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Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade

Print version ISSN 0104-7043On-line version ISSN 2358-0194

Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade vol.32 no.70 Salvador Apr./June 2023  Epub Aug 29, 2023

https://doi.org/10.21879/faeeba2358-0194.2023.v32.n70.p62-74 

Artigo

SENTIDOS DE EDUCAÇÃO INTEGRAL DE DOCENTES E FAMILIARES: UMA DISCUSSÃO SOBRE O DIREITO À EDUCAÇÃO

Dinora Tereza Zucchetti2  *
http://orcid.org/0000-0002-7122-1025

Jeane Felix da Silva2  **
http://orcid.org/0000-0003-4754-0074

3Universidade Feevale

4Universidade Federal de Alagoas


RESUMO

O artigo discute, a partir do princípio da dialógica, sentidos da educação integral em duas escolas públicas localizadas na região metropolitana de Porto Alegre que trabalham com jornada escolar em tempo ampliado. O material empírico foi produzido a partir de questionários semiabertos aplicados junto a professores(as), responsáveis e familiares de estudantes das escolas, das quais uma realiza a expansão por meio de práticas de educação não escolar, enquanto a outra é escola de educação integral e em tempo integral. Os resultados apontam para tensões entre as expectativas de familiares e de docentes em relação aos sentidos da educação integral e da escola de tempo integral. Dessas tensões emergem problematizações que reforçam a importância de políticas públicas, o compromisso ético da escola e sua relação com o direito de aprender, bem como o reconhecimento da relevância de práticas educativas que se constroem por meio de uma pedagogia integradora.

Palavras-chave: educação; educação integral; pedagogia integradora; professores(as); familiares

ABSTRACT

The article discusses, from the dialogical principle, the meanings of the fulltime integral education in two public schools located in the metropolitan region of Porto Alegre. The empirical material was produced from semi-open questionnaires applied to teachers, guardians, and family members of students from schools that have in common the school day in extended time. One school expands the school day by doing non-school education practices, and the other is a full-time school. The results point to tensions between the expectations of family members and teachers in relation to the meaning of full-time integral education and the school day in extended time. From those results emerge problematizations that reinforce the importance of public policies, the ethical commitment of the school and its relationship with the right to learn; the recognition of the relevance of educational practices that are built through an integrative pedagogy.

Keywords: education; full-time education; integrative pedagogy; teachers; family members

RESUMEN

El artículo discute, a partir del principio de la dialógica, sentidos de la educación integral en dos escuelas publicas ubicada en la región metropolitana de Porto Alegre. El material empírico se elaboró a partir de cuestionarios semiabiertos aplicados a profesores, responsables y familiares de estudiantes de escuelas que tienen en común la educación escolar en tiempo extendido. Una, realiza la expansión a través de prácticas de educación no escolar, la otra, escuela de educación integral y a tiempo completo. Los resultados apuntan a tensiones entre las expectativas de familiares y de docentes en relación a los sentidos de la educación integral y de la escuela de tiempo completo. De ellas emergen problematizaciones que refuerzan la importancia de las políticas publicas, el compromiso ético de la escuela y su relación con el derecho a aprender; el reconocimiento de la relevancia de las prácticas educativas que se construyen a través de una pedagogía integradora.

Palabras clave: educación; educación integral; pedagogía integradora; profesores; familiares

Introdução

A educação integral, no sentido que queremos discutir neste artigo, dialoga com uma concepção de educação como um direito humano pois, em uma sociedade desigual como a nossa, é por meio da educação que se ampliam as possibilidades de superação de desigualdades. Nessa esteira, Severo e Zucchetti (2020, p. 14) asseguram que “o direito à educação é uma prerrogativa para efetivação e ampliação das garantias fundamentais às pessoas em uma sociedade democrática”. A escola em tempo integral, nessa perspectiva de Educação Integral, “pode materializar esse direito quando atua de maneira intersetorial e com foco nas múltiplas condições que levam ao pleno desenvolvimento da pessoa” (SEVERO; ZUCCHETTI, 2020, p. 14). Acreditamos na Educação Integral nessa perspectiva porque defendemos acesso à educação com qualidade social para todas as pessoas, particularmente para as crianças e adolescentes pertencentes às famílias que vivem em contextos de vulnerabilidade social.

A partir da investigação de espaços formativos em duas escolas públicas de ensino fundamental das redes municipais das cidades de São Leopoldo e Novo Hamburgo, localizadas no Rio Grande do Sul, identificamos a oferta de distintas modalidades didático-curriculares descritas como experiências de educação integral. Nelas foram problematizadas as dimensões educativas oferecidas, perguntando sobre concepções de educação integral e de escola de tempo integral como apostas realizadas por escolas públicas para crianças e adolescentes. Em ambas, buscamos compreender a necessidade de conhecer quais sentidos são atribuídos às modalidades educativas por professores(as) e familiares dos(as) estudantes. Acreditamos que conhecer esses sentidos permite-nos refletir sobre a implementação de políticas públicas educacionais de qualidade, na direção de empreendê-las fora da lógica neoliberal vigente, em uma lógica de qualidade socialmente referenciada.

