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Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade

Print version ISSN 0104-7043On-line version ISSN 2358-0194

Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade vol.32 no.70 Salvador Apr./June 2023  Epub Aug 29, 2023

https://doi.org/10.21879/faeeba2358-0194.2023.v32.n70.p214-232 

Artigos

A DIMENSÃO AFETIVA NA FORMAÇÃO INTEGRADA DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL

THE AFFECTIVE DIMENSION IN THE INTEGRATED TRAINING OF PROFESSIONAL EDUCATION

LA DIMENSIÓN AFECTIVA EN LA FORMACIÓN INTEGRAL DE LA EDUCACIÓN PROFESIONAL

1Universidade Federal de Sergipe/ Instituto Federal da Bahia

2Universidade Federal de Sergipe


RESUMO

O debate sobre a Educação Integral tem sido cada vez mais recorrente entre as pesquisas e produções científicas em educação. No ensino profissional, no entanto, ainda é um tema que merece análises mais ampliadas, sobretudo no que diz respeito à compreensão da dimensão afetiva. Neste artigo propomos entender a importância dos afetos na (re)construção do princípio da integralidade do Ensino Médio, que não se dá fora do entendimento da concepção de homem, do lugar que ele ocupa na natureza e das suas relações, sobretudo com o conhecimento. No campo metodológico optamos pela produção de dados a partir da investigação qualitativa, utilizando de análise documental e de revisão bibliográfica. O texto busca aproximações com a teoria dos afetos espinosana e se ampara nas recentes reformas da educação nacional para dialogar com a formação integrada. As discussões realizadas indicam contradições na política educacional que ameaçam a continuidade desta forma de ensino, mas, também, apontam para fragilidades antigas na compreensão acerca da dimensão afetiva, dificultando a ampliação do princípio da integralidade na Educação Profissional.

Palavras-chave: educação básica; educação profissional; formação integrada; afetos

ABSTRACT

The debate on Integral Education has been increasingly recurrent among research and scientific production in education. In professional education, however, it is still a topic that deserves further analysis, especially with regard to understanding the affective dimension. In this article we propose to understand the importance of affections in the (re)construction of the principle of integrality in High School, which does not take place outside the understanding of the conception of man, the place he occupies in nature and his relations, above all, with the knowledge. In the methodological field, we opted for the production of data from qualitative research, using document analysis and bibliographic review. The text seeks approximations with Spinoza’s theory of affects and is supported by recent reforms of national education to dialogue with integrated training. The discussions carried out contradictions in the educational policy that threatens the continuity of this form of teaching, but also point to old weaknesses in the understanding of the affective dimension, making it difficult to expand the principle of integrality in Professional Education.

Keywords: basic eucation; professional education; integrated training; affections

RESUMEN

El debate sobre la Educación Integral ha sido cada vez más recurrente entre la investigación y la producción científica en educación. En la formación profesional, sin embargo, sigue siendo un tema que merece mayor análisis, especialmente en lo que se refiere a la comprensión de la dimensión afectiva. En este artículo nos proponemos comprender la importancia de los afectos en la (re)construcción del principio de integralidad de la educación secundaria, que no se da fuera de la comprensión de la concepción del hombre, el lugar que ocupa en la naturaleza y sus relaciones, sobre todo, con el conocimiento. En el campo metodológico, se optó por la producción de datos a partir de la investigación cualitativa, utilizando el análisis documental y la revisión bibliográfica. El texto busca aproximaciones con la teoría de los afectos de Spinoza y se sustenta en recientes reformas de la educación nacional para dialogar con la formación integrada. Las discusiones realizadas apuntan contradicciones en la política educativa que amenazan la continuidad de esta forma de enseñanza, pero también señalan antiguas debilidades en la comprensión de la dimensión afectiva, dificultando la expansión del principio de integralidad en la Educación Profesional.

Palabras clave: eucación básica; educación profesional; formación integrada; afectos

Introdução1

A Educação Integral, apesar de ser objeto cada vez mais recorrente entre as discussões e produções científicas da pedagogia contemporânea, ainda encontra grandes percalços na elaboração e implementação de políticas educacionais. Quando trazemos a questão para o ensino médio, constatamos ainda maior fragilidade, seja na proposição do tempo integral, seja nas propostas pedagógico-curriculares orientadas por uma Pedagogia Integradora.

No campo das políticas públicas educacionais recentes podemos sinalizar para o Plano Nacional de Educação - PNE (2014-2024), que traz em duas metas estratégicas o compromisso com a Educação Integral. A meta seis refere-se ao compromisso de ofertar educação em tempo integral a, pelo menos, 50% das escolas públicas, e a meta dez compromete-se a ofertar, no mínimo, 25% de matrículas para o ensino fundamental e médio de forma integrada à educação profissional de jovens e adultos (BRASIL, 2014).

Apesar de as metas do PNE sinalizarem para a Educação Integral, o cenário geral é de ausência de programas sólidos que favoreçam seu desenvolvimento. O que observamos é que o governo de Luís Inácio Lula da Silva ainda tem delegado a responsabilidade aos estados e municípios, cujo foco se encontra na adequação dos currículos escolares à Base Nacional Comum Curricular (BNCC).

No que diz respeito à Educação Integral para o ensino profissional, desenvolvido na última etapa da educação básica, está em vigor o programa de Ensino Médio em Tempo Integral (EMTI), criado pela Portaria de º 1.145/2016,2 cujas diretrizes são pouco claras acerca da proposta pedagógica, trazendo apenas a necessidade de contemplar a BNCC, ofertar os itinerários formativos e ampliar a jornada escolar como diretrizes principais. Neste trabalho, porém, vamos nos debruçar sobre o princípio da integralidade presente na proposta político-pedagógica dos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia (IFs)3 que ofertam o Ensino Médio Integrado (EMI), cuja concepção se distancia bastante da ideia dos itinerários formativos, mas que de alguma forma tem sido impactado pelas últimas políticas adotadas para reestruturação do Ensino Médio (EM).

