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Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade

versión impresa ISSN 0104-7043versión On-line ISSN 2358-0194

Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade vol.31 no.68 Salvador oct./dic 2022  Epub 13-Ene-2023

https://doi.org/10.21879/faeeba2358-0194.2022.v31.n68.p200-214 

Artigos

“VITÓRIA, VITÓRIA, ACABOU A HISTÓRIA!”: NARRATIVAS INFANTIS EM PODCASTS

“VICTORY, VICTORY, THE STORY IS OVER!”: CHILDREN’S NARRATIVES IN PODCASTS

“¡VICTORIA, VICTORIA, SE ACABÓ LA HISTORIA!”: NARRATIVAS INFANTILES EN PODCASTS

Letícia Águida Bento Ferreira*  Secretaria Municipal de Educação de Florianópolis
http://orcid.org/0000-0001-9280-0870

Lidnei Ventura**  Universidade do Estado de Santa Catarina
http://orcid.org/0000-0003-4310-2632

*Mestre em Educação pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Supervisora Escolar da Rede Municipal de Ensino de Florianópolis. Florianópolis, Santa Catarina, Brasil. E-mail: leticia.snos@gmail.com

**Doutor em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professor do Centro de Ciências Humanas e da Educação da Universidade do Estado de Santa Catarina (FAED/UDESC). Florianópolis, Santa Catarina, Brasil. E-mail: llrventura@gmail.com


RESUMO

Este artigo apresenta resultados de uma pesquisa sobre a produção de podcast por um grupo de crianças pequenas de uma unidade pública de educação infantil. A pesquisa aproxima os campos da narrativa, numa visão benjaminiana de intercâmbio de experiências, tecnologias digitais de produção de podcast e educação infantil. Utilizou-se a pesquisa qualitativa, de natureza narrativa, a partir da qual foram coletadas histórias de crianças para produção de podcasts que foram publicados em plataformas on-line. A coleta dos dados ocorreu por meio de observação participante, registro em diário de campo e em gravações de rodas de conversa e de contações em podcast. O material foi interpretado de acordo com a hermenêutica fragmentária de Walter Benjamin. Fundamentados nesse autor, os pesquisadores tomam a criança como sujeito produtor de narrativas de experiências comunicáveis. Os resultados iniciais indicam que a produção de podcasts por crianças da educação infantil ampliam o espaço narrativo e se tornam importantes meios de potencializar suas experiências.

Palavras-chave: narrativas; podcast; educação infantil; pesquisa narrativa

ABSTRACT

This article presents results of a research that discusses the production of a podcast by a group of young children from a public institution of early childhood education. The research brings together the narrative field, digital technologies of podcast production and early childhood education. Qualitative research, of a narrative nature, was used, from which children’s storytelling were collected to produce podcasts that were published on online platforms. The data collection happened through the observation of the participants, registration in a field diary and recordings of conversation circles and tellings in podcast format. The material was interpreted according to the fragmentary hermeneutics of Walter Benjamin. Fundamented in this author, the researchers take the child as a producer of narratives of communicable experiences. The initial results indicate that the podcast production by children in early education amplifies the narrative space and becomes an important means of enhancing their experiences.

Keywords: narratives; podcast; early childhood education; narrative research

RESUMEN

Este artículo presenta los resultados de una investigación sobre la producción de podcasts por parte de un grupo de niños pequeños de una unidad pública de educación infantil. La investigación reúne los campos de la narrativa, las tecnologías digitales de producción de podcasts y la educación infantil. Se utilizó una investigación cualitativa, de carácter narrativo, a partir de la cual se recolectaron cuentos infantiles para la elaboración de podcasts que fueron publicados en plataformas online. La recolección de datos se realizó a través de la observación participante, el registro en un diario de campo y grabaciones de círculos de conversación y cuentas de podcast. El material fue interpretado según la hermenéutica fragmentaria de Walter Benjamin. Con base en este autor, los investigadores toman al niño como productor de narrativas de experiencias comunicables. Los resultados iniciales indican que la producción de podcasts por parte de los niños de la educación infantil amplía el espacio narrativo y se convierte en un medio importante para enriquecer sus experiencias.

Palabras clave: narrativas; podcast; educación infantil; investigación narrativa

Introdução

O título deste artigo foi extraído das palavras mágicas do ritual que finaliza as histórias contadas pelas crianças da unidade de educação infantil onde ocorreu a pesquisa,1 tornando-se um mantra que coroa o final de algumas histórias criadas por elas. E assim terminam as histórias inventadas pelos pequenos narradores e parceiros da aventura que vamos narrar: “Vitória, vitória, acabou a história!” A vitória se refere aqui tanto ao desfecho glorioso dos clássicos contos de fada, quando as personagens que são salvas de algum encantamento, quanto remetem à moral da história, como um conselho ou provérbio legado aos incautos. Como diz Walter Benjamin (2012, p. 216), “o narrador é um homem [mulher] que sabe dar conselhos ao ouvinte”.

O primeiro sentido pode ser atribuído também a esta pesquisa narrativa, porque enquanto narram sua saga de investigação, os pesquisadores assumem os riscos de pesquisar “com” e não “sobre” crianças pequenas, o que vale dizer que têm que conjurar alguns feitiços e desencantar outros tantos. Entretanto, nesse caso, é preciso variar o bordão, que ficaria mais ou menos assim: “Vitória, vitória, não acabou a história!” Isso porque, seguindo a esteira benjaminiana, a narrativa está imersa numa infindável multiplicidade de sentidos alegóricos, como algo sempre carente de atribuição de significado. Sobre essa questão, Benjamin (2016, p. 188) lembra que “a ambiguidade, a plurivalência de sentidos, é o traço essencial da alegoria; [...] Por isso a ambiguidade entra sempre em contradição com a pureza e a unidade da significação”. Nesse rastro, o que temos aqui é uma contação de histórias inacabadas e, como diz o ditado: “quem conta um conto aumenta um ponto.”

