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Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade

versión impresa ISSN 0104-7043versión On-line ISSN 2358-0194

Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade vol.31 no.68 Salvador oct./dic 2022  Epub 13-Ene-2023

https://doi.org/10.21879/faeeba2358-0194.2022.v31.n68.p130-147 

Artigos

A PERFORMANCE DA CONTAÇÃO DE HISTÓRIAS: UMA COREOGRAFIA DO PENSAMENTO A PARTIR DAS INFÂNCIAS

THE PERFORMANCE OF STORY TELLING: A CHOREOGRAPHY OF THOUGHT FORM CHILDHOOD

LA ACTUACIÓN DE NARRAR HISTORIAS: UNA COREOGRAFÍA DEL PENSAMIENTO DESDE LA INFANCIA

Thais Braz Duarte*  Universidade Federal da Bahia
http://orcid.org/0000-0003-4386-9964

Cilene Nascimento Canda**  Universidade Federal da Bahia
http://orcid.org/0000-0002-1792-079X

*Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Educação (UFBA). Especialista em Educação Infantil (PUC-RJ) e Relações Étnico-Raciais no Ensino Básico (EREREBA - Colégio Pedro II - RJ). Pedagoga pela UniBF. Participante do grupo Grupo De Estudos e Pesquisas em Filosofia Arte e Educação (FIARE). Salvador, Bahia, Brasil. Email: thaisduarte@ufba.br.

**Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Educação (UFBA). Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGEDU). Vice-coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Currículo, Linguagens e Inovações Pedagógicas/Mestrado Profissional em Educação (MPED) Salvador, BA. E-mail: cilenecanda@yahoo.com.br


RESUMO

A relação entre a contação de história e a educação básica é compreendida em sua dimensão cosmoperceptiva e em referência a princípios de sociedades de tradição oral. A performance se constitui como conceito e fio metodológico para entender acontecimentos do estado brincante ao contar histórias. A metodologia é revestida pelo campo epistemológico da afroperspectividade, assentado em saberes afrocentrados, concebendo a pesquisa como acontecimento que atravessa corpos, memórias e sentidos. São recuperados fios de experiências de performances, para analisar a natureza híbrida e a potencialidade da contação de histórias. Na pesquisa, é dada à criança a voz de seus saberes: atenta aos mistérios, interessada pela magia dos contos e apresenta lições sobre a existência: viver entre a brincadeira e a narrativa, convite profundo a uma compreensão complexa sobre a oralidade que dá corpo à contação de histórias.

Palavras-chave: oralidade; afroperspectividade; performance; contação de histórias; infâncias

ABSTRACT

The association between storytelling and basic education is addressed in its cosmoperceptive dimension and in reference to societies of oral tradition principles. The performance constitutes a concept and a methodological path to understanding the events of a playful attitude when telling stories. The methodology is coated by the epistemological field of Afroperspectivity, based on Afrocentered knowledge, conceiving this research as an event that deeply involves bodies, memories and senses. Threads of performance experiences are retrieved to analyze the hybrid nature and potential of storytelling. In the research, its given to the children the voice of their own knowledge, interested in the mysteries of life and in the magic of tales and lessons about existence: to live between play and narrative, a seriously deep invitation to a complex understanding of orality that fulfills the stories to be told.

Keywords: orality; afroperspectivity; performance; storytelling; education

RESUMÉN

La relación entre narración y educación básica se entiende en su dimensión cosmoperceptiva y en referencia a principios de las sociedades de tradición oral. La performance se constituye como concepto e hilo metodológico para comprender acontecimientos del estado de broma al contar historias. La metodología se ampara en el campo epistemológico de la Afroperspectividad, a partir del saber afrocentrado, concibiendo la investigación como un acontecimiento que atraviesa cuerpos, memorias y sentidos. Se recuperan hilos de experiencias escénicas para analizar la naturaleza híbrida y el potencial de la narración. Se recuperan hilos de experiencias escénicas para analizar la naturaleza híbrida y el potencial de la narración. En la investigación, a los niños se les da la voz de su saber: atentos a los misterios, interesados en la magia de los cuentos y presentando lecciones sobre la existencia: vivir entre el juego y la narración, una profunda invitación a una comprensión compleja de la oralidad que encarna la narración.

Palabras clave: oralidad; afroperspectividad; actuación; narración; infancias

Não era uma vez; nem o fim, talvez1

Eu poderia começar contando do começo, mas essa é uma forma muito comum de contar algo, é o modo ocidental de contar uma história. Começar do começo é sempre caminhar por um caminho linear, e nos ensinaram a pensar obedecendo sempre a esse caminho. É como se não houvesse outro possível. Aliás, há outros tantos possíveis, mas nos acostumaram a seguir uma lógica epistemológica: o ser é e o não ser não é. Um axioma que traz duas verdades aparentemente absolutas: se eu afirmo algo, sua negação é impossível. Simples assim. Acontece que as histórias nem sempre seguem o rumo lógico (MUNDURUKU, p. 21).

Nas sociedades de tradição oral, como as africanas, ou pindorâmicas2, a palavra tem seu lugar sagrado em sentido espiritual, em dimensão educativa, e na herança paciente em transmitir os saberes de boca em boca, ao longo de gerações. Nessas culturas, o modo de existir transita entre o brincar, os cânticos, a celebração das estações com festas de colheita, de plantio, de preparo do solo, de mudanças de ciclos da existência, como, por exemplo, da infância à adolescência, enfim - cada curva dos caminhos da vida é celebrada e, para tanto, é, também, de alguma maneira, narrada. É dessa natureza de brincadeira e narrativa que algumas histórias contadas se anunciam pelo canto, por versos que convidam os ouvintes a se aninharem para o que está por vir - ou por talvez alguma outra maneira, entre tantas possibilidades -, porque a própria história, muitas vezes, quando percebemos, se iniciou mesmo antes do começo.

Em uma história bem contada, há uma esfera ritualística que nasce do exercício brincante de presença, liberdade e confiança profunda no mistério: tudo o que nos ensinam as crianças e, ao mesmo tempo, o que nos ensinam também esses modos de existir que enaltecem a oralidade e, mais que isso, a tomam por escolha como opção cultural de produção do conhecimento (MARTINS, 2021, p. 33). É assim que essa noção ritualista convida o corpo à elaboração do saber e à própria grafia desse saber que, manifestado em corpo, ganha musculatura para ser profanado em palavras, em enredo e narrativa. O corpo narra, portanto. E, a partir dessa experiência viva, é possível dizer que tudo pode ser história: a biologia é a narrativa natural das coisas, a geografia é a história dos territórios, em espaço e gente, terra e cultura etc. E as histórias que guardamos e contamos são, geralmente, atravessadas por inúmeros acontecimentos; por isso, é fundamental “estar à espreita, escutar sensivelmente, deixar que a questão abra os caminhos dos sentidos e os sentidos vão abrindo os seus próprios caminhos, passam a constituir a possibilidade do acontecimento se tornar um evento heuristicamente fecundo” (MACEDO, 2016, p. 34).

Diante dessa empreitada, este texto3 apresenta como objeto a contação de histórias no contexto da educação básica, no sentido de trabalhar as suas nuances, sentidos, acontecimentos e potencialidades na prática educativa. Interessa-nos, a princípio, compreender a complexidade e a natureza híbrida do ato de contar histórias, o que nos leva, diretamente, a um diálogo sobre a formação de educadoras e educadores em espaços escolares e em outros contextos educativos. As sociedades de tradição oral são fonte de inspiração e referência para o assentamento de nossas ideias, o que, para tanto, consideramos as influências político-sociais do legado colonial na realidade brasileira. Nesse sentido, entendemos que os acontecimentos advindos da experiência não são resultados do acaso, mas mediados pelas relações sociais, pois

[...] o acontecimento é engendrado por convenções culturais, encontro social e relações políticas, e são elas que determinarão quais são as lógicas cotidianas de cada local. No encontro, temos que a experiência é construída mutuamente por todas as pessoas presentes, o que faz desmoronar supostas dicotomias entre agir e observar. A eventualidade está também em ritos, contação de histórias e inúmeras outras manifestações sociais (HABIB, 2022, p. 44).