A dimensão educativa como prática social, a proteção àqueles(as) em fase peculiar de desenvolvimento, o direito à escola como instituição social voltada a ensinar e aprender orientaram o recorte da investigação interinstitucional denominada ‘Educação Integral entre práticas de Educação Escolar e Não Escolar. Perspectiva de formação humana e desenvolvimento social’, ativa desde o ano de 2018. De um total de 4 escolas investigadas no estado do Rio Grande do Sul, este artigo trabalha com um recorte de duas, ambas inseridas na região metropolitana de Porto Alegre1. De natureza qualitativa, realizada por meio da metodologia de pesquisa em educação comparada, de tipo intranacional, a pesquisa busca pela relação entre educação, desenvolvimento e inovação em territórios precarizados. Para Ferreira (2014), essa modalidade metodológica dá visibilidade a procedimentos de investigação que buscam descrever criticamente informações e dados por meio de uma abordagem sistêmica, de aprendizagem compreensiva, que considera realidades complexas e o outro, sujeito da investigação, pertencente a grupos sociais bem definidos.

Como parte da metodologia adotada foi realizado um estudo minucioso do contexto no qual as escolas estão inseridas. Trata-se de dois bairros de municípios vizinhos que fazem fronteira em boa parte da sua extensão territorial, ambos com alta densidade demográfica e elevados indicadores de pobreza e de violência. Tal proximidade permite, com frequência, a migração de moradores(as) como recurso de escape de agentes de segurança e da polícia no cumprimento de mandados judiciais. Contudo, tal movimentação se caracteriza, também, como estratégia para buscar serviços de proteção social oferecidos pelos poderes públicos municipais, que ora parecem mais oportunos em uma cidade, ora em outra.

A coleta de dados foi realizada por meio de questionários de tipo semiaberto com 24 sujeitos, sendo 12 professores e professoras (identificados como P) e 12 responsáveis/familiares de estudantes das duas instituições (identificados como R). Da caraterização dos(as) informantes é importante ressaltar: entre os familiares, 80% dos que compareceram à escola para participar da investigação tinham de 31 a 49 anos, escolaridade no ensino fundamental incompleto e a maioria quase absoluta, 93%, eram mulheres. Entre os(as) professores(as), 93% possuíam formação superior e, destes, 75% haviam concluído alguma especialização, 35% são mestres; 75% possuem de 6 a 15 anos na docência; 100% eram servidores(as) públicos municipais concursados(as), e 75% deste grupo era composto por mulheres.

Os questionários, de tipo semiaberto, foram aplicados em novembro de 2019, período que antecedeu o término letivo e o posterior fechamento das escolas devido à pandemia de Covid-19, em março de 2020. Os resultados foram agregados e uma primeira análise se deu por meio do software analítico SPSS statistics; posteriormente, foram buscadas informações qualitativas presentes na extensão do instrumento. A análise priorizou a inteligibilidade das respostas descritivas, buscando por “fluxos de relações ou conflitos, homogeneidades ou heterogeneidades, permanências ou mudanças, protagonismos ou resistências” (FERREIRA, 2008, p. 124). Essa busca ocorre “na tentativa de saber as razões explícitas e as implícitas das políticas, a consistência das vontades, o alcance do realizado e o significado do não cumprido”, em consonância com Ferreira (2008, p. 124).

Na sequência, a seção 2 descreve os territórios nos quais as escolas estão inseridas, o que dá a conhecer os contextos de realização da pesquisa. Na seção 3, discutimos as concepções de educação integral e em tempo integral na perspectiva dos estudos teóricos e dos resultados da investigação. Em seguida, na seção de número 4, apresentamos o que denominamos de tensões entre as expectativas de familiares e docentes em relação aos sentidos da educação integral. Por fim, seguem as considerações à guisa de encerramento.

Os territórios e as escolas: contextos de realização da pesquisa

Não tem sido possível - se é que algum dia foi - desmembrar os estudos sobre a educação fragmentando as partes que a constituem, entre elas, as políticas da educação, as instituições educativas, os territórios onde estão inseridas e os sujeitos delas participantes. Como bem lembra Morin (1990, p. 124), a parte é mais que a soma do todo, o “todo é mais do que a soma das partes que o constituem. [...] O todo é então menor que a soma das partes, o todo é, simultaneamente, mais e menos que a soma das partes”. Observada a ressalva, esta seção apresenta alguns elementos que julgamos fundamentais para a compreensão dos sentidos da educação integral expressos por professores(as) e familiares de estudantes das escolas em questão. Nessa perspectiva, alinhar contextos aos dados que emergem da investigação sustenta, na dinâmica da pesquisa em educação comparada, a dimensão dialógica que se pretende para a análise do objeto deste artigo.

Sobre os bairros nos quais se situam as escolas pode-se afirmar que têm grande extensão geográfica, estando entre os mais populosos das cidades já mencionadas. São conformados enquanto territórios com diferentes delimitações e espaços geográficos compreendidos como campos de forças, pela formação desigual, no sentido atribuído por Santos (1978). São, também, configurados de modo impreciso, constituídos por complexas relações de poder, em um determinado período, envolvendo diversos atores sociais (SAQUET; SILVA, 2008). Esses bairros são habitados por pessoas de classe média baixa cuja renda familiar mensal é majoritariamente inferior às médias das cidades em que se situam. A precariedade das habitações, do sistema de saneamento básico e da coleta de lixo, altas taxas de desemprego e subemprego são características de ambos os bairros, que coexistem dada a sua proximidade. Acerca das escolas, é denominada escola 1 aquela situada no município de São Leopoldo, localizado a 34 quilômetros da capital do estado. A escola 2 tem sede em Novo Hamburgo, cidade que faz fronteira ao norte com São Leopoldo. Os bairros Santos Dumont - São Leopoldo (escola 1) e Santo Afonso - Novo Hamburgo (escola 2) ligam uma cidade a outra.