Ainda que saibamos que muito já se produziu sobre as fragilidades das práticas tradicionais dissociadas da complexidade humana e das demandas sociais dos sujeitos nos processos formativos, defendemos que continua existindo uma lacuna acerca da compreensão do papel dos afetos nos processos de construção da intelectualidade e da expressão sociopolítica dos estudantes.

Quando trazemos tal questão para o âmbito do EMI da Educação Profissional Técnica de Nível Médio (EPTNM), desenvolvida pela Rede Federal, percebemos ainda maior importância de provocar esse debate, porquanto a construção histórica dessa modalidade de ensino se dá, mormente, sobre o embate entre formação escolar, os interesses do capital e as demandas do mercado de trabalho.

É importante que se diga que este artigo se trata de um recorte realizado sobre uma pesquisa para tese de doutoramento4 em um programa de Pós-Graduação em Educação. Alertamos, inclusive, que o levantamento realizado sobre os afetos no EMI nos revela haver poucas pesquisas dedicadas ao tema. No nível stricto sensu da área da Educação, por exemplo, somente foi encontrada a dissertação de mestrado de Iabel (2014), que aborda a questão afetiva pela ótica docente.

Dessa forma, questionamos qual seria o papel dos afetos em um paradigma formativo de perspectiva integradora na educação profissional? Partindo dessa pergunta propomos pensarmos juntos sobre o tema, estabelecendo como objetivo central entender a importância dos afetos na (re)construção do princípio da integralidade do EMI, que não se dá fora do entendimento da concepção de homem, do lugar que ele ocupa na natureza e das suas relações, sobretudo com o conhecimento.

Intencionamos, assim, contribuir para a ampliação do debate acerca da Educação Integral e da Pedagogia Integradora, cujo sentido se encontra menos nos processos compartimentados dos projetos e currículos escolares que na articulação de formas orgânicas e dinâmicas desenvolvidas na sala de aula (SEVERO; ZUCCHETTI, 2020).

Há na contemporaneidade certo consenso entre pesquisadores e educadores sobre a necessidade da adoção da perspectiva formativa alicerçada na Educação Integral, sendo possível afirmar que, a despeito das lutas pela implementação e visibilidade já desenvolvidas, muito há para se avançar. Não tem sido diferente, portanto, a concretização desse desafio na oferta do Ensino Médio Integrado5 dos IFs.

Ao levarmos em consideração, inclusive, a existência de inúmeras pesquisas que retratam dificuldades na operacionalização dessa proposição integradora da Rede Federal de Educação Científica, Profissional e Tecnológica (RFEPCT), seja na alternativa para integração entre ensino técnico e propedêutico, seja entre os diferentes níveis e modalidades de ensino, seja na busca pela formação integralizante das distintas dimensões do sujeito, ou mesmo na perspectiva inclusiva social, ou ainda na organização em tempo integral, identificamos a amplitude e complexidade da proposta da Educação Integral nessa modalidade de ensino. Sobretudo ao percebermos que os documentos oficiais da rede de ensino em questão indicam que os afetos ainda são compreendidos como apêndices da razão ou encontram-se reduzidos ao aprimoramento de comportamentos socioemocionais, como preconizado pela atual Base Nacional Comum Curricular (BNCC).

Para a produção de dados deste artigo optamos pela investigação qualitativa a partir da utilização da análise documental e da revisão bibliográfica. Quanto à organização, distinguimos três momentos. Primeiro iniciaremos trazendo a fundamentação epistemológica em aproximação com a teoria espinosana. Em seguida, faremos um breve resgate acerca do binarismo mente e corpo, a fim de entendermos o princípio dicotômico sobre o qual se erigiu o pensamento moderno, mais especificamente na educação profissional, e que ainda sustenta as propostas transformadoras para esta modalidade. Tudo isso para, por fim, dialogar com alguns referenciais da atual política educacional para esta modalidade de ensino, de maneira que ampliemos a compreensão acerca da formação integrada no EMI.

A inspiração da Ética6 espinosana: reposicionamento dos afetos e a Educação Integral

Neste tópico buscaremos analisar a contribuição da teoria dos afetos para os processos educacionais, tendo em vista a possibilidade de redimensionamentos sobre as bases humanísticas para a ampliação da compreensão do princípio da integralidade para essa modalidade de ensino.

A princípio precisamos esclarecer o conceito de afetos de cunho espinosano,7 sobre o qual nos fundamentamos para promover nossas discussões, pelo que entendemos os efeitos resultantes dos encontros entre os corpos, com suas marcas sensíveis (afecções) e com a ideia que a nossa mente faz dessas mesmas marcas (afetos), ou seja, afetos são leituras que realizamos sobre o que ficou registrado dos outros corpos em nós, considerando estes como todas as coisas existentes, com as quais mantemos algum tipo de relação.

Os afetos, como resultado das nossas elaborações mentais acerca das experiências corpóreas, corroboram a ideia de que não existe pensamento fora do exercício do corpo ou fora do contato entre os corpos. Tudo o que existe na natureza é resultado de relações e movimentos intercorpóreos, sobre os quais não temos qualquer controle: “a verdade nunca é o produto de uma boa vontade prévia, mas o resultado de uma violência sobre o pensamento [...]”. (DELEUZE, 2003, p. 15). O que significa dizer que não somos capazes de nos antecipar às contingências dos encontros, temos limitações quanto ao que nos sobrevirá, seja no campo afetivo, seja no campo das ideias.

Segundo esse princípio de composição, os corpos se modificam mutuamente quando se encontram, revelando o dinamismo e a indeterminação da existência. Todos os corpos em um único plano de vida, regidos pelas mesmas lei da natureza, afetam-se e são afetados.

