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Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade

versión impresa ISSN 0104-7043versión On-line ISSN 2358-0194

Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade vol.31 no.68 Salvador oct./dic 2022  Epub 13-Ene-2023

https://doi.org/10.21879/faeeba2358-0194.2022.v31.n68.p181-199 

Artigos

CONTRIBUIÇÕES DA CONTAÇÃO DE HISTÓRIAS EM LIBRAS PARA A EDUCAÇÃO DE SURDOS

CONTRIBUTION OF STORYTELLING IN BRAZILIAN SIGN LANGUAGE (BSL) FOR DEATH PEOPLE EDUCATION

CONTRIBUCIÓN DE LA NARRACIÓN DE HISTORIAS EN LENGUA DE SIGNOS BRASILEÑA (LIBRAS), PARA LA EDUCACIÓN DE SORDOS

Lidiane Rodrigues Brito*  Universidade Estadual de Montes Claros
http://orcid.org/0000-0003-3098-0946

Maria Clara Maciel de Araújo Ribeiro**  Universidade Estadual de Montes Claros
http://orcid.org/0000-0001-9205-5858

*Mestranda em Educação pela Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes). Pedagoga do Instituto Federal do Norte de Minas Gerais - Campus Salinas (IFNMG). Minas Gerais. Brasil. E-mail: rodriguesbritolidiane@gmail.com

**Doutora em Linguística pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) da Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes) e do Programa de Pós-Graduação em Letras (PROFLETRAS) da mesma Universidade. Minas Gerais. Brasil. E-mail: maria.ribeiro@unimontes.br


RESUMO

Este estudo discute as contribuições da contação de histórias em Libras para a educação de surdos no Ensino Fundamental. Para tanto, explora o potencial de desenvolvimento cognitivo, linguístico e cultural-identitário proporcionado pela contação de histórias, por meio do suporte da Linguística Aplicada e dos Estudos Surdos. Foram selecionados três vídeos de contadores disponíveis em canais do YouTube para análise, apresentando, ao fim, possibilidades didáticas para a sala de aula. Os resultados sugerem que ao imergirem em histórias contadas em língua de sinais, crianças surdas entram em contato com aspectos que permitem o desenvolvimento global, ainda que as intencionalidades por parte do professor contador das histórias não estejam postas.

Palavras-chave: contação de histórias; libras; educação de surdos

ABSTRACT

This study discusses the contributions of storytelling in Brazilian Sign Language for death people education at an elementary school. In order to do so, it exploits the potential of cognitive, linguistic and cultural development provided by storytelling, supported by Applied Linguistics and studies concerning the Death allied with three videos from storytellers available on channels of YouTube; presenting at the end, teaching possibilities for usage in the classroom. The results suggest that when death children immerse in the stories told in sign languages, they get in contact with aspects that allow global development, even without the storyteller teacher’s intentionality being presented.

Keywords: storytelling; brazilian sign language (BSL); death education

RESUMEN

Este trabajo discute las contribuciones de la narración de historias en Lengua de Signos Brasileña (Libras), para la educación de sordos en la escuela primaria. En este sentido, se explora el potencial de desarrollo cognitivo, lingüístico y la identidad cultural resultantes de las narraciones, a través del apoyo de la Lingüística Aplicada y de los Estudios de Sordos, aliados a la selección de tres películas de narradores disponibles en canales de YouTube, presentando, al fin, posibilidades didácticas para clases. Los resultados dan cuenta que, al adentrarse en las historias narradas en lengua de signos, los niños sordos entran en contacto con aspectos que permiten el desarrollo integral, aunque las intenciones por parte, del profesor narrador de las historias, no se ponen.

Palabras clave: narración de Historias; libras; educación de sordos

Para começo de conversa, para a conversa começar...1

Se somos filhos do tempo, então não há nada de errado que, de cada dia, brote uma história. Porque os cientistas dizem que somos feitos de átomos, mas um passarinho me contou que somos feitos de história (GALEANO, 2012, n.p).

Somos feitos de narrativas, somos atravessados por histórias e nos encontramos submersos a elas. Na escola, contar histórias é uma estratégia pedagógica lúdica capaz de proporcionar o desenvolvimento de estudantes em diversos aspectos, pois histórias criam pontes para a compreensão de diversos temas, estabelecem vínculos afetivos, alimentam imaginários, apontam possibilidades, aguçam a curiosidade e geram novas perguntas.

Apesar do contar e ouvir histórias ser constitutivo do humano, poucos sabem que essa prática tão comum e cotidiana entre pessoas ouvintes ocorre de maneira tão diversa ou até mesmo não ocorre para as pessoas surdas, sobretudo crianças. Os surdos, muitas vezes, não têm acesso a uma série de experiências que os ouvintes têm, pois poucas pessoas se comunicam com eles em Língua Brasileira de Sinais (Libras) e menos conversam sobre diferentes assuntos ou contam histórias, por exemplo.

Lembremos que crianças surdas não costumam chegar à escola sabendo Libras. Enquanto crianças surdas filhas de surdos2 aprendem a língua de sinais com os pais, crianças surdas filhas de pais ouvintes (a maioria dos surdos) se apropriam da Libras fora do lar, sendo a escola o principal ambiente propício à apropriação de linguagem.

Parte significativa dessas crianças, contudo, não têm acesso à escolarização desde a Educação Infantil, e, quando têm, isso não significa garantia de contato imediato com a Libras menos ainda com contação de histórias, como recomenda o Referencial Curricular da Educação Infantil (BRASIL, 1998), pelo fato de, a rigor, creches e pré-escolas regulares não contarem com serviço de apoio à inclusão, com professores de Libras e intérpretes, por exemplo, o que atrasa o desenvolvimento linguístico de crianças surdas.

Logo, se é através da escola que crianças surdas terão acesso à língua de sinais e a um universo de experiências até então inacessíveis, a contação de histórias em Libras para surdos no Ensino Fundamental pode figurar como um momento potente e singular de aprendizagem e desenvolvimento cognitivo, linguístico e cultural-identitário. Por meio de histórias aprende-se sobre o mundo, sobre pessoas, sobre a língua, sobre emoções e sobre si mesmo. É de se destacar, contudo, que a literatura especializada sobre contação de histórias em Libras na escola é escassa. Nesse sentido, falta respaldo para o professor atuar com segurança e embrenhar-se mais nas searas das narrativas sinalizadas na esfera educacional.

Não se têm indícios, por exemplo, se os professores de surdos têm se utilizado pouco ou muito dessa prática em sala de aula, nem mesmo se têm uma percepção nítida do potencial da contação de histórias para o desenvolvimento dessas crianças. Face a isso, lançamos, neste estudo3, a seguinte indagação: qual é o potencial de contribuição da contação de história em Libras para a educação de surdos no Ensino Fundamental4? Pensando no desenvolvimento cognitivo, linguístico e cultural-identitário de crianças surdas, que propostas didáticas poderiam ser promovidas a partir da contação de histórias na escola?

A fim de responder a essas indagações, este artigo discute o potencial de contribuição da contação de histórias em Libras para o desenvolvimento de crianças surdas a partir da seleção de três vídeos de contadores disponíveis em canais do YouTube e da proposição de possibilidades didáticas para a sala de aula. Para tanto, situamo-nos na Linguística Aplicada de perspectiva sociocognitiva e nos Estudos Surdos.

Nas próximas seções, abordamos a contação de histórias e como ela pode promover o desenvolvimento de crianças na escola. Em seguida, discorremos sobre quem é esse “outro” surdo e as peculiaridades do seu desenvolvimento, relacionando o desenvolvimento cognitivo, linguístico, cultural-identitário aos sistemas de conhecimento de mundo, linguístico e interacional. Logo após, apresentamos a seleção de vídeos de contadores disponíveis em canais do YouTube e a proposição de possibilidades didáticas para a sala de aula, apresentando as considerações finais do estudo.