A contação de histórias não se refere apenas ao que nos ensinam as histórias, porque estas não são contadas por uma finalidade, e se encontram para além de uma intenção formativa a partir de um jogo ficcional: o caso das histórias, então, é um caso de muitas vezes - não de uma vez, ou de um fim talvez - tampouco há um fim, posto que se transmutam, são da lógica do “transver o mundo” (BARROS, 2011, p. 357). Quando da natureza da oralidade, nos convidam à próxima, tal como à resiliente natureza das coisas vivas. Então, mais uma vez nos aproximamos da compreensão de performance como marca de uma identidade, de um território, de um tempo, apresentando-se como ritual e como ato corporal que “não tem necessariamente começo, meio e fim pré-definidos, nem a obrigatoriedade de apresentar uma história ou conter diálogos, muito menos é executada necessariamente por personagens” (HABIB, 2022, p. 73).

Diante dessas reflexões iniciais, questionamos: O que é oralidade? Qual sua profunda relação com as histórias contadas? Que relações existem entre histórias contadas, dentro desse universo cosmoperceptivo (OYEWÙMÍ, 2021, p. 29) e as tradições orais? A performance de contação de histórias e o exercício docente podem estar imbricados em um estado brincante, de presença corporificada, plena e integrada na escola; diante disso, que princípios e possíveis acontecimentos evidenciam a natureza complexa do ato de contar histórias? Essas são algumas das perguntas aqui abordadas que nos direcionam ao objetivo geral: analisar a contação de histórias a partir da perspectiva da oralidade, especialmente sob os ensinamentos de Hampâté Bâ. Nesta jornada, especificamente, caminhamos com o intuito de valorizar a infância como terreiro de mistérios do viver: a criança como manifestação de brincadeira e narrativa. Mediante o conhecimento de infâncias, apontamos e analisamos caminhos cosmoperceptivos da oralidade, de modo a ampliar os sentidos e a compreensão complexa da performance de contar histórias na educação. Ainda, buscamos demonstrar, a exemplo do grande Hampâté Bâ, que a contação de histórias é “geradora e formadora de um tipo particular” de ser (BÂ, 2015, p. 171), ensejando-nos refletir sobre a formação e a atuação de educadoras e educadores na educação básica.

Os trajetos metodológicos se compõem como chão fértil deste trabalho, uma vez que entendemos o próprio caminho investigativo como a metodologia: a princípio, fomos em busca de estudos teóricos que nos ensinam sobre as tradições orais - contexto, de certa forma, afastado da nossa experiência de descoberta do saber e produção de conhecimentos. Em seguida, como partimos do convite do corpo à dança destas palavras, ou seja, a própria metodologia que nos acompanha está grafada em nossos corpos, acontecimentos e experiências sensíveis, com vistas a “tratar compreensivamente (sensorial, cognitiva, afetiva, sociocultural, ética, política) com toda a existência se colocando em movimento, em mudança, como uma totalidade em curso, em estado de fluxo” (MACEDO, 2016, p. 29). Nesse sentido, o ato de pesquisar está grafado no caminho que percorremos, mediante a análise de histórias pessoais de atuação como contadoras de histórias em espaços educativos, para elaborar contribuições teóricas e epistemológicas para a performance de contação de histórias, tomando-a como acontecimento (MACEDO, 2016) e como experiência cosmoperceptiva (OYĚWÙMÍ, 2021).

Como opção investigativa, o caminho é, portanto, o próprio processo, nos aproximando de um conceito elaborado pelo filósofo Renato Noguera: a afroperspectividade, abordagem teórica e metodológica que propõe só ser possível pensar através do corpo - uma “coreografia do pensamento” (NOGUERA, 2019, p. 55). Desse modo, o próprio exercício brincante em atuações como contadoras de histórias nos traçou caminhos até aqui, para o desenvolvimento deste trabalho; a entrega em corporeidade e poesia nos levou ao encontro daquilo que Renato Noguera propõe na infância em afroperspectiva: “o objetivo mais radical da existência estaria em nunca esquecermos de nossa infância, daquilo que nos torna seres viventes: a capacidade de reinventarmos a nós mesmos e o mundo de acordo com as necessidades próprias de existir” (NOGUERA, 2019b, p. 66).

Em confluência (BISPO, 2015, p. 68) com Noguera, na rota dos começos já iniciados e dos caminhos do sem-fim, Daniel Munduruku nos desafia um pensar não linear, mas sim em roda. Pensando na educação como roda, espaço/tempo circular e constituído por experiências, voltamos a atenção ao que está no centro dessa roda - a criança! Como ela se coloca no mundo? Que relações produz com as histórias? Quais caminhos misteriosos levam às crianças a confiar tanto nas histórias? Ou as contestarem com veemência? Por que nos pedem “conta de novo?”. Por que insistem: “você não contou assim antes, começa outra vez, contando igual!”? Essas são questões com talvez mais respostas do que seja possível aqui colecionar, mas elas são caras, valiosas, porque nos convidam, ao mesmo tempo, ao campo onírico e ao exercício de pensar pelo corpo - as crianças nos ensinam a pensar a partir do corpo, tal como sociedades de tradições orais. E reverenciamos as duas, em respeito às histórias que nos trouxeram até aqui, e as que nos levarão daqui em diante, por todas as esquinas da existência, ainda que sem fim, talvez.

Coreografias do pensamento4, oralitura e a força dos acontecimentos

Desde a infância, éramos treinados a observar, olhar e escutar com tanta atenção, que todo acontecimento se inscrevia em nossa memória como em cera virgem. Tudo lá estava nos menores detalhes: o cenário, as palavras, os personagens e até suas roupas. Quando descrevo o traje do primeiro comandante de circunscrição francês que vi de perto em minha infância, por exemplo, não preciso me “lembrar”, eu o vejo em uma espécie de tela de cinema interior e basta contar o que vejo. Para descrever uma cena, só preciso revivê-la. E se uma história me foi contada por alguém, minha memória não registrou somente seu conteúdo, mas toda a cena - a atitude do narrador, sua roupa, seus gestos, sua mímica e os ruídos do ambiente, como os sons da guitarra que o griot Diêli Maadi tocava enquanto Wangrin me contava sua vida, e que ainda escuto agora... (BÂ, 2003, p. 13).

Hampâté Bâ, nascido na região das savanas da África ocidental, no atual Mali, grande mestre da transmissão oral, nos convoca a uma profunda reflexão sobre a memória africana, ensinando-nos sobre o que aqui chamamos de “força dos acontecimentos”. Contando a história de seu povo, Bâ parte da história própria - ou elas se confundem, ou se processaram em fusão. O que, aqui, nos é urgente no sentido da amplitude dos sentidos para o ato de ouvir e contar histórias está na atenção que Amkoullel, o menino fula5, inscreve na memória: não é apenas a audição que guarda a história, mas os olhos que a observam, o olfato que guarda o presente, o tato do instante em que foi contada, de modo que, enfim, se trata de uma experiência cosmoperceptiva, tal como também ensina Oyèrónkẹ́ Oyěwùmí (2021).

A socióloga nigeriana de origem iorubá Oyěwùmí traça crítica contundente à lógica cultural do Ocidente que capta o sentido da visão como dominante, explícito no uso do termo “cosmovisão”, e, em contrapartida, propõe a cosmopercepção como “uma maneira mais inclusiva de descrever a concepção de mundo por diferentes grupos culturais” (OYĚWÙMÍ, 2021, p. 29). As cosmopercepções, portanto, protagonizam todos os sentidos, o que vai ao encontro da forma com que Bâ nos conta sobre sua atenção à força dos acontecimentos que envolvem uma narrativa. Desse modo, encaramos aqui a contação de histórias como uma experiência de sentidos, complexa por abraçar o instante, o gesto, a cena, o ritmo, a vestimenta, a presença, o cheiro, o lugar, a palavra - nascedouros de enredos contados. Nesse universo cosmoperceptivo, reside a força de insurgência que nos confere “[...] uma revisão nas noções de representação, considerando os corpos, discursos e brincadeiras das crianças, como criar narrativas, imaginar, dançar e cantar” (HABIB, 2022, p. 154).