Entre as características do território sede da escola 1, destaca-se o crescimento de 336% no número de homicídios no primeiro mês do ano de 2017, comparativamente ao ano anterior. Segundo o diagnóstico socioterritorial do município, a partir dos dados do Cadastro Único - CadUnico para programas do Governo Federal, a cidade contava com pelo menos 12.334 famílias que apresentavam baixa renda mensal, o que corresponde a 17% da população da cidade (SÃO LEOPOLDO, 2016). Dados de 2021 elevam para 19.000 o número de usuários(as) do bolsa família (AGUIAR, 2021), o que demonstra, comparativamente a 2016, um significativo empobrecimento da população. O Centro de Referência de Assistência Social - CRAS Nordeste, que atende dois bairros, entre eles o Santos Dumont, registra 7.678 pessoas no CadUnico, 62% dos(as) beneficiários do Programa Bolsa Família para 13% do total da população do município. A renda per capita é de R$166,00, sendo que somente o outro bairro que compõe a mesma abrangência na divisão por CRAS tem provimento inferior, R$ 162,00. Esses dados apontam que estamos diante da região mais empobrecida da cidade.

No bairro Santos Dumont, a escola fica no Loteamento Padre Orestes. Criado por meio de política pública habitacional a partir de um “termo de compromisso firmado entre Ministério das Cidades, Prefeitura Municipal de São Leopoldo e Empresa de Trens Urbanos de Porto Alegre - Trensurb” (PPP, 2019, p.9), o Loteamento acolheu famílias removidas da Vila dos Tocos, ocupação existente na faixa de expansão do trem metropolitano até o município de Novo Hamburgo. Contudo, passados alguns anos, o Padre Orestes vem se transformando em um loteamento misto, no quesito tipos de moradias, o que compromete a infraestrutura, acentuando a precariedade de serviços de lazer, entre outros.

A escola, construída por decreto municipal em maio de 2012, iniciou suas atividades em julho do mesmo ano2 e acolhe estudantes da Educação Infantil ao 9° (nono) ano do Ensino Fundamental, atendendo a 510 estudantes a partir de um quadro composto por 47 professores(as), distribuídos em 19 turmas. Ainda em 2013 foram iniciadas as discussões sobre a implementação da educação integral na escola, o que veio a se consolidar a partir de 2017. Em 2019, a ampliação da carga horária para nove horas diárias passa a ser ofertada desde a educação infantil ao 9° (nono) ano do ensino fundamental, segundo o Projeto Político-Pedagógico - PPP (2019) da escola. Algumas concepções sustentam o trabalho na instituição, entre elas: integralidade do sujeito, práxis pedagógica, iniciação científica, educação em direitos humanos, educação integral e em tempo integral.

Em relação ao território onde está inserida a escola 2, a situação em muito se assemelha à da escola 1. Em Santo Afonso, Novo Hamburgo, vivem 9,64% da população do município, com predominância da faixa etária juvenil. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE (BRASIL, 2010), o bairro possui a pior renda per capita da cidade: o equivalente a R$ 366,13. Tem um dos piores indicadores de violência, concentrando aproximadamente 30% dos casos que envolvem homicídios na cidade, sendo que a maioria deles (tentativas e/ou consumados) tem como alvo adolescentes e jovens de 13 a 24 anos, segundo Dados Consolidados da Secretaria de Segurança Pública do estado (SSP/RS, 2012), ratificados no Mapa da Violência em Novo Hamburgo, gerados pelo Observatório da Segurança Cidadã de Novo Hamburgo - ODSC (2016).

O alto índice de homicídios no bairro ficou ainda mais evidente no ano de 2019, quando os tipificados como consumados representaram quase metade (45,45%) do total de homicídios no município. Em relação aos homicídios de adolescentes de 12 a 18 anos, foram 22 os ocorridos no bairro Santo Afonso, representando 43,14% de um total de 51 das vítimas deste crime na cidade. Os dados do ODSC (2016) demonstraram ainda uma maior proporção de crimes violentos contra adolescentes mulheres. Ao longo dos anos 2018, 2019 e 2020, 44 estupros do total de 283 ocorridos na cidade vitimaram adolescentes meninas do bairro.

Um dos indicadores do Registro On-line de Violência na Escola - ROVE3 demonstrou que, das denúncias de agressão física registradas até 2019, o maior número foi proveniente do bairro Santo Afonso, com o total de 60 registros (ODSC, 2016).

O Projeto Político Pedagógico (2019) da escola 2 ratifica o contexto quando afirma que muitos(as) estudantes são moradores(as) da Vila Palmeira, espaço ainda mais precarizado no bairro, onde vivem aproximadamente 2.000 famílias4. A escola foi fundada em 1987 com 428 estudantes da pré-escola ao 4º ano do Ensino Fundamental. Em 2019, eram cerca de 585 estudantes matriculados(as) nos anos finais do Ensino Fundamental e na Educação de Jovens e Adultos - EJA. A escola, de turno único, realiza o tempo integral por meio do programa diversos, com a participação dos(as) estudantes em projetos de serviços de fortalecimento de vínculos, da política da assistência social. Na escola são oferecidas vagas de contraturno no Programa Movimentos e Vivências na Educação Integrada (MOVE) da Secretaria de Educação do Município, programa local criado em substituição ao extinto Programa Mais Educação.

O PPP (2019) contempla a concepção de educação integral relacionando-a com ideia de integralidade e dignidade do(a) cidadão na sua relação com os(as) demais e com o meio. Reconhecer, respeitar e conviver com as diversidades culturais, linguísticas, étnicas, religiosas, de gênero, sexualidade e com sujeitos que possuem necessidades educacionais especiais, oportunizando atividades em que sejam resgatados valores fundamentais do convívio humano, possibilitam a construção coletiva de regras e ações de convivência e tolerância, conforme o Projeto.