Quem conta história, promove desenvolvimento na escola

O processo pedagógico de toda e qualquer escola certamente estará enriquecido com a inclusão de atividades de contação de histórias, bem como propiciará a inserção do sujeito na realidade mais ampla do mundo. Das histórias para o mundo, do mundo para as histórias. Essa é a recíproca! Mas é preciso fazê-la ser verdadeira! (SISTO, 2020, p.12).

Por muito tempo, a contação de história foi utilizada como uma forma de transmitir ensinamentos, preservar valores, tradições e condutas de um povo. Com o passar dos tempos, essa prática milenar conquistou novos espaços, chegou às praças, aos hospitais, às redes sociais, às empresas - que preferem o codinome storytelling - e ao espaço escolar. Para Palacios e Terenzzo (2016), práticas de storytelling são desenvolvidas em diversos ambientes justamente pela função e força educativa da atividade.

É mesmo de se observar o poder atencional que a contação de histórias desperta nos ouvintes quando inserida pontualmente em eventos de fala expositiva, como em palestras ou aulas, por exemplo. Do ponto de vista da estrutura das tipologias textuais (CAVALCANTE, 2012), a exposição, tipologia predominante em aulas, tem como função apresentar informações, razões e explicações acerca de dado tópico, enquanto a tipologia narração objetiva apresentar uma sequência de fatos/ações organizadas temporalmente numa lógica dada. Assim, enquanto a exposição é vista como monótona por apresentar longas explicações ou detalhamentos sobre o mesmo tópico, a narração é vista como dinâmica por apresentar transformações de estado e distintos subtópicos. Do ponto de vista da expressão vocal, a exposição é caracterizada pela estabilidade e permanência, enquanto a narração pela instabilidade e mudança. Isso, certamente, mantém o ouvinte em alerta, até porque o transporta para uma seara (a das narrativas) que lhe é muito mais comum do que a das exposições, se considerarmos que as interações cotidianas se dão mais no formado da narração (da contação de uma história), que no formato da exposição (da explicação didática).

Nessa perspectiva, em processos especificamente educativos, as histórias podem ser utilizadas para contextualizar informações novas, gerar familiaridade com um determinado tema e torná-lo mais interessante (PALACIOS; TERENZZO, 2016), pois além de despertarem a atenção e o interesse, promovem desenvolvimentos múltiplos, sobretudo nas séries iniciais do Ensino Fundamental. Essas séries são determinantes para o desenvolvimento de crianças, pois nesse período se inicia e concretiza o processo de alfabetização e letramento e de construção do conhecimento que servirá de base para a estruturação de novos conhecimentos nos anos subsequentes.

No livro Prof, conta uma história!: manual para o professor que tem desejo de contar histórias,Zeni (2018, p.12-13) discute que “[...] mais do que uma necessidade do convívio social, as histórias dão suporte ao desenvolvimento das funções cerebrais superiores, como a linguagem, o pensamento, a memória e a abstração”. Dessa maneira, histórias atuam nas crianças sobre o desenvolvimento global, pois além de colaborarem com o desenvolvimento da linguagem e do conhecimento de mundo, aportam aspectos da vida como a dor e o amor, levando-as a conhecerem o mundo e a si mesmas, provendo paulatina maturidade, empatia e capacidade de reflexão, funcionando ainda como “matéria-prima da fantasia infantil, do faz de conta, do jogo simbólico - agentes da formação da linguagem, do pensamento, da inteligência” (ZENI, 2018, p. 24).

Embora histórias sejam um recurso precioso para a escola, não basta inseri-las para a mágica acontecer. São os usos e planejamentos didáticos do professor que farão delas um momento potente de vivencia e reflexão ou um simples momento de distração. Nesse sentido, além de pensar nos aspectos do desenvolvimento infanto-juvenil e nos campos de experiência a serem explorados, é importante lembrar-se da performance, isto é, dos elementos da execução da contação, pois é preciso cativar e conectar os alunos, observando aspectos como: a escolha da história, a duração da narrativa, o tom com que se conta, o saber lidar com as interrupções, a memória enquanto processo criativo, as modulações da voz, o direcionamento do olhar, as estratégias de sedução, a conversa antes e depois da história etc.

Isso se torna ainda mais relevante quando nos referimos à contação em Libras, língua de modalidade visual-espacial. Embora crianças surdas tenham poucas oportunidades de participar de contação de histórias (sobretudo quando são filhas de pais ouvintes), a comunidade surda também tem a sua tradição junto à prática, uma vez que contar histórias também acompanha a história das comunidades surdas. Conforme Karnopp (2008), surdos se encontram para contar histórias e, entre as favoritas, estão aquelas com personagens surdos, as histórias de vida, as piadas e histórias que têm elementos da cultura e identidades surdas.

Na escola, inúmeras são as possibilidades de uso das histórias criadas, adaptadas ou traduzidas para a Libras. Há a possibilidade de se contar a história com o livro aberto voltado para a criança surda à altura dos seus olhos e virando lentamente as páginas. O contador prepara a história antes e vai narrando sem consultar o livro e sem fazer comentários ou chamar a atenção para algo na ilustração. A contação pode ser feita também com o uso de gravuras, desenhos, dobraduras, objetos e sucatas (sem modificações, sem colocar olho e boca, por exemplo). As histórias contadas com esses recursos contribuem para a organização do pensamento e criatividade. Cada gravura ou objeto vai sendo colocado num painel, no chão, num tapete ou sobre uma mesa assim cada um vai ocupando seu lugar na cena dando ideia de movimento na história. As histórias também podem ser contadas com um avental, em que do bolso saem os personagens que vão sendo fixados ao avental por meio de carrapichos, entre outras possibilidades.

O formato mais simples e encantador de todos, contudo, parece ser a simples narrativa que não requer recursos materiais: a narrativa concentra-se nos recursos linguísticos, na expressão facial e corporal. Coelho (1999) recomenda que contos de fadas, lendas, fábulas, histórias da tradição oral sejam contadas dessa forma, pois é a que mais contribui para estimular a imaginação e a criatividade.

O que se precisa salientar é que para a contação de histórias para a criança surda o fundamental é um professor contador plenamente fluente em Libras e que conheça a cultura e as identidades surdas. São esses aspectos que farão a recíproca da epígrafe verdadeira.

Quem é o “outro” surdo e as peculiaridades do seu desenvolvimento

O outro é um outro que não queremos ser, que odiamos e maltratamos, que separamos e isolamos, que profanamos e ultrajamos, mas que utilizamos para fazer de nossa identidade algo mais confiável, mais estável, mais seguro; é um outro que tende a produzir uma sensação de alívio diante de sua invocação - e também diante de seu mero desaparecimento; é um jogo - doloroso e trágico - de presenças e de ausências (SKLIAR, 2003, p.121).

A impactante citação de Skliar (2003) alude às representações que foram construídas sobre os surdos ao longo do tempo e às políticas educacionais adotadas em virtude dessas representações. A surdez conceptualizada como perda de comunicação e impossibilidade de desenvolvimento pleno permeou historicamente essas representações, elegendo a busca pela cura ou pela redução dos efeitos da surdez como princípio pedagógico que tinha na reabilitação, na oralização e no ouvintismo a base para a educação e o desenvolvimento do surdo.

Para Skliar (2003, p. 27), historicamente, “[o] outro da educação foi sempre um outro que devia ser anulado, apagado”, invisibilizado a partir da supressão de sua diferença. Há algum tempo, contudo, “as reformas pedagógicas parecem já não suportar o abandono, a distância, o descontrole”. Nessa perspectiva, elas “dirigem [a escola] à captura maciça do outro”, tornando-a cada vez mais “satisfeita com a sua missão de possuir tudo dentro de seu próprio ventre” (SKLIAR, 2003, p.27), muitas vezes, contudo, sem conhecer em profundidade as singularidades de seu público.

