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Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade

versión impresa ISSN 0104-7043versión On-line ISSN 2358-0194

Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade vol.31 no.68 Salvador oct./dic 2022  Epub 13-Ene-2023

https://doi.org/10.21879/faeeba2358-0194.2022.v31.n68.p148-167 

Artigos

COMUNIDADE NARRATIVA E PERFORMANCE: A FORMAÇÃO DE CRIANÇAS CONTADORAS DE HISTÓRIA

NARRATIVE COMUNITY AND PERFOMANCE: THE EDUCATION OF CHILDREN TO SORY TELLERS

COMUNIDAD NARRATIVA Y PERFOMANCE: LA EDUCACIÓN DE LOS NIÑOS A CUENTACUENTOS

Selma Soczecki Leal*  Escola Municipal Elírio Alves Pinto
http://orcid.org/0000-0002-4733-9867

Adriana Vaz**  Universidade Federal do Paraná
http://orcid.org/0000-0003-2172-3008

Elisa Maria Dalla-Bona***  Universidade Federal do Paraná
http://orcid.org/0000-0003-4589-9040

*Mestre em Educação pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Professora da Escola Municipal Elírio Alves Pinto. Araucária, Paraná. E-mail: sslselma@hotmail.com.

**Doutora em Sociologia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Professora da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Curitiba, Paraná. E-mail: vazufpr@gmail.com.

***Doutora em Educação pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Professora da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Curitiba, Paraná. E-mail: elisabona2@gmail.com.


RESUMO

O objetivo geral do estudo é compreender como os recursos internos das crianças e da professora foram aflorados na experiência de aprender/ensinar o ofício de narrar. O artigo apresenta um estudo de caso intrínseco sobre o curso “Arte de Contar História”, realizado em um Centro Municipal de Educação Cultural do Município de Araucária, estado do Paraná, Brasil. Foram selecionados quatro participantes: uma professora e três estudantes com idade entre 7 e 11 anos. Descreve-se três vivências, rememorando as histórias que abordaram temas difíceis como a morte, a condição da mulher na sociedade e o racismo, que viabilizaram a formação de crianças contadoras de histórias. As principais reflexões teóricas versam sobre: a instauração da performance lúdica; o processo simbiótico entre quem narra uma história e quem lhe escuta; o protagonismo da criança, que no exercício de contar e ouvir histórias constrói saberes, alimenta sua imaginação e desenvolve sua criatividade; e sobre os benefícios da horizontalidade da relação entre crianças e adultos, que passam a se constituir como autores mais conscientes das suas histórias de vida. Como resultado, a pesquisa evidenciou que as trocas de saberes entre professora e estudantes contadores de histórias contribuíram para a instauração da performance e a formação de uma comunidade narradora.

Palavras-chave: comunidade narrativa; narração de história; performance

ABSTRACT

The paper presents an intrinsic case study on the course “Arte de Contar História” carried out at a Municipal Center for Cultural Education in Araucária, state of Paraná, Brazil. Four participants were selected, including the teacher and three students, aged between 7 and 11 years. The general objective of the study was to understand how the internal resources of the children and the teacher were touched by the experience of learning/teaching the craft of storytelling. Three experiences that enabled the formation of children storytellers are described, recalling the stories that addressed difficult topics such as death, the condition of women in society and racism, which. The main theoretical reflections are the establishment of playful performance, the symbiotic process between those who narrate a story and those who listen to it, the role of the child who in the exercise of telling and listening to stories, builds knowledge, feeds imagination, and develops creativity, and on the benefits of the horizontality of the relationship between children and adults who become more conscious authors of their life stories. As a result, the research showed that the exchange of knowledge between teacher and student storytellers contributed to the establishment of performance and formation of a narrator community.

Keywords: narrative community; story narration; performance

RESUMEN

El artículo presenta un estudio de caso intrínseco sobre el curso “Arte de Contar História” realizado en un Centro Municipal de Educación Cultural, en el Municipio de Araucária, estado de Paraná, Brasil. Se seleccionaron cuatro participantes, siendo el docente y tres alumnos con edades comprendidas entre los 7 y los 11 años. El objetivo general del estudio fue comprender cómo los recursos internos de los niños y de la docente fueron tocados en la experiencia de aprender/ enseñar el oficio de contar cuentos. Se describen tres experiencias, recordando los cuentos que abordaron temas difíciles como la muerte, la condición de la mujer en la sociedad y el racismo, que posibilitaron la formación de niños narradores. Las principales reflexiones teóricas versan sobre el establecimiento de la actuación lúdica, sobre el proceso simbiótico entre quienes narran un cuento y quienes lo escuchan, sobre el papel del niño que, en el ejercicio de contar y escuchar cuentos, construye conocimientos, alimenta su imaginación y desarrolla su creatividad, y de los beneficios de la horizontalidad de la relación entre niños y adultos que se vuelven autores más conscientes de sus historias de vida. Como resultado, la investigación mostró que el intercambio de saberes entre docentes y alumnos narradores contribuyó para el establecimiento de la performance y la formación de una comunidad de narradores.

Palabras clave: comunidad narrativa; narración de cuentos; actuación

Era uma vez: como tudo começou e o percurso investigativo

Existem diversos trabalhos de pesquisa dedicados ao tema da contação de histórias enquanto prática que visa à experiência sensível, porém o campo voltado para as crianças contadoras de histórias partindo da performance para despertar as sensibilidades ainda é fértil, como bem afirma Hartmann (2015) ao dizer que os estudos que contemplam as crianças, enquanto narradoras, é recente e tem muito a ser explorado. Assim, este estudo (LEAL, 2021) foi desenvolvido para contribuir com o preenchimento desta lacuna.

O objetivo do estudo é compreender como os recursos internos das crianças e da professora foram aflorados na experiência de aprender/ensinar o ofício de narrar; analisar como a relação entre a voz, o corpo, o tempo e o espaço são colocados em ação no momento da performance; entender como os elementos dos contos tradicionais contribuem para a memória do contador de história, levando à instauração do efeito sensível em si e no outro

A metodologia adotada foi o estudo de caso intrínseco, que permitiu investigar e conhecer a fundo o curso “Arte de Contar História”, ocorrido no período de julho de 2017 a dezembro de 2019. A opção por esta metodologia se justifica pelo interesse específico num caso em particular e de conhecer a fundo uma prática pedagógica (ANDRÉ, 2005). O seu produto final é uma descrição completa e literal da situação investigada.

Por se tratar de um estudo de caso qualitativo, foram selecionados quatro participantes, sendo três estudantes e uma professora. Os estudantes foram nominados como “O reconhecimento”, que frequentou o curso por quatro semestres e quando iniciou tinha 11 anos; “A fada”, que frequentou quatro semestres, e iniciou quando tinha 7 anos; e “O encantamento”, que frequentou dois semestres, e quando iniciou tinha 7 anos. Quanto à professora, não era profissional contadora de histórias, mas seus recursos internos foram sendo aflorados na experiência de aprender/ensinar o ofício de narrar a partir das vivências com os estudantes contadores de histórias. Estudar o seu percurso autoformativo foi decisivo para ela ressignificar seu olhar para o seu próprio saber/ser/fazer.

Os métodos de coleta de dados da investigação se pautaram em materiais pedagógicos, como os planos de aula; na memória da professora/pesquisadora, que ao dialogar consigo mesma se percebeu como um ser histórico que faz história, num processo autoformativo. Também foi consultado o acervo de fotos e vídeos da professora com o registro das atividades realizadas. Foram utilizadas as conversas sobre o curso trocadas com os estudantes, seus pais e coordenadoras pedagógicas, que estavam registradas no WhatsApp.1 Além disso, serviram de referência para consulta os vídeos gravados pela Secretaria Municipal de Educação de Araucária e divulgados no Facebook.

Todo o material levantado propiciou o afloramento das questões mais significativas, não para usá-las como exemplos para tecer generalizações ou buscar uma representatividade, mas sim empregá-las como variáveis para viabilizar novos conhecimentos. Ao fim, a pesquisadora realizou um inventário a partir das experiências que seu coração guardava, elencando materiais que envolvem as subjetividades que foram pulsando mais forte conforme a memória observadora ia acordando todo um percurso de vida. O inventário apresenta as experiências da professora entrelaçadas às dos estudantes, revelando não haver uma relação dicotômica entre sujeito/ativo e objeto de estudo/passivo.

