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Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade

versión impresa ISSN 0104-7043versión On-line ISSN 2358-0194

Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade vol.32 no.70 Salvador abr./jun 2023  Epub 29-Ago-2023

https://doi.org/10.21879/faeeba2358-0194.2023.v32.n70.p17-31 

Artigos

EDUCAÇÃO INTEGRAL E DEMOCRACIA: CONTEXTOS, REFERÊNCIAS E CONCEITOS EM UM CAMPO EM DISPUTAS

INTEGRAL EDUCATION AND DEMOCRACY: CONTEXTS, REFERENCES AND CONCEPTS IN A FIELD IN CONTEST

EDUCACIÓN INTEGRAL Y DEMOCRACIA: CONTEXTOS, REFERENCIAS Y CONCEPTOS EN UN CAMPO EN CONFLICTOS

Renata Gerhardt de Barcelos1  *
http://orcid.org/0000-0003-2973-4094

Jaqueline Moll2  **
http://orcid.org/0000-0001-5465-178X

1EMEF Professora Ana Íris do Amaral

2Universidade Federal do Rio Grande do Sul


RESUMO

O propósito deste artigo é abordar a Educação Integral, desde a perspectiva das lutas pela democratização da educação escolar no Brasil, tendo como arcabouço preceitos contidos na Constituição Federal de 1988 - sobretudo o objetivo da educação nacional em relação ao pleno desenvolvimento da pessoa, a partir de uma análise bibliográfica. Para tanto, retoma aspectos da contribuição histórica de Anísio Teixeira, Darcy Ribeiro, Paulo Freire e Maria Nilde Mascellani para a construção da escola universal, laica, pública e de formação humana integral. Sublinha as relações entre educação e democracia e recupera a memória recente das políticas públicas, sobretudo do Programa Mais Educação e do Programa Novo Mais Educação, explicitando um horizonte de disputas que dizem respeito não só ao trabalho das instituições escolares, mas ao próprio projeto de sociedade.

Palavras-chave: Educação Integral; Políticas Públicas; Educação Básica

ABSTRACT

The purpose of this manuscript is to address Integral Education, from the perspective of struggles for the democratization of school education in Brazil, based on precepts contained in the Federal Constitution of 1988 - mainly the objective of national education in relation to the full development of the person, based on a bibliographical analysis. For this, it addresses aspects of the historical contribution of Anísio Teixeira, Darcy Ribeiro, Paulo Freire and Maria Nilde Mascellani for the construction of a universal, secular and public school, with integral human formation. Highlights the relationship between education and democracy and recovers the recent memory of public policies, especially the More Education Program and the New More Education Program explaining a horizon of disputes that concern not only the work of school institutions but the project of society itself.

Keywords Integral Education; Public Policies; Basic Education

RESUMEN

El objetivo de este artículo es abordar la Educación Integral, en la perspectiva de las luchas por la democratización de la educación escolar en Brasil, teniendo como marco los preceptos contenidos en la Constitución Federal de 1988 - sobre todo el objetivo de la educación nacional en relación con el pleno desarrollo de la persona, a partir de un análisis bibliográfico. Para ello, retoma aspectos de la contribución histórica de Anísio Teixeira, Darcy Ribeiro, Paulo Freire y Maria Nilde Mascellani a la construcción de la escuela pública universal, laica, y de la formación humana integral. Subraya la relación entre educación y democracia y recupera la memoria reciente de las políticas públicas, en especial del Programa Mais Educação y del Programa Novo Mais Educação, revelando un horizonte de disputas que conciernen no sólo al trabajo de las instituciones educativas sino al proyecto mismo de la sociedad.

Palabras clave: Educación Integral; Políticas Públicas; Educación Básica

Introdução

A ideia de uma Educação Integral vem ganhando espaço nos debates educacionais com mais intensidade há alguns anos no Brasil, embora esteja presente nas lutas pela democratização da educação brasileira desde o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, de 19321. No contexto histórico das primeiras décadas de construção da República - em um país caracterizado pela estrutura abissalmente desigual construída por séculos de violência colonial contra os povos originários e contra os povos africanos escravizados e trazidos à força para o Brasil -, a luta por uma escola pública, gratuita, universal, laica e integral deve ser compreendida como profundamente revolucionária.

Com diferentes expressões nas políticas educacionais dos períodos de afirmação democrática ao longo destes 90 anos (1932-2022), a perspectiva de uma Educação Integral passou a ocupar novamente o centro das reflexões a partir do ano de 2007, com a construção e implementação do Programa Mais Educação2 - programa federal indutor de uma agenda de ampliação da jornada escolar diária, associada a reformulações curriculares e articulações extraescolares, na perspectiva de uma formação humana integral ou do pleno desenvolvimento da pessoa, garantido na Carta Constitucional de 1988, como objetivo primeiro da educação brasileira, em seu artigo 205.

Expressões como educação integral, escola integral, escola de tempo integral ou escola de turno integral passaram a ser costumeiramente usadas por gestores, políticos e educadores como se constituíssem um campo homogêneo de compreensão e de ação político-pedagógica.

Necessário afirmar que educação integral, historicamente, na educação brasileira, revela-se como um conceito imerso em profundas disputas entre forças que correspondem a diferentes e divergentes concepções e projetos de sociedade.

Para compreender os processos de disputa envolvendo o conceito de educação integral é preciso olhar para a história da educação brasileira e, sobretudo, para as políticas públicas que foram se constituindo, tendo como perspectiva a garantia do direito à educação, bem como as condições materiais das escolas, a qualidade da formação humana e as diferentes dimensões e campos de conhecimentos implicados. Assim, este trabalho propõe um estudo teórico-reflexivo sobre o tema proposto.