A fim de garantir essa inclusão, ações políticas foram implementadas pelo poder público, como a recente aprovação da Lei 14.191 de 2021, que altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, colocando a Educação Bilíngue para Surdos como uma modalidade de ensino independente, embora não se saiba quando e se ela será de fato implementada em larga escala.

Nessa perspectiva, permanecem ecoando os questionamentos feitos por Fernandes (2003): “[e]m que espaços os surdos adquirem sua língua? [...] qual será o espaço privilegiado para a aquisição da língua de sinais pelos surdos?” (FERNANDES, 2003, p. 78). “Quem ensina quem? O que se ensina nas escolas?” (FERNANDES, 2003, p. 79).

Para responder a essas questões iniciamos uma reflexão a partir da vivência de crianças ouvintes, criando um comparativo que lança luzes sobre diferenças e semelhanças do processo de desenvolvimento de surdos e ouvintes. Fernandes explica como se dá o início da apropriação de conhecimento para as crianças ouvintes:

[d]esde o nascimento, as crianças ouvintes estão recebendo informações e interagindo em sua língua materna/natural, tanto no ambiente familiar quanto em outros espaços sociais de formação, como é o caso das creches e escolas, por exemplo. Essa língua materna/natural lhes permite ter acesso às mais variadas informações, construir hipóteses, categorizações, generalizações, conhecimentos sobre o mundo, desenvolver juízos de valor e, o mais importante, permitelhes sua identificação cultural com um grupo de referência, sentir-se parte dele, pertencer (FERNANDES, 2003, p.75).

Como se vê, as crianças ouvintes, alicerçadas nos conhecimentos prévios adquiridos no ambiente familiar e em outros espaços, passam a se desenvolver naturalmente cognitiva, linguística, cultural e identitariamente, permeando-se e deixando-se constituir subjetivamente pela cultura que lhes cerca.

De maneira semelhante, as crianças surdas filhas de pais surdos que têm contato desde cedo com a língua materna/natural que é a Libras irão se apropriar paulatinamente dos sistemas de representação linguística e cultural circulantes na comunidade surda, desenvolvendo-se sem atrasos ou prejuízos importantes. Em contrapartida, para as crianças surdas que não têm acesso à língua natural que é a língua de sinais, esse processo de desenvolvimento percorrerá outros caminhos. Como dito, Quadros (2008) informa que, surdos filhos de pais surdos representam apenas 5% a 10% das crianças surdas. Para esses 90% a 95% de crianças surdas filhas de pais ouvintes a apropriação da língua materna/natural ocorrerá tardiamente, quando a criança entrar na escola, pois os pais ouvintes, a rigor, desconhecem a língua de sinais e muitas vezes demoram a aprendê-la ou não a aprendem nunca. Há, então, para essas crianças, uma série de lacunas no desenvolvimento que a escola precisará suprir invariavelmente por meio da vivência em Língua de Sinais.

Logo, o espaço privilegiado para a apropriação da língua de sinais e consequentemente para o desenvolvimento cognitivo, linguístico, cultural-identitário da criança surda é a escola. E a escola, de nosso ponto de vista, pode inserir o mundo em suas práticas por meio da contação de histórias. Quanto mais lacunas no desenvolvimento houver, mais icônica e dramatizada deverá ser a atividade de contação, tornando-se progressivamente mais lexicalizadas a partir da apropriação paulatina da Libras.

Em relação às perguntas, “[q]uem ensina quem? O que se ensina nas escolas?”, consideramos, com Fernandes (2003, p. 79), que “para que o aluno surdo tenha acesso à língua de sinais e às mesmas oportunidades educacionais e sociais que os demais alunos, ele necessita de professores bilíngües(sic)” ou, idealmente, de professores surdos, embora se saiba que eles ainda são minoria nas escolas. Professores surdos ou professores bilingues, além de ensinar Libras e de ensinar em Libras, podem alicerçar o desenvolvimento e preencherem lacunas mais habilmente, por conhecerem profundamente o público a que se dirigem, além de oferecerem modelos de identificação. Apesar disso, esse perfil profissional é escasso nas escolas inclusivas. De modo geral, faltam professores de Libras e professores bilíngues, principalmente nos anos iniciais do Ensino Fundamental. Essa ausência não se dá por falta de capacitação profissional da comunidade surda, mas devido a políticas linguísticas que não colocam a aquisição da Libras num lugar de relevância.

Cabe ressaltar que a fala de Fernandes (2003) retrata uma situação pós-aprovação, ainda que à época recente, da Lei nº 10.436/2002, que reconheceu a Libras como meio legal de comunicação e expressão dos surdos. Após quase vinte anos, contudo, o cenário permanece muito semelhante. Um estudo realizado por Prado (2017, p.81) aponta que “[...] existe contradição entre a orientação das políticas públicas em incluir alunos surdos em turmas onde prevalece a Língua Portuguesa oral, ao mesmo tempo em que a legislação aponta os direitos dos surdos a uma educação bilíngue.” Ou seja, ao mesmo tempo em que as políticas públicas reconhecem a Libras, estudante surdos são colocados em turmas regulares inclusivas, junto com estudantes ouvintes, com serviços de suporte (intérprete, professor de apoio ou de Libras e atendimento educacional especializado - AEE no contra turno) e predominância de uso da língua portuguesa5. Nesses moldes, na visão da autora, a inclusão não atende às necessidades e anseios dos sujeitos surdos e da comunidade surda, pois as aulas não atendem às demandas linguísticas, curriculares e culturais dos surdos. Para a autora,

[n]ão adianta admitir a importância da Libras e da cultura surda se a comunidade escolar não conhece, não utiliza e não se sente confortável com a perspectiva de uma educação visual e bilíngue. A proposta de uma escola inclusiva e bilíngue só poderá ser pensada quando houver providências efetivas para tornar toda a comunidade escolar bilíngue. Se a proposta de educação bilíngue for só para os surdos, essa proposta continuará segregando (PRADO, 2017, p. 96).

Nesse contexto, apesar das reformas educacionais e da recente promulgação da Lei 14.191/2021, é possível que o “outro” surdo permaneça em situação de abandono se a Libras, os professores surdos e os professores bilíngues não forem colocados como elementos estruturantes da educação bilíngue. Contar histórias em Libras, por exemplo, é uma atividade que só pode ocorrer quando desempenhada por professor surdo ou professor bilíngue conhecedor do universo surdo.

Nessa perspectiva, nos Referenciais para o ensino de Língua Brasileira de Sinais [Libras] como primeira língua [L1] na Educação Bilíngue de Surdos[EBS]: da Educação Infantil ao Ensino Superior, a contação de história em Libras aparece como um dos modos de prover desenvolvimento a crianças surdas em projetos de educação bilíngue. Stumpf e Linhares (2021b, p.42) consideram que “[...] o jeito de o surdo ensinar e aprender, demanda um ensino por meio de imagens que viabilize a construção do conhecimento visual compreensível por intermédio de fotografias, contação de histórias, dramatizações, filmagens e desenhos, sendo todos esses recursos atravessados pela Libras.”

Ao mediar a aprendizagem de conteúdos escolares, a contação de histórias proporciona aos surdos múltiplas possibilidades de desenvolvimento, pois atua como um substrato capaz de preencher lacunas formativas ou experienciais. Mourão (2011) destaca, em especial, o desenvolvimento imaginativo ao sustentar que

[...] se os surdos tivessem uma experiência mais intensa com histórias, com textos literários (em sinais ou através de leituras), em aprendizagem nas escolas ou em seus lares, com os professores ou pais contando histórias, teriam mais possibilidade de imaginação, reflexão, emoção, e se tornariam uma fábrica de histórias, de subjetividades literárias, produzindo ideias e criatividade - isso fortaleceria a criação de mais histórias (MOURÃO, 2011, p. 74).