Quando corpos quaisquer, de grandeza igual ou diferente, são forçados, por outros corpos, a se justaporem, ou se, numa outra hipótese, eles se movem, seja com o mesmo grau, seja com graus diferentes de velocidade, de maneira a transmitirem seu movimento uns aos outros segundo uma proporção definida, diremos que esses corpos estão unidos entre si, e que, juntos compõem um só corpo ou indivíduo, que se distingue dos outros por essa união de corpos. (ESPINOSA, 2020, p. 64).

A partir dessa compreensão de imbricamento produtivo entre razão e paixão,8 pensar e sentir são resultados dos impactos que nos sobrevém. Pensamos através do que experimentamos sensivelmente e essa experiência não se dá em isolamento. Dito isso, temos dois pontos importantes a tratar. O primeiro é a compreensão que Espinosa inaugura acerca das paixões. Ao afastar a paixão do antagonismo à razão, o filósofo alarga o entendimento acerca da existência e da atividade das coisas no mundo. Em lugar de alijada ou subjugada, a paixão é realocada para o mesmo plano da razão em compatibilidade de potência e importância na natureza.

[...] a mente e o corpo são uma só e mesma coisa, a qual é concebida ora sob o atributo do pensamento, ora sob o da extensão. Disso resulta que a ordem ou a concatenação das coisas é uma só, quer se conceba a natureza sob um daqueles atributos, quer sob o outro e, consequentemente que a ordem das ações e das paixões de nosso corpo é simultânea, em natureza, à ordem das ações e das paixões da mente. (ESPINOSA, 2020, p. 100).

Esse realocamento da paixão/afetos pela compreensão da realidade espinosana ocorre dentro da ideia de paralelismo, conceito fundamentado sobre a ideia de que alma e corpo são dimensões distintas, mas oriundas da mesma substância9 produtiva, apesar de manifestas por diferentes atributos desta (DELEUZE, 2017).

As paixões, então, retiradas da perspectiva da vulnerabilidade humana, são as forças que evidenciam maneiras de como reagimos à ação dos corpos externos. “Assim, por alegria compreenderei, daqui por diante, uma paixão pela qual a mente passa a uma perfeição maior. Por tristeza, em troca, compreenderei uma paixão pela qual a mente passa a uma perfeição menor.” (ESPINOSA, 2020, p. 107). Basicamente, essas forças distribuem-se em afetos de alegria ou de tristeza que produzirão, respectivamente, atividade ou passividade.

Nos processos de produção da existência não se pode esperar, contudo, que a mente consiga frear as paixões. O intelecto não tem poder para transformar a tristeza em alegria e assim superar a passividade dos sujeitos. Assim como as paixões não são capazes de nos levar à superação da imaginação, do pensamento enganoso. “A razão, ou a ideia verdadeira, não pode nos levar à mudança da paixão para a ação. A paixão só é vencida por outra paixão mais forte e contrária.” (CHAUÍ, 2019). Isso porque os afetos têm capacidade de aumentar ou diminuir nossa potência e nos colocar em atividade, mas de forma alguma podem sozinhos nos levar a produzir pensamentos próprios.

Percebamos, assim, que a regência dos afetos nos apresenta a alegria como o único caminho condutor para a existência ativa de si, aquela que pode direcionar à perfeição à medida que dialoga com a produção do pensamento.

O outro ponto, que nos interessa de forma específica nesta discussão, diz respeito à relação do ser humano com o conhecimento. Em vez de o colocar sobre o objeto, ou mesmo de compreender esse processo pela ótica de um jogo entre contrários, onde residem desequilíbrio e categorização, os quais estariam ordenados pelo paradigma da prevalência do ser humano sobre a natureza, partimos do entendimento da imanência10 entre formas e forças, entre conteúdo e ação.

Baseadas na imanência, tomamos o pensamento para além da atividade cognitiva, reconhecendo que a produção de conhecimento não se dá por pura ação da razão. Não basta ser humano para elaborar pensamento, é necessário criar maneiras próprias de pensar. Para Espinosa (2020), somente alcançando o terceiro gênero do conhecimento11 seremos capazes de produzir ideias adequadas, ou seja, pensamentos pelo uso rigoroso da razão e desprendidos do engano. Esse rompimento servil só é possível a partir do “método da correção do intelecto”, que corresponde ao uso máximo da nossa potência para investigar e entender o que seja uma ideia verdadeira, diferenciando-a das demais percepções através de análises das causas na natureza (ESPINOSA, 2015, p. 47).

Quando a teoria dos afetos nos impulsiona a pensar sobre a posição não hierárquica das coisas na natureza, e, dentro desta perspectiva, a relação humana com o conhecimento, logo somos impelidos a analisar o projeto dominante de educação que temos, no qual os processos de aprender se desenvolvem por meio do ideal estruturado de racionalidade moderno.

Dessa forma, ponderamos que o sentido mais amplo do aprendizado necessita extrapolar o estado de representação da consciência, o qual o reduz à atividade intelectiva. A consciência estará livre da rigidez quando for capaz de entender a origem e o modo de ação dos afetos no corpo. Esse estado de atividade, contudo, não se dará fora da composição com os corpos que se dão a conhecer, pois os movimentos de autopreservação e de ampliação de si partem do esforço da própria existência como condição vital (DELEUZE, 2003). Notemos que o esforço aqui se deriva do conceito de conatus,12 ampliando a concepção de exercício realizado pela mente de se apropriar de um objeto para o entendimento de um exercício de corpo/mente para ser, agir e existir.

O primeiro passo talvez seja superarmos a supressão das paixões, compreendê-las pela capacidade mobilizadora e intermediadora das relações. Como sede da imaginação elas são força produtiva, “A imaginação é fisicidade que acede a inteligência, o corpo que se constitui em mente” (NEGRI, 2018, p. 375-376), a partir de um movimento orgânico, iniciado no âmbito sensível e que pode nos encaminhar para o entendimento das causas e dos efeitos em nossos corpos interconectados até o alcance da nossa máxima potência.