Como observamos, as escolas pesquisadas situam-se em contextos de vulnerabilidade bastante acentuados, os quais demandam políticas públicas que propiciem condições para que a escola exerça sua função de ofertar educação de qualidade social e, assim, contribuir para reduzir desigualdades educacionais e propiciar aos(às) estudantes e suas famílias oportunidades para melhorarem suas condições de vida. Passamos, pois, a explorar esse argumento.

Educação escolar e educação integral: DAS concepções que sustentam este trabalho

Em uma sociedade injusta e desigual como a que vivemos, a escola é uma das parcas possibilidades de melhoria das condições sociais para boa parte das pessoas, sobretudo daquelas que vivem em acentuados contextos de vulnerabilidade. A escola é, para muitas famílias, o único espaço seguro para deixar os(as) filhos(as) durante o período de trabalho, além de um espaço de socialização; local de se alimentar; de aprender sobre os conhecimentos considerados imprescindíveis socialmente; de aprender a tornar-se cidadã(o), com os diversos efeitos e implicações dessa noção; e de qualificar-se profissionalmente, entre outros.

Segundo Biesta (2018, p. 24), a educação escolar “[...] nunca é apenas para qualificar crianças e jovens e oferecer-lhes um lugar particular na sociedade”, mas um espaço para aprender sobre a “capacidade de assumir uma perspectiva crítica para com tradições, práticas, modos de fazer e de ser existentes” (BIESTA, 2018, p. 24). A escola é um espaço no qual aprendemos sobre os conhecimentos valorizados socialmente e deve ser, também, um espaço para aprender a refletir criticamente sobre esses conhecimentos, desnaturalizando as desigualdades reproduzidas em nossa sociedade.

A função pedagógica e social da escola encontra-se em pleno debate, com compreensões que passam pela escola como espaço educativo ampliado, conforme propõe Biesta (2018), até outras segundo as quais cabe à escola apenas instruir (pois caberia às famílias educar), em uma visão limitada da escola e da própria educação. De nossa parte, defendemos a escola como um espaço estratégico para a promoção da educação como um direito humano básico e inalienável. O não acesso à escola e aos conhecimentos por ela trabalhados contribuem para excluir uma parcela considerável da população da possibilidade de compreender sobre o seu lugar no mundo e problematizá-lo na perspectiva da emancipação humana, que é sempre coletiva, pois permite aos(às) estudantes “entrar no tecido social e ser, portanto, inteiramente relacional” (BIESTA, 2013, p. 48), constituindo-se como sujeito coletivo.

Compreendemos que o acesso a condições sociais mais dignas só será possível, para essa camada significativa da população, por meio da escolarização, contudo, advogamos por uma educação que esteja pautada em princípios coletivos, não como mera ferramenta de acesso aos conhecimentos considerados válidos para o mercado. Em outras palavras, nossa perspectiva não é aquela que se respalda no discurso da meritocracia, que desconsidera as desigualdades sociais e as diversidades, focando no indivíduo e não nas condições conjunturais que lhes permitem ou não ter sucesso em seu processo de escolarização (PONCE; LEITE, 2019, p. 794). No Brasil, embora o acesso universal à escola - tanto para crianças e jovens, quanto para as pessoas adultas e idosas - seja legalmente garantido, há que se observar que esse direito vem sendo negligenciado para diversas pessoas, em termos de acesso, de permanência e de aprendizagem5. Esse quadro evidencia a necessidade de políticas públicas intersetoriais que propiciem as condições básicas (como saúde, moradia e alimentação, entre outras) para que a escola possa exercer seu papel de instituição educativa. A intersetorialidade, de acordo com Silveira, Meyer e Felix (2019, p. 427), é uma estratégia que permite equalizar recursos no âmbito das políticas públicas, pois “possibilita abordar e solucionar problemas multicausais” na medida em que permite “planejar, implementar e monitorar políticas públicas que definem soluções conjuntas e articuladas” em vários setores. No caso da educação, a intersetorialidade é o que permitirá amenizar contextos de vulnerabilidade social que acometem estudantes em escolas como as que pesquisamos.

Além da necessária articulação entre os diversos setores das políticas públicas, os contextos de vulnerabilidade nos quais se encontram as famílias indicam a necessidade da escola em tempo integral enquanto um espaço para deixar as crianças e adolescentes em segurança no tempo em que os familiares precisam trabalhar, além de ampliarem o repertório de aprendizagem desses(as) estudantes. Isso pode ser observado nos excertos dos questionários realizados com os familiares destacados a seguir, nos quais, ao serem perguntados sobre o que acham do fato de terem seus filhos(as) na escola de turno integral ou em escola com projeto no contraturno, dizem:

Como eu trabalho o dia todo, para não precisar deixar ele na casa de ninguém, eu resolvi deixar ele aqui (R2, Escola 1).

Para tranquilidade da família para sair para o trabalho. (R3, Escola 1)

Eu acho melhor que ela fique aqui do que na rua, porque eu cato reciclagem o dia todo (R10, Escola 2).