O curso “Arte de Contar História” era promovido pela prefeitura do Município de Araucária, cidade na região metropolitana de Curitiba, capital do estado do Paraná, sul do Brasil, e ofertado a cada início de semestre para que os estudantes interessados se inscrevessem. Os encontros semanais ocorriam no contraturno escolar num Centro Municipal de Educação Cultural, com opção para os turnos da manhã e da tarde, e duração de 1h30min. Os estudantes com frequência igual ou superior a 75% da carga horária exigida recebiam certificado de conclusão. As turmas contavam com estudantes de diferentes idades, entre 5 e 14 anos, de forma a oportunizar a troca de saberes.

O curso proporcionou situações desafiadoras para que as crianças se revelassem contadoras de histórias para todos os públicos. Ele era norteado pelo reconhecimento de que a contação de história fortalece vínculos sociais, educativos e afetivos, desperta a imaginação, os sentimentos, as possibilidades de transcender a palavra, e o gosto pela leitura.

A professora do curso encontrou na elaboração da sua dissertação de mestrado (LEAL, 2021), apresentada em 2021 ao Programa de Pós-Graduação em Educação: Teoria e Prática de Ensino, da Universidade Federal do Paraná (UFPR), uma oportunidade de divulgar esta vivência e refletir sobre ela. A síntese desta investigação está relatada neste artigo.

Saberes construídos ao longo do tempo

Ao longo do tempo, a escrita passou a guardar a tradição oral enquanto patrimônio imemorial, e as transformações culturais e sociais estabeleceram novas maneiras de narrar que passaram a circular em outros meios de comunicação, como as mídias de massa. Em suas pesquisas no Ceará, Lima (1985) se refere a comunidades narrativas que, mesmo diante de tais mudanças, continuaram como guardiãs de antigas histórias que circulam de boca ao ouvido, revelando ainda haver a possibilidade de que a palavra trabalhada artesanal e oralmente tenha audiência de uma escuta atenta que fortalece um coletivo por meio das questões humanas que nela circulam.

A pesquisa ora apresentada se pauta na ideia de comunidade narrativa sugerida por Lima (1985), na qual esse autor aponta para a ação de contar histórias que envolve um processo simbiótico entre aquele que fala e aqueles que lhes emprestam seus ouvidos para vivenciar momentos em que partilham e transmitem experiências a partir das histórias de vida, ou daquelas que povoam o imaginário, nutrindo e revelando valores e visões de mundo, estabelecendo assim uma ligação que aproxima os envolvidos a partir de vivências culturais que podem indicar que esses pertencem a uma mesma comunidade de narradores.

Segundo Machado (2015), a oralidade era fundamental para as sociedades tradicionais, pois por meio dela é que os saberes circulavam e a memória ia sendo construída e preservada. Nos enredos que constituíam os mitos, contos e lendas circulavam vivências recheadas de sentimentos universais como o amor, a raiva, o medo, a vitória; narrativas que alimentaram o cotidiano comunitário no passado e transcenderam, se perpetuando pelo tempo e espaço.

O desenvolvimento da vida moderna não foi uniforme e nem teve a mesma intensidade em todos os cantos do mundo, mas por onde passou deixou marcas, tirou ao longo do tempo o senso de comunidade e coletividade, no qual a transmissão da sabedoria era feita de boca ao ouvido (BENJAMIN, 1994). Assim, notou-se uma progressiva redução de momentos em que as pessoas se reuniam para contar histórias e transmitir a sabedoria empreendida, pelo uso dos provérbios, ou pelas rememorações de toda uma história de vida, práticas essas em que as palavras não estavam para dar explicações, mas sim faziam com que o ouvinte interiorizasse pela experiência o que foi pronunciado, fazendo-o refletir.

Para Benjamin (1994), as narrativas foram sendo preservadas ao longo da história graças a dois tipos complementares de narradores: aqueles que, fixados em sua comunidade, tiravam delas seu sustento e as alimentavam com a voz que revelavam suas experiências; e aqueles que viajavam pelo mundo e, a cada parada em um contato com aquele primeiro, se nutriam de suas experiências, deixando em retribuição uma moeda de mesmo valor, tal qual o trabalho do polinizador natural que vai retirando o néctar e, ao mesmo tempo, vai contribuindo para que a natureza se reproduza.

Em suas ponderações, Campos (2016) mostra que as palavras de Benjamin (1994), no que se referem ao “declínio da experiência” e à “morte da arte de narrar”, estão imersas em um contexto social e histórico em que esse autor estava inserido, e que são extremamente ricas e produtivas se as observarmos sob outros prismas, se considerarmos que ainda narramos a partir “de novas formas da experiência, até mesmo inesperadas, tal qual vaga-lumes que sobrevivem e ressurgem de lugares onde parecia não haver mais nada - a escuridão” (CAMPOS, 2016, p. 59).

Percebendo que as histórias ainda circulam na contemporaneidade, Campos (2016), que estuda as narrativas das crianças, menciona que as histórias passaram a ecoar de outras maneiras, ganharam outras roupagens, imersas em novos suportes, como, entre outros, o cinema, a internet e os jogos de videogames, sendo que esses novos modos ainda se alimentam das narrativas da tradição oral. Ideia reafirmada por Café (2015), para quem as novas maneiras de comunicação encurtaram distâncias, possibilitando uma conexão planetária a qualquer momento; mas essa autora reforça a necessidade de retomar o pensamento benjaminiano e observar a qualidade dessas experiências, já que elas são distintas daquelas que envolvem a presença do outro no princípio comunicativo. Os espaços virtuais são um exemplo desses novos princípios comunicativos; Busatto (2005) investiga as práticas narrativas desenvolvidas nos espaços virtuais pelos narradores contemporâneos os quais nos mostram que a narração de histórias se mantém viva, sendo que as novas tecnologias se tornaram grandes aliadas. Essa autora, que aborda sobre a performance, diz que o contador de histórias contemporâneo é um performer, já que o seu corpo é acionado quando narra uma história.

Para essa autora, a contação de história é uma linguagem artística “multidisciplinar, pois envolve letra feito voz, movimento feito imagem visual, som feito paisagem sonora” (BUSATTO, 2005, p. 24). E essa complexidade faz do corpo do contador em performance um objeto de arte. É com o corpo e a voz que esse artista sugere a construção imaginária de personagens, ações e espaços, sem que sejam fundamentais outros recursos técnicos específicos, como cenografia, iluminação, sonoplastia, entre outros. Busatto (2005) elucida sobre as inúmeras formas performáticas de se contar uma história, mas, segundo ela, quando um performer conta uma história, ela é narrada por meio do seu corpo, tornando-se a própria história, movimento em que o corpo vive um distanciamento e um envolvimento que se instauram, simultaneamente, em performance.

As colocações de Busatto (2005) se alinham às de Marina Machado (2010, p. 131) na noção de criança performer:

[...] o mais autêntico protagonismo das crianças pequenas pode ser visto como ato performático: dizeres intensos pelo corpo, no corpo, são atos exercidos em cada uma das linguagens da primeira infância, tal como a cultura adulta propõe: brincar, desenhar, dançar, criar narrativas próprias, cantar.

Marina Machado (2010, p. 125) toma o termo cunhado por Merleau-Ponty para compreender como a criança se insere no mundo, visto que,

[...] por sua forte aderência às coisas, vida imaginativa plena e pensamento polimorfo, não cabe ‘ler’ a criança pequena como se seu corpo estivesse a serviço da cultura, nem tampouco que a cultura - na qual foi concebida, nasceu e convive - estivesse à serviço de seu corpo; a noção de corporalidade tal como compreendida pela perspectiva merleau-pontiana pode resolver esse aparente dilema, ao romper dicotomias, convidando-nos a enxergar em cada criança um corpo que sinaliza a cultura, mergulhado nela.