De acordo com o quadro conceitual adotado por esta investigação, conforme reflexões de Walter Benjamin (2012) e Paul Ricoeur (2010), a faculdade de narrativa nos constitui como espécie, e é decisivo o seu papel ontológico no processo de humanização. Em outras palavras, nos tornamos humanos pela narração, pela capacidade de nos situarmos no tempo e no espaço e de comunicarmos nossas experiências. É nesse contexto que tempo, memória e experiência se imiscuem nos processos narrativos, dando sentido à vida humana.

Benjamin (2012) fala também da capacidade humana de transmissão de experiências pela narração. Em seu influente ensaio O narrador: considerações sobre a obra de Nicolai Leskov (BENJAMIN, 2012), de 1936, ao discutir a decadência de experiências verdadeiras na modernidade, atribui esse fenômeno à perda generalizada de espaços coletivos de narração, levando à atrofia da narração. Assim ele reflete sobre essa problemática:

[...] a arte de narrar está em vias de extinção. São cada vez mais raras as pessoas que sabem narrar devidamente. É cada vez mais frequente que, quando o desejo de ouvir uma história é manifestado, o embaraço se generalize. É como se estivéssemos sendo privados de uma faculdade que nos parecia totalmente inalienável: a faculdade de intercambiar experiências. (BENJAMIN, 2012, p. 213).

Por seu turno, Paul Ricoeur (2010) defende na sua obra monumental, Tempo e narrativa, a tese de que é pela narração que se torna possível a experiência humana de compreensão da temporalidade, configurando por meio dela a própria constituição do Daisein (“ser-aí no mundo”). Segundo o autor francês:

O mundo exposto por toda obra narrativa é sempre um mundo temporal. Ou, como repetiremos várias vezes no curso desta obra: o tempo se torna tempo humano na medida em que está articulado de maneira narrativa; em contraposição, a narrativa é significativa na medida em que desenha as características da experiência temporal. (RICOEUR, 2010, p. 9).

Como se pode depreender dos autores citados, a modernidade esgarça o paradoxo da narrativa, pois na medida em que se apresenta como condição ontológica fundamental, cada vez mais os espaços narrativos se encontram em declínio.

É desse paradoxo que emerge a relevância da presente pesquisa, que investiga a produção de narrativas em podcasts por crianças da educação infantil, principalmente no que concerne a dois aspectos fundamentais: 1) Ao longo das eras, como argumenta Benjamin (2012), a musa da narrativa - Mnemosyne, a que rememora - tem encontrado outras formas de manter viva as condições da narração. Desse modo, narrativas em podcasts podem se converter em novas formas de partilhar histórias, aproveitando-se das tecnologias disponíveis para amealhar e comunicar experiências por meio da narração. Como se pode ainda deduzir das reflexões de Benjamin (2015) no influente ensaio A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, o meio técnico funciona como uma caixa de ressonância das percepções humanas em cada tempo histórico. Desse ângulo, os atuais meios digitais permitem novas formas de se sentir e perceber o mundo contemporâneo, tanto para os adultos quanto para as crianças; 2) Narrativas são momentos de ipseidade, isto é, são circunstâncias de encontro do sujeito individual ou coletivo consigo mesmo - ipse, em grego, refere-se a “si-mesmo” -, pelas quais dá sentido à sua própria temporalidade e identidade.

Ancorada nessas duas dimensões, a questão que investiga esse artigo é “Como as crianças da educação infantil usam narrativas para partilhar suas experiências e como o uso de podcast pode ampliar o espaço narrativo?”.

A pesquisa atravessa e é atravessada por três campos principais: narrativas, educação infantil e mídia-educação. O objetivo é aproximar e integrar os campos da narrativa, numa visão benjaminiana de intercâmbio de experiências, e tecnologias digitais de produção de podcasts no âmbito da educação infantil.

A proposta teórico-metodológica foi de discutir e operar com o conceito de experiência infantil, a partir das contribuições do pensador alemão Walter Benjamin, para identificar nas relações educativo-pedagógicas como se articulam as narrativas das experiências infantis com as rememorações das crianças. Tais narrativas foram coletadas nas rodas de conversa, observando-se como nesse espaço-momento são acionadas lembranças que revelam modos de interação e interpretação do mundo pelas crianças.

Entendemos que esta pesquisa dialoga diretamente com o objetivo do presente dossiê, pois comunga da dimensão educativa subjacente ao trabalho com narrativas, principalmente na educação infantil, quando as crianças estão se apropriando de modo cada vez mais complexo da transmissão de suas experiências pela linguagem oral.

A pesquisa narrativa e a narrativa como pesquisa: a abordagem metodológica

Operar com pesquisa narrativa é se sujeitar a alguns tipos de intempéries - feitiços e encantamentos também -, além de andar por um caminho contestado, cuja definição se encontra em litígio (ANDREWS; SQUIRE; TAMBOUKOU, 2008). Além do que, pelas tentações que provoca, facilmente coloca em risco qualquer pretensão de objetividade. Esses sinais são nítidos nas palavras de Andrews, Squire e Tamboukou (2008, p. 13), que apresentam parte das dificuldades: “[...] a pesquisa narrativa, embora seja popular e envolvente, é difícil [...] Os dados narrativos podem facilmente parecer esmagadores: suscetíveis a intermináveis interpretações, por sua vez, triviais e profundamente significativos.”

Ao fim e ao cabo, a pesquisa narrativa é “[...] o estudo de como os seres humanos experimentam o mundo, e pesquisadores narrativos coletam essas histórias e escrevem narrativas de experiência” (MOEN, 2008, p. 292). Nessa modalidade de pesquisa, o fenômeno a ser investigado é a vida das pessoas, que se expressa na forma de narrativas de vida e (auto)biografias. E no afã de captar toda complexidade possível do fenômeno narrativo, o sujeito pesquisador se põe a coletar dados, lançando mão dos recursos mais variados a fim de capturar a multiplicidade comunicativa do sujeito, como disse Bakhtin (2003, p. 395), o “ser expressivo e falante”. Desta forma, a pesquisa narrativa trabalha com as diversas manifestações deste ser que se expressa e se comunica. Por sua vez, o pesquisador constrói novas narrativas acerca das experiências que lhe foram transmitidas, atuando na esteira do contador de histórias benjaminiano,2 aquele que manipula a matéria viva das experiências próprias e alheias, tornando-as comunicáveis.