Utilizando-se do operador “se”, o autor caracteriza a contação de histórias como uma potencialidade não desenvolvida na educação de surdos, ainda que claramente promissora. Nessa perspectiva, discutimos a seguir as oportunidades de desenvolvimento cognitivo, linguístico e cultural-identitário que se abrem quando narrativas atravessam de modo significativo a educação de crianças surdas. Na continuidade, apontaremos possibilidades didáticas para cada uma dessas categorias de desenvolvimento, no intuito de despertar a percepção do professor para as potencialidades didáticas da contação de histórias.

Desenvolvimento cognitivo, linguístico e cultura-identitário

Considerando que só conseguimos estruturar o nosso pensamento e nossas interações porque temos sistemas de conhecimentos que alicerçam essa atividade, o sujeito precisará acessar, resgatar e articular esses sistemas para poder produzir aprendizagem, compreensão, identificação e interação. Sendo assim, discutimos o desenvolvimento cognitivo, linguístico e cultural-identitário a partir dos sistemas de conhecimento apresentados por Koch (2004) e Koch e Elias (2008).

Segundo Koch (2004), há pelo menos três grandes sistemas de conhecimento para a construção de sentidos entre interlocutores: o enciclopédico ou conhecimento de mundo, o linguístico e o interacional. Para a autora, o conhecimento de mundo diz respeito aos conhecimentos enciclopédicos sobre a vida, às vivências e crenças pessoais, assim como a eventos situados no espaço/tempo que permitem a produção de sentidos. O conhecimento linguístico tem a ver com o saber internalizado sobre a gramática e o léxico da língua, o que nos permite produzir discursos, enquanto o conhecimento interacional se refere aos modelos de interação mediada pela linguagem construídos para a comunicação.

Assim, quando falamos de desenvolvimento cognitivo, estamos falando da capacidade que o sujeito tem de entender e pensar o mundo, reagindo mentalmente a informações recebidas por meio da ativação de estruturas mentais e conhecimentos prévios. Segundo a BNCC - Base Nacional Comum Curricular (BRASIL, 2018, p. 353), a “área de Ciências Humanas contribui para que os alunos desenvolvam a cognição in situ [...],” devendo proporcionar aos estudantes “a capacidade de interpretar o mundo, de compreender processos e fenômenos sociais, políticos e culturais” (BRASIL, 2018, p.356). Convém lembrar que as escolhas de conteúdos/ conhecimentos para compor o currículo são em si escolhas políticas que têm intencionalidades e que afetam a formação do sujeito e de sua identidade. Na educação de surdos, por exemplo, os currículos precisariam reconhecer as peculiaridades de vida e de acesso ao conhecimento de crianças surdas para provê-las de saberes necessários ao seu desenvolvimento.

Papalia e Feldman (2013, p. 37) informam que o desenvolvimento cognitivo abarca ainda “[a]prendizagem, atenção, memória, linguagem, pensamento, raciocínio e criatividade”, enquanto o psicossocial constitui-se das “[e] moções, personalidade e relações sociais”. Não restam dúvidas de que as histórias estimulam o desenvolvimento dos elementos constituintes da cognição e do crescimento psicossocial, pois despertam a atenção, ativam a memória, consolidam o conhecimento e trabalham emoções.

O conhecimento linguístico, conforme Koch e Elias (2008), leva em conta aspectos relacionados ao conhecimento e ao uso da língua, abarcando o conhecimento gramatical e o lexical. No que concerne à educação de surdos, a discussão foca na apropriação da linguagem, num primeiro momento, e depois no modo como esse sujeito irá mobilizar o conhecimento gramatical e lexical para se referir a si e ao outro, para formular opiniões, para posicionar-se no espaço-tempo, etc.

De início, a escola se transforma num ambiente imersivo para a apropriação da Libras: a vivência com os colegas e com os professores bilíngues proporcionará aos sujeitos a apropriação gradativa de estruturas de linguagem que irão preencher a gramática internalizada de cada um. Embora o ideal seja que crianças surdas se apropriem da Libras em interações cotidianas de interação social sem mediação de instrução formal, em outros momentos será preciso, sim, submeter essas crianças a aulas de língua, assim como ocorre com ouvintes. Para tanto, posicionam-se processos de ensino-aprendizagem da Libras como unidade curricular mediada formalmente por agentes e objetos de conhecimentos na escola. A contação de história como recurso para o desenvolvimento linguístico de pessoas surdas pode ser utilizada tanto em processos de interação informal quanto em processos de instrução formal. Por meio dela é possível expandir o vocabulário, explorar aspectos semânticos e internalizar estruturas sintáticas, entre outras possibilidades.

O volume 3 dos Referenciais para o ensino de Libras como L1 na EBS (2021b) apresenta uma proposta curricular para o ensino de Libras com uma estrutura próxima à BNCC (BRASIL, 2018):

[a]s unidades temáticas discorrem sobre a Libras como unidade curricular de operação e linguagem eficiente e dinâmica. [...] Os objetos de conhecimento são compreendidos como conteúdos, conceitos e processos em torno da Libras, organizados de acordo com as unidades temáticas. Nesse contexto, a Libras é disposta como diferença formadora e significativa na construção dos modos de ser dos surdos na relação com outros surdos e na produção de conceitos sobre si, sobre seus pares e de outros grupos (STUMPF; LINHARES, 2021b, p. 54).

Essas unidades temáticas ou eixos norteadores, compostos por objetos de conhecimento, têm como temas centrais: 1) compreensão/leitura em Libras; 2) produção/escrita em Libras; 3) fala e diálogo em Libras; 4) análise linguística da Libras e 5) crítica e formulação de opinião em Libras. Segundo Stumpf e Linhares (2021b, p.69), “[e]sses eixos devem ser observados como pontos articulados no planejamento do professor de Libras. Ainda que uma atividade de aula seja desenvolvida com foco em um eixo específico, diversos eixos se articulam na prática real de sala de aula”. Os autores apontam ainda para a importância da estruturação das unidades temáticas/eixos por meio dos campos de atuação - campo do uso cotidiano da Libras, o artístico-literário das culturas surdas, o das reflexões sobre a metalinguagem em Libras e o da dimensão intercultural e bilíngue dos textos sinalizados -, pois eles permitem situar os saberes da Libras e o conhecimento escolar na realidade prática.

Nesse ponto, faz-se relevante distinguir aquisição/apropriação e aprendizagem de linguagem. Fernandes (2003, p.74) esclarece que a aquisição da língua é inconsciente e “[...] pode prescindir de instrução formal, uma vez que ocorre ‘naturalmente’, já o processo de aprendizagem exige a ação mediadora da escola, por meio da sistematização de estratégias formais de ensino”. Para a autora, adquirir/aprender uma língua envolve o conhecer a língua e se envolver afetivamente com ela. Acrescentamos às ideias de Fernandes (2003) a ideia de que a apropriação e a aprendizagem exigem, ainda, envolvimento com a comunidade surda6 e com o par surdo. No dizer de Pokorski (2020, p.107), “[o] encontro com outros surdos, principalmente surdos adultos, é a porta de entrada para importantes transformações na vida desses sujeitos, a ponto de, talvez, ser possível afirmar que, sem a língua de sinais e sem a comunidade surda, não há sujeito surdo [...]”. É a partir desse encontro surdo-surdo alicerçado pela língua de sinais que percebese, nos surdos, o desenvolvimento de aspectos culturais-identitários.