Os estudos de Marina Machado (2010) sobre a Fenomenologia da Infância vão em busca da apreensão do ponto de vista da criança mesma, com foco na Pedagogia Teatral e na Educação Infantil. E com este intuito, “vêm se apoiando no tripé corpo-mundo-outro para trabalhar a etnografia das situações observadas, bem como para interpretá-las” (MACHADO, M., 2010, p. 125).

Dentro da amplitude de autores, áreas e contextos que trabalham com a performance, Pereira (2012) enumera três contextos para tratar da relação entre performance e educação: o aplicado, oriundo da esfera da comunicação, na qual se investiga as articulações entre performance e coletividade; o analítico, relacionado à esfera da crítica, em que se interpretam a arte e a cultura; o de realização, que trata do estudo da criação artística, da arte da performance propriamente dita. Específico a este terceiro contexto, a performance possui uma trajetória histórica que perpassa vários movimentos artísticos das artes visuais, como apresenta Goldberg (2007) ao delinear os acontecimentos performáticos que foram decisivos para a instauração dessa linguagem híbrida, que enquanto arte viva acontece na relação corpo, espaço e tempo; essa autora revela que, a partir de 1970, a performance passou a estabelecer um lugar de experimentação e novas maneiras de pensar a arte.

Contudo, para Pereira (2012, p. 294), independentemente do contexto de investigação da performance, o corpo é a motriz da ação: “na performance, o corpo de narrativo passa a poético, não sendo tomado, portanto, e, apenas, como um aparato físico a partir do qual se constitui um indivíduo, uma singularidade orgânica. O corpo é um espaço de representação e atuação”. E nessa encruzilhada entre a comunicação, a cultura e a arte é que a performance se faz fecunda na educação. Esse autor defende a ideia de uma prática pedagógica performática que carrega qualidades culturais, artísticas e estéticas, no potencial de gerar transformações sociais.

A performance abre o espaço para a indeterminação, para o indizível, preza pelo imaginado em detrimento do entendido, ela justapõe o incongruente, busca, com isso, promover novas significações, novos esquemas, novas configurações de ser, novas formas de expressão e contraexpressão. Nela, embute-se um anacoluto no corpo - fendas, brechas interpretativas, formas de compreender o mundo, o outro, que não se esgotam pelo rigor do discurso lógico, racional, mas que antes convoca o corpo, as vísceras, a memória para uma real aproximação com esses. (PEREIRA, 2012, p. 307).

Pereira (2012), em diálogo com Zumthor (2007), salienta a importância do corpo na performance, pontuando a relação entre execução e recepção, que postula uma coletividade e tem uma dimensão estética, sensorial, ou seja, “a performance comunica” (PEREIRA, 2012, p. 297, grifo do autor).

Zumthor (1993, 1997, 2007) traz a ideia do papel do corpo e suas percepções sensoriais, introduzindo o conceito de performance, que segundo ele é o “único modo vivo de comunicação poética” (ZUMTHOR, 2007, p. 34). O termo “poético” é tratado por ele de modo abrangente e absoluto, em que o texto poético “significa o mundo. É pelo corpo que o sentido é aí percebido.” (ZUMTHOR, 2007, p. 77-78).

A performance, segundo esse autor, apresenta uma complexidade pela qual a mensagem poética é ao mesmo tempo sentida e comunicada na dinâmica na qual o texto é produzido em uma determinada circunstância, que envolve o tempo e o espaço, na qual há um engajamento do corpo e da voz, que na força da presença instaura a teatralidade da linguagem, extrapolando o que é relatado, podendo ser vivenciada inúmeras vezes sem que jamais seja redundante, pois possui “uma qualidade adicional, a ‘reiterabilidade’” (ZUMTHOR, 2007, p. 32).

Segundo Zumthor (1997), a performance se estabelece por meio de um ritual em que a voz proferida num espaço-tempo se faz presente eternizando-se, ideia que corrobora com as vivências e os estudos de Hampaté Bâ (2010), que fala a partir das tradições da savana ao sul do Saara, antigamente chamada de região do Bafur, local em que a prática da palavra falada, que é intrinsicamente ligada ao corpo, sempre foi ritualizada e muito respeitada por um coletivo que tem uma postura em relação à transmissão do saber. Quem a profere está consciente do poder desse meio de comunicar e, ao mesmo tempo, preservar e guardar o conhecimento, ou seja, a palavra ao ser pronunciada alcança toda sua potencialidade no universo da tradição, que está pautada nos valores vitais que compõem uma comunidade narrativa.

Dentro desse pensamento, a promoção da harmonia universal se inicia dentro daquele que gera o movimento e a ele cabe manter o comprometimento com esta força que a palavra carrega, principalmente quando é responsável por inventariar, alimentar e compartilhar os saberes produzidos por gerações, sendo que esses saberes ancestrais se perpetuam nas fábulas, lendas, mitos e provérbios, que a tradição oral guarda em sua memória e são usados na educação que é feita a partir da vida, para a vida, modo de aprendizagem que difere da visão ocidental que é sistemática e fragmentada (HAMPATÉ BÂ, 2010).

Como apontam os estudiosos Zumthor (1993) e Ong (1998), a memória da tradição oral passou a ser preservada pela escrita no que se denominou de literatura, que também passou a produzir as histórias autorais. Todavia, segundo esses autores, a ancestralidade dos textos que vêm de tempos remotos, que são pautados nas repetições e acumulação, facilita a teatralidade, imprime o ritmo ao corpo e, ao mesmo tempo, conserva uma essência das narrativas que vem perpassando o tempo e o espaço; e, simultaneamente, nutre com sua flexibilidade as adaptações, constituindo-se como uma substância que promove o efeito sensorial, fazendo pulsar mais forte a circulação sanguínea no encontro entre o narrador de história e seu público.

Segundo autores como Sisto (2005), Matos (2005), Regina Machado (2015), os narradores de histórias contemporâneos se alimentam desse saber ancestral por meio da palavra escrita, e assim compõem seu repertório, que é transmitido de geração para geração: “[...] quem escolhe as histórias para as crianças de hoje são as crianças de ontem. Como numa corrida de revezamento, a criança de uma geração recebe uma tocha e atravessa a vida carregando-a acesa.” (GIRARDELLO, 2015, p. 19).

Para esses autores, as escolhas de um contador de história dialogam com suas experiências de vida, sendo que podem ser pautadas por inúmeras possibilidades, como por um tema interessante, uma identificação com os personagens, por ter vivido algo parecido, entre outras; e, para além dessas motivações, a escolha do repertório também envolve o prazer daquele que conta, pois esse deleite é fonte de estímulos para a criação de imagens e deve ser “respeitada, pois as relações de afeto estabelecidas e/ou suscitadas pelo texto facilitam sua memorização” (CAFÉ, 2015, p. 125).

Logo, o repertório influencia no desempenho da performance de um contador, pois, ao dialogar com suas imagens internas, as escolhas contribuem para a presença na narrativa (MACHADO, R., 2015), que se estabelece numa relação do saber ser e saber fazer, impressos na linguagem vocal e o corpo todo gestual. A voz e o corpo numa “admirável permanência da associação entre o gesto e o enunciado: um modelo gestual faz parte da ‘competência’ do intérprete e se projeta na performance.” (ZUMTHOR, 1997, p. 203).

Costurando a ideia de performance na contação de história conjugada à experiência sensível dentro de uma comunidade de narradores, envolvendo tanto os textos que habitam a literatura, como as histórias de vida, Hartmann (2005, 2015) diz que um narrador de histórias pode revelar, compartilhar e também compreender seu processo experiencial a partir dos contextos culturais em que está inserido, sendo essa experiência oriunda tanto da estruturação da linguagem falada, como dos códigos que envolvem os sons e a gestualidade do corpo inseridos nos momentos das interações.

