIA, 5 anos, Escola Ipê Rosa).

Ana Vitória é uma menina branca, moradora da Cidade Estrutural, um pouco tímida na interação com os adultos e as crianças na escola da infância. Ao contar a sua história para mim e para as crianças, ela utiliza um fluxo contínuo para narrar os fatos da trágica história do seu cachorro Caio, com um tom baixo de voz, de modo que a sua contação de história se assemelha a uma partilha de um triste segredo, que é revelado para mim e para seus colegas de turma, que permanecem atentos à performance narrativa dela. A história contada de forma sintética por Ana Vitória divide-se em três partes: a) a brincadeira com o cachorro Caio; b) a queda e afogamento do cachorro Caio; c) o atendimento veterinário e a morte do cachorro Caio.

As histórias vividas narradas pelas crianças têm como objetivo manter o equilíbrio viável entre dois planos: o do passado e o do presente. E essas narrativas autobiográficas oferecem materialidade às lembranças das crianças pequenas evocadas via memória, emoção e imaginação, pois “[...] lembrar não é apenas uma ação isolada, mas consiste em recuperar mentalmente pessoas, vivências, histórias, odores, tempos e espaços que não pertencem mais ao presente” (VIEIRA; MADEIRA COELHO, 2018, p. 23). Dessa forma, são suas vidas, seus encontros, alegrias e tristezas que constituem também essa história contada por Ana Vitória, que se diferencia das demais por não ser ficcional. A autora Barbara Rogoff (2005, p. 240) sinaliza que a narração de histórias na infância é uma ação que se constitui em vivência comunitária, pois “[...] as crianças aprendem a utilizar o formato narrativo preferido em sua comunidade para narrar eventos”.

Nesse sentido, reitero que a escola da infância é uma comunidade narrativa por excelência, e que as crianças pequenas necessitam ter assegurados os tempos e espaços na rotina da Educação Infantil para contarem as suas próprias histórias, partilharem suas experiências, mesmo abordando temas fraturantes como o luto, como fez Ana Vitória ao exprimir, através das palavras, a tristeza pela perda do seu cãozinho. Ao escolher partilhar esse evento trágico vivido em vez de relatar episódios felizes ou recontar suas histórias preferidas, a menina nos mostra que o sofrimento também merece ser contado e registrado através das palavras.

Além disso, o estudo das crianças a partir de si mesmas permite descortinar uma outra realidade social, que é aquela que emerge das interpretações infantis dos respectivos mundos de vida. O olhar das crianças permite revelar fenómenos sociais que o olhar dos adultos deixa na penumbra ou obscurece totalmente. Assim, interpretar as representações sociais das crianças pode ser não apenas um meio de acesso à infância como categoria social, mas às próprias estruturas e dinâmicas sociais que são desocultadas no discurso das crianças. (PINTO; SARMENTO, 1997, p. 8).

Ao contar a história para mim e seus colegas, Ana Vitória revive as difíceis emoções, como reelaboração criadora através da oralidade. Diferente das outras autoras, ela não opera com signos das culturas infantis e fantasia, mas com sua própria experiência. A fala do veterinário, chamado por ela de “médico de cachorro”, que “não conseguiu fazer nada pelo cachorro”, já anuncia o trágico final da história de Caio. Com a opção por finalizar a história nomeando o animal, posteriormente ao relato do corpo do cachorro morto sendo jogado na lata do lixo, criou-se a imagem do descarte daquele ser tão amado, do qual ela foi testemunha, de forma impactante para os ouvintes.

Para não concluir

Ao analisar as performances narrativas de Nicolly, Sophia e Ana Vitória como contadoras de histórias na escola da infância, percebo que as três meninas utilizaram diferentes recursos performativos por meio de suas vozes, seus corpos e suas presenças na roda de histórias, bem como na experiência estética singular das crianças pequenas ao ouvirem as histórias contadas. Considerando a noção de agência nas infâncias, “[...] é possível reposicionar as crianças em suas relações com os adultos, compreendendo o que elas criam seu próprio sistema simbólico e fazem suas interpretações do mundo” (HARTMANN, 2021, p. 130). Sejam as histórias inventadas, recontadas ou vividas, estas constituem um universo simbólico de palavras, personagens e enredos que compõem os cotidianos de narrativas orais na Educação Infantil.