Entendemos que a construção de uma sociedade democrática efetivar-se-á na consecução dos preceitos e princípios contidos na Constituição Cidadã de 1988, que dialogam com uma educação efetivamente integral, desde o conceito de dignidade da pessoa humana, fundamento do estado democrático de direito, e com os objetivos fundamentais da República: erradicar a pobreza e a marginalização, reduzir as desigualdades sociais e regionais e promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Portanto, abordaremos o conceito de educação integral considerando a organicidade da relação entre educação, escola, sociedade e democracia, bem como a contribuição efetiva de Anísio Teixeira, Darcy Ribeiro, Paulo Freire e Maria Nilde Mascellani, cujo pensamento e obra contribuíram inestimavelmente para a constituição deste campo. Partindo destas matrizes, apontaremos elementos do Programa Mais Educação, que efetivou uma agenda indutora da política de educação integral no período de 2007 a 2016, interrompida pela ruptura institucional protagonizada por forças conservadoras que destituíram a presidenta Dilma Roussef, legitimamente eleita (2010) e reeleita (2014) para governar o Brasil.

A história da construção da democracia entrelaça-se à própria história da educação brasileira. As interrupções e desvios nas políticas educacionais representam as descontinuidades dos processos democráticos, vivenciadas desde a proclamação da República.

Educação integral, história e democracia: alguns apontamentos

O conceito de educação integral foi se constituindo a partir das lutas de muitos atores; assim, se faz imprescindível compreender como esses processos ocorreram ao longo das décadas e sua relação com a luta por democratização do acesso e qualificação da educação pública.

Um nome imprescindível nesta luta é o de Anísio Teixeira, advogado baiano que se fez educador e que, durante décadas, nos períodos democráticos, esteve à frente de muitos embates pela educação pública, integral e de qualidade. Nos seus enfrentamentos, desde a década de 1920, no governo do estado da Bahia, já propunha reflexões pedagógicas na perspectiva de uma formação humana ampla e para todos e todas.

Em suas publicações emblemáticas, como Educação não é privilégio, de 1957, e Educação é um direito, de 1968, podemos encontrar as raízes históricas da formulação que ganha forma legal e de direito na Constituição Federal, em seu Artigo 2053 e na própria Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) de 1996.

Uma proposta educacional que tenha como objetivo o pleno desenvolvimento das pessoas só é possível a partir de uma educação que expanda seus horizontes, configurando, por um lado, um currículo que promova todas as áreas: artes, cultura, esportes, ciência etc. e todas as dimensões do desenvolvimento: ética, estética, cognitiva, emocional, motora, etc. e, por outro, articule-se a partir da identidade e das forças vivas do território, de tal forma que mobilize atores, instituições e outras políticas, de forma intersetorial.

A trajetória de Anísio Teixeira está ligada a grandes marcos e obras, tanto na Bahia quanto no Rio de Janeiro e em Brasília, onde efetivou planos construindo escolas, universidades e consolidando projetos afirmativos de uma educação de qualidade, pensando simultaneamente questões relativas ao financiamento, a legislação, a formação de professores, a infraestrutura física, a organização curricular e pedagógica, na perspectiva de uma escola universal de dia completo e de currículo integral.

No campo da formação de professores, no qual Anísio trabalhou com intensidade, pois entendia ser estrutural para as mudanças necessárias e imprescindíveis na construção da escola pública de qualidade e de uma educação humana integral, propunha já naquele tempo uma formação continuada e articulada à prática cotidiana das escolas. Nas suas palavras:

Será o novo professor que irá dar consistência e sentido às tendências de popularização da educação primária e do primeiro ciclo da escola média; que irá tornar possível e eficiente o curso de colégio (segundo ciclo da educação média), com suas preocupações de dar cultura técnica, cultura preparatória ao ingresso na universidade e cultura geral de natureza predominantemente científica e que irá preparar a transformação da universidade para as suas novas funções de introduzir a escola pós-graduada para a formação dos cientistas e a formação do magistério, tendo em vista as transformações em curso no sistema escolar, sem esquecer que lhe caberá, inevitavelmente, uma grande responsabilidade na difusão da nova cultura geral, que a atual fase de conhecimentos humanos está a exigir. (TEIXEIRA, 2007, p. 203).

Seu trabalho na esfera pública confunde-se com os períodos democráticos, que ele denominou intervalos democráticos da sociedade brasileira. Neste sentido, sua incansável defesa da escola pública gerou conflitos e confrontos que o levaram ao exílio em 1935 e ao autoexílio em 1964. Apesar de seu afastamento temporário de funções governamentais, seguiu trabalhando sempre, afirmando a necessária construção da educação pública para todos como condição para a própria consolidação de uma sociedade democrática. Reflete este pensamento uma de suas frases mais populares: só haverá democracia no Brasil no dia em que se montar a máquina que faz a democracia e esta máquina é a da escola pública (TEIXEIRA, 1936).

Sua vasta obra material é um legado inspirador e duradouro que inclui a primeira Escola-Parque do Brasil, o Centro Popular de Educação Carneiro Ribeiro, no bairro da Caixa D’água em Salvador, referência para o convite de trabalho que recebeu da Unesco em 1946.

Importante destacar que esta escola tornouse referência para Educação Integral, inclusive pelo ineditismo do desenho territorial que incluía a articulação pedagógica e curricular entre escolas-classe, onde o currículo básico deveria ser trabalhado, e a escola-parque, que expandia os campos de conhecimento, as áreas de interesse e as possibilidades pedagógicas com grande espaços dedicados a arte, esporte, leitura, vivência com a natureza e às experiências de vida, como por exemplo a cozinha experimental.