Trabalhar com a pesquisa narrativa pressupõe considerar três dimensões integradas: a narrativa como referencial gnosiológico - um modo de reflexão sobre o percurso da investigação; a narrativa como processo epistemológico - uma preocupação constante sobre a natureza crítica, porém flexível da metodologia narrativa; e a narrativa como modo de exposição da pesquisa - uma forma de contar sobre os achados da investigação. Moen (2008, p. 291) sintetiza bem essas dimensões complexas, e até mesmo paradoxais, da pesquisa narrativa:

Meu ponto de partida é que a abordagem narrativa é um quadro de referência, uma forma de refletir durante todo o processo de investigação, um método de pesquisa, e um método para representar o estudo da pesquisa. Assim, a abordagem narrativa é tanto o fenômeno quanto o método [...], um postulado que alguns podem achar um pouco confuso e avassalador.

Como se vê, o empreendimento narrativo desafia o cânone more geométrico (modo geométrico) (BENJAMIN, 2016) da metodologia positivista, pois não se trata de uma viagem solitária do cogito e nem uma manifestação empírica da natureza ou do fenômeno. Está mais para uma viagem com os outros da pesquisa, seus interlocutores, seus sujeitos narradores, enfim, seus parceiros e cúmplices.

A pesquisa narrativa foi escolhida como caminho mais adequado para a compreensão e apreensão das narrativas elaboradas pelas crianças, no contexto da educação infantil, lócus da pesquisa, uma vez que o objeto de estudo são as histórias contadas por crianças, cuja peculiaridade é de expressar a comunicabilidade de suas experiências. Segundo Martins e Tourinho (2017, não paginado):

[...] a pesquisa narrativa tem como sustentação histórias, relatos e imagens do passado, momentos, fragmentos e situações, experiências e ações alojadas na memória. Quando acionados pelos sujeitos, esses momentos, fragmentos, situações e imagens podem ser revividos e refeitos, em forma de narrativa.

A coleta de dados foi realizada por meio da observação participante (MINAYO, 2011), com imersão da pesquisadora no campo. Quanto aos instrumentos técnicos para formação do corpus da pesquisa, foram usados o caderno de campo para as anotações, gravações de áudios e imagens, além dos episódios gravados com recursos de gravação e edição no computador, por meio do aplicativo Audacity.3

A pesquisa teve como campo de estudo o Núcleo de Educação Infantil Municipal Orisvaldina Silva (NEIMOS), da Rede Municipal de Ensino de Florianópolis (RMEF), e os sujeitos da pesquisa foram 14 crianças entre 4 anos e 5 anos e oito meses de idade, que compõem um dos grupos desta unidade educativa. A metodologia foi adaptada aos sujeitos do estudo - crianças pequenas -, uma vez que o objetivo foi de realizar pesquisa com as crianças e não sobre as crianças, partindo da escuta atenta e dando visibilidade às suas experiências e ampliando os espaços narrativos.

A análise do material coletado durante oito semanas de atividades no campo de pesquisa foi realizada a partir da hermenêutica fragmentária de Walter Benjamin. Sobre essa concepção hermenêutica, Ventura (2019, p. 65) conceitua como

[...] um modo de interpretação que não somente valoriza, mas que apreende o fenômeno em seus estilhaços, ruínas, fragmentos; enfim, em cada peça do mosaico que em si mesmo manifesta a totalidade da ideia; em cada fragmento de pensamento há possibilidades de representação da ideia, havendo a necessidade de ir fundo nos detalhes, nos por menores.

As narrativas produzidas em podcast, além das que foram coletadas em outros momentos da roda de conversa, foram analisadas como miniaturas de significado (GALZERANI, 2005), mônadas benjaminianas, que são fragmentos de histórias com potência de parte-todo em que cada fragmento contém em si a multiplicidade na unidade: “[...] nesse sentido, a mônada pode revelar o caráter singular da experiência educativa realizada, sem perder de vista suas articulações com o universo amplo da cultura em que ela está imersa e com o olhar subjetivo do pesquisador.” (PETRUCCI ROSA et al., 2011, p. 205).

As gravações dos podcasts ocorreram após a estruturação do estúdio de gravação, que foi montado em uma sala cedida pela direção da unidade. Neste espaço, buscou-se construir um ambiente com referências de um estúdio real: a sala foi escurecida com TNT, foi colocada uma proteção acústica com caixas de ovos na parede e todo o piso foi coberto com tapetes, também sendo deixadas disponíveis outras materialidades para brincadeira, tais como computador, fones e microfones. Em uma mesa posicionada em frente a um grande espelho estava o equipamento para gravação. Todos esses elementos que compuseram o estúdio foram apresentados, discutidos e explorados com as crianças nas semanas anteriores, uma vez que a pretensão da pesquisa era envolvê-las em todos os processos com autonomia e, por isso, os artefatos tecnológicos (computador, máquina fotográfica/filmadora, fones e microfones) sempre estiveram à disposição e acessíveis a elas.

Pequenos narradores: o palco de contação e seus locutores

O campo de pesquisa, Núcleo de Educação Infantil Municipal Orisvaldina Silva, foi escolhido pela proximidade da pesquisadora com a comunidade escolar, profissionais e famílias, pois havia atuado nessa unidade como supervisora escolar durante 5 anos. E, também, pelo reconhecimento institucional da importância das narrativas infantis no desenvolvimento da criança e seu processo identitário. Inclusive, há nessa unidade educativa um ambiente propício para se pesquisar narrativas infantis, dada a sua trajetória na discussão de estratégias de ações pedagógicas que buscam ouvir as crianças, bem como a construção de planejamentos por indicativos sinalizados a partir dessas escutas atentas.

O Projeto Político Pedagógico (PPP) do Núcleo de Educação Infantil Municipal Orisvaldina Silva (2021, p. 13) contempla “[...] um trabalho de auscultação das crianças, de elaboração de hipóteses e considerações sobre o vivido, de organização de tempos e espaços para que as relações possam se estabelecer”. É por meio da fala das crianças que “se revelam os indicativos, aqui entendidos como ponto fundamental para participação das crianças” (NÚCLEO DE EDUCAÇÃO INFANTIL MUNICIPAL ORISVALDINA SILVA, 2021, p. 13).