Assim como Campos (2016), Hartmann e Silva (2019) também se dedicam às experiências performáticas vindas das narrativas das crianças e revelam que oportunizar a voz para elas narrarem suas histórias inverte a ideia já enraizada na sociedade de que quem conta as histórias são os adultos. Esta ideia desafiadora e inovadora, igualmente adotada e defendida por Hartmann (2017), Hartmann e Silva (2019), Hartmann e Gasperin (2018) e Gabriel (2021), mostra que a inversão coloca a criança como um membro participante da construção dos saberes, alimentando ainda mais sua criatividade, sua imaginação; o exercício de contar e ouvir enriquece suas próprias histórias, além de viabilizar a troca e a produção do conhecimento, e essas narrativas vão se constituindo como sementes de resistência num movimento que busca o equilíbrio na relação de poder entre adultos e crianças, que vai se tornando mais igualitário em todos os contextos sociais. A criança, enquanto sujeito social, participa das decisões e constrói significados não só com seus pares, mas também com os adultos, sendo que todos passam a se constituir como autores mais conscientes das suas histórias de vida, movimentos nos quais o próprio ato de contar história é “um espaço muito forte de resistência política à acomodação cultural” (GIRARDELLO, 2015, p. 78).

Segundo Hartmann, Sousa e Castro (2020), oportunizar a voz e a vez para as crianças é uma maneira de se trabalhar com o pensamento decolonial, também discutido por Oliveira e Lucini (2021), uma vez que se busca outras maneiras de se pensar o conhecimento, nas quais o outro pode mostrar seus pensamentos e contar a história sob outras perspectivas, sem desconsiderar o saber produzido, rompendo assim com a ideia de superioridade imposto pela visão eurocêntrica. Hartmann, Sousa e Castro (2020) e Gabriel (2021) reconhecem que, ao abordarem os pensamentos críticos pós, des ou decolonial, muitos buscaram seu reconhecimento, trazendo suas histórias, como no caso dos negros, mulheres, indígenas, entre outros. Contudo, no universo humano, as crianças ainda se encontram numa situação marginalizada, em uma relação desproporcional com o adulto.

Segundo Gabriel (2021), os momentos em que as crianças compartilham as histórias advindas da literatura, que falam sobre si e suas preferências, que revelam suas próprias histórias de vida, oportunizam ressignificar seus próprios processos e aprender de forma lúdica a olhar como se inserem na organização social; e, como diz Benjamin (2007), é experimentando o mundo pelas brincadeiras, brinquedos e pela literatura que a criança vai atribuindo significações de maneira descontraída.

Nessa fase da vida, as interações e diálogos são fundamentais, pois se a criança é o adulto de amanhã, é preciso que os temas humanos sejam discutidos com ela, e essa troca de experiência e de visão de mundo é pela conversa, um lugar de fala e de escuta, onde a criança se sente segura para abordar assunto que lhe é importante, revelando de maneira subjetiva seus afetos e sua imaginação.

Essas visões sobre a arte de narrar entrelaçada com a performance dialogam com a ideia de comunidade e coletividade na qual os corpos se reúnem para viver e compartilhar experiências sensíveis, que desde tempos remotos se davam na circularidade das rodas de conversas nas quais os mitos, contos e causos vividos ou inventados foram passados de geração em geração. Nessa perspectiva, as rodas de conversas são observadas como espaços educacionais de resistência, nos quais a distribuição dos corpos revela que as ações não estão para empreender disciplina ou controlar o tempo, como apontam as estudiosas Hartmann e Silva (2019), e sim serem uma forma intensa de educar a partir do pensamento coletivo, que pode contribuir para que possamos “escolher não somente como percebermos a realidade, mas também como criamos a realidade” (HOOKS, 2020, p. 93).

Ainda no âmbito educacional, a performance, para Pereira (2012, p. 308), permite a construção de novos olhares e formas de ver a realidade:

[...] uma prática educativa que enseja transformar responde não ao mero ajustamento dos indivíduos a dada forma de sociabilidade, mas ao imperativo de ativar sujeitos capazes de encetar novas formas de posicionamento, de compreensão do todo, do coletivo, sujeitos ciosos pela recuperação genuína do laço social, ciosos pela atualização constante dos acordos, das formas de ser e agir em meio à coletividade.

Neste artigo é apresentada uma coletividade que foi edificada pelas trocas de saberes durante os trajetos autoformativos de uma professora e uma comunidade de crianças e jovens narradores, cujos laços e nós foram tecidos e entrelaçados nas várias edições do curso “Arte de contar histórias”.

Trajetos autoformativos: contar, ouvir, brincar, contar de novo...

Nesta seção, a ênfase está na professora, que tem formação na área de Letras e lecionava desde 2010 nos anos finais do Ensino Fundamental, na disciplina de Língua Portuguesa, mas a partir de 2017 a unidade escolar em que estava lotada passou por um processo gradativo de estadualização que envolveu toda a rede de ensino do município de Araucária. Nessa trajetória, passou a atuar no curso “Arte de contar histórias”. Em seu percurso investigativo e autoformativo sobre suas práticas, percebeu que teve inúmeras dificuldades nessa fase de transição, primeiro porque passou a atender as crianças dos anos iniciais sem ter formação acadêmica para tal, segundo porque não tinha formação sobre a contação de histórias e desconhecia os recursos e saberes que envolvem essa área do conhecimento.

Logo quando iniciou no curso, a professora, que trazia em si marcas de um processo de escolarização tradicional e rígido, no qual era comum dispor os corpos em fileiras para que o conhecimento se estabelecesse, modo esse também empreendido por ela durante suas práticas enquanto professora de Língua Portuguesa, teve dificuldades em organizar as crianças de maneira circular: “[...] tudo virava uma bagunça ao menor toque de mãos e pés, desestabilizando a minha fala. Eram os corpos cheios de vida querendo desafiar o sistema de ordem autoritária que eu, por uns dias, tentei impor.” (LEAL, 2021, p. 88).

Segundo a professora, ao longo do seu percurso percebeu que, na própria ação de contar histórias, a palavra foi se tornando autoridade no sentido de estabelecer ligações afetivas entre o adulto e a criança, criando vínculos comunitários e coletivos, estabelecendo elos de pertencimento e igualdade que foram organizando e facilitando a troca de saberes vindos das histórias de vida que se entrelaçavam com as histórias narradas, e nesse espaço a voz autoritária já não “[...] dialogava com o clima do ritual que eu estava tentando construir” (LEAL, 2021, p. 79), práticas que foram conversando com os pensamentos decoloniais empreendidos por Gabriel (2021), momentos em que a professora passou a se questionar: “Empreendemos nossas ações para fazer o que se diz por certo? Ou para aprender e com elas nos transformar?” (LEAL, 2021, p. 77).

Ao longo do seu processo investigativo, essa profissional igualmente observou que os encontros envoltos nos princípios coletivos eram tal qual rituais, pois ela e as crianças, que também contribuíam com a organização, foram construindo e desenvolvendo alguns costumes e regras que eram constantemente compactuados e aceitos por todos, ocasiões em que a voz e o corpo estavam presentes nos ritos: pedir e finalizar histórias; contar e ouvir; mediar, cantar, brincar, contar de novo e abraçar.

Com relação às dificuldades com a contação de histórias, a professora retomou seu percurso autoformativo e relembrou que em sua casa não havia televisão: “[...] nossa diversão eram as histórias. [...] meu pai me pegava no colo, acendia um cigarro de palha e sempre me contava como minha vó morreu logo depois que ele nasceu.” (LEAL, 2021, p. 30-31). Seu pai também foi o responsável por introduzi-la nas histórias literárias: “Apesar do pouco estudo, meu pai também lia muito pra mim. Sempre eram as mesmas narrativas que se intercalavam entre as histórias da ‘Rapunzel’, de ‘O patinho feio’, ‘O soldadinho de Chumbo’ e a do ‘Ovo da Bruxa’.” (LEAL, 2021, p. 32).

Entretanto, ao rever seu percurso, a professora constatou que suas dificuldades como contadora de histórias vinham justamente da interrupção desse processo fecundo e imaginativo da sua infância, pois, vasculhando o baú da sua memória, verificou que houve um distanciamento dela com as histórias orais e escritas durante o período em que esteve nos bancos escolares; e se questionando sobre esse afastamento, apontou, entre outras possibilidades, para as transformações sofridas pelas vozes que narram abordadas por Benjamin (1994) e para a ideia de novas formas de narrar apresentadas por Campos (2016) e Busatto (2005). E foi exatamente nos novos ambientes, como os virtuais, que a professora foi tendo seus primeiros contatos com inúmeros contadores de histórias, profissionais que tiveram uma fundamental importância na fertilização da sua imaginação, sendo suas primeiras referências no campo da performance e fontes para seu repertório inicial, que também foi sendo nutrido com suas leituras e trocas com as histórias que as crianças contavam nos encontros.