No Rio de Janeiro, embalado pelos pressupostos deweyanos, Teixeira cria um número significativo de escolas, levando para os rincões mais longínquos a possibilidade de acesso a espaços escolares dignos e pedagogicamente significativos. Do mesmo modo, na recém-criada capital federal, a partir de 1960, propõe um arrojado e audacioso plano de escolas-parque e escolas-classe que, no traçado urbanístico e arquitetônico de Lucio Costa e Oscar Niemeyer, entrelaçam-se à esperança de um país democrático, inclusivo, aberto à inteligência de seu povo. Assim, as escolas-parque e as escolasclasse de Brasília figuravam entre os jardins de Burle Max, a arte de Athos Bulcão, as praças, parques, bibliotecas e centros culturais que, nas super-quadras, desenhariam outro porvir para a população brasileira.

Sua trajetória foi de muitos “fazimentos”, como diria Darcy Ribeiro, que em parceria com ele fundou a Universidade de Brasília e participou dos debates referentes à criação da primeira LDBEN, em 1961, e do primeiro Plano Nacional de Educação, em 1962. Além disso, seguiu seu percurso à frente da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e ocupou o cargo de diretor do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (INEP), a partir de onde prospectou os Centros Brasileiros de Pesquisas Educacionais (CBPE), propondo espalhar pelo Brasil centros de estudos que permitissem compreender e sistematizar a obra educacional cotidiana de milhares de professores e professoras. Entre muitas atribuições, foi Reitor da Universidade de Brasília e integrou o Conselho Federal de Educação, seguindo sempre com muitos estudos e produções intelectuais.

A ruptura democrática de 1964 provocada pelo golpe civil-militar interrompe os avanços que vinham sendo construídos para que o conjunto da população tivesse acesso, pelo menos, a alimentação, moradia e escola. Interrompe, portanto, um caminho que certamente teria nos trazido a um presente muito diferente deste que vivenciamos.

Apesar das tentativas de silenciamento, o legado de Anísio seguiu eloquente, abrangendo obras físicas, políticas e pedagógicas e inspirando as novas gerações para as necessárias, e cada vez mais urgentes, transformações da educação do nosso país.

Anísio propõe uma reflexão profunda sobre o modus operandi da escola, mobilizando para a formação de estudantes autônomos, participantes efetivos no processo de construção dos conhecimentos, o que podemos entender como cerne de uma proposta de educação integral:

Em resumo, o erro capital da pedagogia tradicional está no isolamento em que a escola e o programa se colocaram diante da vida. Aprender é uma função normal da criança e do homem. Mas, por isso mesmo, não se pode exercer senão na matriz da própria vida e dentro de certas condições essenciais. Essas condições devem ser atendidas, e não removidas. Primária entre todas, ela está à intenção de quem vai aprender. A vontade da criança ou do adulto é imprescindível para que o aprendizado seja real e integrado à própria vida. Seja um cálculo de aritmética, ou seja, uma habilidade manual, a determinação de aprender é que faz com que as mesmas sejam aprendidas. (TEIXEIRA, 2000, p. 66).

Anísio Teixeira cria uma grande escola de pensamento educacional democrático, inspirando figuras também fundamentais para a educação brasileira, como Paulo Freire e Darcy Ribeiro, que comungam, adensam e amplificam, com diferentes contribuições, a perspectiva de uma escola pública, popular e integral. O conjunto de sua obra pedagógica expõe uma crítica contundente às práticas escolares arcaicas, centradas na exposição de conteúdos, sem articulação com a vida e mantenedoras dos índices absurdos de fracasso e exclusão escolar. Nesta perspectiva, sua obra física propõe a escola básica como universidade da infância, com tempos e espaços ampliados e pensados para a garantia de uma educação que dialogue com a vida:

Deverá, assim, organizar-se para dar ao aluno, nos quatro anos do seu curso atual e nos seis anos a que se deve estender, uma educação ambiciosamente integrada e integradora. Para tanto precisa, primeiro, de tempo: tempo para se fazer uma escola de formação de hábitos (e não de adestramento para passar em exames) e de hábitos de vida, de comportamento, de trabalho, de julgamento moral e intelectual. (TEIXEIRA, 1957, p. 7).

Anísio referia-se aos exames de admissão, que vigoraram no Brasil até a LDBEN de 1971 e constituíam um marco para a exclusão de estudantes que não conseguiam acessar o ensino ginasial, atuais anos finais do ensino fundamental.

A reflexão acerca da exclusão e do fracasso escolar de milhões de crianças e jovens das classes populares, tomados como resultado de problemas e dificuldades individuais ou sociais, precisa ser considerada central para a construção de uma educação integral que só se efetiva na medida da universalização do acesso, da permanência e da qualidade da trajetória escolar, garantida pela Emenda Constitucional 59/2009, dos 4 aos 17 anos - portanto, abrangendo toda a educação básica, da educação infantil ao ensino médio.

No contexto contemporâneo, de naturalização de uma miríade de testes avaliatórios, classificadores de boas e más escolas, pouco usuais na perspectiva de uma avaliação diagnóstica, processual e formativa, descolada da avaliação das condições de funcionamento das escolas e de fatores sociais relevantes, como a escolaridade dos pais, retomar esta reflexão, mais do que necessário, se faz urgente. A questão que se coloca remete ao sentido do processo de educação e de escolarização no próprio projeto de construção de uma sociedade democrática e livre, portanto a avaliação precisa retomar uma perspectiva de acompanhamento e de revisão permanente do trabalho escolar.

O conjunto da obra anisiana ajuda-nos a pensar a educação integral como condição para a garantia do direito ao desenvolvimento pleno das crianças e dos jovens, sendo a escola um meio para a materialização desse direito. Por isso, necessitamos de uma escola que compreenda a diversidade, que valorize as mais variadas competências e que respeite e estimule os tempos e processos de cada educando/estudante.