Nesse contexto auspicioso, foi apresentado o projeto de pesquisa à equipe diretiva do NEIM, que o acolheu com interesse; logo em seguida, foi obtida autorização da Gerência de Formação da Secretaria Municipal de Educação para liberação do campo para pesquisa, assim como do Comitê de Ética em Pesquisa Envolvendo Seres Humanos (CEP), da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC).

Como não pode haver contação de história sem o conhecimento do contexto em que ela se produziu, ou seja, aquela “matéria viva” de que Benjamin (2012) fala em O narrador, passamos a descrever melhor o lócus da pesquisa e seus sujeitos.

O NEIM Orisvaldina Silva é uma das oitenta e três unidades de educação infantil pública do município de Florianópolis, iniciando suas atividades em 1979, ainda instalada em uma escola básica, como era comum nessa época. Em 1983, foi denominado Núcleo de Educação Infantil Municipal Orisvaldina Silva, em homenagem a uma das primeiras e importantes professoras da comunidade. Somente em 1992 passou a ter um prédio próprio, ao lado da escola básica, com estrutura adequada para atender crianças da educação infantil, conforme exigências do poder público. Alguns anos depois, no ano de 2000, foi incorporada à sua estrutura o antigo prédio do posto de saúde do bairro, um casarão de arquitetura colonial portuguesa. Agregado este novo espaço, o NEIM Orisvaldina Silva passou a ter seis salas de referência para o atendimento às crianças, quatro no prédio principal e duas no prédio do casarão. No prédio principal, duas salas-referências compartilham um banheiro e outras duas têm banheiros próprios. Ainda compõem o prédio principal: cozinha, depósito de alimentos, lavanderia, sala do lanche para as profissionais, sala da direção, dois almoxarifados, dois banheiros para profissionais e famílias, o canto do Boi de Mamão e um espaço multiuso, que funciona como refeitório, espaço para apresentações, reuniões e outras propostas que necessitem de local coberto para interações.

O espaço externo é formado por quatro ambientes: o Parque da Goiabeira, onde ficam os brinquedos maiores de parque, o Jardim Secreto, a pequena sala compartilhada pela Biblioteca Infantil NEIM Orisvaldina Silva e a coordenação pedagógica; a Prainha, um espaço sem brinquedos e obstáculos, propício para brincadeiras de correr e escavações; o Parque da Amora, onde ficam os brinquedos de parque de menor altura; e a área do deck, o menor, mas não menos interessante, dos espaços externos.

Em 2022, o NEIM Orisvaldina Silva está atendendo sessenta e nove (69) crianças no período matutino e noventa (90) crianças no período vespertino, totalizando cento e cinquenta e nove (159) crianças matriculadas, distribuídas em cinco grupos (G2, G3, G3/4, G4, G5/6). A equipe de trabalho é formada pela diretora, supervisora escolar, onze (11) professoras, dois (02) professores de educação física, dez (10) auxiliares de sala, uma (01) cozinheira readaptada, quatro (04) profissionais de serviços gerais e três (03) cozinheiras.

O grupo com o qual a pesquisa foi realizada iniciou o ano com dezoito (18) matrículas, sendo que duas crianças não se apresentaram e outras duas, ainda em fevereiro, foram transferidas para o turno vespertino. Assim, quatorze (14) crianças, entre 4 anos e 5 anos e oito meses, compõem o G5/6 matutino e são os sujeitos e parceiros desta pesquisa, pequenos contadores de histórias.

Os profissionais que acompanham as crianças são a professora, uma auxiliar de sala, uma professora auxiliar e o professor de educação física. A sala referência do grupo fica no Casarão, e numa sala desativada ao lado desta foi montado o “estúdio de gravação” de podcasts.

O primeiro contato com as famílias ocorreu entre 09 e 11 de fevereiro, e foi neste período que a pesquisadora apresentou para a comunidade escolar, em reunião pedagógica e em reunião com as famílias, a proposta de pesquisa, além de solicitar a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), assim como o termo de autorização de cessão das imagens e áudios, para os interessados. Somente uma família não autorizou a participação de uma criança, sendo resguardado esse direito em todas as atividades propostas ao grupo.

No terceiro dia de atendimento e inserção no campo de pesquisa, as crianças foram organizadas em dois grupos pela manhã. Os familiares que pudessem, poderiam acompanhá-las nesse dia. A sala estava organizada com espaços que suscitavam a brincadeira, mas podia se perceber a insegurança das crianças, que procuravam ficar mais perto do seu familiar e das professoras do que dos colegas ou da pesquisadora. A roda de apresentação, organizada pelas professoras, foi o momento de escuta e fala ainda tímida das crianças, que trouxeram elementos/objetos que pudessem ajudá-las a falar sobre si e sobre o que fizeram ou brincaram nas férias; todos participaram, inclusive a pesquisadora, que se apresentou e mostrou ao grupo duas materialidades: o microfone e um livro de Walter Benjamin; o primeiro como o objeto que captaria as narrativas e o segundo como guia dos estudos por ela desenvolvidos. Apareceram elementos/objetos variados para a apresentação, tais como carrinhos, bonecas, bonecos, livros, fotos e plantas que desencadearam os primeiros diálogos, curiosidades e partilhas no grupo.

Foi acordado com a professora que a periodicidade dos encontros entre a pesquisadora e o grupo seria de três vezes por semana, tendo como compromisso, no começo de cada semana, encaminhar o planejamento das ações de forma mais detalhada, conforme o cronograma inicial da pesquisa; e compartilhar o registro semanal com a professora, que também se propôs a fazer o mesmo com a pesquisadora.