Considerando essa abordagem ampla e não hegemônica que se refere aos “sentidos de mundo” produzidos por todo o corpo antes de apenas às “visões de mundo”, no fio da meada a tecer o objeto deste texto, nossa atenção se volta à atuação de educadoras e educadores na educação básica, diante do fenômeno da contação de histórias. Por este caminho, na investigação teórica sobre diferentes maneiras de existir no mundo, encontramos o violento contraponto do legado colonial de aniquilação de territórios - uma vez que aqui consideramos o corpo como território, como comunidade -, porque é um regime de relações, de implicações e, ao mesmo tempo, comunicante: o corpo, por ser o conhecimento encarnado, narra histórias!

Por estratégia colonizatória, a dicotomia entre corpo e mente se instalou nos processos educativos de maneira atroz e, assim, se instituiu que o aprendizado depende de maneiras rígidas de transmissão, dissociadas de todas as formas de sensações e apreensões corporais; para tanto, a voz da corporeidade não condizia com os princípios e propósitos políticos desse contexto de educar e aprender. Ainda a respeito dessa fragmentação entre corpo, mente e espírito, Muniz Sodré, na explanação de uma filosofia nagô a toque de atabaques, assim afirma:

[...] o universalismo cristão, incrustado no universalismo da cultura, construiu-se em nome do espírito e em detrimento do corpo. A separação radical entre um e outro é um fato teológico com grandes consequências políticas ao longo da história: no domínio planetário das terras e dos povos ditos “exóticos”, as tropas dos conquistadores pilhavam ouro e corpos humanos, enquanto os evangelizadores (jesuítas, franciscanos) pilhavam almas. A violência civilizatória da apropriação material era, na verdade, precedida pela violência cultural ou simbólica [...] para o qual o corpo exótico era destituído de espírito, ao modo de um receptáculo vazio que poderia ser preenchido pelas inscrições representativas do verbo cristão (SODRÉ, 2017, p. 101 e 102).

Tal cenário de violência cultural informa diretamente sobre os processos educativos, porque nasceram desse modelo colonial em um país que historicamente assim se edificou. E qual a relação entre a contação de histórias e esse modelo colonizatório? Ela é a própria subversão no resgate do corpo, do espírito, da expressão cultural de profusão de sentidos. Essas sociedades que aqui no Brasil foram destituídas de seus corpos, simbólica e literalmente, que foram destituídas de seus territórios, são exemplos de sociedades que educam pela própria experiência da vida. Bâ, mediante sua perspectiva africana e experiência vivida na savana que se estende de leste a oeste do sul do Saara, afirma que “[...] aquilo que se aprende na escola ocidental, por mais útil que seja, nem sempre é vivido, enquanto o conhecimento herdado da tradição oral encarna-se na totalidade do ser” (BÂ, 2015, p. 171). E complementa mais adiante: “A educação africana não tinha a sistemática do ensino europeu, sendo distribuída durante a vida. A própria vida era a educação” (2015, p. 179).

A este exemplo de Hampâté Bâ, podemos acrescentar outro, convocando, novamente, para esta dança, Daniel Munduruku, que se descobriu contador de histórias junto aos ensinamentos no sentimento de segurança dentro de sua comunidade. Munduruku elabora ideias sobre uma educação pelo rio: é o rio que educa, são os peixes; são também os pássaros, os ventos, as estações. E como se acessa esse conhecimento? Na experiência vivida e narrada, em cosmopercepções, um modo complexo de apreensão e vivência de mundo. Em uma família de grandes contadores de histórias, a avó lhe ensinava sobre esse ofício, seu pai, sua mãe, o avô. Vejamos esta conversa entre o pai e o, ainda menino, Munduruku:

- A gente aprende muitas histórias durante a vida. Algumas são para dizer quem somos, de onde viemos e para onde vamos. Essas histórias nos ajudam a perceber parte do universo. Têm histórias que nos ensinam de onde tirar nosso alimento: histórias da mandioca, dos frutos comestíveis, das plantas medicinais. Essas histórias nos contam que tudo é sagrado porque nos foi dado graciosamente. Há histórias de homem que namora mulher. Nem sempre têm a forma que conhecemos hoje. Às vezes homem e mulher são seres da natureza. Podem ser plantas, podem ser bichos, podem ser rios, podem ser árvores ou pássaros. Essas histórias nos contam sobre como viver juntos, como viver em comunidade, como respeitar as pessoas (MUNDURUKU, 2015, p. 24 e 25).

Aqui, o menino ouviu sobre os sons da tradição, da floresta que ensina, e sobre a importância de, antes de ensinar, aprender. Aprender com a própria natureza, em uma relação com ela que aceita e honra o mistério, que vasculha a penumbra da curiosidade e busca sentidos. Contudo, não é uma história que se conta para um fim determinado por quem conta, para um ensinamento ou moral limitante. Ela parte de um lugar que não distingue a realidade da narrativa sobre o acontecimento: é um eterno exercício de contar e recontar aquilo que se vive, sem renunciar à força poderosa das vísceras do momento e, assim, educa. Não é contada para educar, mas seu destino desemboca em ensinamentos, porque o ato de contá-las é a própria corporeidade do saber, é a grafia do saber, uma coreografia do pensamento. Vale continuarmos atentas ao que se seguiu na conversa entre Munduruku e seu pai, no dia em que ele se percebeu contador de histórias:

- [...] Sabe, filho, há pessoas nesta vida que acham lindo contar histórias. Na cidade tem gente assim. Aqui na aldeia também. Realmente é lindo. Tem, no entanto, algo que elas ignoram: as histórias é que nos contam. Elas usam a gente para ganhar corpo. É por isso que contar histórias não é apenas a repetição de um texto. Quem faz isso apenas decora e, mesmo que saiba verbalizar ou encenar o que está contando, não consegue atrair as pessoas. Essas histórias têm vida própria. Se elas encontram um bom contador, fazem morada dentro dele e nunca mais vão embora.

- Isso é meio assustador, papai.

- É mesmo, não é? Mas é a pura verdade. Você nunca reparou na sua avó?

Confesso que fiquei matutando aquilo tudo dentro de mim. Depois disso tornei-me mais atento às coisas ao meu redor. Comecei a perceber que tudo estava vivo e poderia interagir comigo. Em pouco tempo notei que as histórias que ouvia em casa ou nas rodas de conversa dos fins da tarde ganhavam vida na minha própria vida.

Um dia, vi minha avó sorrindo sorrateiramente para mim. Quando notou que eu a vira, fez um gesto de positivo com o dedo polegar. Naquele momento percebi que estava me tornando um contador de histórias.

Foi então que encontramos na contação de histórias uma prática educativa não como fim, mas como a própria deriva6, esta que assume “o imprevisível como condição e a desconstrução como origem” (OLIVEIRA, 2020, p. 261), ou seja, como possibilidade, caminho, processo, e, por isso, método. A performance de contação de histórias é, portanto, uma experiência cosmoperceptiva e apresenta um traço urgente e fundamental no cotidiano da Educação Básica. Não basta a história ser apreendida em palavras e reproduzida em explanação verbal, ela depende de um mergulho profundo, um trabalho de preparação ritualístico uma vez que convoca a percepção aguçada sobre o que se pretende contar; afinal, “o contador tem consciência da necessidade de um público presente para vê-lo e ouvi-lo. Ele precisa da forte presença de um olhar, de um ouvinte atento e de uma memória que aguarda ser preenchida por novas palavras, ritos e gestos” (PATRINI, 2005, p. 108). A preparação é o assentamento do lugar dentro de nós que possa generosamente receber a história aprendida, ou inventada, e para que ali ela faça morada: viver a história, confiar nela profundamente para que, assim, alcance o espírito também de quem as ouça, pois “é a performance que permite ao receptor ligar-se à mensagem oral, outorgando identidade ao contador” (PATRINI, 2005, p. 144).