Isso quer dizer que somente chegaremos ao pleno uso da razão quando entendermos como funcionam afetos e intelecto, esse é o caminho em direção à liberdade. Seremos sempre mais livres à medida que agirmos em conformidade com nossa própria cognoscência, nos desvencilhando de imagens externas à medida que pensamos sobre os próprios afetos e temos ideias adequadas sobre estes, longe da representação comum, mas em atividade produtiva.

Pensar em Educação Integral amparada pela teoria dos afetos é se projetar para além do indivíduo, é propor um processo formativo em respeito aos corpos na coletividade. Ao considerarmos a premissa da alegria como fonte de ampliação das potências e como resultado da composição intercorpórea e intersubjetiva, percebemos que o princípio da integralidade não deve negar as segmentaridades, mas operar na perspectiva inclusiva. Somos, sim, atravessados por distintos segmentos, seja classe, gênero, raça etc. “Somos segmentarizados por todos os lados e em todas as direções. O homem é um animal segmentário.” (DELEUZE; GUATTARI, 1996, p. 87). Isso, contudo, não nos faz antagônicos, apenas diferentes, e as diferenças não devem ser alvo de padronização, o que as extinguiria, ou mesmo ter suas formas endurecidas, o que as segregaria. Aliás, ambos os movimentos são muito comuns quando se trata da dinâmica das instituições sociais.

Discutir uma proposta de formação integral para a educação profissional a partir da compreensão da Ética dos afetos é, também, avançar sobre velhas certezas que circundam a realidade, pois a perspectiva de imanência corrobora o rompimento com padrões já estabelecidos. Uma instituição escolar, que de fato reconhece as diferenças, organiza seu projeto de educação direcionando seu olhar para abarcar a realidade como um grande encontro orgânico, repleto de multiplicidades, conexões e potências.

Podemos afirmar, doravante, que, quando o princípio de integralidade se encontra fundamentado nos afetos como coadjuvante da razão, este se revela um equívoco permeado de reais intencionalidades. Enquanto certas políticas educacionais, por exemplo, chancelam a concepção dos afetos pela ótica da moldagem de comportamentos, cujo objetivo é adequar o estudante aos ambientes sociais, a Ética espinosana os concebe como fontes de potência que unem e fortalecem corpos coletivos contra os perigos da existência, cujo impacto se dá tanto sobre os processos do aprendizado quanto na formação sociopolítica dos estudantes.

Se para alguns a razão é o requisito suficiente para frear as paixões e construir o homem político em direção à virtuosidade, em Espinosa a desnaturalização das paixões nos leva ao entendimento de que a racionalidade quando dirigida por fins determinados não passam de manifestação de obediência às normas externas (CHAUÍ, 2003). A virtude é o próprio agir ético, não uma meta a ser alcançada. Nesse sentido, podemos dizer que o conatus se integra pela ética individual na constituição de um corpo político13 ético coletivo, no qual as potências se reúnem na composição de um sistema que se propõe em face da valorização dos corpos como prática de liberdade e de encontro ao domínio institucionalizado vigente.

Dessas relações estabelecidas na constituição do corpo coletivo em Espinosa podemos extrair duas situações básicas que podem nos ajudar a pensar sobre os processos educacionais, em especial na proposta de uma Pedagogia Integradora. A primeira nos diz que “Não há mais sujeito, mas apenas estados afetivos individuantes da força anônima.” (DELEUZE, 2002, p. 133). Assim, admitimos que como efeito da potência produtiva somos, também, causa de potências da natureza, ou seja, não existimos individualmente, posto que o conatus está condicionado aos encontros. Logo, todo processo de formação necessita ser pautado em um entendimento coletivo de afetos.

A outra situação corresponde à instabilidade dos afetos na nossa relação com as coisas.

Como, entretanto, ocorre, geralmente, que aqueles que experimentaram muitas coisas, ao considerarem uma coisa como futura ou como passada, ficam indecisos e têm, muitas vezes, dúvidas sobre a sua realização, o resultado é que os afetos que provêm de imagens como essas não são tão estáveis, mas ficam, geralmente, perturbados pelas imagens de outras coisas, até que os homens se tomem mais seguros da realização da coisa em questão. (ESPINOSA, 2020, p. 112).

Estar preso afetivamente é se deixar dominar pela imaginação, conceber a realidade através dos efeitos das relações, que determinam e limitam o conhecimento das coisas. Esse estado de condicionamento e de insegurança, inclusive, promove a construção de corpos políticos suscetíveis ao poder legitimado e instituído.

Dessa maneira, destacamos o campo afetivo na dimensão histórico-política da formação escolarizada como base para as relações assimétricas, que produzem e reproduzem desigualdades e que contribuem para a manutenção do que Safatle (2016) conceitua como “circuito de afetos doentio”, estado em que os indivíduos e grupos se constroem sob corpos políticos frágeis, dependentes das figuras de autoridade, cuja concepção de poder se naturaliza sob o padrão dominação/servidão.

Dentro dessa realidade, esse autor apresenta as estruturas fantasmagóricas paternas e teológico-políticas ocidentais que vão nos conduzir na busca por soberanos ou instituições para preencher tal vazio. Seja através das paixões tristes ou alegres, o consentimento de controle e domínio sobre os nossos corpos se deve à condição subalterna em que nos encontramos quando imaginamos estar sob o poder de um superior.

É possível dizer que o poder nos melancoliza e é dessa forma que ele nos submete. Essa é sua verdadeira violência, muito mais do que os mecanismos clássicos de coerção e dominação pela força, pois trata-se aqui de violência de uma regulação social que leva o Eu a acusar a si mesmo em sua própria vulnerabilidade e a paralisar sua capacidade de ação. (SAFATLE, 2016, p. 64).

A assertiva nos leva ao entendimento acerca da égide das relações de dominação sobre os corpos concentradas nas questões afetivas, que, por sua vez, estruturaram a construção do sujeito e suas relações sociais em um circuito de afetos dependente, mantenedor das desigualdades e repetidor dos padrões de autoridade. Assim, podemos dizer que os afetos se consolidam em ponto importante de análise e ação visando a transformação dos corpos políticos dos estudantes.