A partir dos dados de matrícula disponibilizados na unidade, constata-se que 57% das crianças do grupo moram no próprio bairro do NEIM e as demais residem nos bairros próximos. Todas as crianças do grupo chegam ao NEIM acompanhadas por um familiar, quase sempre pela mãe. Mais da metade (78,60%) do grupo de crianças tem irmão ou irmã. Somente uma família declarou seu filho(a) como pardo, as demais declararam seus/suas filhos(as) como brancos(as). A renda média das famílias está entre 1 e 3 salários-mínimos. Pouco mais de 1/3 dos pais (37,50%) são nascidos na cidade de Florianópolis, 33,3% são de outros estados do Brasil e 29,2% não informaram sua cidade de origem.

As quatorze crianças do grupo escolheram codinomes para se autonomearem nesta pesquisa e se apresentarem nas gravações dos podcasts. São elas: Belinha, Boneca, Borboletinha, Cama, Construtor, Homem Aranha, Homem de Ferro, Joaninha, Princesa, Raul, Sara, The Flash, Tubarão e Uva.

Como indicam diversos autores, pesquisar com crianças é uma atividade permeada de desafios. Por isso, nas semanas iniciais, a entrada da pesquisadora na sala era sempre muito discreta, procurando chegar sempre antes da primeira criança. É curioso perceber que, assim, como mais um elemento no ambiente da sala, era observada. Então, ocorriam as primeiras aproximações, tentando pequenos diálogos e, especialmente, colocando-se à disposição para brincar com elas. Com esse movimento, a pesquisadora almejava, como indicam Silva, Barbosa e Kramer (2008, p. 84), o que é primordial na pesquisa com crianças: “ouvir os ditos e os não ditos; escutar os silêncios.” Essas autoras destacam, ainda, que a pesquisa com crianças, por ser do campo das ciências humanas e sociais, está baseada em relações e, por isso, ver e ouvir são atitudes fundamentais ao pesquisador.

Alguns movimentos de aproximação foram necessários para que se pudesse, finalmente, “brincar de gravação”. Um deles foi trazer para as crianças conhecerem os artefatos tecnológicos que seriam usados durante a pesquisa. Para isso, no momento da roda, em uma grande caixa, foi-se rememorando com elas quem era a pesquisadora e qual o motivo de estar na sala com o grupo. Algumas crianças recordaram da primeira apresentação, quando foram trazidos o microfone e o livro, mas quando saiu da caixa a lupa, as crianças começam a entender que haveria algum tipo de investigação. Na caixa, além da lupa e do microfone, tinha a máquina fotográfica, o computador, diferentes fones de ouvido e três livros de literatura, que seriam explorados durante as semanas da pesquisa.

Quando o computador saiu da caixa, foi retomada com as crianças a ideia de gravação de podcasts e que isso seria feito como esse equipamento. Mesmo diante de tantos objetos, elas ficaram atentas, momento esse aproveitado para realizar uma gravação coletiva ali mesmo. Foi apresentada a interface do programa Audacity e realizada uma pequena gravação coletiva, permitindo mostrar como aparecia o registro da voz humana na tela do computador, sendo ouvida atentamente por todos a primeira gravação.

Com auxílio e explicação de como usar os equipamentos, as crianças foram se aproximando desses elementos, que ficaram à disposição delas durante a pesquisa. Havia um misto de curiosidade e cuidado ao manipular a máquina fotográfica, em posicionar os fones de ouvido e um tanto de surpresa em ouvir a própria voz após as simulações de gravações no Audacity.

Brincadeira de gravação

As primeiras visitas ao estúdio foram bastante exploratórias para que as crianças se familiarizassem com o ambiente e conhecessem os equipamentos e suas funções. Tanto na mesa de gravação quanto com os equipamentos disponíveis para brincadeiras, as crianças vinham em pequenos grupos, entre três e quatro por vez. Na mesa de gravação, as reações iniciais foram de gritar, produzir sons aleatórios, criar palavras e acompanhar pelo computador a onda sonora da voz durante a gravação.

A experiência de ouvir suas vozes gravadas gerou curiosidade nas crianças, que começaram a ficar mais atentas aos aspectos técnicos da gravação, tais como a distância da boca em relação ao microfone, a entonação e a altura da voz; por vezes, os próprios colegas faziam advertências, indicando que o som tinha ficado alto, pois visualizavam a linha vermelha de alerta apresentada pelo software na tela do computador.

Nessas experimentações de gravação foram usados alguns efeitos do programa, fazendo-se alterações para grave e agudo, o que rendia muitas risadas quando as crianças ouviam o resultado. Conforme ia se desenrolando o trabalho, aumentava a intimidade com os recursos técnicos, ampliando-se os repertórios de gravação, passando de palavras e sons aleatórios para gravação de cantorias, conversas por meio de entrevistas e leituras de histórias. Essas foram estratégias para envolvê-las, pois as crianças, por timidez ou insegurança, ficavam reticentes em participar desse momento, o que de certa forma se naturalizou quando tudo se transformou em uma grande brincadeira coletiva. Nessa brincadeira, algumas delas incorporaram as personagens de suas histórias, interpretando “fielmente” suas características, vozes e/ou sons característicos. Lembramos aqui de Vygotsky (1991, p. 117), quando percebeu em suas pesquisas que

No brinquedo, a criança sempre se comporta além do comportamento habitual de sua idade, além de seu comportamento diário; no brinquedo, é como se ela fosse maior do que é na realidade. Como no foco de uma lente de aumento, o brinquedo contém todas as tendências do desenvolvimento sob forma condensada, sendo ele mesmo uma grande fonte de desenvolvimento.

O comportamento mimético das crianças na elaboração e produção dos podcasts certamente foi muito além do que poderia se esperar de crianças tão pequenas, que ainda estão se apropriando da linguagem oral, como se pode ouvir nas gravações. Foi possível perceber também o que Vygotsky (1991) se refere acima sobre entender o brinquedo como fonte de desenvolvimento, pois a cada gravação, audição e regravação dos episódios, eram visíveis as aprendizagens conquistadas pelo grupo em diversas dimensões.