É por esse prisma compreensivo das contribuições das sociedades de tradição oral que a contação de histórias deixa de ser um veículo de transmissão de informações e conhecimentos, para provocar, encantar, encenar e instaurar um sentido, uma força, pois “a palavra do contador de histórias é, assim, mais do que arte, no sentido estético, pois ela tem força de ofício” (MATOS, 2005, p. 95). As histórias, portanto, não nascem para preencher lacunas no planejamento escolar, tampouco para uma espécie de hipnose que prenda a atenção das crianças, em atitude de submissão e passividade. Não nascem, portanto, para um fim, mas nascem de uma profunda crença nas lições da existência, e de um desejo de “encontrar sua própria história, aquilo que o move neste mundo” (MUNDURUKU, 2015, p. 27). Diante disso e do cenário colonial que alicerça a educação brasileira, é possível perceber uma profunda ausência dessa musculatura da oralidade nos processos de formação de educadoras e educadores e, por consequência, também de crianças e adolescentes nas escolas. Assim o dizemos porque o legado colonizatório, tendo afastado o corpo dos processos de aprendizagem, não considera conhecimento um saber transmitido pelo rio, pelas chuvas, pela importância de saber a época da plantação para o dia da colheita, saber que está implicado no corpo, no vínculo (considerando que este só nasce de uma experiência vivida em imersão) que se cria com o saber pelo rito, pela celebração, pelo festejo e pela narrativa que envolve todo esse acontecimento.

Caminho metodológico: nem sempre a oralidade está nas histórias contadas

Afinal, o que é oralidade? Leda Maria Martins discorre sobre as performances do tempo e, nesse trajeto, afirma que a oralitura se expressa na corporeidade. Para tanto, vai até o lugar da escrita para o Ocidente, na preservação da memória, como o instrumento mais expressivo de elaboração do saber (MARTINS, 2021). O que também observa Hampâté Bâ, quando afirma que uma grande questão se relaciona com a possibilidade de se conceder a mesma confiança à palavra oral que se confere à escrita (BÂ, 2015, p. 155). Leda, em contrapartida, nos ensina que, em África, por exemplo, “sempre teve textualidade escrita e textualidade oral, mas sem hierarquia dos modos de inscrição” (MARTINS, 2021, p. 33), e que, por escolha, a oralidade tornou-se a maneira pela qual os valores culturais foram difundidos.

É possível, nesse aspecto, associar essa postura também a uma escolha metodológica, uma vez que a transmissão oral da qual Leda Martins e Hampâté Bâ tratam se relaciona intimamente com uma experiência de um saber encorpado, ritualístico, que conota, também, processo, prática, episteme e modos de intervenção no mundo (MARTINS, 2021, p. 39). Desse modo, relacionamos o horizonte metodológico para a escrita deste texto também ao caminho que se percorre em sua construção: o caminho como método - como cosmopercepção, ou seja, aquilo que nos move, nos provoca, nos instiga em sentidos, na memória de nossos avôs, grandes contadores de histórias; na memória de nossas atuações também nessa prática; no ensinamento generosamente partilhado de uma criança que nos narra seus dias etc.

A metodologia que abrange este trabalho, nitidamente qualitativa, processual e aberta à poesia em respeito ao mistério, encontra embasamento no construto filosófico de Renato Noguera, que introduz o conceito teórico e metodológico da afroperspectividade. Nessa confluência está a centralidade das crianças diante desta roda de partilha sobre contação de histórias. Centralidade tanto em inspiração, por elas serem grandes mestres brincantes e narradores de suas existências, quanto pelo eixo em volta do qual giram todas estas formulações teóricas, filosóficas, epistemológicas, práticas e brincantes, também de nossa parte como escritoras deste artigo. A afroperspectividade, portanto, parte de uma confiança de seriedade na infância em maestria e na resistência ao esquecimento do mistério.

Noguera afirma que a infância em afroperspectiva é uma coreografia do pensamento (2011, p. 4) justamente por trazer à tona o pensar a partir do corpo, em elogio ao que as crianças insistem em ensinar e que a adultidade persiste em tentar apagar. Perguntando a uma criança qual seria o grande problema do mundo, o autor ouviu que seria adultecer. E, partindo dessa resposta afiada e encharcada de sentidos, o filósofo traçou um caminho que deu tutano teórico para essa expressão e, daí, concluiu que precisamos todos resistir ao adultecimento - não esquecer a importância do mistério, ao que, aqui, costuramos novamente com a força dos acontecimentos. E tudo isso é corpo de narrativa, narrativa em corpo. Movimento nascido de culturas de resistência. Ao que Leda Martins acrescenta:

As culturas africanas transladadas para as Américas encontravam na oralidade seu modo privilegiado, ainda que não exclusivo, de produção do conhecimento. Assim como para os povos das florestas, a produção, a inscrição e a disseminação do conhecimento se davam, primordialmente, pelas performances corporais, por meio de ritos, cantos, danças, cerimônias sinestésicas e cinéticas. Por meio delas, uma pletora de conhecimentos se retransmitia através do corpo em movimento e por sua vocalidade, desde comportamentos mais simples, expressões práticas e hábitos do cotidiano até as mais sofisticadas técnicas, formas, processos cognitivos, pensares mais abstratos e sofisticados, entre eles a cosmopercepção ou filosofia.

[...] Grafar o saber era, sim, sinônimo de uma experiência corporificada, de um saber encorpado, que encontrava nesse corpo em performance o seu lugar e ambiente de inscrição. Dançava-se a palavra, cantava-se o gesto, em todo movimento ressoava uma coreografia da voz, uma partitura da dicção, uma pigmentação grafitada na pele, uma sonoridade de cores (MARTINS, 2021, p. 36).

É então que entramos na performance como caminho para educadores e educadoras do ensino básico nesta relação com a contação de histórias. Considerando este caminho inerente a um processo cosmoperceptivo ou de cosmossensações, na medida em que somente assim estamos diante de um traço fundamental da oralidade. Aqui, a performance, tal como nos ensina Leda e adiante melhor trataremos, é parte da metodologia acolhida nesta ciranda de possibilidades. A metodologia se aplica no momento, revestida por um estudo teórico com seriedade sobre outras maneiras de existir no mundo que se relacionem com formatos não hegemônicos e que, ao contrário disso, ainda sejam capazes de lhes propor críticas, como a possibilitada pela afroperspectividade. O caminho como método se faz também junto à performance dos próprios educadores no ato da contação de histórias e, à medida que nos buscamos recuperar essas experiências, entendemos que “uma pesquisa que se abre ao devir deve estar prenhe de possibilidades metodológicas de acolhida cada vez mais sensíveis ao acontecimento” (MACEDO, 2016, p. 33).

Assim, a relação entre a performance e a contação de histórias está expressa na corporeidade, na recepção e afetação daquilo que o conto necessita para existir em palavra, gesto, e, até mesmo, nas brechas de silêncios necessários. É dessa maneira, também, que Muniz Sodré enaltece a palavra em meio a esse contexto da oralitura, assumindo-a como performática, “a espera de apreensão como frase musical, isto é, por ressonância e não por literalidade semântica - é imagem e música. [...] A palavra em nagô implica a unicidade corporal de uma presença indissociável de seus tons e gestos” (SODRÉ, 2017, p. 138 e 139). Por esta abordagem sobre a palavra, entendemos a oralitura como um traço corpóreo, vivo; e é assim que percebemos a contação de histórias a partir da perspectiva da oralidade, a partir de caminhos cosmoperceptivos.

Como uma narrativa que não segue caminhos lineares nem rumos lógicos, retomando a afroperspectividade, esta é, também, assentada nos sentidos, no corpo e, portanto, nas cosmopercepções. Essas são bases para uma experiência de oralidade, para uma transmissão oral que não passe despercebida pela força dos acontecimentos, e de tudo que neles se envolve, na fugacidade do tempo presente e “na regularidade do descontínuo. Como o cotidiano, o instante é vivido. O instante presente, em contínuo devir, sintetiza pluralidades vividas mergulhadas nos acontecimentos” (MACEDO, 2016, p. 37). A performance, enquanto acontecimento estético e educativo, reside na potência do sentido produzido no instante da escuta corporificada e “habita o aqui e agora irrecuperável. A matéria-prima do instante está na vida cotidiana, sua fugacidade, sua superficialidade, sua efemeridade, sua rapidez não contabilizada” (MACEDO, 2016, p. 38).