Ao fazer um levantamento do seu repertório, a profissional percebeu que este era composto por histórias autorais e por narrativas advindas da tradição oral, porém as que eram de tempos imemoriais representavam um número bem maior, e durante seus estudos sobre contação de histórias compreendeu que as estruturas desses textos, que muitas vezes são tecidas pela acumulação ou repetição de ideias, se constituem como uma substância rica em efeitos sensoriais. A acumulação de ideias e os efeitos sensoriais decorrentes dessas repetições lhe beneficiavam tanto no processo de adaptação, memorização e internalização das histórias a serem contadas, quanto na sua performance, como na interação com o público, no caso, as crianças. Ao rever sua trajetória como contadora de histórias, a professora observou que suas escolhas eram feitas a partir de um diálogo com suas imagens internas e sua vontade de compartilhar as histórias estava pautada em uma intenção narrativa que foi dando sentido para a sua ação de contar (MACHADO, R., 2015).

Durante suas primeiras experiências no curso “Arte de contar histórias”, a professora investiu no uso de acessórios como um chapéu, vestimentas e bichinhos de pelúcia, recursos que lhe eram familiares e que contribuíram para uma maior interação com as crianças, além de lhe dar mais segurança e amenizar a vergonha do corpo, pois ao usá-los “não era mais eu, e sim uma personagem que contava a história” (LEAL 2021, p. 62). Todavia, conforme foi se apropriando de seu próprio espaço, a professora percebeu que esses recursos não eram mais necessários para tal intenção.

Como parte do processo, conecto à ideia de performance (ZUMTHOR, 1997), ao longo de suas práticas, a docente viu a necessidade de usar fórmulas enquanto ritos que introduziam e finalizavam os contos narrados, observando que elas presentificavam e atualizavam as histórias, sendo que essas foram conduzindo tanto ela como as crianças ao mundo da imaginação, fortificando o vínculo coletivo. Os ritos de brincar, dançar e cantar, que sempre estavam atrelados ao contexto do conto narrado, foram recursos que potencializaram sua performance, pois o fato de se permitir estar presente nesses momentos com as crianças foi fertilizando e resgatando seu próprio processo imaginativo, que foi se revelando no corpo e na voz.

Do meu ponto de vista, vejo que o ritmo da música e o ato de dançar contribuíram com os investimentos que fazíamos em performance, pois recrutamos as mãos que marcavam as palmas e os pés que batiam no chão, numa articulação entre os membros que eram empregados separadamente, enquanto também utilizamos os gestos do rosto que expressavam os movimentos dos olhos e da boca, tudo conforme a entonação e a velocidade da voz, sendo essa, uma sinfonia entre o corpo e a voz que se configura na dança propriamente dita. (LEAL, 2021, p. 70).

Nesse elo coletivo entre os narradores, como parte de um ritual, também estavam presentes o rito de contar de novo as histórias já ouvidas, e, segundo a professora, aos sons das músicas e ao sabor das brincadeiras, todos fortificavam suas memórias, revigorando a ancestralidade, momentos nos quais recordar estava atrelado às experiências luminosas, onde a mente guarda as cores, os sons, os cheiros, os sabores e as texturas.

Segundo a professora, a animação de compartilhar histórias, cantar e brincar reverberava em todos, inclusive nos motoristas que transportavam as crianças que iam contar histórias em escolas ou em outros locais programados. Os contadores passaram a convidá -los para participar das suas apresentações e as relações foram se estreitando, de tal forma que “certo dia o motorista ‘preferido’, de maneira um pouco acanhada, pediu para contar uma história que fazia parte da sua infância e que, ao perceber a interação dos estudantes ‘soltou a voz’ e com ele vivenciamos ali mesmo dentro do ônibus um momento luminoso” (LEAL, 2021, p. 78). Numa ocasião de ponderação, a professora buscou refletir sobre a função das histórias na existência humana, levantando questionamentos como: “Por que as histórias são tão essenciais na vida humana? Por que em situações similares a essas vivências as pessoas são tocadas a ponto de querer compartilhar suas histórias?” (LEAL, 2021, p. 78-79).

Outro investimento que contribuiu com a instauração da performance foi a introdução da chamada lúdica - e não mais a resposta direta dos participantes: “presente” - na qual a professora e as crianças marcavam as presenças entoando rimas, trava-línguas, imitando bichos, ou outros sons por meio de onomatopeias, ou ainda, fazendo caretas que expressassem os sentimentos. Uma estratégia coletiva entre os contadores que envolvia uma relação afetiva que unia “a entonação, o ritmo, a altura e outros recursos da voz, conjugando-os com o arregalar e o fechar dos olhos, o abrir e fechar da boca, usando ainda as pernas e braços, os quais também entravam na brincadeira” (LEAL, 2021, p. 91).

O rito do abraço coletivo, pautado na lenda africana do Ubuntu, que abarca vários conceitos filosóficos discutidos por Noguera e Barreto (2018), também foi um recurso que fomentou a coletividade e a performance da comunidade narrativa. Segundo a professora, a lenda sempre era contada no primeiro encontro de cada curso que se iniciava, sendo experenciada por todos, e ao longo do semestre o abraço coletivo finalizava todo os encontros luminosos “enquanto os corpos reproduziam toda simbologia circular, as vozes entoavam com toda a força: “UBUNTU!!! SOMOS O QUE SOMOS, PORQUE SOMOS JUNTOS!!!” (LEAL 2021, p. 81).

Parte dos ritos que compuseram os encontros evidenciam que a prática docente dessa professora se modificou durante o processo, ao potencializar as dimensões criativas e construtivas do seu saber ser/saber fazer, que Pineau (2010) sinaliza como poética da performance educacional em consonância aos estudos de Conquergood (1989 apud PINEAU, 2010), narrativa que articula quatro palavras-chave: poética, representação, processo e poder. Na poética da performance educacional,

Ela reconhece que educadores e educandos não estão engajados na busca por verdades, mas sim em ficções colaborativas - continuamente criando e recriando visões de mundo e suas posições contingentes dentro delas. Uma poética educacional privilegia as múltiplas histórias e os múltiplos narradores no processo em que as narrativas da experiência humana são modeladas e compartilhadas por todos os participantes em um coletivo de performance. (PINEAU, 2010, p. 97).

Dentro desse coletivo de performance, como alude Pineau (2010), e conforme a profissional foi percebendo o poder das palavras vivenciados por Hampaté Bâ (2010), os encontros foram se tornando ainda mais luminosos, pois as rodas de conversas foram estabelecendo elos de pertencimentos e nelas os assuntos foram se desenrolando, criando um cordão de histórias e alimentado pelas experiências de cada um. Cada elo desse cordão de histórias nutria o grupo, onde uma história acordava no outro uma lembrança que logo pulsava forte na intenção de ser revivida, instaurando, dessa maneira, uma dinâmica infinita de rememorações. Memórias que despertavam as sensibilidades que algum dia já tinham circulado nas veias daquele que foi personagem da história da vida real, mostrando assim que as comunidades narrativas não desapareceram como menciona Campos (2016).

Por vezes, as falas das crianças - aqui atreladas ao poder e verdade, visão africana vivida e apresentada por Hampaté Bâ (2010) - levavam ao tema, às atitudes, ou aos lugares que se relacionavam com a história preparada para o encontro; caso isso não ocorresse, o assunto era conduzido pela professora, como no encontro que envolveu o conto “O homem que enxergava a morte”, recontado por Ricardo Azevedo (2004) na obra Contos de enganar a morte. Nesse dia, o tema foi introduzido por duas estratégias: a primeira foi pela música mexicana “Las Calaveras Chumbala Cachumbala”, momento em que as crianças puderam cantar, dançar e brincar; a segunda foi pelas seguintes perguntas: Que sentimentos vem à nossa memória quando falamos sobre morte? É possível que alguém nunca tenha experimentado esse sentimento? Sabemos o que há depois da morte?