Darcy Ribeiro também teve papel muito relevante no debate e na qualificação de uma perspectiva de educação integral, assumida desde o reconhecimento das profundas desigualdades da sociedade brasileira e, portanto, articulada a outras políticas sociais e educacionais. Nas trilhas abertas por Anísio Teixeira e na convivência que tiveram, sobretudo no intervalo democrático que caracterizou um período de auspiciosa reconstrução nacional, especialmente nos governos Juscelino Kubitschek e João Goulart, que resultou, entre outras obras, na materialização da Universidade de Brasília, Darcy Ribeiro estabeleceu as bases para a grande obra que os Centros Integrados de Educação Pública (CIEPs) representaram, décadas depois, no contexto da reconstrução democrática, nos anos 1980/90.

Como educador, político, etnólogo, antropólogo e escritor, foi um grande defensor do povo brasileiro e da necessidade de superar a ninguendade a que a maioria da população foi, historicamente, submetida. No seu retorno ao Brasil, depois do exílio imposto pela ditadura, iniciada em 1964, e tendo percorrido o mundo em colaborações democráticas, Darcy protagoniza a construção da política educacional materializada no estado do Rio de Janeiro em 506 CIEPS. Ele compreendia o papel da escola de educação integral para a garantia do real direito à educação, que transcendia o ensino de disciplinas escolares, articulando políticas sociais de saúde e assistência social para que os estudantes pudessem estar plenos para as vivências e aprendizagens escolares:

Ao invés de escamotear a dura realidade em que vive a maioria de seus alunos, proveniente dos segmentos sociais mais pobres, o Ciep compromete-se com ela, para poder transformá-la. É inviável educar crianças desnutridas? Então o Ciep supre as necessidades alimentares dos seus alunos. A maioria dos alunos não tem recursos financeiros? Então o CIEP fornece gratuitamente os uniformes e o material escolar necessário. (RIBEIRO, 1986, p.48).

O que foi entendido pelos ferozes críticos dos CIEPs como assistencialismo propiciou condições para a permanência e aprendizagens de milhares de crianças e jovens nas escolas, aliando tais condições a qualificação dos espaços, a ampliação do tempo e a mudanças nas propostas pedagógicas. A descontinuidade típica das propostas educacionais brasileiras desmontou os CIEPs e os sonhos que eles continham de uma educação pública de qualidade para as populações pobres.

A vasta obra de Paulo Freire também aponta, efetivamente, para o alargamento dos horizontes educacionais e contribui para o pensamento de uma educação integral propondo que a vida vivida seja a “matéria” a partir da qual construir o trabalho escolar: a leitura do mundo precede a leitura da palavra (FREIRE, 1989). Sua possível convivência com Anísio Teixeira, no breve período em coordenou a meta da alfabetização de adultos prevista no primeiro Plano Nacional de Educação de 1962, após sua experiência exitosa com os círculos de cultura alfabetizadores em Angicos (RN), deixou marcas na sua obra pedagógica, em que propôs uma educação a partir da vida, enraizada e complexa, vislumbrando um horizonte democrático:

O diálogo é uma exigência existencial, e, se ele é o encontro em que se solidarizam o refletir e o agir de seus sujeitos endereçados ao mundo a ser transformado e humanizado, não pode reduzir-se a um ato de depositar ideias de um sujeito no outro, nem tampouco tornar-se simples troca de ideias a serem consumidas pelos permutantes. (FREIRE, 2005, p. 91).

Paulo Freire foi incansável na luta por uma educação popular, por meio do diálogo, incluindo jovens e adultos excluídos e abandonados pelo sistema educacional na dita “idade certa”, cujo aprendizado da leitura e da escrita possibilitasse outro estar no mundo:

Ler é uma operação inteligente, difícil, exigente, mas gratificante. Ninguém lê ou estuda autenticamente se não assume, diante do texto ou do objeto da curiosidade a forma crítica de ser ou de estar sendo sujeito da curiosidade, sujeito da leitura, sujeito do processo de conhecer em que se acha. Ler é procurar buscar criar a compreensão do lido; daí, entre outros pontos fundamentais, a importância do ensino correto da leitura e da escrita. É que ensinar a ler é engajar-se numa experiência criativa em torno da compreensão. Da compreensão e da comunicação. (FREIRE, 2001, p.261).

É fundamental, também, trazer à cena a professora Maria Nilde Mascellani, educadora que colaborou para a construção de uma experiência significativa de educação integral nas décadas de 1950-60, no estado de São Paulo: os Ginásios Vocacionais (GVs), escolas de educação integral (para os anos finais do ensino fundamental), com jornada escolar estendida e um currículo pensado para o desenvolvimento global dos sujeitos, em suas diferentes dimensões, a partir de atividades significativas, com foco no desenvolvimento da autonomia dos estudantes:

A escola que formará o trabalhador é o lugar onde ele descobrirá várias oportunidades de aprender e saber, nos mais variados campos da atividade humana, nunca perdendo de vista a apreensão da totalidade em que se insere esta parcela de conhecimento que está sendo adquirida. Uma escola que desenvolve experiências de trabalho no campo da cultura geral e específica é aquela que oferece um amplo horizonte de opções e de formação e realização. Só o trabalho assim entendido é capaz de se constituir em princípio de construção integral dos indivíduos e da vida social. (MASCELLANI, 2010, p. 56).

O viver experiências apresentado por Maria Nilde corrobora a perspectiva de uma educação integral, permitindo a construção de um pensar enraizado no tempo e no espaço dos estudantes e em diferentes experiências formativas. Tais processos podem construir a cidadania ativa necessária para as mudanças sociais democráticas.

Esta breve retomada histórica contribui para o reencontro com os ideais e referências de educadores que pensaram a educação como estrutural para um projeto de Brasil soberano. Fazem-nos refletir acerca da relação direta entre o modus operandi da educação escolar e o projeto de desenvolvimento do país.