É, então, dessa roda em que se valorizam o encontro e o acontecimento que nascem as contações de histórias capazes de provocar nos ouvintes o desejo por contarem as suas, capazes de plantar dentro dos próprios contadores as histórias que profanam, como sementes de possibilidades de mundo, sementes de histórias próprias. Tal como uma troca de sementes em comunidades tradicionais, ato de força poderosa de manutenção resiliente de seus corpos-territórios. Contar histórias é também plantar sementes!

Assumimos este caminho teórico-metodológico como o compromisso pautado pela necessidade de transformações efetivas na educação brasileira, nascida em berço colonial eugênico7. Contar histórias a partir do fundamento da oralidade é um convite ao deslocamento do protagonismo branco colonial nas estruturas de nossa sociedade brasileira, é um desafio que toma a palavra em sua dimensão principiológica, sagrada, ocupada dos acontecimentos e que aponta a violência do apagamento do corpo. É nesse sentido que destacamos a performance em seu sentido amplo, complexo e cosmoperceptivo, compreendendo-a não como uma técnica ou uma prática engessada, ao contrário, a “performance é mais do que uma ferramenta cultural e social de educação, é uma formulação de novas políticas de vida interessadas em modos contra-hegemônicos de existir” (HABIB, 2022, p. 155). Contar histórias sob o manto da oralitura nos apresenta um caminho de resistência ao mistério, tal como nos propõe a afroperspectividade quando coloca no centro de sua metodologia a voz da criança, esta que insiste em fuçar as entranhas do mundo e, por isso, preserva uma força poderosa de questionamentos.

A infância em afroperspectiva é uma provocação política e, em certa medida, existencial, trata-se da instituição de um projeto em favor de um deslocamento radical. Não estamos apostando no desenvolvimento, no avanço e no progresso. Nossa aposta é quase uma inversão, voltar ao tempo em que brincar era a única maneira de nos relacionarmos com outros seres, conosco e com o mundo. É preciso nos assegurarmos de que o afastamento da infância é um dos maiores obstáculos, quiçá o mais forte, à criação de novos modos de vida. Por isso, a convocação teórica para um novo olhar sobre/a partir/ desde a infância. Afinal, racismo, assim como misoginia, machismo, lgbtfobia, adultocentrismo, discriminação de pessoas com deficiência e todas as formas de opressão não têm soluções mágicas. Mas nossa aposta teórica é de que as alternativas passam pela infância. Por essa infância que descrevemos como condição de experiência humana (NOGUERA, 2019, p. 66).

Esta condição de experiência humana é assumir a infância como modo de existir. Portanto, pensando os processos formativos de educadoras e educadores, a contação de histórias deve ser um processo tensionado neste cenário político-social-racial, na medida em que, sob a perspectiva da oralidade e como performance, este fenômeno tem princípios cosmológicos, cosmoperceptivos, e que nos indicam, por isso, caminhos epistemológicos necessários ao debate sobre o combate ao racismo, à misoginia, ao adultocentrismo. Tanto a afroperspectividade quanto esta abordagem aqui apresentada sobre a performance, o acontecimento e a oralidade, são caminhos que não compactuam com a eliminação de corpos, culturas e identidades, e, por isso, são também caminhos necessariamente debruçados sobre este recorte racial, em especial no Brasil, considerando o legado colonial que ainda está presente em todas as esferas sociais.

Para além do sentido literal da palavra, qualitativa é nossa escolha quanto à abordagem: em se tratando do mergulho nestas águas que envolvem a performance, as histórias, a oralidade, e à baila do corpo - essencial para o processo educativo -, só mesmo seria possível um caminho de qualidade que transite por esses fenômenos. Assim, organizamos um referencial para a elaboração de um trabalho com força de contribuir para a educação e para a formação de educadoras e educadores neste universo da contação de histórias, ao mesmo tempo em que o fazemos na costura da poesia, do referencial teórico e mediante fragmentos de memórias de nossas experiências. Uma escrita que narra, junto à experiência, o sentido, a percepção e o todo que se faz todo porque é o próprio acontecimento. Uma escrita cosmoperceptiva e performativa, narrada pelo acontecimento que “[...] atravessa corpos. O nosso, todos. No reverso, dizer o acontecimento é dizer sempre outra coisa. O acontecimento resiste à redução linguística, analítica” (MACEDO, 2016, p. 32); ele exige um olhar complexo e multirreferencial em sua investigação.

Civilização8 das crianças

Pode-se dizer que o ofício, ou a atividade tradicional, esculpe o ser do homem. Toda a diferença entre a educação moderna e a tradição oral encontra-se aí. [...] Os instrumentos ou as ferramentas de um ofício materializam as palavras sagradas; o contato do aprendiz com o ofício o obriga a viver a Palavra a cada gesto. Por essa razão a tradição oral, tomada em seu todo, não se resume à transmissão de narrativas ou de determinados conhecimentos. Ela é geradora e formadora de um tipo particular de homem. Pode-se afirmar que existem a civilização dos ferreiros, a civilização dos tecelões, a civilização dos pastores etc. (Bâ, 2015, p. 171 e 172).

Quando apresenta os ofícios tradicionais, Hampâté Bâ nos ensina que eles são grandes vetores da tradição oral (2015, p. 168), porque todo o saber que envolvem estava ligado a uma tradição transmitida de geração em geração, respeitando, ainda, algumas condições rituais. Um exemplo são tecelões que devem “tocar cada peça do tear pronunciando palavras ou ladainhas correspondentes às forças da vida que elas encarnam” (2015, p. 169). Esse ritual é um processo que navega na espiral do tempo e se mantém vivo na corporeidade, nos ritmos, nos cânticos, na sonoridade do rolo de fio e do tecido que se vai formando - e acaba por formar um tipo particular de ser, ao que indagamos: em quais sentidos? Vamos propor uma resposta mais adiante.

Antes disso, trazemos um exemplo particular de uma experiência com as histórias que atravessou uma de nós: uma criança da educação infantil, recém-chegada à escola, trazia consigo uma bagagem bonita de contos da sua ainda breve existência. Uma delas transborda em cosmopercepções e narrativas: o menino se encantou pela Bahia. Nascido no Rio de Janeiro, viajou a passeio às terras baianas e voltou contando sobre o sabor do peixe que comeu, contava sobre o cheiro do mar, cantava saudades da Bahia. Passou tantos dias nesse enredo que este tornou-se seu fio de meada: conversas e mais conversas sobre esse encanto foram tomando musculatura e o menino dançava a história que contava. Contava as “grandezas do ínfimo”(BARROS, 2001) e partilhava o protagonismo com todo o acontecimento.

Esse breve relato nos provoca da seguinte maneira: o menino, contando a Bahia, transportava-se e levava quem estivesse desperto junto. Compreender essa experiência como uma manifestação da oralidade, da performance, e um ensinamento sobre contação de histórias é um caminho para iniciados nesta busca por ampliar os sentidos do ato de contar histórias a partir desta abordagem da oralitura. Esta iniciação, no que se refere à atuação de educadoras e educadores na educação básica, é um processo, antes, de escolha - porque deve nascer da liberdade; em seguida, de profunda imersão nas histórias, de percebê-las tal como o menino nos contava sobre o cheiro do mar, o sabor do peixe, a atmosfera musical da Bahia. Um mestre, de cinco anos de idade - a ele toda nossa reverência.

