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Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade

Print version ISSN 0104-7043On-line version ISSN 2358-0194

Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade vol.31 no.68 Salvador Oct./Dec 2022  Epub Jan 13, 2023

https://doi.org/10.21879/faeeba2358-0194.2022.v31.n68.p215-230 

Artigos

LITERATURA DIGITAL INFANTIL, EXPERIÊNCIAS SONORAS E AUDIÇÃO DE HISTÓRIAS

LITERATURA DIGITAL INFANTIL, EXPERIENCIAS SONORAS Y ESCUCHA DE CUENTOS

Edgar Roberto Kirchof*  Universidade Luterana do Brasil
http://orcid.org/0000-0002-1072-2547

Giselly Lima de Moraes**  Universidade Federal da Bahia
http://orcid.org/0000-0003-3313-6003

*Doutor em Linguística e Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS). Professor do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Luterana do Brasil (PPGEDU/ULBRA). Porto Alegre, Rio Grande do Sul. E-mail: ekirchof@hotmail.com

**Doutora em Educação pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Professora Adjunta da Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Salvador, Bahia. E-mail: gisellylima@ufba.br


RESUMO

O presente artigo discute sobre as potencialidades da voz na literatura infantil digital quanto ao que ela acrescenta à experiência de audição de histórias por crianças e jovens. O artigo apresenta os resultados da análise do modo como a voz é utilizada, em sete narrativas digitais para crianças, como um recurso semiótico capaz de produzir efeitos de sentido tais como humor, afetividade, imersão, entre outros. O corpus de análise é composto de produções brasileiras e internacionais, e a fundamentação teórica que sustenta as reflexões se baseia nos estudos de Walter Ong, Frédéric Barbier e Roger Chartier sobre oralidade, cultura escrita e cultura digital; nos estudos de Gunther Kress sobre multimodalidade; e nos estudos de Paul Zumthor sobre a palavra poética. A análise revela que a literatura infantil digital recupera aspectos da tradição narrativa e também promove rupturas nessa tradição ao converter a voz em recurso semiótico que compõe a obra literária, a qual se torna multimodal e interativa.

Palavras-chave: literatura infantil digital; oralidade; cultura digital

RESUMEN

El propósito de este artículo es discutir el potencial de la voz en obras de literatura infantil digital y su aportación a la experiencia de escuchar historias para niños y jóvenes. El artículo presenta los resultados de un análisis que investiga cómo se utiliza la narración con voz, en siete narrativas digitales para niños, como recurso semiótico capaz de producir efectos de sentido como humor, afectividad, inmersión, entre otros. El conjunto de obras seleccionadas está compuesto por producciones brasileñas e internacionales, y la base teórica que sustenta las reflexiones se apoya en los estudios de Walter Ong, Frédéric Barbier y Roger Chartier sobre oralidad, cultura escrita y cultura digital; en los estudios de Gunther Kress sobre multimodalidad; y en los estudios de Paul Zumthor sobre la percepción sensorial de la palabra poética. El análisis revela que la literatura infantil digital recupera aspectos de la tradición narrativa y también promueve rupturas en esta tradición al convertir la voz en un recurso semiótico que conforma la obra literaria, que se vuelve multimodal e interactiva.

Palabras clave: literatura infantil digital; oralidad; cultura digital

ABSTRACT

This article discusses the potential of voice in digital children’s literature in terms of what it adds to the experience of listening to stories by children and young people. The article presents the results of the analysis of the way in which the voice is used, in seven digital narratives for children, as a semiotic resource capable of producing meaning effects such as humor, affectivity, immersion, among others. The corpus of analysis is composed of Brazilian and international productions, and the theoretical foundation that supports the reflections is based on the studies of Walter Ong, Frédéric Barbier and Roger Chartier on orality, written culture and digital culture; in Gunther Kress’ studies on multimodality; and in Paul Zumthor’s studies on the poetic word. The analysis reveals that digital children’s literature brings up aspects of the narrative tradition and also promotes ruptures in this tradition by converting the voice into a semiotic resource that makes up the literary work, which becomes multimodal and interactive.

Keywords: digital children´s literature; orality; digital culture

Introdução

A cultura digital vem transformando a cultura impressa, nos dias atuais, assim como, outrora, a cultura impressa também transformou a oralidade, a qual deixou de ser o modo hegemônico de estruturação das relações sociais e de organização simbólica da experiência humana. A evolução da prática ancestral de contar e ouvir histórias é um exemplo de como tais transformações se dão de forma não-linear e de como os diferentes suportes, modos semióticos e modelos culturais constituem a experiência narrativa e literária. Por outro lado, apesar dessas transformações, desde o narrador ancestral, a quem era conferido o poder sagrado de salvaguardar a memória de seu povo, até os novos modos de narrar instaurados pela cultura escrita e pela cultura digital, a voz humana tem se mantido como um recurso irrenunciável para a fruição da palavra poética.

Diante desse contexto, no presente artigo, propomos uma discussão sobre as possibilidades que as obras de literatura infantil digital apresentam quanto à experiência de audição de histórias por crianças e jovens. Com base na teoria da multimodalidade e dialogando com estudos de Paul Zumthor (1997, 2000) sobre o papel da percepção sensorial da palavra poética, procuramos demonstrar que a voz, em narrativas digitais para crianças, também é capaz de produzir efeitos poéticos, ainda que seu suporte não seja um corpo vivo. Para tanto, analisamos como a “dimensão acústica da voz” e a “interatividade mediada pela voz” foram projetadas, em um conjunto de narrativas digitais para crianças, com a intenção de produzir determinados sentidos e efeitos. As obras analisadas são A história do Pequeno Grande Traço (BLOCH, 2018), Little Red riding hood (2013), Marina está do contra (WOLDE, 2017), The monster at the end of this book (STONE; SMOLLIN, 2011), The heart and the bottle (JEFFERS, 2011), Spot (WIESNER, 2015) e Quanto Bumbum! (MALZONI; ESTEVES, 2016).