Toda essa “brincadeira de gravação” estabeleceu entre as crianças e a pesquisadora uma relação de cumplicidade, e fez do estúdio um território de criação e autoria, onde o espontâneo, o improviso e o inusitado aconteceram. Como diz Girardello (2014, p. 24): “Interações de cumplicidade, jogo e parceria entre educadores e as crianças são vitais para o pleno exercício da autoria infantil.” E foi nesse contexto de busca da autoria das crianças que os roteiros de gravação foram sendo estruturados. No espaço do estúdio surgiram os temas dos três episódios4 que narram as experiências e memórias das crianças no núcleo de educação infantil. Os temas não foram escolhidos aleatoriamente, mas ancorados nas rodas de conversa e nas experiências vivenciadas no NEIM, mescladas com a bagagem que trouxeram de suas convivências familiares e do entorno social. Walter Benjamin, ao analisar o conteúdo do brinquedo, remete-se à intrincada relação entre o microcosmo infantil e o macrocosmo social. Diz esse autor:

A criança não é nenhum Robinson, as crianças não constituem nenhuma comunidade separada, mas são partes do povo e da classe a que pertencem. Por isso, o brinquedo infantil não atesta a existência autônoma e segregada, mas é um diálogo mudo, baseado em signos, entre a criança e o povo. (BENJAMIN, 2012, p. 266).

Na sua contação, as crianças acabaram por incorporar traços do narrador arcaico de que fala Benjamin, pois extraíram o conteúdo de suas histórias das suas vidas e de suas relações sociais, “profundamente enraizado no povo” (BENJAMIN, 2012, p. 221), fantásticas ou não, imprimindo na narrativa a sua marca.

O processo de criação, gravação e edição dos podcasts foi uma construção coletiva e colaborativa. E cada proposição envolveu a participação das crianças na gravação, escolha da trilha sonora, criação de histórias, escuta atenta para avaliação e cortes na gravação, além de possibilitar com que elas se envolvessem no processo que desejassem. Essa fluidez na participação gerou um grande engajamento do grupo durante a pesquisa.

Explicado minimamente o contexto da pesquisa e seus protagonistas, passamos às contações de algumas histórias, pequenas mônadas - miniaturas de significados - criadas oralmente pela turma, que evocam ao mesmo tempo elementos do microcosmo da vida no NEIM e das relações sociais do seu tempo, estabelecendo relações de interdependência entre o individual e o social. Deste modo, “as próprias crianças constroem seu mundo de coisas, um microcosmo no macrocosmo.” (BENJAMIN, 2012, p. 257).

Gravação de episódios de podcasts: rituais, sortilégios e feitiços...

“Vitória, vitória, acabou a história!”, assim terminam as histórias do terceiro episódio de podcast. Esse episódio, que está dividido em três partes, foi dedicado às histórias elaboradas pelas crianças a partir das suas experiências no NEIM envolvendo projetos e construções de castelos. A discussão acerca dos castelos emergiu da escolha do grupo de construir um elemento novo para a sala. Escolhido o castelo como tema de investigação, as crianças iniciaram a pesquisa sobre como eram construídos e quem eram seus moradores, o que mobilizou muitos diálogos, problematizações e desafios para projetarem e construírem coletivamente os castelos para a sala. Ao fim dessa obra, as crianças foram convidadas a criar histórias com o enredo “Era uma vez um castelo...”.

As histórias foram criadas e gravadas no estúdio. A professora, como escriba, registrava a história, ditada pelas crianças e, logo após, a pesquisadora fazia a gravação dos áudios. Para este artigo, trazemos duas histórias das muitas gravadas - ambas do Episódio 3 -, para exemplificar o processo de produção da dissertação sob a análise da hermenêutica fragmentária benjaminiana.

Apresenta-se primeiro o contexto de produção em que se originaram as histórias (mônadas), que são transcritas na sequência.

Episódio de Podcast 3 - Era uma vez... um castelo (1ª parte, 2ª história)

Belinha e Sara já estavam no estúdio com a professora quando a pesquisadora chegou; tudo indicava que uma das meninas tinha soltado um pum e havia uma certa descontração sobre o ocorrido. A professora aproveitou o acontecimento e propôs que as meninas contassem uma história em que pudessem falar sobre pum, uma vez que isso acontece com todas as pessoas, e comentou sobre o livro Até as princesas soltam pum, de Ilan Brenaman, que em breve traria para o grupo conhecer. As meninas toparam o desafio e foram tecendo uma história de princesa perfumista de pum. Belinha, quando questionada sobre o cheiro do pum da princesa, disse que cheirava a lavanda. Entre risadas, finalizam a história com um baile perfumado. Durante a gravação, as risadas continuaram. Belinha fez a maior parte das gravações, mas as participações “especiais” de Sara são muito divertidas, ela vai se corrigindo em meio as falas, deixando a narrativa muito espontânea.

Mônada 1

A princesa que soltava pum com cheiro de lavanda

Era uma vez um castelo onde morava uma princesa que soltava pum.

Este pum era um perfume bem cheiroso. A princesa soltava um pum e colocava dentro de um vidrinho de perfume.

Com este perfume bem cheiroso, com cheirinho de lavanda, a princesa passava em seu corpo.

Assim cheirosa, ela colocava um vestido lindo e ia para o baile.

Vitória, vitória, acabou a história!

(história criada pela Belinha e pela Sara).