Voltando aos ofícios tradicionais, a relação que estabelecemos entre esta jornada de aprendizado que faz nascer um mestre ferreiro, ou tecelão, por exemplo, e a infância está justamente no brincar, entendido aqui como ofício de criança. O brincar é também fenômeno que navega gerações e, de movimento em movimento, permanece e dá voz às culturas de sociedades brincantes (sociedades não colonizadas ou em diáspora), desenvolve uma arqueologia de memória e uma coreografia de pensamentos. E, justamente por ser também este grande vetor da tradição oral, consideramos o brincar como ofício, por se relacionar, em cosmossensações, às ritualísticas, tempo próprio, performance e uma grafia do saber no corpo - o brincar é corpo. Por uma relação simbiótica entre infância e brincadeira, percebemos na criança a maestria desse ofício brincante em seu gesto, palavra, pensamento, ou seja, em sua oralitura:

Conceitual e metodologicamente, oralitura designa a complexa textura das performances orais e corporais, seu funcionamento, os processos, procedimentos, meios e sistemas de inscrição dos saberes fundados e fundantes de epistemes corporais, destacando neles o trânsito da memória, da história [...] que pelas corporeidades se processam (MARTINS, 2021, p. 41).

Pensando na performance de contação de histórias sob a compreensão da oralitura, essa complexa combinação entre corpo e voz, passamos a analisar um dos processos performáticos vividos por uma das autoras, o “Sarauzinho”9. Trata-se de uma proposta de artes integradas que agrega diferentes expressões (poesia, teatro, desenho, jogos, histórias, brincadeiras e música), enquanto um espaço-tempo de interações entre crianças e adultos. As interações estéticas propostas são organizadas em um roteiro prévio em que atuantes - a contadora de histórias e artistas convidados - têm como referência possíveis ações a serem vivenciadas, mas completamente livres e passíveis de novas combinações e configurações que se modificam ao longo dos acontecimentos. A história narrada é o fio condutor de uma série de possibilidades de provocar sensibilidade e cognição, sendo que o corpo é o lugar dos sentidos e das interações no “Sarauzinho”, assemelhando-se à ideia de oralitura trabalhada por Leda Martins:

No âmbito da oralitura gravitam não apenas os rituais, mas uma variedade imensa de formulações e convenções que instalam, fixam, revisam e se disseminam por inúmeros meios de cognição de natureza performática, grafando, pelo corpo imantado por sonoridades, vocalidades, gestos, coreografias, adereços, desenhos e grafites, traços e cores, saberes e sabores, valores de várias ordens e magnitudes (MARTINS, 2021, p. 41).

Embora, como dissemos, exista um roteiro prévio, todas as experiências do “Sarauzinho” levam ao ato brincante, até mesmo os momentos específicos em que a escuta mobiliza corpo; a criança escuta pelo corpo, por todos os poros e sentidos; e nessa proposta, inúmeros acontecimentos perpassam a performance de contação de histórias, favorecendo reflexões sobre o objeto de estudo experimentado, dinâmico, inconcluso, compreendido em “sua condição acontecimental porque, nessas circunstâncias, nunca está pronto” (MACEDO, 2016, p. 31). Então, os acontecimentos e a reflexão sobre eles ensejam a produção de conhecimento em torno desse objeto fugaz ancorado na experiência brincante, pois “se no âmago da própria concepção da experiência humana está a constatação de que o experiencial se realiza a partir do que nos acontece, então a experiência é, fundamentalmente, acontecimental” (MACEDO, 2016, p. 46).

Em uma das experiências com o “Sarauzinho”, contamos a história Ubuntu10, que consiste nas aventuras de um homem europeu que parte para conhecer o continente africano, quando aprende o sentido da palavra Ubuntu (humanidade para todos), provocando a reflexão “como posso ser feliz sozinho, enquanto outros ao redor estão tristes?”. No meio da história, o visitante propõe uma brincadeira às crianças da narrativa e com um gesto físico anuncia o chamado à brincadeira. Em uma das apresentações da performance com essa história, as crianças invadiram e ocuparam o espaço da cena, em atendimento ao convite do brincar, como sendo real e não fictício, habitado no mundo imaginário, fazendo valer a reflexão de Gislayne Matos a respeito de que a performance de contação de histórias se encontra no mistério entre o corpo que fala, a voz que desenha, a “palavra que se ouve e a palavra que se vê” (MATOS, 2005, p. 151), que se escuta, imagina e se incorpora dela.

Tal acontecimento inesperado transgrediu a escuta da narrativa, transformando-a em ato brincante coletivo. Ao mesmo tempo, a criança observa a narrativa e a vivencia corporalmente no lugar da brincadeira. Isso porque, para a criança não há separação entre brincar e narrar; assim, ela age corporalmente a “transformar, destruir identidades fixas e interromper a lógica do cotidiano” (HABIB, 2022, p. 44). Em seus gestos, as crianças atuaram de modo insurgente contra o adultocentrismo, levando à cena seus corpos e vozes que compuseram o estado brincante e não o estado de escuta esperado. Esse acolhimento de abertura à ação imprevista da criança se ancora na atenção à sua ação corporal, como também pelo entendimento de que o “Sarauzinho” é espaço mesmo de brincar, de escuta corporal, dinâmica, criativa e totalmente coerente com a proposta.

A partir daquele instante, assumimos o brincar como parte da história e da vivência brincante ao mesmo tempo. Aprendemos com as crianças: a ação corporal coletiva, na performance “Sarauzinho”, se mistura e se integra ao ato de assistir e brincar, jogar e representar, sem rupturas; e já não se sabe mais onde começa a brincadeira e onde termina a história. A performance termina com todas as crianças brincando juntas, quando ainda é narrativa, gesto e estado brincante corporificado. Tudo se mistura e se integra nessa oralitura, em sua natureza performática.

Ainda sobre acontecimentos que perpassam a performance de contação de histórias, em um pequeno povoado do sertão baiano, a proposta era estar junto às crianças e brincar.

Essa foi também uma experiência de uma das que aqui vos falam, e a proposta foi bem simples: corrida de tampinhas de garrafa. As crianças disseram não saber que brincadeira era aquela, ao que uma breve explicação - uma pista, as tampinhas dentro da pista e petelecos nas tampinhas, até alguém alcançar a linha de chegada - deu conta do início da preparação para a disputa. Em um breve tempo, a pista de corrida estava pronta: cavaram duas extensões em buraco, para que fossem aos limites da pista; quebraram pedras em tamanhos parecidos e colocaram nesses buracos, tal como canaletas; e, então, enfeitaram todo o caminho com flores, que, com o vento, logo no início da partida, voaram como que em um evento ensaiado. E elas haviam dito que nunca tinham brincado de corrida de tampinhas de garrafa.

Não conheciam aquela brincadeira, mas sabiam brincar. Sempre sabem brincar. E o próprio instante do brinquedo foi uma manifestação de enredo, narrativa das mãos. São mesmo mestras, e, por assim o serem, tal como alertou Hampâté Bâ sobre o “tipo particular”, e sua consequente afirmação sobre a civilização dos mestres de ofício, confiamos em uma civilização das crianças. Uma civilização regida pelas normas da infância: brincadeira e narrativa. Diante de tudo que aqui tratamos, dentro de um contexto político e atitudinal, nossa proposta é produzir contributos compreensivos da complexidade epistemológica da contação de histórias, dentro do cenário educacional brasileiro que necessita de mudanças urgentes, em especial, em seu formato colonizatório - que elimina o corpo, o espírito, o mistério, a própria infância.

Assim fazemos, novamente, coro com Renato Noguera, para quem “brincar e narrar são originalmente formas de resistir às opressões mais cruéis e estabelecer que a vida deve ser livre e desimpedida. A criança - o ser investido de infância - está em busca dessa liberdade radical” (NOGUERA, 2020, p. 548). Uma civilização das crianças depende profundamente de histórias contadas sob uma perspectiva que enaltece a força poderosa dos acontecimentos, que dê voz aos sentidos, que se manifeste em corpo. Não somos nós, seres humanos, que contamos as histórias, são elas, vivas, que buscam nossos corpos para se contarem. Elas se abrigam em nossas articulações, movimentos, gestos, encantos, para conduzir o ouvinte às histórias próprias. Desse modo, como educadores e educadoras, devemos mergulhar na penumbra misteriosa que a infância nos narra, e caminhar no sentido de formação engajada politicamente, em busca de instrumentalização para uma atuação compromissada com uma educação que contribua com o desmonte do projeto colonial brasileiro. A contação de histórias, na oralidade, é um caminho desta encruzilhada.