Antes de apresentar as análises, contudo, trazemos, inicialmente, uma discussão sobre a relação da oralidade com a cultura escrita e com a cultura digital, baseando-nos, para tanto, em autores como Walter Ong (1982), Gunther Kress (2010), Frédéric Barbier (2005), Roger Chartier (1987, 1994), entre outros. Em seguida, trazemos uma seção sobre a relação da oralidade com a literatura infantil impressa. Na penúltima seção do artigo, discorremos brevemente sobre os limites e as potencialidades que a voz humana adquire no contexto das mídias digitais para a experiência poética, tomando como principal fundamento as reflexões do pensador suíço Paul Zumthor (2000) sobre a palavra poética. Por fim, encerramos com a análise de um conjunto de sete obras digitais, a qual procura demonstrar que há uma nova experiência proporcionada pela voz humana na literatura e que esta se instaura com as tecnologias digitais. Nela, apesar das perdas em relação a tudo que envolve a corporalidade que caracteriza a voz humana natural, é possível recuperar os traços de uma corporeidade que permanece capaz de produzir efeitos sobre o leitor.

Oralidade, cultura escrita e cultura digital

Como ressalta Meek (2004, p. 25), a cultura escrita se desenvolve e se estabelece por meio da linguagem, ou seja, é um “assunto de linguagem”. O mesmo podemos dizer da cultura digital, uma vez que, na perspectiva da multimodalidade, a linguagem se define como um conjunto de recursos semióticos que podem ser empregados para a produção de sentidos e para a comunicação entre seres humanos (KRESS, 2010). O semioticista alemão Gunther Kress (2010) nos alerta que a linguagem verbal escrita é apenas um dentre vários outros modos semióticos que nós usamos para produzir sentidos e nos comunicar. Ainda de acordo com Kress (2010, p. 28), “na comunicação, vários modos são sempre utilizados em conjunto, formando conjuntos de modos, os quais são projetados de forma que cada modo possui uma tarefa e uma função”. Em outros termos, quando nos comunicamos, geralmente mesclamos recursos semióticos visuais, espaciais, táteis, gestuais, auditivos e orais para construir e veicular nossas mensagens (KALANTZIS et al., 2016, p. 2).

Historicamente, a oralidade precede a escrita. Como ressalta o teórico canadense Walter Ong (1982, p. 14), as histórias das culturas genuinamente orais - hoje, cada vez mais raras - são muito diferentes das narrativas que circulam nas sociedades letradas, pois, dentre várias outras características, uma narrativa não influenciada pela escrita será sempre dependente de seu contexto imediato de produção e de recepção, apresentando-se como uma performance verbal única e de duração efêmera. Já uma história nascida na cultura da escrita, mesmo que seja oralizada, pode ser impressa em algum suporte material e, por essa razão, adquire autonomia e independência em relação ao contexto imediato de produção, podendo ser repetida ao longo do tempo. As narrativas que emergem da cultura digital, por sua vez, incorporam as potencialidades do som e da escrita, pois são capazes de agregar diferentes modos semióticos, além de introduzirem novas possibilidades de composição, como imagens em movimento, interatividade, estruturas de hipertexto, hipermídia e transmídia, entre outras.

De acordo com Ong (1982), o efeito do surgimento da escrita sobre a cultura oral não se restringe à possibilidade de traduzir sons em letras ou palavras faladas em palavras escritas, pois a fixação da fala no espaço reestrutura o pensamento e a própria consciência, uma vez que transforma as palavras em objetos ou coisas. Por essa razão, a mera oralização de textos concebidos a partir da escrita, para Ong (1982), não se caracteriza como um fenômeno de cultura oral em sentido restrito, devendo ser definida, antes, como um tipo de oralidade secundária. Da mesma forma, podemos afirmar que a mera transposição de textos escritos para meios digitais tampouco se configura como um fenômeno primário da cultura digital. Uma analogia com o conceito proposto por Ong (1982) permite concluir que a digitalidade primária se organiza a partir de estruturas de linguagem e de pensamento possibilitadas pelas tecnologias digitais, tais como o hipertexto, a multimídia, a hipermídia, a interatividade. Portanto, textos estruturados na lógica da cultura escrita, ainda que disponíveis para leitura em telas de aparelhos computadorizados, enquadram-se naquilo que poderíamos chamar de digitalidade secundária.

O surgimento dos livros impressos e sua disseminação fez emergir várias práticas de oralidade secundária associadas com a leitura ao longo da história. Entre os historiadores do livro e da leitura na Europa, predomina o entendimento de que, durante a Antiguidade e a Idade Média, por exemplo, era muito comum a prática de ler em voz alta e ouvir coletivamente a leitura de textos escritos. Já com a disseminação dos livros impressos, principalmente a partir do século XVIII, os leitores passaram a privilegiar cada vez mais a experiência mental e silenciosa da leitura. Para o historiador Frédéric Barbier (2005), uma forte evidência de que os manuscritos da Antiguidade e da Alta Idade Média se apresentavam para serem lidos em voz alta - seja de forma individual, seja de forma dirigida a um grupo ou pela mediação de um escravo secretário - é o fato de seus textos estarem dispostos em scriptio continua; ou seja, não continham pontuação, divisão em parágrafos, e as palavras não eram separadas por espaços.

Após a invenção da imprensa com tipos móveis por Gutenberg, o livro foi se tornando gradativamente mais acessível. Juntamente com o avanço de políticas de alfabetização, a impressão estimulou e popularizou a prática da leitura como um ato individual, íntimo, privado e que demanda um grande esforço emocional, intelectual e espiritual (CHARTIER, 1987). Por outro lado, Chartier (1987) também nos adverte que seria um erro considerar que a disseminação da leitura silenciosa teria substituído as práticas de leitura oral a partir da Modernidade. Um exemplo desse tipo de prática no século XVIII era a venda de livretos de canções nos mercados pelos assim chamados chanteurs de foire, os mercadores de canções. Antes da venda dos seus livretos, esses mercadores cantavam as canções que seriam vendidas, acompanhados ao som de violino. Como se percebe, mesmo na Modernidade as práticas orais de leitura de histórias jamais desapareceram.