Em comum, percebemos que os embates travados por eles caminham na mesma perspectiva, da defesa de uma educação para todos e todas, com qualidade, considerando seus contextos, respeitando suas singularidades, desafiando a estrutura secular de exclusão e desigualdade que atravessa a escola porque está presente na sociedade brasileira.

Em comum também o fato de que Anísio, Paulo, Darcy e Maria Nilde foram perseguidos e exilados pelo obscurantismo dos tempos despóticos que o Brasil viveu e Anísio Teixeira foi assassinado em 1971. Estas memórias precisam estar vivas para que possamos entender a força de suas ideias, proposições e obras.

A Educação Integral como a entendemos e na perspectiva histórica trazida para esta reflexão não pode ser compreendida fora do contexto das lutas democráticas por uma educação pública, laica, universal e de qualidade socialmente referenciada - portanto, articulada à vida em comunidade, nos territórios em que estão as populações.

As crises na democracia brasileira afetaram, como não poderia deixar de ser, a trajetória de construção de uma escola universal de educação integral. Podemos refletir acerca da relação de causalidade: a tentativa de construir a educação para o povo, articulada nas décadas de 1930, 1950/60 e nos anos recentes, que antecederam as rupturas democráticas de 1937, 1964 e 2016, foi determinante para as reações autoritárias.

Por conseguinte, a luta pela educação integral precisa ser compreendida no bojo da luta pelo direito à educação, na perspectiva das palavras de Anísio Teixeira:

O direito à educação faz-se um direito de todos, porque a educação já não é um processo de especialização de alguns para certas funções na sociedade, mas a formação de cada um e de todos para a sua contribuição à sociedade integrada e nacional, que se está constituindo com a modificação do tipo de trabalho e do tipo de relações humanas. (TEIXEIRA, 1996, p.60).

Programa Mais Educação: a política pública mais recente de Educação Integral

O Programa Mais Educação4 foi uma política pública federal iniciada em 2007 e interrompida em 20165. Pensada e produzida por muitas mãos e instituições, sob a coordenação do Ministério da Educação, tinha entre seus objetivos ser um programa indutor da Educação Integral no país. Na sua concepção carregava as matrizes do pensamento educacional de Anísio Teixeira, Darcy Ribeiro, Paulo Freire e Maria Nilde Mascellani, basilares para o desenvolvimento de projetos educacionais que buscaram romper com a organização da escola dual, arcaica, seletiva, conteudista e excludente. Portanto, há que se sublinhar a perspectiva deste programa indutor, em colaboração com outras ações do Ministério da Educação e outras áreas do governo federal, à época, para efetivar o princípio constitucional da igualdade de condições de acesso e permanência na escola, conforme previsto no inciso I, artigo 206 da Constituição Federal (BRASIL, 1988).

A ampliação do tempo diário na escola, com atividades diversificadas implementadas, a partir de uma ampla gama de possibilidades que consideravam simultaneamente as dimensões do desenvolvimento humano, os campos do conhecimento e a articulação com os territórios de vida dos estudantes podem ser considerados os princípios básicos desta ação governamental, que foi a primeira a ser desestruturada, no âmbito do MEC, depois da ruptura institucional de 2016.

É possível observar no documento Passo a Passo (BRASIL, 2011) que o Mais Educação olhava para as diversas áreas ao apresentar a perspectiva de macrocampos como uma nova forma de organização dos campos de conhecimento, das práticas sociais e culturais e dos temas de interesse e identidade das diferentes populações, possibilitando a reflexão sobre as propostas curriculares em cada território. Deste modo, colocava-se na perspectiva contrária de um currículo colonial e homogêneo, ditado, via de regra, por interesses de grupos que historicamente, dominaram a cena econômica, política e cultural do país.

A título de registro da memória do Mais Educação, é importante mencionar que os macrocampos foram sendo construídos e reconstruídos à luz da reflexão sobre a própria implementação do programa. Tal aspecto aponta para o caráter dialógico que caracterizou o Programa Mais Educação, desde a sua proposição.

Dessa forma, em 2007, na proposta inicial, dez macrocampos foram apresentados: Acompanhamento Pedagógico; Meio Ambiente; Esporte e Lazer; Direitos Humanos em Educação; Cultura e Artes; Cultura Digital; Promoção da Saúde; Educomunicação; Investigação no Campo das Ciências da Natureza; Educação Econômica6. Cada escola poderia escolher macrocampos e atividades específicas, de acordo com interesses e demandas de sua realidade. A título de exemplo, no macrocampo de Cultura e Artes havia a possibilidade de implementar atividades como o teatro, a música, a dança, entre outras; já no macrocampo Educomunicação, poderiam ser desenvolvidas atividades de rádio ou jornal escolar, entre outras.

Em 2010, no contexto de um grande programa de Educação no Campo7, constituiu-se uma proposta específica para as escolas do campo, consideradas as particularidades das populações tradicionais - os povos indígenas (nossos povos originários) e os povos quilombolas (remanescentes dos grupos escravizados), e também povos ribeirinhos, das áreas de assentamentos, entre outras populações com peculiaridades históricas, identitárias e territoriais. Importante ressaltar os macrocampos Memória e História das comunidades tradicionais8 e Agroecologia, construídos em diálogos com movimentos sociais.

Com a expansão do Programa, progressivamente demandado pelas escolas e redes de ensino, os macrocampos passaram a ser: Acompanhamento Pedagógico; Comunicação, Uso de Mídias e Cultura Digital e Tecnológica; Cultura, Artes e Educação Patrimonial; Educação Ambiental, Desenvolvimento Sustentável e Economia Solidária e Criativa/Educação Econômica; Esporte e Lazer9.