Os trechos de R2, R3 e R10 mencionam a escola como um local para as famílias deixarem os(as) filhos(as) em segurança para irem ao trabalho. Suas falas dão pistas para pensarmos na necessidade de políticas públicas de assistência social que permitam às famílias trabalharem deixando suas crianças e jovens em um local em que estejam protegidos(as) e em segurança. Trata-se, pois, de uma dimensão da escola que amplia o aspecto educativo e demanda a necessidade articulação intersetorial das políticas. Essa percepção é compartilhada por alguns dos(as) professores(as), conforme podemos observar nos trechos a seguir:

Vantagem de retirar o aluno de estar exposto a riscos (drogas, violência, trabalho infantil). Participarem de atividades musicais e teatro (P4, Escola 1).

Vantagem: Oportuniza a ampliação do uso de espaço escolar, bem como oportuniza vivências diferenciadas (P5, Escola 1).

Os(as) professores(as), contudo, observam como vantagem as contribuições da escola em período integral para a aprendizagem e a formação educacional dos(as) estudantes, conforme sinalizam nos seguintes excertos de respondentes da Escola 1, elencando vantagens:

Os alunos participam de oficinas que auxiliam a aprendizagem (P1).

O aluno tem um tempo maior para consolidar suas aprendizagens (P3).

Apoiar e melhorar a aprendizagem dos alunos que apresentam dificuldades de compreensão dos conteúdos no turno normal (P4).

Oportuniza um grande reforço na aprendizagem dos alunos (P5).

A preocupação dos(as) professores(as) com a aprendizagem faz bastante sentido pois, no âmbito das avaliações educacionais e das políticas públicas de educação, a qualidade das escolas tem sido medida pelo resultado que os(as) estudantes obtém nas avaliações externas, realizadas periodicamente. Nesse sentido, cabe verificar se as escolas têm sido competentes para preparar os(as) estudantes para viverem em um mundo globalizado. Problematizando essa perspectiva, Biesta (2018) afirma que, em muitos países, as políticas educacionais têm sido definidas “em termos de conhecimentos e habilidades úteis para o funcionamento da economia - com referência ao mercado de trabalho e à competição - e para adaptações flexíveis às condições em permanente mudança” (p. 26). O autor argumenta, ainda, que esse foco é limitado e que é preciso que essas políticas considerem

[...] um quadro de referências mais amplo e diferente para a educação, no qual se incluam questões de democracia, ecologia e cuidado como pontos de orientação para o engajamento com a questão do que deve dar direção aos empreendimentos educacionais (BIESTA, 2008, p. 26).

Para o autor, deve-se considerar “questões de democracia, ecologia e cuidado”. Essas seriam, em suas palavras, temáticas relacionadas às “questões existenciais que se enfrenta quando se tenta descobrir como se pode conseguir viver junto na pluralidade das formas humanas em um vulnerável e já significativamente exaurido planeta” (BIESTA, 2018, p. 26).

Em sintonia com Biesta (2018), compreendemos que se faz necessário alargar as concepções de educação integral e em tempo integral na perspectiva dos direitos humanos. Nosso argumento situa-se no compromisso ético que a escola tem de fornecer educação com qualidade social, o que implica diretamente no direito dos(as) estudantes de aprenderem tanto os conhecimentos considerados básicos pelas políticas curriculares quanto aqueles que lhes permitam compreender o seu lugar em um mundo desigual e injusto.

É preciso levar em consideração, ainda, que a escola é o espaço formal para que o conhecimento considerado válido socialmente seja abordado/ensinado e que, para boa parte das pessoas, o acesso a esse conhecimento é uma das pouquíssimas possibilidades de acessar direitos e bens. De acordo com Gallego (2020, p. 13, tradução nossa), é na escola que meninos e meninas “aprendem noções básicas do conhecimento socialmente aceito, com as quais se pode exercer cidadania e acessar os bens culturais e econômicos que a sociedade distribui”. Ou seja, a escola é uma instituição fundamental por diversas razões, entre as quais, por ser o espaço principal da educação formal e, também, por ser um espaço em que as crianças e jovens ficam abrigadas e até protegidas, durante o período de trabalho de seus familiares.

Mas, de acordo com Brandão (2019, p. 22), é preciso “relativizar muito a tendência crescente a funcionalizar a educação para capacitar o competente-e-produtivo”, acionando, desse modo, “nossa vocação de educadores, centrada no re-humanizar a educação para formar o consciente-criativo”. Trata-se de termos como horizonte a construção de uma escola que, além de ocupar-se em transmitir os conhecimentos considerados válidos pelas políticas curriculares ou de apenas manter os(as) estudantes em seu espaço em período integral, ocupe-se em construir relações de colaboração e de valorização dos conhecimentos locais e saberes populares. Nas palavras de Brandão (2019, p. 24), “estejamos atentos a não transformar uma educação integral em algo que, ao invés de integrar pessoas criativas, desintegre ainda mais indivíduos agitados através de um acúmulo “em tempo integral” de atividades sucessivas, apressadas e competitivas”.

Nessa direção, concordamos com Ponce e Leite (2019) quando afirmam que os currículos (assim como as propostas pedagógicas das escolas) não são neutros e que “sendo o acesso à educação escolar um direito, é importante assegurar condições de permanência com êxito aos educandos”, na perspectiva da “justiça curricular” e, dessa feita, da “justiça social”. As autoras definem justiça curricular como sendo “uma concepção de currículo que reconheça as diversidades humanas; que se interesse por superar as várias desigualdades mantendo a valorização das diferenças” e, nessa esteira, “que promova um pensar crítico sobre o mundo; que valorize os diversos saberes das diferentes culturas”, comprometendo-se “com um mundo inclusivo, justo e democrático; que não aceite como versão de qualquer fato, uma ‘história única’ [...]” (PONCE; LEITE, 2019, pp. 794-795).