A voz e a literatura infantil

Um dos campos em que é possível perceber, de forma especial, diferentes modos de manifestação da oralidade secundária é a literatura infantil. De fato, o vínculo dessa literatura com a oralidade remonta à própria origem de vários textos considerados clássicos infantis, tais como os contos de fada e as inúmeras versões de poemas rimados de origem popular. No século XVIII, quando os livros para crianças se tornaram um objeto lucrativo em vários países da Europa, o conto de fadas figurou como um dos gêneros mais populares para compor esses livros (RUSSELL, 2014). Originalmente, essas narrativas pertenciam à tradição oral e não eram endereçadas a crianças. Foi apenas depois de serem coletadas e adaptadas por escritores como Charles Perrault, na França, os irmãos Jacob e Wilhem Grimm, na Alemanha, Hans Christian Andersen, na Dinamarca, Andrew Lang, na Grã-Bretanha, entre outros, que passaram a ser utilizadas como matéria para a produção de livros infantis. Na mesma época, também foram coletados inúmeros poemas de origem popular para compor esses livros, os quais, assim como os contos de fadas, até então tinham sido transmitidos oralmente de geração a geração.

O vínculo entre a oralidade e a literatura infantil também se manifesta no uso dos livros infantis como artefato pedagógico. A ampliação do sistema educacional em muitos países europeus a partir dos séculos XVIII e XIX criou a necessidade de produção e comercialização de “livros escolares” e “livros infantis”, embora, como destaca Ellis (1963, p. 3), “seja bastante arbitrário traçar uma distinção entre ‘livros infantis’ e ‘livros escolares’” para caracterizar as obras daquela época, uma vez que raramente, naquele período, as narrativas utilizadas nos livros infantis serviam ao simples propósito de proporcionar o prazer literário, servindo o mais das vezes à necessidade de ensinar sobre moralidade e bons costumes.

Como destaca Reynolds (2011), pesquisas recentes sobre as primeiras editoras da Inglaterra que se dedicaram à produção de livros infantis revelaram que o mercado editorial, no século XVIII, buscou inspiração nos materiais caseiros que eram utilizados como suporte para o ensino da leitura nos círculos familiares, tais como aqueles que a escritora Jane Johnson havia produzido, na década de 1740, para ensinar seus próprios filhos a ler: cartões, móbiles, brinquedos e livros personalizados. Esses materiais foram descobertos apenas na década de 1990. Reynolds (2011, p. 27) também esclarece que os editores do século XVIII procuravam associar os seus livros infantis “aos materiais de leitura caseiros usados por um adulto atencioso, geralmente uma mãe, lendo em voz alta e ensinando as crianças, com o objetivo de substituir esses mesmos materiais por suas próprias versões impressas daqueles materiais”.

Desde o século XVIII até o presente, a literatura infantil continua sendo uma grande aliada da educação e, tanto em contextos escolares quanto fora deles, os livros infantis servem como suporte para um grande e variado número de práticas envolvendo a mediação da voz. Na verdade, a reunião de um determinado repertório de narrativas orais, assim como o fomento à produção de livros feitos especialmente para crianças, resultante do processo de escolarização, ajudou a constituir a própria literatura infantil como um sistema literário autônomo. Essa indiscutível validação institucional é, ainda hoje, uma das responsáveis pela crescente valorização social das narrativas literárias na infância, de um lado, e das práticas culturais em torno delas, de outro.

O valor social atribuído às narrativas se apoia também em estudos que fundamentam a importância dos contos tradicionais, em particular da sua função simbólica. O elemento maravilhoso (GILLIG, 2004) presente nessas histórias, assim como a memória das experiências humanas condensada nelas, desempenham um papel estruturante na formação psicossocial das crianças, segundo estudiosos como Bruno Bettelheim (1980), Jean-Marie Gillig (2004) e Clarissa Pinkola Estés (2018), entre outros. A presença, na escola, dos contos de fadas, que hoje são parte do repertório primordial da experiência narrativa na infância e cuja origem se situa na tradição oral, deve-se ao registro escrito, pela via do livro infantil, e ao desenvolvimento de práticas de compartilhamento dessas histórias com fins pedagógicos. Embora sejam muitas as maneiras como ocorrem tais práticas, destacamos, aqui, a contação de histórias e a leitura compartilhada.

Parte de uma longa tradição mantida pelo boca-a-boca, a prática da contação de histórias, na atualidade, encontra obstáculos no currículo escolar e, nem sempre os/as professores(as) são encorajados a superá-los e a investir na transmissão de uma história centrada nos recursos da memória, ainda que se reconheça que esta prática promove uma experiência estética com contornos próprios e contribuições insubstituíveis para a formação humana (GIORDANO, 2013; SANTOS, 2013). Em geral, os docentes carecem de acesso a uma formação prévia que favoreça a contação de histórias, muitas vezes, cabendo às vontades, percursos individuais ou a raras iniciativas institucionais o rompimento com a tradição grafocêntrica que marca a educação formal (SANTOS, 2013).

A leitura compartilhada, feita com o suporte do livro, é uma prática que ocorre com mais frequência na escola, respaldada por pesquisas que relatam suas contribuições para a formação linguística e literária (BONAGAMBA, 2019; COLOMER, 2010; MENOTTI; DOMENICONI; COSTA, 2020; NOBLE et al., 2019), áreas que acionam conhecimentos historicamente articulados com o currículo formal. Estritamente, a prática da leitura compartilhada envolve a leitura em voz alta, feita para uma ou mais pessoas que acompanham visualmente o texto, com interações orais estruturadas que buscam engajamento na leitura (MENOTTI; DOMENICONI; COSTA, 2019). Esse tipo de leitura está mais associado à leitura literária, especialmente do livro-álbum, e para crianças em idade pré-escolar, em que a visualização das ilustrações é necessária. No entanto, a leitura em voz alta sem a visualização do texto por parte dos ouvintes, de obras literárias ou não, também tem sido nomeada dessa forma.

Como se percebe, há uma diferença entre a contação de histórias e a leitura compartilhada. Embora ambas se caracterizem como práticas concretizadas pela voz, mantêm diferentes articulações com a oralidade. A primeira, mesmo quando recorre a fontes escritas, no ato de contar, apoia-se na memória e nas singularidades de cada narrador, o qual mobiliza seu próprio repertório linguístico e gestual, evocando a tradição narrativa da cultural oral, seus repertórios, seus sentidos ou motivações e estabelecendo um tipo de relação dual com o ouvinte, mas que se constitui em um ato único, de copresença (ZUMTHOR, 2000). Já no ato da leitura compartilhada, a voz é um meio de veiculação da língua escrita e do discurso literário produzido, quase sempre, por um autor em particular, envolvendo uma tríplice relação, a qual envolve o livro, o leitor e o ouvinte, ainda que, inevitavelmente, a performance do leitor acrescente camadas de sentido ao ato da leitura pela entonação de sua voz e pelo gestual que a acompanha.