A partir disso, convém pensarmos sobre a contribuição da teoria dos afetos para a concepção acerca da Educação Integral, assim como faz-se fundamental repensarmos sobre o que seja o papel social da escola e dos(as) educadores(as) para a formação desses corpos éticos e políticos.

Outrossim, admitimos que tanto as instituições escolares quanto os docentes podem ocupar o lugar da figura de autoridade e manter, assim, um circuito de afetos para produção de corpos vulneráveis, como podem, também, corroborar para a transformação desse panorama.

Os primeiros servem a tirania porque também desejam tiranizar - cúmplices e aduladores do poder, se-entredevoram, fazendo da subserviência e da arrogância molas de sua precária autoridade. Os dominados, porém, servem porque se sabem impotentes diante da força tirânica, multiplicada pelos tiranetes. Sem dúvida, diz La Boétie, não podeis combater o tirano. Mas não é preciso que luteis contra ele: basta não lhe dar o que vos pede, deixá-lo enfraquecer por falta de vosso sangue (CHAUÍ, 2014, p. 106, grifo nosso).

Quando a escola e os educadores vão de encontro ao fortalecimento do corpo político dominante, já se revela um importante passo em favorecimento da liberdade. Educar para corroborar a potência máxima dos estudantes, portanto, requer um desprendimento das estruturas moralizantes e demais estratos rígidos presentes em nossos projetos e ações educativas. Implica abandonarmos a posição de “tiranetes” para, a partir disso, experimentarmos a integralidade, incorporando os afetos como potência individual/coletiva para um viver ético produtivo, longe da conformação e não limitado à reprodução da realidade.

Diante de tal postura, o enfraquecimento do domínio sobre os corpos dependeria menos da ação externa da escola e de seus profissionais do que do próprio exercício afetivo dos estudantes. Talvez, dos primeiros se espere a criação de espaços que possibilitem encontros, vivências e experimentações, nos quais os fluxos das potências possam percorrer livremente através dos segmentos institucionalizados.

Ao reconhecermos, assim, que toda relação é sempre atravessada pelo campo afetivo, reafirmamos a força produtiva do ser como alavanca que impulsiona o princípio de integralidade nas múltiplas composições da Educação. “[...] a produção é então imediatamente constituição - e a constituição é a forma na qual a força produtiva revela o ser.” (NEGRI, 2018, p. 374). Para além dos dualismos que separam a força produtiva do ser da sua própria produção, a tese da imanência espinosana fundamenta nossa constituição ontológica pela ação produtiva ilimitada. Existimos enquanto potência que produz, seja pela capacidade corpórea, intelectiva ou política, tanto mais produzimos quanto maiores e mais diversos sejam os nossos encontros.

Isso significa dizer que uma educação que se proponha integral precisa alargar sua compreensão acerca dos afetos, seu papel na constituição, nas relações e nos movimentos dos corpos na natureza. O que implica revisitar o projeto moderno de formação humana, que ainda sustenta o paradigma dicotômico como visão estruturante de realidade.

O problema mente-corpo na modernidade

Para melhor compreendermos alguns fundamentos que sustentam a lógica binária acerca do saber manual e do saber intelectual que circunda a educação profissional ao longo dos séculos, e que tem ocupado o centro dos debates no país até os dias atuais, faz-se necessário relembrarmos o endossamento das formas estratificadas do processo técnico-laboral para entendermos o problema epistêmico mentecorpo da modernidade.

As transformações técnicas, econômicas, políticas e sociais da era moderna sinalizam para o desencantamento do mundo e inauguram novos modos de produção e de relações de trabalho que, por sua vez, fortalecem a concepção de tipos superiores e tipos inferiores de profissões. Nestas últimas se enquadram os ofícios ligados aos afazeres manuais (CAMBI, 1999; LE GOFF, 2013).

Se as transformações nas relações de trabalho contribuem para a hierarquização de fazeres e saberes, a teologia-metafísica ajuda a construção da visão bipartida de homem e, consequentemente, dicotomiza sua relação com o mundo e com o conhecimento. “A teologia é uma teoria da alienação, funcional para o poder: dualismo sempre como função do poder, como linha de legitimação do comando, como separação da relação de produção e da força produtiva.” (NEGRI, 2018, p. 378). Essa crítica se aplica a toda compreensão que se reflete em uma visão transcendental da realidade e sinaliza para um importante ponto de partida da filosofia espinosana rumo à tese da produção intersubjetiva de natureza.

A centralização da figura do homem emergida do rompimento com a organização do medievo, certamente, solidifica a segmentaridade, pois entende que a existência das realidades objetiva e subjetiva tem origem na presença de duas substâncias distintas, uma correspondente a um plano transcendente e outra a um plano físico. Dessa forma, conserva-se o ser humano sob o domínio do “invisível”, apesar de o colocar no topo da natureza. Sobre este fundamento reside a ideia da separação entre mente e corpo.

No plano transcendente habitaria o desconhecido, o imaterial, o inacessível, “A causa que produz um efeito e se separa dele, de sorte que depois da ação causal há dois seres independentes (causa e efeito) e sem ligação, cada qual com sua vida própria [...].” (CHAUÍ, 1995, p. 105). Se reside no imaterial a origem das coisas, das quais só conheceríamos os efeitos, logo o domínio e a supremacia estão atribuídos à razão, que passa a ser o elemento mais importante do que se considera “natureza humana”, tendo em vista que dentre os animais somente o homem a possui. Nesta visão, corpo e mente, portanto, apresentam-se como resultado das diferentes substâncias, em que o primeiro elemento, considerado inferior, precisa ser dominado, sob o risco de atrapalhar o pleno alcance do segundo.