Essa concepção parece-nos importante pois ajuda a situar a relevância do desenvolvimento de atividades escolares que não se limitem aos conteúdos das políticas curriculares, mas abranjam a aprendizagem de conhecimentos sobre cidadania e diversidade, que permitam compreender as desigualdades sociais que atravessam e constituem nossa sociedade e que devem ser abordadas/enfrentadas pelas políticas públicas. Além disso, é fundamental promover acesso a atividades físicas, esportivas e manifestações culturais que permitam aos(às) estudantes ampliarem seus repertórios de compreensão do mundo. Nesse sentido, visando compreender a concepção das famílias sobre essa questão, perguntamos o que os(as) familiares compreendem por escola de tempo integral:

É um projeto para não ficar em casa nem na rua (R2, Escola 1).

Ocupar o tempo livre (R3, Escola 1).

As crianças não ficam na rua. São acolhidas aqui na escola enquanto a gente está trabalhando (R8, Escola 2).

Pra mim como mãe é bom, porque ele fica maior tempo na escola (R9, Escola 2).

Mais aula, mais aprendizagem e mais tempo de estudos. (R12, Escola 2).

Observamos, nas falas desses(as) familiares, duas perspectivas de compreensão da escola em tempo integral. Por um lado, R1, R2, R3 e R9 referem-se à escola como espaço físico para deixar as crianças por mais tempo e, por outro, R12 reconhece o período integral como possibilidade para ampliar a aprendizagem e o tempo dedicado aos estudos. Valorizamos, nesse sentido, a escola em tempo integral, por considerar sua importância na contribuição do acesso à justiça social para muitas crianças e jovens pobres. Contudo, consideramos que a escola em tempo integral não é suficiente no sentido de promover processos educativos de justiça curricular - o que, em nossa perspectiva, demanda uma pedagogia integradora.

Nas palavras de Severo e Zucchetti (2020, p. 15), a pedagogia integradora permite ampliar o tempo e o espaço para além da sala de aula, alargando a compreensão da tradicional função social da escola na perspectiva de compreender os “espaços nos quais a educação escolar se vê em presença de outras instituições de caráter socioeducativo, e que também se alarga, muitas vezes, para uma escola aberta aos finais de semana”, mas não de forma desarticulada, como em geral acontece.

Para o autor e a autora, é preciso que as relações intersetoriais e interinstitucionais ocorram de modo articulado, costurados por meio de uma pedagogia integradora. Ainda, nas palavras de Severo e Zucchetti (2020, p. 15), “uma pedagogia desse tipo e que pressupõe tamanha articulação precisa de uma intencionalidade rigorosa”, o que demanda “não somente o desenvolvimento curricular para além de cisões entre saberes e contextos educativos, mas a emergência de um campo de construção de diálogo, de debate sobre qual escola pública se quer oferecer” (SEVERO; ZUCCHETTI, 2020, p. 15) no contexto de escolas como aquelas às quais nos referimos neste trabalho.

Reconhecemos a importância de a escola em tempo integral funcionar como espaço de proteção social, porém é preciso manter em foco a principal função da escola: sua tarefa educativa. Segundo Biesta, essa tarefa é o que permite a existência de um “ser humano no mundo e com o mundo”, em outros termos, “consiste em despertar no outro ser humano o desejo de querer existir no e com o mundo de uma forma adulta, isto é, como sujeito” (BIESTA, 2020, p. 36). As reflexões do autor sinalizam para a tarefa educativa no âmbito das sociedades democráticas, reconhecendo a necessidade de educar como parte do processo de emancipação e de abertura de possibilidades, o que seria possível por meio de um processo educativo engajado com a transformação social.

Tensões entre as expectativas de familiares e docentes em relação aos sentidos da educação integral

Como argumentado até aqui, a escola é a instituição social responsável por educar em sentido amplo, um espaço de promoção da educação como um direito humano, mas é, também, no caso das famílias em situação de vulnerabilidade social, um local para que crianças e jovens possam ficar em segurança na ausência de seus responsáveis. Ou seja, para as famílias pobres, a escola tem ocupado outras funções para além da tarefa educativa, contexto que traz desafios para pensarmos a escola e sua função social.

No caso das escolas pesquisadas, observamos distinções importantes. Enquanto a Escola 1 é de educação integral e de tempo integral, com matrículas na modalidade de ampliação curricular até 9 horas para todos(as) que desejem, a Escola 2 oferece uma modalidade de ampliação por meio de parcerias, com atividades em tempo integral oportunizadas por meio de vagas de contraturno no Programa Movimentos e Vivências na Educação Integrada (MOVE) da Secretaria de Educação do Município, bem como atendimento no turno contrário de estudantes em projetos socioeducativos em organizações sociais e projetos socioassistenciais governamentais. Essas perspectivas apontam distinções importantes, pois oferecer atividades em período integral na própria escola, como parte do seu PPP, é diferente de propiciar atividades em contraturno em instituições não-escolares.

Do ponto de vista de ocupar os(as) estudantes o dia inteiro e contribuir para que as famílias sintam-se seguras enquanto trabalham, ambas propostas são eficazes; entretanto, ocorre que estamos argumentando por uma pedagogia integradora que se ampara, como já dissemos, na educação como um direito humano básico. Além disso, as atividades na escola são ofertadas para todos(as) os(as) estudantes interessados(as), ao passo que a proposta do MOVE não contempla a todos(as), como indica a preocupação da professora a seguir:

Município não aderiu ao Programa Novo Mais Educação desde 2018. A rede municipal de ensino criou o MOVE e custeia o mesmo [em] parceria com instituições que o município disponibiliza. Porém, me preocupa o número restrito e insuficiente de vagas para tal serviço (P2, Escola 2).