A desencarnação da voz nas mídias digitais

Em todas as práticas de oralidade secundária apresentadas nas seções anteriores, sejam elas vinculadas à literatura infantil ou a outros contextos de leitura e audição de textos, o corpo humano é necessariamente o portador da voz que narra. Por outro lado, com o surgimento das mídias eletrônicas - a exemplo do rádio e da televisão - e das mídias digitais - que abarcam qualquer tipo de suporte computadorizado -, o corpo deixa de ser o suporte da voz durante a experiência da escuta, pois essas mídias têm a capacidade de (re)produzir automaticamente a voz humana.

Já na década de 1980 - antes, portanto, da popularização das tecnologias digitais -, Walter Ong (1982, p. 3) havia destacado a importância de as mídias eletrônicas serem capazes de fixar os sons e, por conseguinte, também as palavras faladas, o que o levou a concluir que “a era eletrônica é também a era da ‘oralidade secundária’, a oralidade dos telefones, do rádio e da televisão, que dependem da escrita e da impressão para sua existência”. Hoje, com o desenvolvimento e a ubiquidade das mídias digitais, é possível afirmar que a oralidade secundária atingiu um estágio ainda mais complexo, pois, diferentes das mídias eletrônicas, suportes computadorizados fazem convergir diferentes modos semióticos, tornando as representações que construímos no mundo contemporâneo cada vez mais multimodais.

O pensador suíço Paul Zumthor (2000) nos ajuda a pensar sobre os limites e as potencialidades que o som adquire no contexto das mídias digitais para a experiência poética, por dois principais motivos. Primeiro, devido à centralidade que a voz ocupa em suas teorizações sobre a poesia e, segundo, porque inclui, em suas reflexões sobre o leitor, as percepções sensoriais ou, em seus termos, o “corpo vivo”. (ZUMTHOR, 2000, p. 27).

Desde a década de 1970, quando se dedicou aos estudos sobre a voz na poesia durante a Idade Média, mas também ao estudo de práticas poéticas realizadas em diferentes culturas não-europeias - como os griots do BurkinaFaso, os rakugoka do Japão, os repentistas brasileiros, entre outros -, Zumthor (2000, p. 34) chegou à conclusão de que “a performance é o único modo vivo de comunicação poética”. Essa tese é tão central em seu pensamento que o levou a concluir que há uma diferença entre a literatura, entendida como um tipo específico de manifestação poética produzida na sociedade ocidental, e a poesia, um fenômeno originário amplo, que abrange não apenas a literatura ocidental, mas toda e qualquer prática antropológica que envolve a percepção sensorial de textos considerados poéticos por algum sujeito particular e concreto.

Para Zumthor (2000), a performance poética depende da convergência entre três instâncias: sujeitos que produzem textos metamiméticos - ou seja, textos cuja função primordial não é representar o mundo, mas emancipar a linguagem do poder que o tempo possui para nos consumir; um conjunto de textos que possuem qualidades compreendidas como metamiméticas por esses mesmos grupos; um público capaz de reconhecer tais qualidades. No entanto, a experiência poética propriamente dita emerge apenas no momento em que ocorre uma ritualização envolvendo essas três instâncias, através da qual sujeitos particulares são afetados não apenas mentalmente, mas também em seu sistema de percepção sensorial. Nesse sentido, os exemplos mais originais da manifestação poética estão vinculados à performance oral da poesia, a qual demanda necessariamente a presença e o engajamento do poeta e do ouvinte em um mesmo ato ritualístico.

Com base em seus estudos sobre a voz e a poesia na Idade Média, esse autor concluiu que a leitura silenciosa de textos literários só atinge sua potência estética na medida em que, de alguma forma, também for capaz de afetar nossos corpos, ainda que de forma indireta, de maneira semelhante ao modo como um ouvinte é afetado por uma obra ritualizada em um ato de performance. Devido ao predomínio da escrita na sociedade ocidental a partir da Modernidade, houve uma perda da dimensão oral e performática da poesia, a qual, para ele, equivale a uma perda da própria identidade poética. Em seus termos, “habituados como somos, nos estudos literários, a só tratar do escrito, somos levados a retirar, da forma global da obra performatizada, o texto e nos concentrar sobre ele” (ZUMTHOR, 2000, p. 30). No entanto, ao nos concentrarmos sobre o texto escrito e negligenciarmos a dimensão originalmente oral de toda a poesia, também perdemos a capacidade de compreender a sua característica mais fundamental, a saber, o prazer gerado pela experiência de sua fruição, que está, por sua vez, calcada no prazer de participar de uma performance.

Mais do que estudar a leitura enquanto um ato neutro de decodificação de informações, portanto, Zumthor (2000, p. 24) procura entender “o leitor lendo, operador da ação de ler” e, para tanto, considera imprescindível interrogar-se sobre “o papel do corpo na leitura e na percepção do literário” (ZUMTHOR, 2000, p. 23). Embora não negue a existência de outros critérios para definir o efeito poético de uma obra, esse autor acredita que, no ato individual da leitura, a poeticidade se define como um tipo de prazer sobre o corpo que “emana de um laço pessoal estabelecido entre o leitor que lê e o texto como tal. Para o leitor, esse prazer constitui o critério principal, muitas vezes único, de poeticidade (literariedade)” (ZUMTHOR, 2000, p. 24). Nessa perspectiva, o valor literário não se define como algo essencial, fixo ou absoluto, pois, ainda que também dependa do modo como são mobilizados e articulados os significantes para produzir efeitos de fruição sobre o corpo que percebe, não há garantias de que cada leitor será afetado da mesma maneira pela mesma composição poética. Nesse sentido, o teórico suíço chega a afirmar que, para um adolescente apaixonado, romances açucarados e repletos de clichês, tais como as histórias da série Arlequim, poderão possuir uma “poeticidade verdadeira, embora para numerosos indivíduos de nossa sociedade essa poeticidade seja impostura, ou pura e simplesmente inexistente” (ZUMTHOR, 2000, p. 25).