Tudo pode ser salvo no conto de fadas, inclusive nossas pequenas mazelas da condição humana. Se um boneco de pau ou uma fera terrível pode virar gente, nada impede que os miasmas da princesa tenham cheiro de lavanda, afinal, está em xeque sua nobreza mais íntima. Benjamin diz que o primeiro narrador verdadeiro é o narrador do conto de fadas. Sua dupla função é de revelar as fragilidades da condição humana e encontrar meios de superá-las. Lembra Benjamin (2012, p. 232) o bordão clássico dos contos de fada: “E se não morreram, vivem até hoje.” Com isso se percebe um viés messiânico no conto de fadas, pois abre uma fresta estreita por onde se infiltra a salvação do frágil corpo humano no universo, acorrentado no mito. Nas epopeias clássicas (uma espécie de conto de fadas),5 a libertação humana do mito e suas danações vêm nos contos de fadas, como o centauro Quíron, que salva Prometeu da condenação eterna de Zeus - por ter roubado o fogo dos deuses e o ter dado aos homens -, como o beijo mágico do príncipe que salva a princesa do sono eterno provocado pela maçã envenenada, como o batismo cristão, que salva o recém-nascido do pecado original, ou como a lavanda, que reintegra a dignidade da princesa Sara, odorizando seu pum. Na narração se misturam, até hoje, a condição filogenética e ontogenética da humanidade, pois as carências ainda são as mesmas: a do ser que se depara com um mundo hostil e de um indivíduo que procura seu lugar em um mundo opressor. Os contos de fadas empoderam a humanidade e a criança, com astúcia e coragem, contra o medo e as insuficiências humanas diante da realidade. Se não pode voar, cria o mito de Ícaro, se não pode correr, cria a Corça de Cireneia, e por aí vai. “O conto de fadas ensinou há muitos séculos à humanidade, e continua ensinando até hoje às crianças, que o mais aconselhável é enfrentar as forças do mundo mítico com astúcia e arrogância.” (BENJAMIN, p. 2012, p. 232). Se o conto de fadas tende a reconciliar a espécie humana com a natureza, dando-lhe segurança e felicidade, na criança ele retorna também como um sentimento de libertação e felicidade na medida em que produz novos e autênticos significados. Sobre a importância dos contos de fadas para as crianças, numa abordagem psicanalítica, o psicólogo infantil Bruno Bettelheim (1997), analisando diversos contos de fadas presentes no universo imaginário das crianças, acertadamente aponta que:

Todos os bons contos de fadas têm significados em muitos níveis; só a criança pode saber quais significados são importantes para ela no momento. À medida que cresce, a criança descobre novos aspectos desses contos bem conhecidos, e isso lhe dá a convicção de que realmente amadureceu em compreensão, já que a mesma história agora revela tantas coisas novas para ela. Isso só pode ocorrer se a criança não ouviu uma narrativa didática do assunto. A história só alcança um sentido pleno para a criança quando é ela quem descobre espontânea e intuitivamente os significados previamente ocultos. (BETTELHEIM, 1997, p. 7).

É pelo conto de fadas que Sara é salva da condição iníqua de “soltar pum”, algo tão pouco nobre e inapropriado para uma princesa, atribuindo-lhe outro significado. Como vimos, no imaginário das meninas, natureza e cultura acabam reconciliadas. Afinal, quem não gostaria de “soltar” um pum com cheiro de lavanda e depositá-lo em um frasco para depois usá-lo, como o gênio que sai da lâmpada de Aladim nas histórias de As mil e uma noites?

Episódio de Podcast 3 - Era uma vez... um castelo (2ª parte, 1ª história)

A história Kalua seguiu um caminho diferente das demais, pois foi seu autor quem procurou a pesquisadora no estúdio para contar sua história. Sua chegada foi marcante, pois mais dois colegas tinham acabado de sair e ele passou pela cortina vermelha do estúdio dizendo que queria gravar sua história. Já estava no horário do almoço e o barulho havia se intensificado, o que interferiu muito na captura do áudio. As outras histórias foram criadas e gravadas em duplas, mas ele não queria uma parceira, além do que, nesse dia, a professora não estava acompanhando a pesquisadora nas gravações, por isso se cogitou a possibilidade de não gravar esse aluno. Contudo, não se poderia impedir ou frustrar aquele desejo tão intenso e espontâneo.

No primeiro momento, ele já queria gravar, parecendo que a história estava na ponta da língua e se não falasse iria perdê-la. Contudo a pesquisadora o lembrou do livro que estava sendo escrito com as histórias gravadas e que precisariam escrever a história primeiro. Na verdade, isso não fazia sentido, pois se poderia gravar primeiro e depois transcrever a história, mas esses são inusitados da pesquisa; essa arbitrariedade da pesquisadora só foi notada depois, durante o registro no caderno de campo. Esse episódio só demonstra o quanto a pesquisa narrativa desafia a linearidade da pesquisa tradicional, requerendo os tais “desvios metodológicos” dos quais falava Benjamin (2016).

Realmente a história estava pronta, rapidamente e sem dúvidas sobre o enredo, ele ditou o texto. A história de The Flash conta com o elemento da parede no meio da floresta e a perseguição do monstro. É muito parecida com a história elaborada por Homem Aranha e a Princesa, que tem um fim trágico - todas as personagens são engolidas pelo monstro. Essa história foi lida no início da manhã para que as crianças fizessem a ilustração, uma vez que todas as histórias do podcast vão compor um livro que a professora está organizando. Na sua história, The Flash acrescenta o príncipe-herói, que elimina o monstro, criando um desfecho, ao que pareceu, muito coerente com as narrativas épicas.

A gravação fluiu tão bem quanto a criação. Assim que as cenas de ação começaram, The Fhash mudou a entonação, dando personalidade à sua história, que era tão pessoal que escolheu como título um nome muito especial, o seu próprio nome.

Mônada 2

Kalua

Era uma vez um castelo com uma princesa, uma rainha, um rei e um príncipe.

O monstro lobo vivia na floresta perto do castelo.

O rei e a rainha foram passear na floresta. O príncipe ficou no castelo.

O rei e a rainha encontraram uma barreira no meio da floresta, onde o monstro lobo comeu eles.

Depois, o príncipe perseguiu o monstro lobo e matou ele.

Vitória, vitória, acabou a história!

(história feita pelo The Flash).

Como se sabe, a imaginação é a base criadora dessa narrativa. Para Sperb (2009, p. 76), a partir dos estudos de Vygotsky, “[...] a imaginação não surge do nada, mas sim de elementos da experiência anterior”; provavelmente The Flash cria seu enredo a partir da história dos colegas, mas traz um desfecho diferenciado a partir das suas referências e emoções tão bem traduzidas na gravação. Benjamin (2012) diz que o narrador alimenta suas histórias de suas experiências e do que ouviu dizer, misturando fatos, indícios e invenções. Assim como a história de The Flash

Ela [a narrativa] não está interessada em transmitir o ‘puro em si’ da coisa narrada, como uma informação ou um relatório. Ela mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retirá-la dele. Assim, imprime-se na narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso. É uma inclinação dos narradores começar sua história com uma descrição dos fatos que vão contar a seguir, isso quando não atribuem essa história simplesmente a uma vivência própria. (BENJAMIN, 2012, p. 221).