Na circularidade da roda, as vozes revelaram que o tema lembrava saudade e tristeza pela ausência de quem já foi, e chegando à conclusão de que essa experiência é humana. Todos tinham uma história para contar. Uma das crianças, de 8 anos de idade, mencionou que conviveu com seu irmão gêmeo que estava morto ainda no ventre de sua mãe, e diante dessa situação, não trazia em si um sentimento de tristeza, porém sua história desde o início carregava a presença da morte.

Uma voz de 8 anos se emocionou ao relembrar a morte da avó, revelando que trazia em sua memória a herança dos sábios conselhos que ouvira. Com lágrimas nos olhos, um participante de 11 anos contou a saudade que tinha da avó, que morreu por causa de uma doença, acrescentando que não achava justo ela ter morrido tão cedo. O choro e a tristeza pelo sofrimento de ausência e saudade foram acolhidos e respeitados por todos. Conforme suas crenças, as crianças revelavam o que acreditavam sobre o pós-morte como reencarnação, céu e inferno, e ainda trouxeram a ideia de ir para o céu em forma de estrela. O tema entrelaçou histórias e compôs a grande colcha de retalhos que é a vida, e mostrou que está no inconsciente humano, inclusive das crianças, e que é fundamental ser trabalhado, como afirma Benjamin (1994).

As histórias de vida que circulavam nas rodas dialogavam com as experiências vivenciadas nos contos, como no encontro em que a professora narrou a história oriental da Sherazade, retirada do livro As mais belas histórias das mil e uma noites, recontada por Arnica Esterl e Olga Dugina (2012); escolha que, segundo essa profissional, conversou inicialmente com seu percurso e no qual ela foi percebendo que “era escolhida pelas histórias que tinham a presença marcante da mulher” (LEAL, 2021, p. 102).

A narrativa de Sherazade chegou a cada um conforme sua experiência (MATOS, 2005). Após ouvir a história, houve quem se focasse na justiça, mencionando que ela foi empreendida de maneira diferente para o rei e para a rainha; alguns apontaram para as angústias das mulheres que tentaram escapar das intenções do rei, ou para o lindo vestido da Sherazade usado na festa que anunciava sua morte; outros ainda mencionaram a ousadia e a inteligência da personagem principal.

Segundo a professora, a violência do rei circulou tão forte nas veias e nas entranhas mais profundas de uma criança de 8 anos, que após arregalar os seus olhos azuis, que ganharam a proporção do céu, revelou que em sua casa havia um imperador similar ao rei da história. Ele não matava uma noiva por dia, mas deixava marcas que ia tirando a graça de viver tanto dela quanto da sua mãe. Disse ainda que aquele não era o verdadeiro rei que tinha constituído aquela família, e que não entendia por que a mãe, que vivia chorando pela casa, não tomava uma atitude. Foi um momento no qual a força da palavra conectou histórias fervilhando as questões humanas, modo de aprendizagem que extrapolou a ideia cartesiana de educação (HAMPATÉ BÂ, 2010).

Outra voz, também de 8 anos de idade, narrou que na sua família foi a rainha, no caso sua avó, que não aguentou os sofrimentos, mandando o rei, seu avô, para a terra do esquecimento. Aquela terra em que o corpo se vai, mas as energias e as marcas produzidas e desenhadas por ele ficam circulando por gerações e gerações, revelando a todo momento que estão vivas nas várias camadas da vida.

Aquelas vozes que estavam presas dentro daqueles corpos tão jovens encontraram na Sherazade uma maneira de externar suas aflições, um turbilhão de sentimentos que o mundo lhes apresentava e proporcionava, na complexa relação entre o amor e o ódio, a vida e a morte, o desespero da ignorância e a magia da sabedoria. E esses ecos haviam sido gestados em uma comunidade na qual reinavam muitos reis ‘Chariar’ e me questiono: Será que práticas como estas contribuem para que as futuras noivas contadoras de histórias sejam, uma sementinha de sabedoria, da esperança, de coragem de iniciar pela voz uma mudança, na qual em mil e uma noites a vida e o amor quem sabe um dia possam reinar mais pacificamente? (LEAL, 2021, p. 101).

Outro momento no qual houve um entrelaçamento entre o conto e a história de vida foi quando a professora narrou o conto africano Anansi: o velho sábio, recontado por Kaleki (2007), conjugando com a música ganês Kokoleoko; segundo ela, a escolha dessa obra dialogou com seu processo inicial enquanto ouvinte, no qual percebeu que o encantamento provavelmente tenha vindo “de uma identificação com o protagonista, suas vivências e seus desafios, que de alguma maneira despertaram em mim a vontade de experienciá-la novamente como narradora e, quem sabe, fazer com que o público também vivesse algo parecido” (LEAL, 2021, p. 105).

Essa narrativa despertou várias falas que circularam na roda e resultaram em algumas experiências; dentre muitas, duas delas mostram por quais caminhos internos as histórias percorrem, aflorando a performance, e como esse processo performático vai alçando voos no percurso da criança enquanto contadora de histórias.

No cordão de histórias: as trocas de saberes

Nesta seção são relatadas três experiências, com ênfase na formação das crianças contadoras de história. A primeira experiência veio da criança referida como “O reconhecimento”, que iniciou o curso com 11 e concluiu aos 13 anos, revelou no primeiro semestre do curso que não se sentia reconhecida pela sociedade, dizendo que gostaria de ser como o Anansi, o personagem principal, pois assim poderia provar que era capaz de empreender grandes feitos e ser respeitado pelos que o circundavam. Ao ser questionado sobre essa fala, preferiu o silêncio e assim foi respeitado.

Como o curso “Arte de Contar História” tinha o objetivo de formar crianças contadoras de histórias, ao final de cada semestre os participantes tinham a oportunidade de contar histórias para diferentes públicos, e a escolha do repertório vinha de fontes distintas, como das narrativas feitas pela professora, ou das adquiridas no contexto familiar ou escolar.

No final do primeiro semestre de 2018, “O reconhecimento” escolheu, dentro do seu repertório, a narrativa Anansi: o velho sábio para encantar o público, opção advinda do percurso anteriormente relatado, e conforme um cronograma; a professora previu alguns momentos para os ensaios. Essa apresentação/ensaio diante do outro era uma estratégia empregada para aperfeiçoar a voz e o corpo gestual, seguindo os seguintes ritos: 1) pedir a história a partir das fórmulas encantatórias que podiam ser criadas pela própria criança contadora; 2) a narração da história; 3) falas que mostrassem as qualidades positivas do contador; 4) apontamentos para melhorar sua performance, apresentando estratégias que ajudassem o outro a desempenhar com mais encantamento o seu ofício. Segundo a profissional, estes momentos coletivos sempre se mostraram ricos em performance e muito produtivos, ideia que dialoga com a visão de Café (2015).

Essa era a primeira vez que o contador “O reconhecimento” narrava uma história pensando em um público diferente. Antes de se apresentar para os colegas, ele compartilhou que, para memorizar, leu e releu a história, e ainda contou inúmeras vezes para si mesmo, de modo que a narrativa foi circulando de maneira cada vez mais intensa dentro dele, processo similar ao vivenciado pela própria professora. Logo após, esse contador narrou o conto de pé, usando apenas o corpo e a voz. Depois de ouvir o conto, muitos mencionaram seu poder de memorização, que resultou na fluência narrativa; e outros perceberam o entusiasmo que foi revelado a partir de algumas entonações produzidas pela voz e alguns movimentos dos braços e das mãos, usados para criar cenários imaginários que fertilizaram a imaginação de todos.

Num momento de crítica construtiva, muitos mencionaram que por vezes as mãos ficaram no bolso, os pés chutaram o ar e os olhos quase não encontraram o público. Essas questões foram sendo trabalhadas entre os pares e a professora foi mostrando “que contar uma história é dar um presente para o outro e como é importante olhar para quem está sendo presenteado, sendo que nesse momento luminoso o olhar faz um pacto com público que vai validando o que o corpo e a voz do contador emanam.” (LEAL, 2021, p. 111). Esse contador foi encontrando sua maneira de contar, pois a narrativa incorporada por ele foi saindo com mais naturalidade, e com esses exercícios de ensaiar, recontar e receber as contribuições, o ritmo, o olhar, os gestos foram se adequando cada vez mais ao clima da história.