Ao tratar dos meios eletrônicos, o estudioso suíço refere-se a uma perda relativa ao corpo que participa da performance poética enquanto produtor. Em outros termos, na fruição de obras mediadas por tecnologias eletrônicas, esse autor acredita que se perdem os efeitos relacionados com a “corporeidade, o peso, o calor, o volume real do corpo, do qual a voz é apenas expansão” (ZUMTHOR, 2000, p. 16). Por outro lado, acreditamos que, apesar do desaparecimento do corpo nos artefatos eletrônicos e digitais, em obras digitais recentes, a voz gravada e reproduzida está vinculada a um tipo de corporeidade, a saber, a representação verbo-visual-cinética de corpos vivos, os quais são figurativizados como personagens e narradores que se expressam também pela modalidade oral. Nas obras de literatura digital infantil, as vozes dessas figuras ficcionais são colocadas a serviço da comunicação literária com a criança e, dessa forma, assim como as obras impressas e as performances orais, também procuram provocar efeitos poéticos sobre os leitores. Portanto, se é verdadeiro que o corpo vivo do poeta desaparece da performance que constitui a fruição de obras eletrônicas, é igualmente verdadeiro que as vozes dos corpos artificiais que habitam essas obras também almejam afetar o corpo do leitor, proporcionando-lhe o prazer poético.

O som e a literatura infantil digital

Com o desenvolvimento e a popularização das tecnologias digitais, nos últimos anos, diferentes agentes ligados ao mundo do livro têm priorizado os aparelhos computadorizados como principais suportes materiais para a leitura. Nesse contexto, as livrarias físicas estão sendo substituídas gradativamente pelas plataformas de vendas através da Internet - destacando-se as gigantes Amazon, Google, Apple, mas também as plataformas de streaming voltadas para o nicho dos livros.

As bibliotecas físicas, por sua vez, conforme, entre outros, o estudo de G. Sayeed Choudhury e David Seaman (2013), estão cada vez mais apostando na compra de textos eletrônicos, coleções de imagens digitais e também de títulos de áudio e vídeo digitais. Outro espaço onde estão disponíveis muitos livros digitais são as plataformas de autopublicação - tais como a Wattpad e a Kindle Direct Publishing (KDP), da Amazon. Na maioria desses espaços encontram-se obras originalmente impressas que foram digitalizadas a partir de programas como o PDF e o EPUB, além de obras originais que, embora tenham sido projetadas para leitura nas telas, estruturam-se a partir dos mesmos elementos que constituem o formato do livro impresso: sequência linear de páginas, capa, contracapa etc. Como se percebe, esse tipo de obra não explora as potencialidades propiciadas pelas tecnologias digitais para produzir novas experiências de leitura e, por essa razão, são um exemplo do que denominamos de “digitalidade secundária” na primeira seção deste artigo.

Por outro lado, também existem experimentos literários que incorporam estruturas interativas, hipertextuais e hipermidiáticas, além de recursos de multimídia como animações, reprodução de voz, interatividade, imagens em movimento. Nesse conjunto, destacam-se os assim chamados book apps de literatura infantojuvenil, que podem ser definidos como obras com recursos possibilitados por softwares de aplicação, os quais permitem que o leitor interaja fisicamente com as representações, habite ambientes imersivos através do giroscópio ou da câmera do dispositivo, mova imagens e letras com o toque dos dedos, inicie pequenas animações, jogue e ouça músicas, trilhas e efeitos sonoros que acompanham as narrativas ou poemas, além de poder gravar e ouvir a narração do texto escrito.

Nos últimos anos, pesquisadores ligados a diferentes áreas e campos teóricos vêm discutindo sobre os efeitos gerados por esses recursos sobre a leitura, a cognição e a fruição literária. Nesse sentido, enquanto alguns pesquisadores enfatizam perdas e riscos, outros apontam para novas possibilidades de leitura e fruição. Um exemplo de pesquisa focada nos limites das obras digitais pode ser encontrado em Tomopoulos, Klass e Mendelsohn (2019). Esses autores defendem o argumento de que obras digitais promovem uma interação solitária da criança com o dispositivo, o que implicaria na perda de interações importantes com adultos através da fala, as quais contribuem para o desenvolvimento de habilidades cognitivas e relações afetivas.

Por outro lado, vários outros estudos permitem concluir que os possíveis prejuízos causados por obras digitais não estão relacionados com a simples presença ou ausência de recursos digitais, e sim com a falta de qualidade que caracteriza o modo como esses recursos são empregados em algumas obras. Em sua pesquisa realizada com crianças, Hoel e Tønnessen (2019), por exemplo, concluíram que “o sucesso dos recursos de multimídia reside na boa integração com a narração da história e nas oportunidades que oferecem para uma discussão extratextual” (KIM; HASSINGER-DAS, 2019, p.5). Além disso, essas pesquisadoras também ressaltam que, “seja usando livros impressos ou livros digitais, o importante é abrir ‘espaço’ para o diálogo [sobre a leitura] e, no caso dos livros digitais, tais oportunidades podem ser oferecidas através do suporte” (HOEL; TØNNESSEN, 2019, p. 203).

Dentre os vários recursos multimídia que integram as obras de literatura infantil digital, destacam-se os recursos sonoros. O fato de que as obras digitais podem emitir sons as torna diferentes dos livros impressos, salvo raríssimas exceções, como alguns tipos de livros-brinquedo que também estão dotados de sons, por exemplo. No campo teórico da multimodalidade, são definidos dois principais modos semióticos que possuem a audição como canal primário de recepção, a saber: o modo auditivo e o modo oral (KALANTZIS et al., 2016). Ao passo que os signos auditivos abrangem desde “sons ambientais ou de fundo em nosso ambiente, até sons que têm sentidos simbólicos, bem como os significados complexos representados na música” (KALANTZIS et al., 2016, p. 401), os signos orais, embora quase sempre estejam mesclados com signos auditivos, se definem pela fala e pela voz humana e, portanto, recobrem o fenômeno da oralidade secundária.