Percebe-se no processo de criação da narrativa de The Flash uma certa catarse emocional derivada do desejo de contar e de “salvar o dia”. A euforia é tanta que as entonações e trejeitos saltam à flor da pele na sua locução do podcast. A morte do monstro-lobo pelo príncipe, vingando a morte do rei e da rainha, transborda o clímax vivenciado pelo narrador, que se emociona com a cena, relaxando somente no momento da “Vitória, vitória, acabou a história!”, como um sentimento de missão cumprida.

A encenação aqui tem aquele cunho pedagógico de que falava Benjamin (2009), pois os ouvintes são enredados na narração e convidados a participar e aprender com o narrador. Como diz esse autor:

A encenação é a grande pausa criativa no trabalho educacional. Ela representa no reino das crianças aquilo que o carnaval representa nos antigos cultos. O mais alto converter-se no mais baixo de todos, e assim como em Roma, nos dias saturnais, o senhor servia o escravo, assim também as crianças sobem ao palco durante a encenação e ensinam e educam os atentos educadores. (BENJAMIN, 2009, p. 118).

Ainda na linha de pensamento de Benjamin (2009), tais encenações tendem a proteger a criança de futuras dificuldades em lidar com situações de tensão emocional (BETTELHEIM, 1997), funcionando como um anteparo inconsciente para os choques que certamente virão vida à fora, pois já foram experimentados no jogo teatral infantil.

Não se pode saber ao certo quem mata o monstro-lobo, se The Flash ou o príncipe. Talvez os dois, implicados no desejo de remissão da justiça, pois no fim das contas, como Benjamin (2012, p. 240) conclui em O contador de histórias: “O narrador é a figura na qual o justo se encontra consigo mesmo.”

“Vitória, vitória, não acabou a história!”

Quando se trabalha com pesquisa narrativa, deve-se estar aberto à sua incompletude, ainda mais quando os dados obtidos são interpretados de forma hermenêutica, estando, portanto, sujeitos a processos constantes de sobrecodificação, pois se trata de um exercício de compreensão. Como diz Gadamer (2014, p. 263), o “ato da compreensão é a realização reconstrutiva de uma produção”. Isso para não falar na profusão de conteúdos gerados, o que a todo momento desafia a capacidade do pesquisador em dar sentido a tamanha polifonia. Mesmo pesquisadores e pesquisadoras experientes atestam tais dificuldades. Como disseram Andrews, Squire e Tamboukou (2008), os dados narrativos podem facilmente parecer e se tornar esmagadores, pois não há um porto seguro nem um modo único ou “infalível” de lidar com eles. Vem daí o ponto fraco e ao mesmo tempo forte desse tipo de pesquisa, pois quando o pesquisador assume seus limites e impossibilidades, vai em busca de caminhos desviantes, alternativos e fugas metodológicas para contar suas histórias da melhor forma.

Assim, diante de tal complexidade metodológica, não podemos acabar essa história. Cabe-nos apenas apontar a ponta do iceberg, em cuja massa submersa encontram-se armazenados outros tantos “causos” que aguardam seus contadores.

A inspiração inicial desta pesquisa foram as narrativas radiofônicas para crianças realizadas por Walter Benjamin, entre os anos de 1927 e 1933, nas rádios alemãs de Berlim e Frankfurt. Esses programas radiofônicos eram voltados para os temas mais diversos, mas principalmente literatura e outras questões culturais. Foram aproximadamente 86 programas e em 60 deles Benjamin encarregou-se da leitura e locução. Rolf Tiedemann e Theodor Adorno foram responsáveis pela organização das publicações póstumas de Walter Benjamin e organizaram o material das conferências, compilando 29 “palestras radiofônicas” voltadas às crianças e jovens, que foram transformadas em livro, em 1985. No Brasil, a obra foi traduzida e publicada no ano de 2015 sob o título A Hora das Crianças: narrativas radiofônicas (BENJAMIN, 2015), pela editora NAU.

É importante perceber que nessas conferências Benjamin adota uma postura séria diante do público infantil, não infantilizando ou subjugando sua capacidade de entendimento e recepção. Adotar essa postura diante das crianças e das possiblidades atuais da tecnologia foi decisivo para avançarmos no projeto, não limitando-o a apenas produzir conteúdos em podcast para crianças pequenas, mas produzir com elas episódios de contação de histórias (pequenas conferências?) que comunicassem ao público suas experiências de vida. Dessa forma, pretendeu-se integrar o campo das narrativas com o uso de mídias na educação infantil, campos por vezes tão distantes.

Vitória, vitória, ainda não acabou essa história...

REFERÊNCIAS

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1A pesquisa foi realizada no Núcleo de Educação Infantil Municipal Orisvaldina Silva, situado no bairro Lagoa da Conceição, na cidade de Florianópolis, Santa Catarina, tendo sido aprovada pelo Parecer Consubstanciado do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) nº 5.085.294 da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC).

2Um dos mais expressivos estudiosos de Benjamin para a língua portuguesa, o português João Barrento, traduz o título do ensaio Der Erzähler como O contador de histórias (BENJAMIN, 2018).

3Software livre de gravação e edição de áudio desenvolvido por The Audacity Team. Disponível em https://www. audacityteam.org/.

4Episódio 1: Coisas que eu gosto de brincar no NEIM; Episódio 2: Músicas que a gente canta no NEIM; Episódio 3: Era uma vez um castelo - esse episódio está dividido em três partes, pois consideramos que por se tratar de um podcast para crianças, eles não deveriam passar de 5 minutos de duração. Os episódios estão disponíveis no Spotfy (NARRATIVAS INFANTIS EM PODCAST, 2019a) e no Google podcast (NARRATIVAS INFANTIS EM PODCAST, 2019b).

5Neste momento, não fazemos distinção aqui entre mito, epopeia e conto de fadas, pois o que nos interessa é seu elemento mágico e não enquanto gênero literário.

Recebido: 30 de Junho de 2022; Aceito: 31 de Agosto de 2022

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