A partir disso, o Ocidente estrutura a relação do homem com o conhecimento a partir da ideia de consciência sob a lógica da representação, na qual repousa o entendimento da prevalência do sujeito sobre o objeto. Por esse princípio, o conhecimento se dá pela apreensão da verdade através do exercício da razão, estabelecendo a ideia de verdade a partir da imagem que a mente constrói sobre aquilo que observa.

Tal questão nos faz perceber a razão como uma das máquinas moventes da engrenagem moderna. No campo sociopolítico suporta a ideia do Estado laico racional e institucionalizado, centralizador e controlador, enquanto no campo ideológico-cultural, seu livre uso garante a liberdade e o progresso humano, bem como sua atividade em sociedade (CAMBI, 1999). O domínio racional compreende, nessa perspectiva, o trânsito do mundo laicizado à emancipação das mentalidades sobre os dogmas em direção à autonomia e à liberdade. Nesse sentido, a escola se estabelece pela incumbência de organizar os saberes e educar as massas para se desvencilhar dos laços mítico-religiosos e “libertar” o sujeito de coerções.

Em primeira análise não haveria problema algum admitir como algo positivo a valorização da razão. Ao situá-la em uma estrutura hierarquizada, no entanto, condicionamo-la à eterna busca pelo aperfeiçoamento fora do próprio plano de existência, condição favorável ao desenvolvimento de subjetividades pelo parâmetro da moralidade e do favorecimento de modos de vida passivos e dependentes das figuras de autoridade.

Uma segunda questão, não menos importante, que precisa ser superada dentro desse princípio classificatório, é o entendimento da mente como máquina reguladora que tem capacidade e necessidade de dominar os corpos e os afetos, secundarizando-os.

Percebamos, outrossim, que, ao fortalecer uma estrutura hierárquica, erguem-se agências de controle que operam através de mecanismos de combate frágeis, cuja ação pode até modificar, mas nunca transformar a realidade. Na educação profissional, por exemplo, chamamos atenção para a proposta da formação integrada como um desses mecanismos, que muito embora se apresente disruptivo, não supera os dualismos.

Enveredar por uma proposta integradora de educação pelos moldes da modernidade, portanto, é permanecer corroborando com a mesma lógica, que aponta para a integralidade como alternativa de superação do dualismo do qual se alimenta invariavelmente.

Ratificamos, no entanto, que o problema não se encontra na existência das diferenças, mas na sobreposição de formas que se impõem, que alimentam antagonismos e que justificam um cenário rígido estratificado, com isso ignorando as forças que atuam entre o legitimado, o reconhecido e o institucionalizado. É por entre as brechas que correm os fluxos, pelos quais se dão as mudanças.

Quando os fundamentos epistemológicos estão definidos sobre uma visão dualista de mundo, é preciso ir além da junção de saberes intelectuais e saberes técnicos em uma única formação para superar os antagonismos. O dualismo que surge da realidade classificatória e valorativa dos segmentos os enrijece, criando segregações. Talvez, a questão esteja menos na simples reunião de saberes distintos do que na compreensão de que não há conhecimento que não parta da experiência sensível. Acreditamos, por consequência, que seja frágil uma proposta integradora que parta da ideia bipartida entre dimensão afetiva e dimensão racional.

Se a Pedagogia Integradora pode acontecer fora da política instituída, dificilmente a superação da perspectiva dual possa ocorrer a partir da concepção de mundo categorizada e da ideia de desequilíbrio entre a potência da mente e a potência do corpo. Nesse sentido, entendemos que a teoria dos afetos se faz fundamental aporte para o debate sobre o princípio da integralidade na Educação Profissional (EP). Antes, contudo, faz-se necessário compreendermos como a RFEPCT situa os afetos dentro da sua proposta de Educação Integral.

O lugar dos afetos no ensino médio integrado da rede federal

Neste tópico vamos abordar a consolidação do Ensino Médio Integrado como política educacional para superação da dualidade histórica na educação profissional nacional, buscando identificar qual o papel destinado aos afetos nessa proposição.

Podemos dizer que a educação profissional como modalidade de ensino na Lei de Diretrizes e Bases, Lei nº 9.394/1996 (BRASIL, 1996), surge como um arremedo. Se por um lado há que se considerar uma conquista a presença de capítulo específico da EP na lei maior da educação, por outro ponto se refuta a maneira ambígua como apresenta aquilo que seria seu maior avanço, a saber, a regulação da oferta da forma integrada no ensino médio. A formação integrada, que surge da premissa da superação do distanciamento entre formação propedêutica e técnica, emerge na letra da lei como apenas uma das alternativas de oferta, ao lado das formas subsequente e concomitante.

A fragilidade da legislação corrobora para que o Decreto nº 2.208/1997 (BRASIL, 1997) reduza a formação profissional técnica em nível médio a formas concomitante e subsequente. Fato, que endossa ainda mais a discussão acerca da dualidade estrutural: formação para a elite e formação para o trabalhador. E, ainda que o Decreto nº 5.154/2004 (BRASIL, 2004) não tenha revertido completamente essa decisão, garante o EMI, fazendo com que permaneçam em cena as três formas de oferta, anunciadas anteriormente pela LDB. A implementação do EMI, contudo, só acontece de fato com o processo de ifetização14 da rede federal.

A concepção acerca da formação integrada na referida rede15 é ambiciosa e complexa, engloba em si a articulação da educação profissional aos diferentes níveis e modalidades de ensino; associação da educação às dimensões do trabalho, ciência e tecnologia e formação integradora para as distintas dimensões, experiências e saberes humanos. Vamos, contudo, destacar alguns aspectos que denotam algumas fragilidades e que dificultam o fundamento da Educação Integral e a operacionalização de uma Pedagogia Integradora, sobretudo pela negligência para com o campo afetivo.