Importante relembrar que o macrocampo denominado Acompanhamento Pedagógico foi objeto de muitas discussões pois, para alguns, seria o espaço do chamado “reforço escolar”, sobretudo visando à preparação para provas de português e matemática realizadas pelas avaliações de larga escala em âmbito federal - mas também em âmbito estadual e municipal, em alguns casos. Prevaleceu, no contexto de implementação do Programa Mais Educação, uma perspectiva mais ampla e contextualizada dos saberes destas áreas do conhecimento, como demonstra o Caderno específico do macrocampo Acompanhamento Pedagógico:

Dentre as diversas alternativas de organização didático-pedagógica - Centros de Interesse, Oficinas Temáticas, Temas Geradores - que podem ser utilizadas no desenvolvimento de quaisquer atividades educativas, os Projetos de Trabalho podem oferecer elementos interessantes, se quisermos contemplar a articulação e a integração entre todas as áreas de conhecimento e as experiências educativas que acontecem a partir da escola. O princípio da interdisciplinaridade, que sustenta essa forma de organizar o processo educativo, favorece o diálogo entre os diversos agentes e as diferentes ações voltadas à Educação Integral. (2012, p.13)10.

Também no Caderno de Alfabetização encontramos princípios teóricos que apontam para a amplitude do trabalho proposto:

Uma abordagem psicogenética do processo de alfabetização tem, como referência teórica principal, a epistemologia genética de Jean Piaget aplicada por Emilia Ferreiro e Ana Teberosky à investigação da aprendizagem da escrita. É comum que as práticas pedagógicas que assumem essa perspectiva agreguem também uma compreensão interacionista da aprendizagem baseada na concepção de construção social da mente de Vygotsky e na pedagogia de Paulo Freire. (2012, p.21)11.

Fruto de uma ampla articulação com os estados e municípios e com outros Ministérios, as alterações que foram sendo realizadas apontavam o resultado de escutas feitas nos territórios. O diálogo permanente foi decisivo para o enraizamento da perspectiva de uma educação integral, que muitos municípios continuaram, com recursos próprios, depois da interrupção do Programa Mais Educação, originando programas municipais de educação integral, em escolas de dia completo.

Cabe destacar também o sentido de articulação intersetorial presente no Programa Mais Educação desde a sua proposição, pela Portaria Interministerial nº 17, de 24 de abril, no ano de 2007, sob a coordenação do MEC porém desenvolvido em articulação com o Ministério da Cultura, dos Esportes e do Desenvolvimento Social e Combate à fome. Nos anos de sua implementação, outros Ministérios, como Saúde e Meio Ambiente, e Secretarias, como Igualdade Racial e Mulheres, somaram-se ao esforço de pensar os processos educativos à luz das políticas específicas, a partir de ações conjuntas nos territórios.

Necessário apontar, neste sentido, a articulação potente construída nos territórios com escolas que recebiam números expressivos de famílias beneficiadas pelo Programa Bolsa Família, cuja condicionalidade de frequência à escola foi fundamental para a permanência e continuidade nos estudos de meninas e meninos que chegaram, pela primeira vez em seus grupos familiares, ao ensino médio - e muitos à Universidade.

O desmantelamento, pelas forças reacionárias, do trabalho intersetorial conjunto, com base na vida e nas demandas dos territórios, reforçou a perspectiva de que o caminho trilhado estava produzindo resultados para enfrentamento das históricas desigualdades sociais e educacionais.

O contexto regressivo e distópico do Brasil nos últimos anos apontou, também, a necessidade de retomada e ampliação, por exemplo, de um macrocampo específico de investigação e espírito científico, isto é, de enfocar especificamente o desenvolvimento da Ciência, não apenas como área específica do conhecimento, mas também como construção de uma perspectiva perguntadora diante da vida, como nos ensinou Paulo Freire em seu livro Por uma Pedagogia da Pergunta. O grande movimento de negação da ciência que vivemos nos últimos anos, com a pandemia do COVID-1912, amplia a reflexão sobre esta necessidade e sobre o papel da escola na luta contra o negacionismo.

O Programa Mais Educação abriu possibilidades de práticas diferenciadas em milhares de escolas pelo país, promovendo a articulação da escola com outros espaços culturais e sociais como os museus, as bibliotecas, os observatórios astronômicos, as praças e os parques, bem como com o patrimônio imaterial de saberes e práticas culturais como a capoeira, a ioga e a meditação.

Parte destas práticas e experiências estão registradas em muitos trabalhos acadêmicos e pesquisas, a exemplo das teses de doutorado de José Nildo Oliveira Soares, “Programa Mais Educação: uma política progressista de educação integral em tempo integral” (2020) defendida na PUC-SP, e de Patricia Moulin Mendonça, “O direito à educação em questão: as tensões e disputas no interior do Programa Mais Educação” (2017), defendida na UFMG, e das dissertações de mestrado de Paula Cortinhas de Carvalho Becker - “Do Programa Mais Educação à Educação Integral: o currículo como movimento indutor” (2015), defendida na UFSC, e de Renata Gerhardt de Barcelos - “A educação integral e a iniciação científica: interfaces e desenvolvimento pleno” (2021), defendida na UFRGS. Os trabalhos referidos são parte da produção acadêmica que apresenta experiências relevantes relacionadas a Educação Integral. Apontam caminhos possíveis para a materialização de uma educação humanizada, democrática e de horizontes ampliados.

Compreender o que foi o Mais Educação nos ajuda entender as disputas estabelecidas neste campo, as quais explicitam diferentes projetos de sociedade. A redução de educação integral à escola de tempo integral ou de turno integral, em que se oferece aos estudantes mais do mesmo, isto é, sem mudanças estruturais e de práticas pedagógicas que não refletem um currículo humanizado, precisa ser explicitada e enfrentada, sob pena de nos mantermos alijados tanto na prática cotidiana das escolas, quanto na elaboração das políticas educacionais, do largo horizonte de formação humana defendido e praticado, ao longo da nossa história, por aqueles que compreendem a relação entre escola e democracia.