Além disso, no caso do MOVE, que acontece dentro da escola, a ênfase recai no reforço escolar e atende apenas aqueles(as) que demandam, conforme afirma a professora. Nesse caso, a oferta ocorre “a partir de defasagens que identificamos em nossa comunidade escolar” (P2). Esse cenário aponta para a necessidade de oferta de atividades em tempo integral, o que pode ser garantido por meio de ações intersetoriais desenvolvidas localmente para atender as necessidades das comunidades e famílias. Contudo, de nosso ponto de vista, se queremos ofertar educação com qualidade social, mais do que promover atividades em tempo integral, é preciso transformar a escola em um espaço de desenvolvimento de uma pedagogia integradora.

Para Moll e Barcelos (2021, p. 789), a educação integral, implica “[...] a superação do abismo das condições de funcionamento e de acesso ao saber, nas escolas em que estudam os/as filhos/as das diferentes classes sociais”. Ainda de acordo com as autoras, a educação integral implica também “a superação da naturalização do tempo exíguo, das práticas excludentes e dos métodos arcaicos arraigados em nosso sistema educacional”.

Outro ponto que nos parece importante é que, na Escola 2, as atividades desenvolvidas por estudantes durante os projetos educativos de caráter social quase nunca são acompanhadas pela escola, pois a procura por práticas de educação não escolar se dá por parte das famílias, sem qualquer articulação com a escola e sua proposta pedagógica. Por isso acreditamos que quando a oferta da educação integral pela própria escola permite às famílias maior segurança, pois possibilita manter as crianças e jovens em um mesmo espaço.

Compreendemos que essa é uma questão relevante para as famílias. Assim, destacamos que enquanto na Escola 1 as crianças permanecem todos os dias da semana, no mesmo horário, na Escola 2, onde as atividades no contraturno são oferecidas por instituições parceiras, tudo pode mudar a qualquer tempo, por diferentes razões (por exemplo, falta de educadores(as) sociais, que pode impactar na oferta de turno contrário). Outro fator potencialmente dificultador do sistema adotado pela Escola 2 é a necessidade de deslocamento das crianças até as entidades sociais - muitas das quais situam-se distantes da escola - em companhia de adultos(as), os quais nem sempre estão disponíveis, em função do trabalho. Sobre isso, dizem os(as) docentes:

Vantagem de retirar o aluno de estar exposto a riscos (drogas, violência, trabalho infantil). Participarem de atividades musicais e teatro (P4, Escola 1).

Permite que o aluno amplie sua visão e conheça diferentes espaços, contribuindo para uma reflexão acerca do mundo ao seu redor e como se portar e interagir com ele (P8, Escola 2).

Reconhecemos a importância de espaços seguros para crianças e adolescentes em contextos de vulnerabilidade social, mas entendemos que essa não é a função da escola que oferece atividades em tempo integral. Nossa aposta é na oferta da educação integral, na perspectiva defendida por Severo e Zucchetti (2020, p. 12), como um “paradigma formativo”, o que demanda, para o autor e a autora, “diferenciá-la, desde logo, de escola em tempo integral ou jornada ampliada, além de situá-la no contexto de uma sociedade pedagógica, em que as pessoas estão inseridas em múltiplas redes educativas escolares e não escolares” (SEVERO; ZUCCHETTI, 2020, p. 12).

Nessa direção, é interessante pensar que enquanto na Escola 2 as narrativas dos(as) professores(as) são mais orgânicas em relação à importância de uma formação mais integral, na Escola 1 a ênfase recai sobre a consolidação de aprendizagens e a compreensão de conteúdos, como indicam os excertos a seguir.

Os alunos participam de oficinas que auxiliam a aprendizagem (P5, Escola 2).

O aluno tem um tempo maior para consolidar suas aprendizagens (P3, Escola 2).

Apoiar e melhorar a aprendizagem dos alunos que apresentam dificuldades de compreensão dos conteúdos no turno normal. Oportuniza um grande reforço na aprendizagem dos alunos (P4, Escola 2).

Segundo esses excertos dos(as) professores(as), a Escola 2 considera a ampliação do tempo das atividades educativas pela sua importância para a aprendizagem. A fala do(a) professor(a) da Escola 1 aponta para a ampliação do tempo das atividades como algo mais complexo, que permite à escola construir “estratégias para resolução de problemas”, como fica explícito no trecho a seguir.

Permite mais tempo para trabalhar com disciplinas importantes para o desenvolvimento de competências como reflexão, análise e criação de estratégias para resolução de problemas. Obviamente, depende de como essa ampliação de carga horária será trabalhada. Por exemplo, somente ampliar as atividades e exercícios repetitivos não traz qualificação à aprendizagem. Uma outra concepção do que significa mais tempo de escola e de concepção da ampliação do tempo de permanência da criança na escola (P8, Escola 1).

Ao refletirmos sobre as atividades ofertadas pelas duas escolas, observamos que a Escola 1 consegue ter um foco em ações mais integradas, na medida em que não faz reforço escolar, investe em oficinas diversas e na abordagem de questões relativas aos direitos humanos. Já as atividades ofertadas pela Escola 2 estão focadas em oficinas temáticas e no reforço das disciplinas de português e matemática. Os dados analisados das duas escolas pesquisadas ajudam-nos a compreender que a integração das atividades educativas em escolas de tempo integral, na perspectiva de uma pedagogia integradora, ainda se configura como um grande desafio, sobre o qual precisamos refletir.