Considero importante destacar que as práticas discursivas na escola da infância desempenham um papel fundamental na constituição narrativa das crianças pequenas, que se dá nas relações sociais estabelecidas em colaboração com seus pares e com as pessoas adultas deste espaço educativo. A escuta de histórias é um componente para formar o sentido de pertença em uma comunidade cultural, atribuindo-lhe uma identidade. Não é só contando histórias que nos constituímos narradores, mas também ouvindo as outras pessoas contarem histórias, pois ouvindo suas vozes abre-se a possibilidade de imaginar e recriar a história mentalmente.

O desenvolvimento das capacidades narrativas da mente, do uso imediato da metáfora, de sua integração entre o cognitivo e o afetivo, de sua construção de sentido e significado, têm importância educacional, pois essas capacidades são fundamentais à nossa capacidade de dar sentido à experiência. (EGAN, 2007, p. 23).

Ao abordarem o isolamento social da princesa Ariel, a jornada de superação da Bela Adormecida e a morte do cachorrinho Caio, as meninas operaram por meio das palavras narradas com diferentes referências culturais e com suas experiências particulares, a reelaboração criadora da realidade. Pensar nesta temática é também pensar os territórios periféricos nos quais as instituições educativas pesquisadas estão inseridas, em como as crianças pequenas, sobretudo em um período histórico marcado pela pandemia de Covid-19, produzem esteticamente sentidos singulares sobre seus contextos sociais através de suas próprias narrativas.

Concordo com Lev Vigotski (2003, p. 233) ao afirmar que “[...] a arte não é um complemento da vida, mas o resultado daquilo que excede a vida no ser humano”, pois na arte de contar histórias, a experiência estética vivida pelos ouvintes possibilita o acesso a múltiplas realidades, contextos e culturas por meio das palavras ouvidas, imaginadas e que se tornam corporificadas no momento do encontro no evento narrativo. Destaco a compreensão das formas singulares como crianças pequenas criam e (re)criam com autoria as histórias narradas em contextos educativos, num amálgama complexo de dimensões do desenvolvimento humano, do qual fazem parte essencial emoção, memória e imaginação, não dissociadas do caráter intelectivo e corporal que se evidencia como prática performativa de produção de culturas na infância.

REFERÊNCIAS

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1Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética e Pesquisa das Ciências Humanas e Sociais da Universidade de Brasília (CEP/CHS - UnB), seguindo os protocolos éticos de pesquisa com crianças pequenas, como a assinatura de Termo de Consentimento Livre e Esclarecido por familiares e responsáveis pelas crianças colaboradoras da pesquisa e o Termo de Assentimento Livre e Esclarecido pelas crianças colaboradoras da pesquisa.

2Nomes fictícios.

3Jogo do limão: ao som da canção “O limão entrou na roda, Ele passa de mão em mão, Ele vai ele vem, Ele ainda não chegou, E no meio do caminho, A pessoa pegou!”, um limão passa de mão em mão e quem ficar com o limão na mão no término da música conta uma história. A professora Luciana Hartmann utiliza essa atividade lúdica em rodas de histórias com crianças e adultos e aprendeu a brincadeira com a professora Gilka Girardello (HARTMANN, 2021, p. 156).

4Expressão utilizada pela professora e pesquisadora Ivete Mangueira.

5Jardim do Ingá é um distrito do município goiano de Luziânia, localizado a 34 km de Brasília.

6Malévola é um filme estadunidense de aventura, drama e fantasia. Trailer disponível em: https://www.youtube. com/watch?v=HvRHIiTyqJc.

Recebido: 04 de Julho de 2022; Aceito: 06 de Setembro de 2022

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