O terceiro sistema de conhecimento, o interacional, diz respeito às formas de inter-ação por meio de linguagem, envolvendo modelos culturais de interação que servirão, também, ao desenvolvimento cutural-identitário. Associando-o ao desenvolvimento cultural-identitário, frisamos que elementos da cultura e da constituição da identidade começam a se configurar, nos surdos, justamente a partir da apropriação da Libras e do encontro surdo-surdo. Stuart Hall (2006) explica que quando nascemos não possuímos identidades culturais/nacionais; elas são formadas e transformadas no interior da representação. Logo, surdos não nascem identitariamente surdos, mas vão se constituindo como pessoas identitariamente surdas.

Para Skliar (2005, p.12-13), as representações surdas por parte dos ouvintes comumente se dão “[...] a partir de supostos traços negativos, percebidos como exemplos de um desvio de normalidade, no pior dos casos, ou de uma certa diversidade, no melhor dos casos.” Assim, “a diversidade cria um falso consenso [...], mascara normas etnocêntricas e serve para conter a diferença.” E, como o sujeito surdo pertence a um grupo que é minoria e muitas vezes não vivencia o encontro surdo-surdo, pode não entender a dimensão de tudo isso para a sua vida e construir a sua identidade calcada numa ideia errônea de deficiência e diversidade.

É por meio do convívio com os seus iguais que os surdos vão consolidando outros modos de ser e existir e construindo autoimagens distintas das representações circulantes sobre os surdos. Nesse sentido, projetam-se como uma minoria linguística e cultural fora dos valores da deficiência. Como pontua Ribeiro (2008, p. 35), a construção da identidade surda diz respeito a um “processo de reconhecimento e de identificação do surdo com os seus iguais; ao uso da língua de sinais e, para alguns, ao direito de querer ser surdo” ainda que alguma tecnologia possa reverter a surdez7. Rejeitando uma norma padrão e estabelecendo uma norma surda, isto é, um modo paralelo de vivenciar a experiência de vida pela visão e não pela audição, como pontuam Ribeiro e Lara (2016),

[a] comunidade usuária de sinais considera o termo deficiência impróprio e prejudicial ao grupo. Não se considera deficiente - e os avanços da linguística e das neurociências têm comprovado isso - por acreditar que não vivenciam a falta de um sentido ou de uma língua, mas a substituição destes. Assim, defendem que o termo surdo abarca em si muito mais do que uma condição orgânica; é, antes, uma condição de experiência de vida calcada na visualidade, que erige uma língua e que fundamenta uma cultura (RIBEIRO; LARA, 2016, p. 285-286).

Constata-se, portanto, que a língua de sinais é uma das principais marcas da identidade surda, além de ser o elemento gerador da cultura surda, pois os modos de ver, agir e transformar o mundo próprios à comunidade nascem das possibilidades de vida comum e fazer interativo proporcionado pela Libras. Logo, língua e identidade constituem uma cultura e são constituídas reciprocamente por ela, que pode ser percebida por meio de marcadores ou artefatos culturais específicos.

Strobel (2013) apresenta oito artefatos culturais que estão presentes na identidade surda, são eles: 1) a experiência visual, que se refere ao perceber o mundo através dos olhos; 2) o desenvolvimento linguístico, que se refere à línguas de sinais e ao sistema de escrita da língua, o SingWriting; 3) a composição familiar, que trata da questão do nascimento de crianças surdas que, quando ocorre em lar surdo é visto de forma natural enquanto que, em um lar ouvinte é tido como um momento de frustração; 4) a literatura surda, que alude às narrativas que traduzem as experiências e vivências surdas e o orgulho de ser surdo; 5) a vida social e esportiva8, que abrange os acontecimentos culturais, atividades esportivas e eventos promovidos nas associações de surdos; 6) as artes visuais, que são manifestações artísticas das pessoas surdas; 7) o artefato político, por meio dele líderes e militantes surdos organizam espaços de lutas para defender a pedagogia, a literatura, a cultura surda e a língua de sinais e 8) os artefatos materiais, que são as criações pensadas para dar acessibilidade aos surdos no cotidiano, como a companhia em forma de luz-piscante. Por meio dos elementos arrolados, podemos conhecer um pouco do modo de vida dos surdos, os valores e visão de mundo que fundam sua identidade, seu modo próprio de ser e estar nesse mundo.

Ao finalizar essa seção, destacamos que é a partir da inter-relação de sistemas de conhecimento que o sujeito começa a ter condições de se desenvolver cognitiva, linguística e cultural-identitariamente. Contar histórias, como temos discutido, é um dos modos de proporcionar esses desenvolvimentos de maneira lúdica na escola.

Colorin, colorado, o potencial da contação foi encontrado...

Para explorar em que medida a contação de histórias em Libras favorece o desenvolvimento de crianças surdas em processos educativos, selecionamos três vídeos de contadores disponibilizados em canais do YouTube. Visando uma exposição didática, exploramos, em cada vídeo, uma categoria de desenvolvimento: cognitivo, linguístico e cultural-identitário, apresentando possibilidades didáticas para a sala de aula. Ainda que tenhamos a intenção de privilegiar uma categoria de desenvolvimento em cada história, outras categorias atravessam a discussão, pois elas se relacionam. Como demonstrado na seção anterior.

O Quadro1 apresenta informações sobre os vídeos selecionados e as categorias exploradas.

Quadro 1 Vídeos e categorias de análise  

TÍTULO DA HISTÓRIA/ AUTOR(A) LINK DE ACESSO AO VÍDEO CANAL/ CONTADOR(A) DA HISTÓRIA RESUMO DA HISTÓRIA CATEGORIA DE DESENVOLVIMENTO
A viagem/ Francesca Sanna https://www.youtube.com/watch?v=EWbRo8wLeb0&t=464s Mãos Aventureiras/ Carolina Hessel* A história conta a trajetória de uma família que decide fugir da guerra que assola seu país e ir em busca de um lugar seguro para viver. Desenvolvimento cognitivo
Feijãozinho surdo/Liège Gemelli Kuchenbecker https://www.youtube.com/watch?v=oFc42M8N1XI&t=65s Cada Encontro eu Conto um Conto/ Michelle Schlemper** Nasce um Feijãozinho Surdo que vive triste e sozinho. Da terra brota uma Fada Feijão que faz uma mágica e ele começa a sinalizar. A Fada Feijão explica aos pais do Feijãozinho que ele precisa de uma escola onde possa ser compreendido na sua língua. A fada sai a procura e encontra duas escolas. Desenvolvimento linguístico
Tibi e Joca: uma história de dois mundos / Cláudia Bissol https://www.youtube.com/watch?v=G8aEG6wjIyc&t=107s ALELIBRAS/ Renato Borges Daniel*** Os pais de Joca descobrem que ele é surdo e começam a brigar, culpando um ao outro. Joca sai para caminhar triste e solitário. Tibi encontra Joca e o leva para conhecer pessoas que conversam em língua de sinais. Joca fica feliz e apesar dos pais acharem difícil aprender a língua, os mundos - surdo e ouvinte - se juntam ao final. Desenvolvimento cultural-identitário

Fonte: Elaboração própria

* O Canal Mãos Aventureiras foi idealizado pela professora Carolina Hessel em 2017, a fim de dar acessibilidade aos surdos à literatura. A professora Carolina é surda, doutora em Educação, professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e atua especialmente nas temáticas da Libras; Educação; Literatura, Cultura e Arte surda.

** Michelle Schlemper é coordenadora do projeto de extensão Cada Encontro eu Conto um Conto, doutoranda em Estudos da Tradução pela Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC. Possui experiência em formação de contadores de histórias.

*** Renato Borges Daniel possui graduação em Letras - Língua Portuguesa e Libras pela Universidade Federal da Grande Dourados e em Pedagogia pelo Centro Universitário Leonardo da Vinci.