Considerações Finais

Em ambas as escolas estudadas, os(as) professores(as) referem que processos educativos devem favorecer a escuta dos(as) estudantes, bem como os saberes dos territórios educativos; contudo, é a Escola 1, de educação integral e em tempo integral, que reconhece estar construindo uma nova postura pedagógica com abordagens integradoras: aquelas que permitem integrar as ações, colocando em funcionamento a garantia da educação como um direito. Compreender a educação como um direito, e não como privilégio, significa reconhecer que sua materialidade se dá pela formação por meio da aprendizagem, da permanência e continuidade de estudos, enfatizando a presença de uma comunidade e de trabalhadores(as) da educação que são convocados(as) para impactar o território pela via da escola.

A Educação Integral, para a Escola 1, é definida como uma oportunidade educativa que se materializa pela ampliação de tempos e espaços educativos, realizada pelo compartilhamento da tarefa de educar entre profissionais de educação e de outras áreas, além das famílias e demais atores sociais. Contudo, reforça que estas estratégias devem estar sob a coordenação e gestão da escola porque, desse modo, estariam associadas ao processo de escolarização. A Escola 2 dimensiona a educação integral associada ao tempo integral, isto é, à ampliação da jornada diária com a qualificação do tempo, mesclando a oferta de atividades complementares e acompanhamento individualizado a partir de uma organização curricular nova, com vistas à formação integral. Essa deve considerar a relação dialógica e respeitosa entre os atores e o território ao qual a escola pertence de forma a tecer uma rede de espaços sociais intra e extraescolares.

Concordamos com Severo e Zucchetti (2020, p. 15) que, “na perspectiva da Educação Integral, a sala de aula não é o único espaço de desenvolvimento curricular” e, nesse sentido, “supõe a ressignificação da própria noção de currículo e de aprendizagem sob a crítica às tradições disciplinarizantes que distanciam os saberes escolares da formação ampla pretendida pela escola”. Os autores indicam que essa perspectiva tem como “base [o] propósito de que os(as) estudantes vivenciem experiências significativas de construção de saberes e capacidades práticas orientadas à inclusão e à participação social” (SEVERO; ZUCCHETTI, 2020, p. 15).

Em face disso, nos perguntamos se a pedagogia integradora, uma vez que não se dá pela soma de atividades, mas pela integralidade das ações desenvolvidas, bem como pela intencionalidade dessas ações, do contrário, será apenas ampliação do tempo na escola ou em atividades educativas. No caso da escola de educação integral e em tempo integral a intencionalidade já está na proposta, mas é necessário garantir a qualidade do que é ali oferecido. Quanto aos familiares e responsáveis, é a garantia de escolas de educação integral e em tempo integral que exige uma menor vigilância sobre o direito a aprendizagem. Nosso estudo indica alguns dos desafios para efetivar a implementação de uma pedagogia integradora em nossas escolas, o que demanda esforços no âmbito das políticas públicas de educação integral.

1As outras duas escolas, também de ensino fundamental, estão localizadas nas regiões de Campos de cima da Serra e das Hortênsias, na serra gaúcha. O período da pandemia prejudicou a coleta de dados nessas instituições, prevista para o ano de 2021. Em 2022 foram realizadas aproximações com o campo empírico, retomando o estudo.

2Juntaram-se para a elaboração do projeto da escola um grupo de educadoras que desempenhavam, à época, a função de supervisoras de algumas escolas municipais. Portando, a proposta pedagógica agregava muitas das reflexões que o grupo produzia a partir da experiência da supervisão, de modo que a organização curricular, a qualificação da formação dos professores, a participação da comunidade escolar e comunidade local nos espaços de construção, organização e deliberação da escola já alinhavam uma proposta de educação integral e em tempo integral.

3O ROVE é um espaço integrado, on line, para o registro de ocorrências no âmbito escolar e em seu entorno. Foi desenvolvido a partir de um instrumento adaptado segundo as necessidades do Observatório, da Secretaria de Educação e das Escolas dando visibilidade a informações antes restritas às escolas. Ver https://www.sphinxbrasil.com/assets/files/arquivos/ROVE_no_blog.pdf Acesso em: 27 de out. de 2021.

4A denominação Vila Palmeira remete à origem da maioria de seus moradores, oriundos de Palmeira das Missões, cidade situada no oeste do estado do Rio Grande do Sul. Na grande maioria, os moradores migraram em busca de trabalho no setor coureiro-calçadista, organizando-se nesse território, onde construíram suas moradias de tipo sub habitações em quadras desenhadas por eles mesmos. Os becos e ruas sem saída ajudam a causar uma sensação de insegurança no local, assim como o descontínuo traçado viário, que reforça a pouca integração com o conjunto da cidade.

5Cabe destacar, mesmo que não seja esse o foco de nossa discussão neste artigo, que essa situação foi intensificada nos dois últimos anos como efeito da pandemia de COVID-19, segundo dados do Censo Escolar da Educação Básica nos anos de 2020 e 2021 (BRASIL, 2021; 2022).

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Recebido: 15 de Dezembro de 2022; Aceito: 15 de Fevereiro de 2023

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Doutora em Educação (UFRGS). Professora titular do Programa de Pós-graduação em Diversidade Cultural e Inclusão Social da Universidade Feevale. Novo Hamburgo, Rio Grande do Sul, Brasil. E-mail: dinora@feevale.br

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Doutora em Educação (UFRGS). Professora do Centro de Educação da Universidade Federal de Alagoas. Maceió, Alagoas, Brasil. E-mail: jeane.silva@cedu.ufal.br

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