A começar pela incompatibilidade na política nacional acerca da adoção do sentido do trabalho como princípio educativo16 para a formação integral na EP. Na LDB não há clareza sobre qual preparação para o trabalho se refere a proposta da educação profissional desenvolvida em nível médio: “A preparação geral para o trabalho e, facultativamente, a habilitação profissional poderão ser desenvolvidas nos próprios estabelecimentos de ensino médio ou em cooperação com instituições especializadas em educação profissional.” (BRASIL, 1996). Já as Concepções e Diretrizes que fundamentam a criação dos IFs traz:

A educação para o trabalho nessa perspectiva entende-se como potencializadora do ser humano, enquanto integralidade, no desenvolvimento de sua capacidade de gerar conhecimentos a partir de uma prática interativa com a realidade, na perspectiva de sua emancipação. (BRASIL, 2010, p. 34).

A incongruência com a LDB acerca da formação integral na EP a partir do princípio educativo do trabalho não cessa na primeira versão do documento institucional. A implementação das Diretrizes Curriculares para a Educação Profissional Técnica de Nível Médio continua apostando no sentido ontológico do trabalho como fundamento para a superação da dualidade social e articulação entre teoria e prática: “[...] trabalho assumido como princípio educativo, tendo sua integração com a ciência, a tecnologia e a cultura como base da proposta político-pedagógica e do desenvolvimento curricular.” (BRASIL, 2012).

A questão da integralidade na EP fica ainda mais confusa com a legislação educacional que surge após a mudança no cenário político-econômico ocorrida no ano de 2016,17 quando se inicia um movimento verticalizado de retorno do alinhamento das políticas educacionais aos interesses privatistas neoliberal e ultraconservador religioso, que resulta na regulamentação da Reforma do Ensino Médio18 e da BNCC.

Sob influência da Reforma do Ensino Médio se definem as últimas Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais para a Educação Profissional e Tecnológica, que modificam o princípio da integralidade dos IFs:

[...] centralidade do trabalho assumido como princípio educativo e base para a organização curricular, visando à construção de competências profissionais, em seus objetivos, conteúdos e estratégias de ensino e aprendizagem, na perspectiva de sua integração com a ciência, cultura e tecnologia. (BRASIL, 2021).

Observemos que se acrescenta à centralidade do trabalho como princípio educativo as prerrogativas da pedagogia das competências como norteadora para os projetos e ações educativas, revelando a tentativa de enfraquecimento conceitual para a formação integral da modalidade de ensino e, também, a completa articulação da política educacional com os interesses do mercado de trabalho. O princípio do trabalho é deslocado do ponto de articulação com a educação para favorecimento da apropriação de competências e habilidades requeridas pela lógica empregatícia capitalista meritocrática e competitiva.

Os ataques à formação integrada, contudo, vão além da questão conceitual utilizada pela RFEPCT, pois tais políticas educacionais, negligenciando o EMI já desenvolvido na rede, instituíram a educação profissional como apenas um itinerário formativo.19 Como conceber que a Educação Integral possa ser desenvolvida na formação profissional através de uma proposta que a reduz em itinerário, esvazia-a de conteúdo e ressuscita o notório saber na docência?

Poderíamos levantar inúmeras críticas a partir da reestruturação do EM, mas vamos centrar nos aspectos que mais ameaçam a continuidade do EMI. Podemos afirmar que o conjunto dos documentos que sustentam a reforma se assenta no aligeiramento da formação dos jovens estudantes, quando prevê, inclusive, a certificação intermediária para facilitar a busca pelo emprego, consequentemente, retirando o sujeito da escola antes da conclusão desse nível de ensino. Assim como aposta no empobrecimento curricular, quando, além de assumir a lógica das competências, garante apenas a obrigatoriedade da Língua Portuguesa e da Matemática nos currículos dos itinerários formativos. Sem esquecer da brecha aberta para a contratação de técnicos sem qualquer formação específica para lecionar.

Ao analisarmos esses breves aspectos da legislação, sobretudo para o EMI, percebemos o lastro confuso da nossa atual política educacional. Temos de um lado um plano nacional, cujas estratégias vão em defesa da Educação Integral, e, do outro lado, temos uma base curricular oficial e diretrizes curriculares que propõem a formação integral do sujeito, mas ao mesmo tempo estimulam saídas certificadas antes da conclusão da etapa. Tal alternativa favorece a precariedade na formação escolar, pois esses sujeitos, uma vez imersos no mercado de trabalho, dificilmente retornam para a escola. Sobretudo se considerarmos que, pela formação precarizada, muito provavelmente ocuparão vagas de subemprego. Obviamente, não podemos negar que essa reestruturação do ensino médio gera um impacto social de desequilíbrio e desigualdade sobre toda a educação brasileira, em especial para a EP.

A partir da incongruência apresentada, a realidade da Rede Federal revela ainda maior contraste, pois adere parcialmente às modificações propostas pela reestruturação do EM e continua ofertando o EMI. É preciso ressaltar, inclusive, que esse posicionamento parte da organização de um movimento de resistência e defesa da Educação Profissional Técnica de Nível Médio pelos dirigentes da Rede, com apoio da comunidade escolar,20 que tem garantido a continuidade da oferta do Ensino Médio Integrado e buscado manter sua proposta original.

O cenário atual da Educação Integral no EMI da RFEPCT procura simultaneamente realizar a oferta de uma educação que propõe superar a diferença de formação para distintas classes sociais, concebendo uma articulação entre formação técnica e formação propedêutica, e e atender às pressões do próprio Ministério da Educação por uma formação profissionalizante na perspectiva das competências e supervalorização do aspecto socioemocional, completamente aliada aos interesses mercadológicos.

Essa polarização evidenciada, no entanto, não é novidade para os dilemas enfrentados na rede, desde que implementou o Ensino Médio Integrado. Há inúmeras pesquisas que analisam as dificuldades e até registram desconhecimento e resistências por parte de membros da comunidade escolar para desenvolver a proposta integradora na formação profissional. O que pontuamos como retrocesso ainda maior na atualidade da EP é que, em vez de esse dilema pertencer aos meandros internos da rede, ele é retomado como legislação nacional que parece querer atropelar o próprio princípio de autonomia dos Institutos Federais.21

Nossas análises nos permitem dizer que o conjunto das políticas educacionais contemporâneas no país favorecem a manutenção do discurso e da prática dualista na educação profissional, pois endossam a distinção de formação segundo a categoria social, dificultando outras análises e, por conseguinte, criando barreiras para o debate e para a implementação de avanços necessários para a ampliação e robustecimento da concepção da Educação Integral e da Pedagogia Integradora.