O modo auditivo é amplamente explorado em narrativas literárias produzidas ou adaptadas para o formato de apps, por exemplo, através de trilhas musicais e de diferentes tipos de efeitos sonoros que acompanham as histórias, muitos dos quais são desencadeados através da interação física do leitor com a narrativa, por exemplo, quando ele toca sobre os chamados hotspots ou “pontos quentes”. Já o modo oral está presente em funções como “Leia para mim” e “Autoplay” - através das quais a história é narrada automaticamente -; a “Gravação de áudio” - que permite ao leitor gravar sua própria voz narrando a história; a “Narração automática de palavras isoladas”, geralmente desencadeada através do toque. No nível do relato propriamente, a oralidade é usada, com frequência, para dar voz ao narrador e aos personagens, sendo que muito frequentemente sua manifestação depende da interação física do leitor com algum elemento da narrativa.

É importante destacar que a presença da voz na composição dessas obras produz sentidos, mas também efeitos sobre o corpo do leitor, os quais se diferenciam daqueles produzidos pela leitura de textos impressos. Quando esses sentidos e efeitos estão integrados de forma coerente com a proposta poética da obra, são capazes de proporcionar uma experiência significativa de fruição literária. Em vista disso, a seguir, trazemos uma reflexão sobre duas principais dimensões quanto ao uso da voz em narrativas digitais infantis para produzir sentidos e efeitos poéticos: a dimensão acústica da voz; a interatividade mediada pela voz. A primeira dimensão recobre os sentidos gerados pela matéria da expressão acústica no contexto de cada narrativa; a segunda dimensão, por sua vez, recobre os sentidos e efeitos gerados pela possibilidade concedida, ao leitor, de participar da produção dos sons da narrativa através da interatividade.

A dimensão acústica da voz

Visto que a literatura digital, para além dos signos verbais escritos e das imagens, também mobiliza significantes sonoros em sua composição, a análise de obras digitais precisa levar em conta os efeitos de sentido que a voz, como significante literário, é capaz de produzir tanto no nível sensorial como mental do sujeito ouvinte. Via de regra, em obras digitais, a voz pode estar presente por meio da “narração” - quando se ouve a voz de um narrador que conduz a trama -, do “diálogo” - quando os personagens se comunicam oralmente uns com os outros, consigo mesmos, com o narrador e, por vezes, inclusive com o leitor - e do “vozerio” - manifestações sonoras vocais no fundo das cenas, como murmúrios e cochichos.

No caso da narração e do diálogo, as características acústicas da voz funcionam, antes de tudo, como signos que informam sobre a identidade (de gênero, etária, regional, nacional etc) daquele que fala. Ao associar as informações acústicas com as informações que constam nas imagens e no texto verbal, o leitor cria sua própria representação do narrador e dos personagens. Frequentemente, as características identitárias dos personagens e do narrador se repetem em cada modalidade semiótica - texto, imagem e som -, e o efeito produzido sobre o leitor, nesse caso, é de um maior grau de imersividade no universo narrativo. Por outro lado, em algumas obras, essas características são dissociadas com a finalidade de produzir efeitos estilísticos, tais como o humor.

No aplicativo Little Red riding hood (2013), por exemplo, Chapeuzinho Vermelho é a principal personagem da história e a sua voz revela que se trata de uma criança. Já os personagens Vovó, Mãe e Lobo, embora sejam representados visualmente como adultos, também se expressam com vozes infantis, em um tom forçosamente mais grave, de modo a imitar a voz de um adulto. Essa falsa voz de adulto, composta na verdade pela voz infantil alterada, confere humor à experiência de leitura desse aplicativo. Além disso, esse artifício também remete à oralidade típica do teatro de marionetes, em que o manipulador do boneco modifica sua própria voz para atribuir uma determinada identidade aos personagens. Como se percebe, nessa obra, o uso criativo da dimensão acústica da voz dos personagens enriquece a experiência de fruição.

A Grande história do Pequeno Grande Traço (BLOCH, 2018) é outro exemplo em que as características etárias do personagem-narrador fornecidas nas modalidades visual e sonora são usadas de forma criativa: ao passo que os signos visuais que compõem o protagonista, no início da história, representam uma criança, a voz da narração é de um adulto do início ao final. O enredo dessa obra está construído em torno de uma grande e potente relação que inicia quando o protagonista, ainda menino, encontra um pedaço de linha vermelha e o leva para sua casa. Juntos, ambos vão crescendo e “desenhando” a vida a partir de novas experiências e, no final da história, o protagonista torna-se adulto. A imaginação e a criação são o motor da relação que acompanha o crescimento do menino ao longo de sua vida: conforme vai crescendo, seu universo vai se ampliando e ganhando densidade.

Visualmente, a narrativa se caracteriza pelo minimalismo de suas ilustrações animadas, em que se destaca, nas páginas brancas, apenas o menino e seu mundo particular: seu gato, sua prancha de desenho e seus objetos. Quase tudo é desenhado com fino contorno negro, somente o pequeno traço é vermelho. Oralmente, como já foi afirmado, apesar de as imagens informarem, no início da história, sobre um protagonista infantil, as características de sua voz remetem ao corpo de um homem adulto, o que revela a construção de uma analepse - um artifício narrativo que produz o efeito de recuo no tempo - através da articulação entre o modo visual e sonoro. As características acústicas da voz que narra, na tradução ao português dessa obra, também trazem uma informação quanto ao pertencimento regional do protagonista, o qual tem um sotaque que remete à região Nordeste, facilmente reconhecido pelo leitor brasileiro. Essa variação linguística escolhida para a voz do narrador traz, para a experiência da fruição, ecos de uma cultura que é corporificada e que também afeta o leitor esteticamente.

Fonte: Bloch (2018).