As políticas públicas de educação integral, suas descontinuidades e perspectivas

As políticas públicas têm um papel fundamental e determinante para a garantia dos direitos da população. Das políticas para a Educação Integral, no nosso país, pode-se apontar o Programa Mais Educação, até o presente momento o de maior abrangência em termos de número de escolas e municípios, como ação do governo federal que objetivou promover a ampliação e a qualificação dos tempos, espaços e oportunidades educativas nas instituições escolares, em especial para as crianças e jovens filhos das classes populares.

Miguel Arroyo, interlocutor na construção do Programa Mais Educação, apresenta uma importante preocupação com o direito ao tempo a mais de que os nossos estudantes necessitam:

Porque cresceu nas últimas décadas a consciência social do direito à educação e à escola entre os setores populares, cresceu também a consciência de que o tempo de escola em nossa tradição é muito curto. O direito à Educação levou ao direito a mais educação e a mais tempo de escola. Este pode ser um significado importante: tentar respostas políticas ao avanço de consciência do direito a mais tempo de educação. (ARROYO, 2012, p. 33).

Neste mesmo prisma, Anísio Teixeira já demonstrava esta preocupação na década de 1930, pois via a educação como direito social e, por isso, argumentava que as escolas deveriam promover uma formação completa e precisavam estar dispostas a reorganizar seus tempos e espaços:

Daí o relevo impressionante que ganhou o movimento educativo. Estamos com responsabilidades dobradas diante do fracasso por que as instituições tradicionais de educação estão passando com o advento da nossa era. E tais deveres se refletem, sobretudo, nos responsáveis pela educação escolar, porque a eles cabe reorganizar a escola para o fim de servir às novas funções que lhe dita o atual momento de civilização. A reorganização importa em nada menos do que trazer a vida para a escola. A escola deve vir a ser o lugar aonde a criança venha a viver plena e integralmente. Só vivendo, a criança poderá ganhar os hábitos morais e sociais de que precisa, para ter uma vida feliz e integrada em um meio dinâmico e flexível tal qual o de hoje. (TEIXEIRA, 2000, p. 40).

Tal viver integrado mencionado por Anísio contrapõe-se frontalmente ao que encontramos em propostas educacionais que não levam em consideração os territórios, os tempos, os espaços e as demandas vividas pelos estudantes - propostas que, de modo geral, têm como foco os conteúdos escolares, hoje dispostos pela BNCC e ainda muito distantes das escolas, com vistas às avaliações externas.

Nesta perspectiva, o viver integrado deve respeitar o contexto social mais amplo em que o sujeito está inserido, o qual envolve a cultura, as tecnologias, as artes, os temas da vida cotidiana e os saberes comunitários.

Neste sentido, ampliar o tempo diário na escola é condição para que se possa promover vivências e aprendizagens significativas, pois tal incremento de tempo, associado a um horizonte formativo amplo e generoso, também abre possibilidades de outras interações e explorações. Nesse sentido, ao dialogar com Anísio e Darcy Ribeiro, Moll ratifica:

Seu projeto educacional transcendia ao aumento da jornada escolar. No entanto, esse aumento se fazia (e se faz) necessário como condição para uma formação abrangente, uma formação que abarcasse o campo das ciências, das artes, da cultura, do mundo do trabalho, por meio do desenvolvimento físico, cognitivo, afetivo, político, moral e que pudesse incidir na superação das desigualdades sociais mantidas, se não reforçadas, pela cultura escolar. (MOLL, 2012, p. 129).

A educação integral torna-se uma possibilidade no compromisso com o pleno desenvolvimento dos estudantes, consideradas suas múltiplas dimensões e sua inserção cultural, social e territorial, colocando-se a ampliação do tempo da jornada escolar como condição - e não como atributo central - para a mudança das práticas pedagógicas.

Quando o PME foi suspenso, o governo federal instituiu o Programa Novo Mais Educação, segundo a Portaria MEC n. 1.144 de 2016 (BRASIL, 2016), que tinha como objetivo principal qualificar o ensino da Língua Portuguesa e da Matemática no ensino fundamental, tal meta, apesar de legítima, limitava o programa a uma proposta de reforço escolar, que em nada remete à Educação Integral.

O supracitado programa apresenta em seu Caderno de Orientações Pedagógicas, versão II (BRASIL, 2018), algumas orientações que não mencionam atividades das demais áreas do conhecimento, circunscrevendo sua atuação às disciplinas de Língua Portuguesa e Matemática; embora o documento contenha em seu anexo referências ao custeio de materiais dentro dos eixos Cultura, Artes, Esporte e Lazer, informações sobre as práticas pedagógicas destes eixos não são enfatizadas.

Importante observar o contexto de construção dos dois programas: enquanto o primeiro (2007-2016) foi articulado e proposto em plena ascensão da perspectiva democrática e inclusiva nas políticas brasileiras, o segundo (2016-2018) foi proposto pelo governo que destitui, sem crime de responsabilidade comprovado, a presidenta legitimamente eleita.

No Programa Mais Educação, a semântica instituída pelos atos que o regulamentam explicita expressões como desenvolvimento, comunidade, diversidade e direitos, enquanto o Novo Mais Educação aponta contraturno, desempenho escolar e rendimento, entre outras. Deste modo, expressam e materializam duas concepções muito diversas de educação e de projeto de desenvolvimento humano para a vida em sociedade, sobre as quais é preciso refletir permanentemente, dado o avanço dos interesses de mercado sobre as políticas educacionais.