Tendo em vista que “[a] prática de interdisciplinaridade integra o aprendizado da Libras às demais áreas do conhecimento ou a conteúdos curriculares [...]” e que “[o] currículo de Libras pode e precisa ser usado como promotor do ensino de outras disciplinas na vida escolar, visto que para o ensino de qualquer conteúdo, o ato comunicativo é essencial” (STUMPF; LINHARES, 2021b, p.176), exploramos as possibilidades de contribuição da contação de histórias em Libras para a educação de estudantes surdos no Ensino Fundamental a partir das diretrizes do volume 3 dos Referenciais para o Ensino de Libras como L1 e do embasamento teórico apresentado.

Ressaltamos que as possibilidades didáticas a seguir foram cunhadas para serem desenvolvidas em escolas bilíngues, classes bilíngues ou em salas de recursos multifuncionais de escolas inclusivas com professores surdos ou professores bilíngues.

Possibilidades de desenvolvimento cognitivo proporcionado pela história A Viagem, de Francesca sanna

Neste vídeo vamos explorar a perspectiva do desenvolvimento cognitivo de crianças surdas, que aqui será focalizado por meio do conhecimento de mundo, que serve como substrato estruturador da cognição, no caso de estudantes surdos, tendo em vista inúmeras lacunas de conhecimento de mundo que crianças surdas apresentam.

Partindo do princípio de que na escola o conhecimento de mundo está muitas vezes associado à aprendizagem de um conteúdo temático ou programático da base curricular e que muitas vezes a defasagem de conhecimento de mundo de crianças surdas é difícil de ser mensurada ou especificada, vivenciar dadas temáticas a partir de histórias desonera o professor de ter de alimentar formalmente o conhecimento prévio do estudante, uma vez que o aluno está interagindo com esse conhecimento e aprendendo de forma contextualizada e vivencial. No momento em que o professor conta uma história, o estudante tem de onde resgatar informações sobre o assunto.

Ao final do vídeo de contação da história A viagem, a contadora deixa um questionamento que pode servir de mediação entre a história, o público e o conhecimento cognitivo a ser desenvolvido: “vocês conhecem pessoas que vieram de outro país pra cá? Qual?” (10 min. 37 seg.). Para estimular a conversa com os estudantes, o professor pode retomar alguns pontos da história perguntando se recordam o que aconteceu depois na história, sempre deixando os estudantes conversarem livremente. Estimular a conversa não significa propor questões de interpretação. A interpretação como atividade escolar pode, por vezes, furtar da criança a oportunidade de conhecer e compreender o mundo. É o momento dos estudantes se conectarem com a história. Esse momento de fruição contribui para a criatividade, imaginação e construção interna da temporalidade da narrativa. Neste momento não existem respostas certas ou erradas. Conversar sobre as impressões que a história causou pode prolongar o contentamento produzido por ela.

Apesar de o tema central da história ser a migração, é possível explorar outros temas difíceis de serem tratados com crianças de forma sutil e compreensível. Em diferentes momentos da narrativa outros temas, passíveis de discussão, ainda que de forma não explícita, podem surgir, como guerra, morte, cultura, fronteiras, preconceito e outros. É conveniente que o professor traga o conhecimento na medida da curiosidade e da dúvida dos estudantes, pois são temas que podem ser inacessíveis para crianças; muitos deles ainda não tiveram a oportunidade de conversar no ambiente familiar ou com amigos, seja porque ainda estão em processo de apropriação da língua, seja porque as pessoas mais próximas não sabem Libras ou não proporcionaram conversas sobre o tema. E, justamente por isso é preciso abordar. Mas essa abordagem precisa ser iniciante, sempre considerando o olhar inaugural.

A análise focou na possibilidade do desenvolvimento cognitivo a partir do tema principal da história, a “migração”, por conta de um recorte necessário. Contudo, outros objetos de conhecimento e habilidades poderiam ser trabalhadas a partir da história e do tema migração, com vistas ao desenvolvimento cognitivo no Ensino Fundamental: os diferentes modos de vida em diferentes lugares; os diferentes tipos de meios de transporte, os cuidados e riscos na sua utilização; os diferentes grupos sociais (diversidade cultural, desigualdades sociais, respeito às diferenças sociais, culturais e históricas) etc.

Avistamos que para haver uma interação da história com o conhecimento de mundo a partir dos objetos de conhecimento tratados na BNCC (BRASIL, 2018), é necessário que outros tipos de conhecimento sejam acionados e desenvolvidos concomitantemente. A análise aqui apresentada concentra-se no aspecto cognitivo, mas é possível o professor explorar uma multiplicidade de aspectos. A história pode despertar reflexões que possibilitem o desenvolvimento cultural-identitário, por exemplo. Pode proporcionar uma abordagem, ainda que de forma simples, das dificuldades a serem enfrentadas pela família em outro país que tem uma língua e uma cultura diferente, aproximando às dificuldades enfrentadas pelo surdo em relação à língua, à cultura e à identidade surda, mesmo sem saírem da sua cidade, do seu país.

A história também pode contribuir para o desenvolvimento linguístico, novos sinais podem ser aprendidos e o simples fato de a contação da história ser feita por uma professora surda é um encontro da criança surda com o outro surdo, pois muitas vezes a criança não tem esse modelo linguístico em casa, tampouco contando uma história, fato que acaba proporcionando, também, algum progresso identitário. Dentre as diversas possibilidades didáticas, o professor pode realizar para além do momento de fruição:

Possibilidade didática 1: enviar um bilhete aos pais solicitando que caso a família tenha migrantes (nacionais ou internacionais), que enviem fotos, objetos ou documentos que contem a história da migração para ser feita uma exposição em sala. Caso nas famílias não tenham migrantes, o professor pode selecionar histórias, fotos e imagens pela internet ou em livros e revistas para fazer um mural. A atividade ainda permite compreender que fotos e imagens também compõem um texto e uma história; desenvolvendo habilidades previstas na BNCC (2018).

Possibilidade didática 2: coletivamente, os alunos podem marcar no mapa mundial ou no mapa do Brasil da biblioteca da escola a origem das famílias ou das histórias pesquisadas. Ao receberem cópias do mapa, podem marcar o trajeto percorrido e ainda colorir o Brasil ou dados estados do Brasil. O professor pode escolher alguns países ou estados para pesquisarem juntos na internet sobre eles, fazendo buscas de imagens para perceber visualmente diferenças culturais.

Possibilidade didática 3: é possível explorar o tema da viagem e cada aluno relatar para onde já viajou. O professor pode fazer uma exposição sobre a própria cidade, contando uma história que ocorreu ali e pedindo para os alunos falarem dos locais que conhecem na cidade, descrevendo-os.

Chamamos a atenção mais uma vez para os riscos de o professor, sem querer, “aniquilar” o texto literário, tornando-o um pretexto para uma avalanche de conteúdos. Não é necessário o professor parar a história para fazer referência aos conhecimentos de mundo e realizar as atividades aqui sugeridas. A contação de histórias é também uma viagem, uma viagem literária pensada para que as crianças se deliciem com esse momento. A história por si já trabalha a criança internamente sem que aluno e professor se deem conta disso. Logo, não se trata de conhecimento acumulado, mas de conhecimento a ser vivido/construído. É preciso ponderar o que levar e como levar, considerando, sempre, as características dos sujeitos, o nível de apropriação de linguagem, as habilidades de compreensão, leitura e produção em Libras, pois talvez falte conhecimento linguístico para a realização das atividades propostas.

Possibilidades de desenvolvimento linguístico proporcionado pela história O Feijãozinho surdo, de liège gemelli kuchenbecker

A história O Feijãozinho Surdo é contada em língua de sinais apenas com o apoio de imagens. As imagens vão sendo apresentadas conforme o desenrolar da história. A contadora inicia apresentando a história que vai ser contada e mostra a capa do livro, em seguida apresenta os personagens da história. À medida que ela sinaliza o nome de cada personagem, aponta para sua imagem, o que facilita a associação e apropriação por parte da criança.