Entre 2018 e 2019, essa criança contadora narrou sua história em várias escolas e eventos, como a “21ª Feira do livro e 6º Festival Literário de Araucária”, e em momentos culturais promovidos pelo grupo Educação para as Relações Étnico-Raciais (ERER), do município de Araucária. Em todas essas experiências o contador narrou de pé, usando o corpo, a voz, as fórmulas de introdução e finalização do conto; e, ainda, ao final das narrativas eram promovidas rodas de conversas com o público, falas essas que eram retomadas durante os encontros, onde todos podiam compartilhar suas experiências a fim de refletir sobre seu fazer e de despertar no outro a vontade de ser um contador de histórias. Após essas vivências enquanto contadora de histórias, essa criança revelou com lágrimas nos olhos que se sentia reconhecida pela sociedade.

A segunda experiência com essa história foi a partir do contato com o livro, no qual uma das crianças de 8 anos externou seu estranhamento ao ver a ilustração da fada Mmoatia, dizendo que “aquilo não era fada, pois era preta e não usava roupas de fada!”. Nesse grupo havia uma criança negra, que iniciou o curso com 7 e finalizou aos 9 anos, aqui referenciada como “A fada”, que ficou visivelmente constrangida. Todas as meninas, inclusive essa contadora, descreveram as fadas baseadas nas imagens criadas pela mídia. Diante dessa situação, foram levantados questionamentos como: As fadas existem? Alguém já as viu? E a partir das respostas foi trabalhada essa questão, até que todos percebessem que podiam criar suas próprias imagens internas e como é rico e divertido esse processo que envolve a diversidade (HOOKS, 2020).

Em uma oportunidade de encantar um público diferente, “A fada” se prontificou a contar a versão do conto Quibungo, de Maria Clara Cavalcanti (2011), e justificou sua escolha pela presença de muitos desafios e aventuras vividos pelo personagem principal, movimento que mostra que o contador escolhe, mas ao mesmo tempo é escolhido pela história (MATOS, 2005). Assim como no outro caso mencionado, essa criança revelou uma ótima memorização da estrutura da história, mas também uma necessidade de dar vida ao conto usando melhor as expressões corporais e vocais.

Após inúmeros ensaios que trabalharam essas questões, sua primeira apresentação foi para um público de aproximadamente quinze crianças dos anos iniciais do ensino fundamental que frequentavam uma escola da rede municipal de Araucária. A contadora narrou o conto de pé, usando apenas o corpo e a voz, e foi possível perceber que o público compreendeu a história, pois em uma roda de conversa muitos revelaram suas experiências com os personagens. Entretanto, durante o encontro no curso, momento em que compartilhou sua experiência com seus pares, “A fada” contou que seu medo, insegurança e vergonha se manifestaram de forma que o encantamento ficou comprometido.

Segundo a professora, nesse caso houve a necessidade de mais ensaios, nos quais ela procurou mostrar, por meio de brincadeiras, que nas interações sociais as expressões faciais dialogam com a voz e o corpo, que se movimentam de forma articulada; também procurou dar um depoimento da sua própria trajetória para mostrar que também passou por situações similares. Além disso, a docente simulou um público, por meio de objetos dispostos em cadeiras, incentivando que “A fada” fizesse movimentos lentos para que o corpo e o olhar alcançassem cada objeto que estava ali: trabalhando um pouco a voz; buscando empregar algumas mudanças de entonações conforme os sentimentos dos personagens; empregando ainda momentos de pausas para causar suspense, expectativa ou medo.

“A fada” também se apresentou no evento promovido pelo grupo ERER, e quando soube sobre os temas nele tratados demostrou um sentimento de pertencimento tanto por meio do seu olhar, que ganhou um brilho especial, como por seus questionamentos sobre o evento. Falas que foram revelando seu sonho de encantar o outro, demonstrando ainda um visível empenho durante os ensaios, que se intensificaram, fazendo que a história circulasse de maneira mais verdadeira dentro dessa contadora. Seu público era de aproximadamente quarenta professores da rede municipal. E diferente da primeira experiência, a voz e o corpo se empenharam na intenção narrativa para representar o medo, o desejo, a ironia, o pavor, a angústia, a curiosidade e a alegria dos personagens, e seu olhar fez o pacto com o público de tal maneira que revelou sua competência em performance (ZUMTHOR, 1997).

Na roda de conversa após esse momento luminoso, o público se manifestou de maneira tão intensa que foi possível perceber que as aspirações dessa criança foram concretizadas e interferiram na sequência dos acontecimentos da sua vida real, pois a partir dessa experiência ela foi indicada por algumas pessoas do público para mais duas oportunidades como narradora.

A primeira foi para se apresentar no “I Seminário EREYA Desafios e perspectivas para uma Educação Antirracista”, promovido pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), no qual receberia uma homenagem ao lado da Dona Diva Guimarães - uma professora negra já aposentada, neta da união de uma escrava com um português -, que ficou conhecida após dar um depoimento emocionante sobre sua vida durante a Feira Literária de Paraty, em 2017. Segundo a organização do evento, “A fada” e Dona Diva estariam dando vida ao termo “Erêya”, que significa criança e mãe. No dia da sua apresentação, além de encantar com sua performance, “A fada”, que já tinha ciência do percurso de sua companheira, também homenageada, compartilhou com ela algumas de suas vivências. Após receber o prêmio, Diva Guimarães mencionou que aquela criança contadora lhe revelou fatos muito sérios envol vendo o preconceito racial, e acreditava que “A fada” era uma semente que traria novos rumos para a história da vida real.

E na segunda oportunidade, a contadora foi contratada e remunerada para participar do “Encontro Diálogos: Literatura e Identidade Negra”, promovido pela Biblioteca Pública do Paraná. Mais uma vez, conduziu sua apresentação com maestria e, ao final, uma das pessoas do público disse que se sentia como o personagem principal da história, pois, por ser negro, já tinha enfrentado vários desafios na vida.

Nessas experiências a professora, “A fada” e o público, numa horizontalização do poder, foram empreendendo movimentos decoloniais de resistência na tentativa de viabilizar a recriação do imaginário sequestrado pelo pensamento colonial apresentado por autores como Gabriel (2021).

Outra experiência tecida a partir da junção da tradição oral e da performance ocorreu no encontro em que se narrou o conto Ulomma - A casa da beleza, do autor nigeriano Ikechukwu Nkeechi, mais conhecido como Sunny (2011), aliado à música contida na história e à brincadeira africana “Meu querido bebê”, e foi também uma experiência que teve vários desdobramentos. A professora percebeu que durante e após ouvir a narrativa, as crianças expressaram tanto no corpo como na voz a indignação pelo fato que o rei queria apenas um filho homem, desprezando as crianças que nascessem meninas. Experiências em performance que corroboram com a ideia de que o texto só ganha vida em seu uso, sendo que o corpo e suas percepções sensoriais são fatores de extrema relevância no processo interativo (ZUMTHOR, 1993, 1997, 2007). No momento da roda de conversa, todos falaram sobre essa posição do monarca, e muitos se surpreenderam por ele poder ter várias esposas, e ainda apontaram a inveja e a crueldade das mulheres que separam o único filho varão de sua mãe. Outra vivência que causou impacto foi a diferença entre a imaginação e a ilustração do livro, que apresentou mulheres carecas, vestidas com roupas e acessórios bem coloridos, próprios de várias culturas africanas, promovendo uma discussão a respeito dos conceitos de beleza para cada sociedade.

Ao final da conversa, uma das crianças de 8 anos ainda questionou a falta de explicação sobre o destino das crianças que nasceram meninas, e todos tiveram a oportunidade de criar um novo final para a história. Experiências em que a professora teve oportunidade de refletir e se questionar:

Penso que esse trabalho aponta para a ideia de que vivemos momentos em que há uma grande valorização do mundo externo e o contato com os contos de outras tradições por vezes geram questionamentos, e me pergunto: Como as respostas a esses questionamentos podem produzir um movimento interno? E como essas experiências podem contribuir para um novo olhar para o outro? (LEAL, 2021, p. 134).