A Educação Integral, em sua extensão e possibilidades, afirma-se no próprio projeto de construção de uma sociedade democrática, e o aumento de tempo na jornada dos estudantes coloca-se como parte da própria garantia para a efetivação do direito a educação de qualidade. Neste sentido, coloca-se como tarefa coletiva pensar uma proposta que amplie o currículo formal, de modo que as práticas pedagógicas englobem os diferentes saberes, mobilizem diferentes habilidades e respeitem os tempos de cada estudante.

Elvira Lima nos ajuda a pensar sobre este desafio:

Um currículo que se pretende democrático deve visar à humanização de todos e ser desenhado a partir do que não está acessível às pessoas. Por exemplo, no caso brasileiro, é clara a exclusão do acesso a bens culturais mais básicos como a literatura, os livros, os livros técnicos, atualização científica, os conhecimentos teóricos, a produção artística. Além disso, existe a exclusão do acesso aos equipamentos tais como o computador, aos instrumentos básicos das ciências (como da biologia, física e química), aos instrumentos e materiais das artes. É função da escola prover e facilitar este acesso (LIMA, 2007, p. 18).

As desigualdades históricas, que se avolumaram no contexto pandêmico, ampliam os desafios colocados à escola para constituir-se como espaço de humanização, construída com a garantia do acesso, da permanência e das aprendizagens de todos/todas estudantes, garantindo-se as condições materiais e subjetivas necessárias. Esta agenda é, efetivamente, a agenda da educação integral.

Considerações finais

O conceito de uma educação integral apresentado por Ana Maria Cavaliere pode ser entendido como um guia seguro para o caminho das mudanças pedagógicas e curriculares necessárias para a efetivação de uma escola universal e de qualidade no Brasil:

Dada a multiplicidade de significados atribuíveis à expressão educação integral, é necessário fixar alguns de seus elementos intrínsecos: ela trata o indivíduo como um ser complexo e indivisível; no âmbito escolar se expressa por meio de um currículo, também integrado, e que não é dependente do tempo integral, embora possa se realizar melhor com ele; se empenha na formação integral do indivíduo em seus aspectos cognitivos, culturais, éticos, estéticos e políticos. (CAVALIERE, 2014, p.1214).

Uma educação integral que se pretenda duradoura coloca-se na perspectiva direta das lutas pela democratização do acesso e pela qualificação das práticas escolares que, movendo-se para além dos tradicionalismos estéreis, abre espaços para a necessária recriação dialógica e generosa das práticas escolares, podendo então considerar os meninos e meninas em sua integralidade.

Trata-se de compreender a relação intrínseca entre educação e sociedade, entre acesso universal a educação de qualidade e manutenção de uma ordem social democrática, para que nunca mais a sociedade brasileira regrida para os obscurantismos e autoritarismos que estão sempre à espreita.

Para isso, é necessário construir e ocupar os espaços de debate acerca da construção de políticas educacionais, pois suas descontinuidades afetam diretamente as redes de ensino, impactando projetos que, a longo prazo, poderiam produzir modificações profundas e, efetivamente, impactar a estrutura de desigualdades do país. Do mesmo modo, olhar e recuperar o percurso histórico da educação brasileira, em seus momentos de avanço democrático, adensa as reflexões e proposições, para a defesa e a retomada de uma escola de educação universal, pública e integral.

1Movimento que defendeu a importância da ciência, a necessidade de uma educação integral e foi um importante estímulo para o processo de formação dos educadores.

2O Programa Mais Educação (PME) foi uma política pública do governo federal, implementada no período 2007-2016, que chegou a mais de sete milhões de estudantes e 60 mil escolas da rede pública no país, segundo dados do INEP (2017). A ampliação de tempo da jornada escolar e a mobilização de ações e reflexões no campo da educação integral possibilitaram muitas reformulações curriculares na perspectiva da formação plena dos estudantes.

3Artigo 205: “[...] educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.” (BRASIL, 1988).

4O Programa Mais Educação foi instituído pela Portaria Interministerial n. 17 de 2007 (BRASIL, 2007) e integrava as ações do Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE).

5O PME foi suspenso em 2016, 40 dias após a destituição do governo da presidenta Dilma Rousseff.

7Decreto nº 7.352, de 4 de novembro de 2010.

8Macrocampos: Acompanhamento Pedagógico; Agroecologia; Iniciação Científica; Educação em Direitos Humanos; Cultura, Artes e Educação Patrimonial; Esporte e Lazer; e Memória e História das Comunidades Tradicionais.

9Para maior detalhamento dos macrocampos, acessar o Manual Operacional de Educação Integral (BRASIL, 2013).

10Este material constitui a Série Cadernos Pedagógicos Mais Educação publicados pelo MEC; contudo, a partir de 2016 o acesso de alguns destes documentos foi interrompido. Ver http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=8206-acompanhemanto-pedagogico-final-versao-preliminar-pdf&category_slug=junho-2011-pdf&Itemid=30192.

11Ibid.

12Uma doença respiratória extremamente contagiosa, causada pelo coronavírus. Em 20 de janeiro de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) classificou o surto como Emergência de Saúde Pública de Âmbito Internacional e, em 11 de março de 2020, como pandemia.

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Recebido: 29 de Janeiro de 2023; Aceito: 16 de Fevereiro de 2023

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Doutora em Educação em Ciências (UFRGS). Docente dos anos iniciais e gestora da Rede Pública Municipal de Porto Alegre. Integrante do Grupo de Pesquisa: Educação Integral na Escola e na Sociedade: Sujeitos, Territórios, Dimensões e Interfaces. Porto Alegre, RS Brasil. E-mail: renatagbarcelos@yahoo.com.br

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Pós-Doutora em Educação (PUC/RJ). Professora Titular da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões, campus Frederico Westphalen. Coordenadora do Grupo de Pesquisa Educação Integral na Escola e na Sociedade: Sujeitos, Territórios, Dimensões e Interfaces. Porto Alegre, RS, Brasil. E-mail: jaquelinemoll@gmail.com

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