Após refletir sobre a civilização das crianças e a esfera ficcional de encanto e magia provocada pela experiência de contar/ouvir histórias, resolvemos investigar o estado brincante, que se afirma em vínculo, em elo entre os sujeitos e o acontecimento de cunho estético. Compreendemos e enfatizamos a necessidade de realização de processos em que a performance de contação de histórias encontre lugar e sentido na escola, provocando e povoando imaginários, vínculos afetivos, mediante linguagem simbólica e polissêmica. Entender a performance como acontecimento, nessa configuração de pesquisa, é entender que “o acontecimento desenvolve força auto-organizacional, sem a qual se dissipa sua dimensão criadora. Ele gera novas regularidades autopoiéticas e a possibilidade de insurgência de outras singularidades transformadoras” (MACEDO, 2016, p. 39). Tendo como referência a dimensão criativa da formação na insurgência de singularidades transformadoras provocadas por esse autor, entendemos performance e seu estado brincante, buscando compreender esse lugar do mistério do acontecimento que habitar o mundo social e “o mundo para o qual se evade, por meio da palavra, do conto, um mundo fantástico, de maravilhas e imprevisões, que sutilmente nos remete ao nosso próprio ser, com tudo que isso possa significar” (MATOS, 2005, p. 22).

É nessa ambiência estética que se instaura a performance do/a contador/a produzida por professores/as, especialmente os/as que atuam com crianças, em espaços/tempos de brincar, narrar e poetizar na escola. A performance de contação de história requer a compreensão do processo sensível e imaginativo, aberto à escuta e à contemplação, pois “o discurso do contador exige um ouvinte singular” (PATRINI, 2005, p. 145); requer também participação, fé no que se ouve, confiança na narrativa do outro, atenção corporificada, o estar-junto-com dando sentido e imaginando coletivamente o que se passa na história. À experiência de sensibilidade está agregado o valor do imaginário, vasto, insubmisso e repleto de potencialidades, o que nos leva a compreender que o ato de ouvir histórias não ocorre de modo passivo nem se dá apenas por transmissão, é um processo ativo de interpretação de símbolos, de criação e de produção de sentidos, pois “a criança nunca ouve uma história que sai da boca de um contador. Ela vai além disso. Ela busca, em quem conta, um confessor. Ela precisa de gente que confesse sua fé naquilo que ensina” (MUNDURUKU, 2015, p. 28).

É sobre esse aspecto que abordamos o campo da docência e a “formação como uma experiência irredutível” (MACEDO, 2016, p. 51), partindo da performance da contação de histórias, como experiência híbrida, complexa e repleta de cosmossensações. As nossas experiências falam dessa qualidade da relação entre quem ensina, o que se ensina e a crença do que se ensina, pois apontam para outro tipo de relação adulto-história-criança, não como mera emissão de texto e palavra, mas como estado brincante, pleno, complexo e integrado com as infâncias, enfim, gente adulta que aprende com crianças, valoriza culturas infantis e investe em sua própria infância - a capacidade de brincar, narrar e imaginar - como modo privilegiado de se relacionar consigo e com o mundo, mas também com o contorno político de pessoas que defendem o direito de as crianças serem crianças e de os adultos habitarem suas infâncias (NOGUERA, 2020, p. 534).

A docência comprometida com as infâncias requer aprendizagem com as crianças e o espaço-tempo da contação de histórias favorece esse “habitar suas infâncias” mencionado por Noguera. Nesse sentido, recuperamos fios de nossas histórias, cujas performances de contação de histórias são vistas como acontecimentos que dão sentido à experiência com crianças. Na experiência chamada “Sarauzinho”, um misto de brincadeiras, contação de histórias, música e poesia já tinha se desenrolado, quando uma das autoras, na condição de contadora em uma turma de Educação Infantil, juntamente com seu parceiro de cena, puxam o jogo da blablação11 para finalizar a performance e começam a falar um idioma desconhecido por todos ali. Contudo, seus corpos e expressões performáticas davam a entender que alguma conversa ali se estabelecia, ainda que impossível de ser racionalmente capturada pelo público.

Em um misto de brincadeira e mistério, chegava-se ao final da performance “Sarauzinho”, em mais um dia de apresentação. Porém algo imprevisível aconteceu, um desvio causado pela atuação das crianças ocasionou em mais uma ação cênica, protagonizada pelas crianças, adultos e contadores de histórias. Nesse instante, entendemos que “o acontecimento é uma singularidade, um desvio, o irromper do acaso no território das regularidades. Tem a potencialidade de inventar mundos” (MACEDO, 2016, p. 46). Pois bem, contaremos o que aconteceu: os contadores saem de cena, como se conversassem animadamente, despedindose das crianças, que nada entendem do que está acontecendo. Naquele dia, o “Sarauzinho” terminaria com essa dúvida, com o mistério no ar, sem ser desvendado. Contudo, ao saírem de cena os adultos, as educadoras da educação infantil, puxaram os aplausos e os agradecimentos formais e alegres, enquanto as crianças, em um estado brincante de ânimo e sentido, começaram a emitir sons também incompreensíveis para todos, os sons continuavam, a despeito dos aplausos dos adultos presentes.

Ao perceberem as vozes das crianças e seus corpos eufóricos, os contadores voltam à cena e continuam o diálogo sem sentido em um idioma inventado, favorecendo muitos risos; e também riscos da invenção de novos sons e grunhidos, um novo idioma não racionalizado, mas completamente compreensivo de que ali se tratava de um espaço de brincar em que, portanto, cabia de tudo, até mesmo o brincar com a incompreensão da palavra; um diálogo mais estético que discursivo; afinal, a ideia ali não era entender, mas vivenciar e inventar mundos, produzindo também seus idiomas, assumindo e expressando seu estado interno brincante. A resposta das crianças nos diz que elas capturaram esse saber com a sabedoria de quem é mestre do ofício de criar, desvendando o mistério e misturando o brincar com uma narrativa modulada em uma nova palavra, a linguagem emitida pelo brincar.

Tomando nossos fios experienciais e saberes advindos do acontecimento e de sua força para mover a ação educativa, nos situamos a refletir sobre a nossa própria formação como contadoras de histórias, em contato direto com as crianças da educação básica, dando espaço para o mistério e o inesperado. Assim, entendemos que a performance em situação de diálogo fecundo e criativo com as crianças provoca “reflexões do sujeito sobre sua própria experiência formativa”, que permitem “antever o quanto a formação emerge como acontecimento na medida em que a imprevisibilidade habita de forma densa sua emergência” (MACEDO, 2016, p. 52). A ação imprevista das crianças de entrarem no jogo e criarem um idioma de comunicação, totalmente possível na esfera da narrativa e da performance, por estarmos, todos, emanados em um estado brincante compartilhado, oportuniza “compreender [que] a formação como acontecimento é reforçar atitudes educacionais pautadas na perspectiva de que a educação é um ‘tempoespaço’ de múltiplas experiências e múltiplos saberes” (MACEDO, 2016, p. 53).

Considerações sem fim: corpos, infâncias e resistência ao esquecimento mistério

Dar corpo a uma escrita e coreografar a palavra pelos fios do que se vivenciou no corpo. Efetuar registros, atribuir sentidos, mobilizar as memórias dos acontecimentos, selecionar referências conceituais, costurar saberes e experiências de contação de histórias em uma tessitura polissêmica, complexa e cosmoperspectiva, foram alguns passos metodológicos de nossa investigação. Dar forma aos sentidos de experiências de corpo, voz e cena, processo que mobiliza o imaginário e a plástica dos territórios ocupados por corpos brincantes, implicou um desafio fundamental para entendermos a performance de contação de histórias na educação básica.