Figura 1 Texto e ilustração de A grande história do pequeno traço 

Outro efeito gerado pela dimensão acústica da voz nessa obra é o reforço de uma disposição anímica baseada na subjetividade e na emotividade. O fato de que a história é narrada em primeira pessoa e construída a partir de uma focalização interna do personagem central já confere um tom fortemente subjetivo ao discurso. Além disso, o texto verbovisual metaforiza aspectos do mundo interior e dos sentimentos do menino, ao mesmo tempo em que as imagens apresentam alusões ao mundo físico e aos episódios que compõem a trama. Nesse contexto, a prosódia da voz do narrador, que se apresenta pela entoação e pelo manejo da duração dos sons, produzindo prolongamentos e pausas, ajuda a antecipar e complementar informações que auxiliam na compreensão do minimalismo das imagens. O ritmo de sua fala, assim como a interrupção ou a duração de certos sons, se articula com o texto visual e ajuda a construir efeitos de sentido que indicam uma determinada emoção ou informam sobre algo não dito e que o leitor precisa inferir. Deve ser destacado, além disso, que a obra é interativa e, portanto, demanda constantemente a participação do leitor, solicitando que ele desenhe para que a narrativa se complete e siga em frente. O texto verbal articulado com a imagem, muitas vezes, impele o leitor à ação, dando pistas de que é hora de desenhar com o traço vermelho. Dentro desse contexto, portanto, a oralidade também desempenha um papel importante, pois a entonação do narrador se constitui num importante reforço do convite para que o leitor participe da construção da trama pela interatividade.

Fonte: Bloch (2018).

Figura 2 Texto e ilustração de A grande história do pequeno traço 

Na obra Marina está do contra (WOLDE, 2017), embora o narrador seja onisciente neutro e, portanto, não faça parte das ações da narrativa, as nuances de sua voz produzem uma série de sentidos e efeitos que afetam o leitor no momento da audição: o timbre feminino, o sotaque paulistano, a suavidade, o tom agudo etc. Na tela de abertura, entre as informações paratextuais, consta que a narração foi gravada pela cantora paulista Tiê. Provavelmente, essa informação paratextual tem a função de realçar, para o leitor, a preocupação dos desenvolvedores do aplicativo com a qualidade da performance vocal. No plano da fruição da obra, contudo, as características específicas dessa voz conferem certos contornos à experiência da leitura, como, por exemplo, um atravessamento de gênero, uma vez que a narração é feita por uma mulher. Sendo uma história que trata do cotidiano de uma criança pequena, de suas descobertas por meio da brincadeira e suas mudanças de humor, a presença de uma voz feminina pode evocar o papel materno, pois vivemos em um modelo social em que os cuidados cotidianos das crianças estão, ainda, vinculados às mulheres.

Além de ser utilizada para compor a narração e o diálogo, a voz também pode ser usada, em algumas obras, para compor o vozerio. Considera-se vozerio a massa de vozes ou de murmúrios ao fundo de uma cena, ou seja, manifestações sonoras vocais, mas não verbais, tais como murmúrios individuais ou coletivos, cochichos ou simulações de falas sem expressão verbal (MORAES, 2016, 2019). Esteticamente, muitas vezes esse recurso é mais potente do que a própria fala, pois, como afirma Zumthor (1997, p. 13), “as emoções mais intensas suscitam o som da voz, raramente a linguagem: além ou aquém desta, murmúrio e grito, imediatamente implantados nos dinamismos elementares”.

Algumas obras em que o vozerio foi utilizado para produzir efeitos estéticos sobre o leitor são The heart and the bottle (JEFFERS, 2011) e Spot (WIESNER, 2015). Na primeira, desenvolvida pelo laboratório Bold Creative a partir do livro ilustrado de Oliver Jeffers, ao representar a cena de um adulto lendo para uma criança, ouve-se o som da voz do leitor sem que seja possível distinguir suas palavras, que são representadas através de um balbucio. O conteúdo do livro lido para a criança é representado por meio de ilustrações, enquanto a voz é responsável pelo aspecto emocional da cena, trazendo uma forma de articulação multimodal em que um modo semiótico complementa o outro. Em muitos casos, o vozerio, como expressão vocal, evita uma relação redundante entre escrita e fala, o que poderia ter ocorrido se a obra buscasse expressar, em palavras, o que já está representado na ilustração. Em The heart and the bottle, ao invés de replicar informação já apresentada no modo visual, o vozerio apresenta informações novas sobre a cena: o tom afetuoso e tranquilo, o acolhimento do adulto no momento da leitura compartilhada. Essas informações, adicionadas à imagem, são fundamentais para construir a atmosfera emotiva da cena nessa obra.

Em Spot, de David Wiesner (2015), a linguagem verbal também é ausente, sendo substituída por recursos visuais, sonoros e interativos que possibilitam ao leitor uma imersão progressiva nos mundos fantásticos que compõem a obra, a partir da metáfora de uma viagem vertical que o leitor realiza sobre as asas de uma joaninha. Nessa obra, o leitor transita entre diferentes mundos a partir de pequenos elementos, objetos banais que se repetem em cada um deles e que funcionam como portais que ligam os espaços ficcionais entre si. As diferentes paisagens sonoras construídas pela música e por efeitos sonoros contribuem para compor cada ambiente ficcional, os quais, visualmente, são constituídos de imagens estáticas, algumas discretas animações dotadas de uma interatividade que permite ao leitor transitar em diferentes direções pela tela, criando-se um efeito de zoom e de plano sequência. Nesses mundos habitados e visitados por criaturas fantásticas, o vozerio ajuda a construir a humanização das criaturas-personagens e reforça as imagens que representam as diferentes formas de socialização entre elas, desde um diálogo entre dois personagens até as reações eufóricas de uma multidão diante de um desfile de carros alegóricos. Ao compor a paisagem sonora e conferir significado para ação dos personagens, em Spot, o vozerio se constitui em um elemento estrutural fundamental da trama. A arquitetura em rede dessa obra não aponta para um final ou para uma interpretação única, o que não impede que histórias aconteçam na obra e que sentidos sejam construídos. Nesses diversos espaços intercomunicados, o leitor é convidado a pensar sobre a própria arquitetura narrativa como uma viagem em distintas direções, cujo objetivo é desfrutar dos espaços e personagens que se encontram em cada um dos mundos.

Voz e interatividade

A interatividade é um dos principais elementos estruturais da literatura infantil digital e corresponde à possibilidade de participação do leitor na materialização da obra sobre a tela. Isso ocorre através de sua interação com as interfaces gráficas - os signos visuais que aparecem na tela e contêm um código de programação que pode ser acionado pelo usuário - e com as interfaces físicas - os dispositivos que captam os movimentos, as imagens e os sons do usuário, tais como o mouse, a tela sensível ao toque, a câmera, o microfone, o giroscópio. Essa possibilidade de interagir fisicamente com as representações é construída a partir de diferentes tipos de softwares, os quais permitem que o autor/programador trace um roteiro do “papel do leitor na obra, criando dicas de entrada e loops de feedback para que essa interação seja incorporada ao desempenho textual” (FLORES, 2014, p. 158). Muitas interações previstas nas obras de literatura infantil digital envolvem a voz e diferentes efeitos sonoros.