Do ponto de vista linguístico é possível, por parte da criança, uma identificação com o contador que está usando a língua de sinais de uma maneira livre, fluida e artística diante da criança, assim a criança tem condição de pensar em língua de sinais porque está recebendo uma história em língua de sinais. À proporção que vai acompanhando a história, a criança constrói gradativamente o enredo, vai aprendendo novos sinais, a estruturação das frases; apreendendo e apropriando da língua pela imersão na história, assim como pela identificação de dada imagem a dado sinal. A criança vai se apropriando da língua sem que o professor precise parar a história e explicar que tudo isso faz parte da gramática da língua e de seu funcionamento.

Estamos considerando neste artigo o desenvolvimento linguístico para além do conhecimento lexical e da gramática da língua, mas como uma competência discursiva progressivamente construída inicialmente até por meio de gestualidades. Pelo fato dessa história apresentar distintas escolas para surdos, tema com algum grau de complexidade, recomendamos que seja oferecida a alunos que já percorreram algum caminho na apropriação da Libras. O professor pode estimular as crianças a opinarem sobre o final da história a partir da pergunta deixada pela contadora “Fim! Fim? Ou o começo de uma nova história na vida do Feijãozinho?” (4min. 52seg). A pergunta final permite refletir: para qual escola eles acreditam que o Feijãozinho Surdo foi e por quê? Quais as diferenças entre as duas escolas? Como eles acreditam que o Feijãozinho Surdo está se sentindo nessa escola? Será que a família do Feijãozinho também aprendeu Libras? As perguntas servem de mediação para o desenvolvimento linguístico no sentido em que propomos, para além do campo da metalinguagem, além de contemplar o uso que a criança faz da língua para se referir a si e ao outro. Essa reflexão irá permitir, ainda, que a criança se identifique com o personagem e perceba que não está sozinho. As opiniões podem se transformar em uma produção de um final para a história mediada pelo professor e registrada através de desenhos.

Para o Feijãozinho Surdo e para as crianças que apreciarem essa história a resposta à pergunta final da história pode ser: vemos, no final, o começo da apropriação de sua língua e da possibilidade de se expressar; o começo do pertencimento a uma cultura e do desenvolvimento da identidade surda.

Como os personagens da história são representados por um dos produtos mais tradicionais da alimentação dos brasileiros, caso o professor queira, pode trazê-lo para a construção do conhecimento de mundo, abordando questões relacionadas ao plantio e ao cultivo do feijão, o uso consciente do solo, os hábitos alimentares e a ocorrência de distúrbios nutricionais ocasionados pela falta do consumo, dentre outros conhecimentos que podem ser desenvolvidos na disciplina de Ciências, proporcionando ampliação do conhecimento de mundo.

Possibilidade didática 1: elaborar/apresentar glossários/dicionários bilíngues em Libras aos estudantes, explicando o seu significado e sua utilização, assim (se forem alfabetizados) poderão começar a utilizar sozinhos quando surgir alguma dúvida sobre sinais ou palavras desconhecidas. Posteriormente, o professor pode assessorar os estudantes na produção dos seus próprios glossários que podem conter sinais, palavras, frases e imagens. Nesta história a construção do glossário pode ser feita a partir de sinais geradores como, por exemplo: ESCOLA - PROFESSOR - AULA - APRENDER e/ou a partir de sinais como: FAMÍLIA - PAI - MÃE - FILHO.

O professor pode solicitar aos pais que enviem fotos das crianças e de suas famílias e orientá-las a reproduzirem os nomes dos familiares com a datilologia. O professor pode a partir dos sinais de PAI e MÃE apresentados na história trabalhar as variações linguísticas presentes nas diferentes regiões do país. Naturalmente, a ampliação do vocabulário se dá a partir da contextualização. A criança provavelmente não irá interromper a história por não ter entendido um determinado sinal. Ela irá pelo contexto apresentar hipóteses que serão ou não confirmadas com a construção do glossário. É preciso permitir à criança elaborar hipóteses.

Possibilidade didática 2: assessorar os estudantes na produção de um reconto coletivo. O professor pode iniciar o reconto da história, parar em um determinado ponto e pedir para que alguém continue e/ou ir mediando com perguntas sobre o que aconteceu depois; fazer o reconto por meio de desenho e /ou por meio da Libras, com registro em vídeo, é mais uma possibilidade. “Ao fazer o registro de ideias e pensamentos por meio de vídeos em Libras [...] as crianças têm, por meio de suas produções, material para reflexão sobre os conhecimentos do mundo e da língua que ela usa para conhecer o mundo [...]” (STUMPF e LINHARES, 2021b, p.81).

A atividade trabalha a produção e a organização textual sinalizada; o uso de recursos linguísticos da Libras; permite utilizar sinais e expressões que marcam o espaço-tempo; explicita a compreensão da história a partir da repetição de trechos; exercita a memória, apoiando-se na atenção durante a contação da história. A memória e a atenção são funções cognitivas que ajudarão processar, armazenar e acessar as informações da história em outros momentos, estabelecendo relação com outras informações e transformando em conhecimento de mundo.

Possibilidade didática 3: o professor pode perguntar aos alunos se eles perceberam algum sinal desconhecido na história. A partir das indicações, pode selecionar os sinais mais recorrentes para explorar os diversos contextos de uso em que ele pode aparecer. É possível, ainda, explorar a forma dos sinais, observando a configuração de mão e o movimento, por exemplo, aludindo semelhanças/diferenças com sinais já conhecidos, se for o caso.

Potencial de desenvolvimento cultural-identitário proporcionado pela história Tibi e Joca, de Cláudia Bisol

A contação da história Tibi e Joca: uma história de dois mundos, diferente dos vídeos analisados anteriormente, conta com a tradução oral. À medida que a história vai sendo contada, as páginas do livro vão sendo mostradas. O livro exibe pouca escrita, apenas palavras em algumas páginas acompanhadas da figura do boneco Tibi que sinaliza a palavra de cada página, o que permite à criança acompanhar a história e fazer relação das imagens com as palavras em Português e a sinalização. No mesmo canal o professor Daniel mostra em outro vídeo o vocabulário da história. O vídeo pode ser utilizado pelos professores para o desenvolvimento vocabular das crianças.

Tendo em vista que a identidade surda é algo em construção e que é formada no relacionamento surdo-surdo, a história representa um momento de interação entre os surdos e de troca de experiências e vivências para essa construção. Se pensarmos em algumas escolas inclusivas, talvez esse encontro surdo-surdo só fosse se efetivar fora da sala de aula, fora dos muros da escola, na adolescência ou na idade adulta, pois as crianças ainda não tem autonomia para ir a esse encontro, mas a contação da história está antecipando esse momento, trazendo uma história da literatura surda, contada por um professor surdo.

Seguramente, para essa história o ideal seria não estruturar uma atividade pedagógica, mas deixar apenas que a história se manifeste no interior da criança e se relacione com sua história pessoal, trabalhando a identidade surda e a dimensão intercultural das comunidades surdas, proporcionando a compreensão da trajetória de vida das pessoas surdas inseridas na sociedade ouvinte (STUMPF; LINHARES, 2021b). Após esse momento, seria possível compartilhar compreensões numa interação mais livre. Contudo, é possível também direcionar essa construção didaticamente e, a seguir, apresentamos algumas propostas de atividades inspiradas em Stumpf e Linhares (2021b).

Possibilidade didática 1 - convidar surdos usuários de Libras para contar a sua história de vida, dialogar sobre seus sentimentos em relação a ser surdo. Posteriormente, o professor pode conversar com os estudantes sobre os contextos de suas vidas familiares e da descoberta da surdez. O professor poderá enviar questionários para a família para que respondam sobre como descobriram a surdez do filho, que decisões tomaram a partir da descoberta, os caminhos que percorreram até chegar na Libras e na escola, se participam da comunidade surda, de alguma associação e outras questões que as crianças tiverem curiosidade; ou ainda pode convidar pais de alguns dos alunos para uma conversa sobre isso.