Talvez essa forma seja uma roda, um caminho sem fim; caminho que pode ser reinventado a cada vez que a roda gira. Uma roda sem começo nem fim, mas sendo, em si, ações e movimentos de pesquisar: olhar, ler, pensar, refletir, escrever, narrar, sentir, poetizar, ponderar, contextualizar, enfim, teorizar. Compreendemos que essa aventura de pesquisar não tem fim, mas necessita de uma costura de tantos sentidos, de muitas cosmopercepções articuladas no texto, afinal, não temos como falar de outro lugar, a não ser do corpo e do nosso território de insurgências contra todas as formas de colonização, exclusão e opressão. E nesse girar da roda, onde está a criança - e seus educadores -, podemos, ainda, tecer alguns contributos para pensarmos docência e práticas educativas. Assim, compreender as nuances da performance de contação de histórias, enquanto experiência de sentidos, capaz de capturar o instante, abraçar o imaginário, abarcar o gesto, a rima, a cena, a presença, o ritmo, o figurino e a palavra, nos provoca a construção de enredos que podem ser contados e experienciados nas paisagens de nossa educação.

Dessa forma, a título de sistematização dessa escrita inspirada na oralitura tecida por Leda Martins, elencamos alguns princípios e reflexões, como forma de apresentar resultados parciais dessa investigação que não se finda aqui; inicia-se talvez, como uma roda a girar e a guardar mistérios. Assim, pensar a performance de contação de histórias, mediante o olhar da afroperspectividade, favoreceu a produção de alguns achados teóricos sobre infâncias, educação e contação de histórias, visando a contribuir para um olhar sensível, crítico e provocativo da docência de infâncias na educação básica. Nessa coreografia do pensamento, inspirada em Renato Noguera, apresentamos algumas sínteses a título de contribuições para a compreensão da performance de contação de histórias na escola:

  1. Compreensão da criança como manifestação da brincadeira e da narrativa, tendo como base saberes teóricos de viés afroperspectivo e experiências de performance de contação de histórias. A criança, no centro da roda, escuta, brinca, imagina, compõe mundos e sentidos, precisa, portanto, de espaço/tempo de acolhimento e valorização do seu modo de ser e estar no mundo;

  2. A contação de histórias é composta por elementos diversos (palavra, cena, corpo, espaço e todos os sentidos compartilhados) e não fragmentados; não necessita de ordem ou direcionamentos, porque o processo ganha direção própria no estar com as crianças. O direcionamento é guiado, assim, pelo sentido emanado no corpo e na voz. A criança sabe que as brincadeiras e narrativas não sofrem cisão e nos ensinam em seus atos insurgentes, frutos de mentes/corpos criativos, a se negar ao esquecimento do mistério e a viver sobre sob as normas da Infância: no espaço presente e no tempo do agora;

  3. A performance de contar histórias requer um tipo de compreensão a respeito da sua complexidade, não podendo ser apenas vista e interpretada meramente por mecanismos de racionalidade técnica, mas captada por todos os sentidos, percebida em toda a sua integralidade, contexto e potencialidade. As cosmopercepções transversalizam o conceito e a metodologia dessa investigação sobre contação de histórias, com vistas a ensaiar passos epistemológicos para o campo das narrativas que ganham corpo e força em seus acontecimentos e sentidos de mundo (não apenas visões) produzidos por todo o corpo;

  4. A reflexão sobre corpo, imaginário e liberdade de ação da criança apresenta, em si, contribuições tanto para se pensar/fazer uma performance de contação de histórias na escola quanto para se conceber a organização de espaços, tempos, materiais e atividades; tais questões fornecem elementos para repensar o cotidiano educativo, tornando-o menos engessado, padronizado e previsível, e mais vivenciado, sentido, refletido, brincado e imaginado, assumindo todas as potencialidades que requer o trabalho docente com crianças;

  5. Pensar no fenômeno complexo, híbrido, fugaz, dinâmico e performático da contação de histórias abre novos caminhos na investigação teórica e metodológica sobre formação e atuação de professores e professoras na educação básica;

  6. A performance de contação de histórias é entendida não apenas como emissão da palavra, transmissão de conhecimentos, mas como experiência de sentidos, corporificada e complexa;

  7. A contação de histórias resulta de vínculos e processos de criação cosmoperceptivos, colocando no centro dessa composição o corpo/voz da criança, sendo possivelmente um potente e profícuo caminho de resistência ao mistério, em referência à afroperspectividade;

  8. O brincar é corpo. A narrativa nasce do corpo, das suas marcas, acontecimentos e sensibilidade. A performance do/a contador/a de histórias valoriza a presença e o estado lúdico e relaciona o ritual, a cena, a interação como uma grafia do saber produzido no corpo;

  9. Os acontecimentos que marcaram as trajetórias das duas autoras, educadoras e contadoras de histórias se coadunam com a discussão teórica, à medida que revela situações e fatos significativos para a ampliação de registros e reflexões na área.

Outros saberes e experiências podem ainda ser tecidos nessa coreografia do pensamento, até porque, a todo instante, contamos histórias, sejam reais ou fictícias, e esse universo compõe quem somos, como sentimos o mundo, como produzimos gestos e encantos. Mergulhar na aventura misteriosa que a infância tece favorece pensarmos caminhos de formação crítica, criativa e sensível de educadores e educadoras, no sentido de fortalecimento de sua atuação politicamente engajada na educação básica.

Os conhecimentos produzidos neste texto advogam em favor de uma educação que se identifique com valores e gestos que denunciem e contradigam o projeto colonizador, frente à produção de práticas coerentes com a humanização, liberdade e emancipação, ainda tão em débito em nosso país. Tendo como referência a civilização das crianças, inspirada na afroperspectividade, a performance de contação de histórias é capaz de valorizar a força poderosa dos acontecimentos, de dar voz aos sentidos e à manifestação dos saberes e experiências no corpo; pode, portanto, ser uma fissura no tecido rígido, instituído e padronizado de nossas escolas. Contudo, esse é mais um ponto de uma história sem fim talvez, aberta a novas e necessárias interpretações e sentidos e todo o caminho educacional de resistência ao mistério.

REFERÊNCIAS

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1Artigo revisado por Alvanisio Alvaro Damasceno

2De acordo com Bispo (2012, 16), “Pindorama (Terra das Palmeiras) é uma expressão tupi-guarani para designar todas as regiões e territórios da hoje chamada América do Sul”. A escolha desse termo se deve a um exercício de descolonização da linguagem, em substituição à denominação dada aos povos originários do Brasil.

3A pesquisa é ancorada em uma escrita que articula memórias de experiências e reflexão filosófica. A título de procedimentos éticos, importa informar que todos os dados de memórias e registros de informações resultantes de experiências pessoais, artísticas e profissionais de contação de histórias, disponibilizados, tacitamente, pelas próprias autoras do texto, não sendo utilizadas imagens, fotografias, depoimentos ou nomes de instituições terceiras.

4Referência ao que Renato Noguera ensina sobre o conceito filosófico da afroperspectividade: o pensar pelo corpo.

5Referência ao nome do livro de Hampãté Bâ e a ele próprio, o menino fula.

6Termo utilizado nos estudos do professor Eduardo Oliveira, em que a deriva é entendida como experiência de assumir o imprevisível como condição de existência.

7Eugenia: Entende o processo de mestiçagem como um projeto racial-social de embranquecimento da população. “A mestiçagem [...] representa apenas uma fase transitória e intermediária no pavimento da estrada que levaria a uma nação brasileira presumidamente branca.” (MUNANGA, 2008, p.49 e 50)

8Menção inspirada nos estudos de Renato Noguera para abordar os saberes e fazeres culturais das crianças.

9Produção do Coletivo Canduras e Artes, grupo cultural de Salvador, Bahia, Brasil.

10Texto produzido coletivamente pelos integrantes do Coletivo Canduras e Artes.

11“Blablação” é um jogo bastante conhecido no campo de teatro, tendo sido registrado, com muitas variações, por autores como Viola Spolin. Na performance “Sarauzinho”, o jogo é transformado em cena, dando valor à comunicação corporal para emitir algum enunciado, e se torna inusitado por se tratar de um idioma desconhecido, mas compreensível para o público; entende-se não apenas pela palavra; corpo é cognição.

Recebido: 07 de Julho de 2022; Aceito: 09 de Setembro de 2022

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