Esse conto foi narrado pela professora em 2018, escolha motivada pela presença marcante da mulher. No final do segundo semestre de 2019 foi escolhido pela criança contadora referida como “O encantamento”, que iniciou o curso aos 7 e finalizou aos 8 anos, e também se apresentou no evento promovido pelo grupo ERER. Segundo ela, o motivo dessa escolha se deu justamente pelo conto ter deixado marcas de uma distinta cultura; por apresentar injustiças, que ao final foram resolvidas; além da presença da magia na história. Assim como os outros casos já mencionados, essa criança também narrou de pé, usando apenas o corpo e a voz, e passou pelo processo de ensaio Contudo essa situação foi inusitada, pois a maioria das crianças do grupo estava escutando a história pela primeira vez, e passaram pela experiência em performance, tal qual quando a professora narrou o conto, e muitos levantaram questionamentos e fizeram apontamentos; e quem conduziu a roda de conversa que se estabeleceu foi a própria criança narradora, num processo de horizontalidade no qual o conhecimento foi compartilhado pelo estudante que estava à frente, na inversão “adultocêntrica” mencio nada por Gabriel (2021).

Horas antes de se apresentar no evento ERER, “O encantamento”, a título de ensaio, teve a oportunidade de narrar essa história para três professoras, e a partir da sua presença narrativa expressa tanto pela voz, como pelo corpo gestual, levou seu pequeno público às lágrimas; e, como menciona Zumthor (1993, 1997), o que lhe chegou era tão familiar que mexeu com algo que lhe era tão essencial, que passou a se identificar com o que foi narrado, unificandose à narrativa de tal forma, que aquilo que era proferido parecia lhe pertencer. Durante o evento não foi diferente, pois ao final algumas pessoas do público, visivelmente emocionadas, num momento luminoso, mencionaram que o conto dialogou com suas histórias de vida, e o que foi narrado superou a mera transmissão do conto ou do conhecimento, uma vez que deixou marcas profundas no que foi comunicado e ouvido, ou seja, a performance implicou em competência que jamais é redundante.

Outra experiência vivida a partir das histórias de vida foi o encontro realizado na Casa do Cavalo Baio - uma casa da cidade de Araucária que sabiamente abriga a história dos araucarianos -, que, desde muito nova, passou a ser uma referência para os que por ela passavam, orientando caminhos, destinos e rotas; tornando-se uma guia que perpassou gerações, resistindo a desgastes e tentativas de afronta à sua memória. Lá, a professora e as crianças foram recebidas pela proprietária da casa que, com muitas fotos já amareladas pelo tempo, contou o percurso do município desde quando o principal meio de transporte eram as carroças e os cavalos. Enquanto a voz de quem viveu a história ia conduzindo a imaginação, os retratos ilustravam as transformações e ambos despertavam curiosidades: “Como é que a casa foi parar lá no alto?”; “Por que ela tinha esse nome?”; “Por que um dia a casa foi ameaçada?” e “O que significava ser tombada pelo Patrimônio Cultural do Paraná?”.

Essa roda de conversa, a partir das experiências de vida, se estendeu pelo tempo e pelo espaço, ganhando a atenção dos ouvidos dos pais, avós e parentes que também alimentaram o imaginário e o repertório das crianças contadoras de histórias, pois muitas famílias narraram suas experiências com a casa, num movimento que aumentava o cordão de histórias no qual a comunidade narrativa era testemunha viva e ativa dos fatos (HAMPATÉ BÂ, 2010).

Considerações Finais

A superação da relação verticalizada do professor que ensina e o aluno que aprende, para um processo horizontalizado de escuta e partilha de experiências mútuas, levou, no caso analisado, a uma formação de contadores de história a partir de um processo mais coletivo. Em sinergia, a professora e as crianças reciprocamente contribuíram para despertar a performance em si e no outro. Aos poucos, as crianças, numa demonstração de resistência, passaram a não ceder diante do outro que lhe impõem e, também, buscar brechas alternativas para se manifestar e reinventar, a se constituírem como autores, provavelmente mais conscientes das suas histórias de vida, movimentos nos quais o próprio ato de contar história foi “um espaço muito forte de resistência política à acomodação cultural” (GIRARDELLO, 2015, p. 78).

A experiência no curso “Arte de contar histórias” salientou a dificuldade de ensinar alguém a contar histórias; o caminho é o de construir juntos artifícios para melhor desempenhar o papel de trabalhar com a palavra, num eterno processo de elaboração, em que uma preparação vai sustentar a próxima e assim sucessivamente. A experiência com os textos escritos ou orais se dá no corpo, em performance, em diálogo com os valores mais fundamentais, em diálogo com o mais íntimo do nosso ser e, simultaneamente, plantam-se sementes da fantasia obtidas nos recursos da narrativa propriamente dita; tanto daquelas advindas das experiências de vida, como as da literatura.

A contação de história é uma arte perfor mática que envolve o trabalho com o corpo e com a voz, cujas experiências e aprendizados em comunidade são impulsionados tanto pela atividade frequente de narrar, em que o corpo e a voz se modelam internamente ao seu tempo, como também pelo desenvolvimento de investimentos externos à narrativa, os quais foram sendo implementados e aprimorados pelo grupo. Os recursos internos afloraram na estrutura dos encontros, tanto nas rodas de conversas quanto nas músicas, nas brincadeiras e, claro, nas histórias, sendo que cada atividade envolvia o uso da voz e do corpo. Nota-se que os encontros foram se transformando em rituais nos quais a performance foi se instaurando em cada rito praticado, com uma intensidade cada vez mais forte.

O grupo desenvolveu alguns costumes e regras que eram constantemente compactuados entre eles e aceitos por aqueles que os vivenciavam. E naqueles momentos, em que a voz e o corpo estavam presentes nos ritos empregados, se instaurava uma atmosfera que ressignificava o ser e o fazer do grupo, em sua coletividade, transformando e ao mesmo tempo desenvolvendo uma noção de comunidade na qual as diferenças eram as forças que os uniam.

A vocalidade esteve ligada às percepções sensoriais, a voz não se deixava enclausurar na fixidez das regras e, graças a essa vivacidade da voz pronunciada, o signo tendeu a se libertar da sua arbitrariedade. Na voz estão impressos os sentimentos e as sensações de prazer, visto que é no corpo que a voz age alterando os fluxos sanguíneos, e é ela que deixa rastros de informações daquele que a emitiu.

O desafio de cantar, brincar e dançar fez com que os estudantes fossem perdendo a vergonha, desempenhando melhor a performance tanto do corpo, como da voz, e investindo na intenção narrativa, aflorando a memória e a ancestralidade. Recordar estava atrelado às experiências luminosas em que a mente guarda as cores, os sons, os cheiros, os sabores e as texturas.

Em performance, a pulsação do corpo, entre um fluxo de ar que entrava e saía, foi coordenando a voz daquilo que ia se contando, sendo alimentada pelas emoções que eram envolvidas no momento da interação; os ritmos iam revelando o estado do espírito dos ritos praticados, mostrando as intenções, colocando-se em cena, se aproximando enquanto público e ouvintes deles mesmos.

As falas tinham o poder mágico de conduzir os corpos, tanto nas rodas de conversas, como diante do público, momentos em que o “falar” e, por conseguinte, o “escutar” estavam imersos em um sentido muito mais profundo do que se costuma atribuir a esses verbos, muito ligado à interconexão que vai além da carne.

Nas experiências em performances, reviveram a carga genética narradora, que em uma sinfonia orquestrada pela voz e pelo corpo foi instaurando o colorido captado pelo olhar, que dançou sob a música da expressividade, despertando os cheiros e as texturas aos sons das palavras que reverberam na matéria, fazendo alterar o fluxo sanguíneo, nos lembrando que estamos vivos e não estamos sós, temos o outro nessa troca energética.

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1A pesquisa que deu origem ao artigo passou pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Paraná (CEP) e foi aprovada pelo parecer consubstanciado número 4.266.541 em 09/09/2020.

Recebido: 23 de Junho de 2022; Aceito: 04 de Outubro de 2022

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