Possibilidade didática 2 - assessorar os alunos na construção de autobiografias sinalizadas. Podem combinar alguns itens que todas as autobiografias devem conter, como: nome, idade, onde nasceu, o que gosta de fazer, entre outros.

Possibilidade didática 3 - caso a cidade tenha uma associação de surdos, é possível convidar um representante para falar sobre o trabalho que desenvolvem e/ou agendar uma visita para conhecerem a história da instituição, o número de participantes surdos, quem são os líderes, o que tem sido feito na associação etc. Caso a cidade não tenha uma associação, o professor pode buscar na internet informações sobre as associações mais próximas e apresentar para os alunos.

As atividades sugeridas potencializam os efeitos da história contada. Permitem conhecer a história dos surdos que estão ao seu redor e compreender a importância da participação em associações de surdos. “Isso é muito importante para auxiliar na transformação de sentimentos negativos em positivos, os quais podem ocorrer se o aluno pensar que ser surdo é um problema [...]” (STUMPF; LINHARES, 2021b, p.162). É importante, também, para a construção e fortalecimento da identidade surda, pois contribuem para que os surdos entendam que não estão sozinhos, que fazem parte de uma comunidade e de uma cultura surda.

Há ainda duas atividades que podem ser empreendidas após qualquer história, como as que mostramos a seguir. A primeira pode ser feita sempre, a segunda, apenas algumas vezes, para não se tornar repetitiva, e porque precisa ser reservada a histórias menos complexas: 1) imprimir diferentes emojis, colar em varinhas e disponibilizar para os estudantes após a contação de histórias para que escolham o emoji que melhor representa o sentimento em relação à história. Estimular as crianças a reproduzirem o emoji escolhido através de expressões frente ao espelho A atividade é uma forma de o estudante manifestar o seu sentimento em relação à história (se gostou ou não, se ficou triste ou alegre); ainda trabalha aspectos gramaticais da Libras e o estímulo a utilização de expressões faciais na sinalização. 2) Ajudar os estudantes na organização de uma dramatização ou teatro que simule o cenário e os personagens da história e reproduza de forma simples as interações entre eles. A atividade permite praticar a incorporação simples das ações dos personagens; expressar a criatividade; estimular o convívio social e o desenvolvimento da linguagem e do pensamento por meio do uso de recursos linguísticos.

Estimulamos o professor a prioritariamente contar histórias ao vivo, mas nada impede de se explorar também histórias em vídeo. As crianças muitas vezes pedem “conta de novo” e não há problema nenhum em repetirmos a mesma história/vídeos várias vezes: da primeira vez tudo é novidade para criança, nas contações seguintes o contentamento se renova; já sabendo o que vai acontecer, é possível se identificar ainda mais com a história e com os personagens; apreciar os detalhes e ampliar a construção de sentidos, do conhecimento de mundo, do linguístico e do interacional. Segundo Caldin (2009, p. 11), a narração “[...] pode proporcionar: a catarse, na medida em que libera emoções; a identificação com as personagens [...]; e a introspecção, ou seja, a educação das emoções”. A introspecção é entendida por Caldin (2009) como uma percepção interior que permite refletir sobre as emoções. Assim, histórias contadas em Libras podem provocar conexões e reflexões a partir da identificação com os personagens e a partir da introspecção do que foi contado e dos sinais apresentados, permitindo que as crianças reflitam sobre elas mesmas, sobre os outros e o mundo a sua volta, expressando essa compreensão por meio de seu modo de ser surdo.

E assim termina esse artigo...

Por meio da seleção e exploração de três vídeos de contação de histórias disponíveis em canais do YouTube, buscamos mostrar as contribuições da contação de histórias em Libras para a educação de surdos no Ensino Fundamental.

Ao participar da contação de histórias em língua de sinais, as crianças entram em contato com aspectos linguísticos que ajudam na apropriação e vivência da língua. O aprendizado da língua de sinais no que se refere ao vocabulário e estruturação de sentenças ocorre de forma contextualizada, oportunizando seu uso em diferentes espaços e tempos, possibilitando a compreensão de si e do outro. A criança entra em contato também com conteúdos previstos no currículo escolar, promovendo o conhecimento de mundo e o desenvolvimento da cultura e da identidade surda, como visto. Isso oportuniza à criança refletir sobre esses conhecimentos e expressar opiniões; conhecer a cultura surda e construir a sua própria identidade, seja a partir das representações surdas dos personagens das histórias, seja a partir da análise de elementos culturais que a história traz, proporcionando o estabelecimento de relações e diferenças entre o mundo surdo e o ouvinte.

Desse modo, reafirmamos que a contação de histórias em Libras contribui para o desenvolvimento cognitivo, linguístico e cultural-identitário de estudantes surdos no Ensino Fundamental, ainda que as intencionalidades por parte do professor não estejam postas. Por outro lado, se o professor direcionar o seu fazer em sala de aula, o desenvolvimento será ainda mais profícuo. Salientamos que não pretendemos reduzir a prática da contação de histórias a um recurso pedagógico, tampouco dizer que na contação de histórias está a solução para todas as dificuldades de desenvolvimento das crianças surdas, mas não podemos desconsiderar o grande potencial que as histórias têm para o desenvolvimento de crianças surdas.

Embora este artigo se encerre aqui, a discussão sobre o tema não finaliza nessas linhas. Daremos continuidade à pesquisa investigando em que medida e com que finalidade professores de surdos utilizam-se da contação de histórias e quais são as imagens que constroem dessa prática. Ademais, analisaremos os aspectos linguísticos e pedagógicos da performance de professores de surdos contadores de histórias, a fim de averiguar elementos e estratégias capazes de tornar a prática mais atrativa e contributiva para os alunos surdos.

REFERÊNCIAS

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1Artigo revisado por Maria Clara Maciel de Araújo Ribeiro e Lidiane Rodrigues Brito.

2Estima-se que apenas cerca de 5% a 10% dos surdos sejam filhos de pais surdos (QUADROS, 2008).

3Este artigo está vinculado ao Projeto de Pesquisa Da tradição oral para a língua de sinais: a contação de histórias na educação dos surdos e foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa por meio do parecer 5.147.976.

4Embora a contação de histórias possa ocorrer para todas as idades, as atividades apresentadas neste estudo foram pensadas para estudantes do Ensino Fundamental 1 (1º ao 5º ano) e de anos iniciais do Ensino Fundamental 2 (6º e 7º anos).

5Na rede pública do estado de Minas Gerais, por exemplo, escolas inclusivas não contam a rigor com um professor de Libras, mas com professor de sala de recurso, que lida com múltiplas necessidades específicas, incluindo as do surdo. O instrutor de Libras é figura itinerante que visita as escolas de maneira assistemática.

6Segundo Strobel (2013, p.38) “a comunidade surda de fato não é só de sujeitos surdos; há também sujeitos ouvintes - membros de família, intérpretes, professores, amigos e outros - que participam e compartilham os mesmos interesses em comuns em uma determinada localização”.

7Referimo-nos à possibilidade de implante coclear e à promessa de reversão da surdez que, para alguns membros da comunidade surda, não é a melhor maneira de potencializar a experiência de vida de pessoas surdas.

8Neste ponto entram também costume que as comunidades surdas têm de batizar as pessoas com sinais, a forma de aplaudir os sujeitos surdos em eventos, por exemplo, em que as mãos giram levantadas no ar, etc.

Recebido: 01 de Julho de 2022; Aceito: 05 de Setembro de 2022

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