Um dos principais resultados criados pela articulação entre a oralidade e a interatividade é o efeito imersivo, ou seja, a ilusão de presença do leitor dentro da própria obra. Em algumas obras digitais para crianças, o leitor tem o poder de desencadear sons e efeitos sonoros ligados ao espaço da narrativa e às ações dos personagens. Dessa forma, mais do que apenas um simples observador, nesses casos, o leitor se transforma em um personagem, mesmo que se trate de um personagem observador. Essa estratégia narrativa pode ser encontrada, por exemplo, na obra Quanto Bumbum! (MALZONI; ESTEVES, 2016), em que a história do nascimento de um coelhinho é contada, oralmente, por um narrador filhote de esquilo na posição de narrador-testemunha. Uma vez que esse foco narrativo torna seu campo de visão limitado, o pequeno esquilo se surpreende, inicialmente, com o agrupamento de animais em frente à toca do casal de coelhos. Na medida em que surgem os animais sobre a tela, aparecem também pequenos círculos sobre seus corpos, que são, na verdade, ícones de interface que convidam o leitor a tocá-los. Como reação ao toque, cada animal produz o som característico de sua espécie. O principal efeito desse recurso sobre o pequeno leitor é a ilusão de que também está presente fisicamente na floresta, sendo capaz, inclusive, de acariciar os animais que aguardam para conhecer o coelhinho recém-nascido, os quais reagem aos seus toques com movimentos e sons. Em síntese, a interatividade e o som, aqui, possibilitam um envolvimento sensorial do leitor com a história.

Fonte: Malzoni e Esteves (2016).

Figura 3 Telas de Quanto Bumbum! 

Uma estratégia narrativa capaz de criar um efeito imersivo intenso através da interação com a voz é a interpelação oral do leitor por parte dos personagens. No book app The monster at the end of this book (STONE; SMOLLIN, 2011),1 por exemplo, o leitor é inserido no mundo diegético da narrativa quando é interpelado pelo protagonista, um pequeno monstro azul chamado Grover, que está parado em frente a um grande livro. Logo de início, Grover avisa que tem muito medo de monstros e, após ler na capa do livro que há um monstro no final da história, começa a implorar para que o leitor não vire as páginas. É importante ressaltar que essa “conversa” entre leitor e personagem ocorre simultaneamente através do modo escrito e do modo oral da linguagem. Na medida em que o leitor deixa de atender aos seus apelos e toca sobre as setas que marcam a possibilidade da virada de página, o enredo progride, e o tom de voz nas falas de Grover revela que ele está cada vez mais assustado.

Fonte: Stone e Smollin (2011).

Figura 4 Telas de A monster at the end of this book 

Embora a interação física do leitor infantil, nessa obra, se limite ao toque sobre as setas que marcam a possibilidade de virar as páginas, o modo como a voz é utilizada instiga a curiosidade e a imaginação da criança, pois o “medo” expresso pela voz de Grover amplia a vontade de saber se há realmente um monstro no final do livro e se ele é assim tão terrível como Grover faz parecer. Quando o leitor finalmente chega à última página, descobre que o tão temido monstro é o próprio Grover. A estratégia narrativa utilizada nessa obra, portanto, pressupõe que o leitor fará exatamente o oposto do que lhe é solicitado, e essa desobediência prevista é recompensada, ao final, porque aquilo que poderia ser um perigo se revela como uma descoberta surpreendentemente agradável: Grover é um monstro engraçado e bem-humorado.

Palavras finais

A cultura narrativa que se atualiza no digital se aproxima, por um lado, da cultura escrita por causa da forma como é colocada a serviço do escrito e também porque esta se constitui um elemento fixado no texto, que aparece sempre com as mesmas características, de maneira reiterável e não acidental - fixidez esta que, até certo tempo, era própria da escrita. Isso faz da voz um elemento ainda mais relevante do ponto de vista da recepção literária e da produção de sentidos na experiência digital. Por outro lado, se aproxima da oralidade ao permitir que diferentes leitores se apropriem do texto, atribuindo novos sentidos pela forma como o coloca na própria voz e estabelece uma relação corpórea com esse texto.

Podemos dizer, assim, que, na literatura digital, a voz, além de carregar características em que ecoa a corporeidade do narrador, dos personagens e, em alguns casos, do leitor, também ajuda a constituir um pacto comunicativo/narrativo entre leitor e obra, se afirmando como um elemento não-neutro da narração devido às suas características sonoras e prosódicas. Para além disso, as novas possibilidades tecnológicas de uso da voz reposicionam esse recurso semiótico em relação à tradição narrativa, uma vez que os elementos significantes que acrescentam são interativos e se articulam com a multimodalidade na experiência literária, rompendo com a tradição da escrita silenciosa e estabelecendo novas formas de recepção da literatura. Dessa maneira, a voz não é somente um meio de propagação da palavra viva, mas uma instância ao mesmo tempo do texto e da leitura, que atua esteticamente porque atua nos âmbitos das percepções sensoriais. Ela carrega consigo algo das memórias auditivas - narrativas e poéticas - corporificadas, além de também apresentar possibilidades inovadoras para a narração e a composição poética.

Para finalizar, é importante destacar que, ao contrário do que pode representar para a leitura tradicional, a voz incorporada à história, embora traga a possibilidade de leitura autônoma pela criança, não faz com que a literatura infantil digital prescinda de mediação. Assim como outros aspectos que desafiam o leitor de obras digitais, a voz é um recurso semiótico potente, cujas nuances de significado requerem competências interpretativas, as quais são, em geral, construídas no conjunto das experiências narrativas que envolvem a mediação adulta, seja via contação de histórias, seja via leitura compartilhada. Em poucos termos, a literatura infantil digital demanda a construção de um ecossistema cultural em que diferentes práticas narrativas possibilitem o prazer da leitura e também contribuam para a educação literária.

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1O monstro no final deste livro.

Recebido: 26 de Junho de 2022; Aceito: 28 de Setembro de 2022

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