É no sentido de transpor esses obstáculos impostos para essa modalidade de ensino que nos valemos dos aspetos conflitantes na legislação educacional para explorar o lugar ocupado pelos afetos dentro da concepção de integralidade, seja pela compreensão legal da BNCC e pela Reforma do Ensino Médio, seja pelo âmbito político-curricular defendido pela RFEPCT.

As competências socioemocionais como parte integrante das competências requeridas pelo perfil profissional de conclusão podem ser entendidas como um conjunto de estratégias ou ações que potencializam não só o autoconhecimento, mas também a comunicação efetiva e o relacionamento interpessoal, sendo que entre essas estratégias destacam-se a assertividade, a regulação emocional e a resolução de problemas, constituindo-se como competências que promovem a otimização da interação que o indivíduo estabelece com os outros ou com o meio em geral. (BRASIL, 2021b).

O trecho extraído das atuais Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Profissional e Tecnológica (BRASIL, 2021b) evidencia como os “afetos” se encontram reduzidos a competências e habilidades, tidas como requisito indispensável para regular comportamentos em prol de melhor desempenho em atividades grupais e, assim, atender ao perfil profissional contemporâneo requerido. A educação para o trabalho é, assim, confundida com a formação de um perfil profissional empregável, atendendo às prerrogativas de um mercado cada vez mais exigente: “[...] identificando o conjunto de conhecimentos, habilidades, atitudes, valores e emoções que devem orientar e integrar a organização curricular, dando identidade aos respectivos perfis profissionais” (BRASIL, 2021b, grifo nosso). Percebamos que o mais próximo que as diretrizes conseguem chegar é na redução dos afetos à condição passageira de controle das emoções para favorecer a convivência em grupo, secundarizando os corpos e os colocando sob controle da racionalidade técnico-econômica. Dessa maneira, termos como resiliência, empreendedorismo e inteligência emocional, tidos como aspectos diferenciais para ampliação da competitividade no pleito das cada vez mais raras oportunidades de emprego, vão ganhando força. Por essa perspectiva, vence quem melhor controla suas paixões nas variadas situações.

Esse ideal de docilização dos corpos presente nos documentos oficiais e na corrente pedagógica não é um fato novo na educação, muito menos no mercado de trabalho. O que nos faz dedicar atenção ainda maior para os afetos, que em meio às distintas propostas surgem como instrumentos de modelagem dos corpos à disposição de processos conformadores.

Nesse jogo caótico das políticas para a EPT- NM, notamos que a proposta do EMI desenvolvida pela Rede Federal, apesar da exigência legal das competências socioemocionais como princípio formativo estabelecida nas diretrizes curriculares, permanece na defesa político-pedagógica da integralidade a partir da articulação entre trabalho e educação. A exemplo do Instituto Federal de Sergipe (2022, p. 72), que traz no seu Plano de Desenvolvimento Institucional para o interstício de 2020/2024:

Este é o desafio estabelecido com a proposição de um Projeto Político Pedagógico baseado numa concepção de educação integrada. Para tanto, é preciso, dentre outras coisas, construir um currículo voltado para a formação omnilateral, ou seja, pautado nos seguintes princípios: trabalho, ciência, cultura e tecnologia.

Algumas medidas, no entanto, têm pressionado a descontinuidade do EMI. Além dos constantes cortes22 de verbas para essas instituições, que vêm ocorrendo desde o ano de 2016, o governo federal sancionou o Decreto nº 10.656/2021 (BRASIL, 2021a) para pressionar a adoção dos itinerários formativos. Este documento coloca a Rede Federal como possível beneficiária do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (FUNDEB), condicionando o recebimento do financiamento à absorção das matrículas das redes estaduais a partir de convênios ou parcerias, entre estes, o programa EMTI.

Nesse caso, o governo resolveria duas questões problemáticas para sua gestão ultraliberal: desoneraria o investimento na RFEPCT e aproveitaria a infraestrutura desta para assistir às redes estaduais, que não foram preparadas para a reestruturação do EM.

Certamente, não queremos desconsiderar a pressão pela qual a RFEPCT vem passando para manter o Ensino Médio Integrado, uma configuração de ensino que, de certa forma, amplia os horizontes dos estudantes com a possibilidade de continuidade dos estudos em nível superior, bem como não pretendemos igualar as diferentes perspectivas da Educação Integral preconizadas nos documentos particulares dos IFs e nos documentos resultantes da reestruturação do EM. De maneira alguma, também, ensejamos minimizar o esvaziamento de conteúdo implícito nos itinerários formativos.

O que pretendemos está para além da forma e do conteúdo, antes, se estabelece sobre o fundamento que alicerça a compreensão acerca da constituição humana e do seu processo formativo. Isso significa admitirmos que, ainda que a proposta original do EMI na Educação Profissional Técnica de Nível Médio seja seguramente mais ampliada que os itinerários formativos, em momento algum priorizou os afetos como condição inalienável para a educação dos seus estudantes. No máximo podemos observar, desde as primeiras às mais recentes diretrizes23 curriculares para a EPTNM, a referência aos valores éticos, juntamente com os valores estéticos e políticos para o desenvolvimento da vida social e profissional. No entanto, não há, oficialmente, qualquer documento que compreenda a dimensão afetiva na relevância devida para a constituição do sujeito na sua relação consigo, com o conhecimento e com todos os outros corpos da natureza.

No levantamento documental da RFEPCT que realizamos, somente encontramos indicação dos afetos em um documento base24 para promoção da formação integral, fortalecimento do ensino integrado e implementação do currículo integrado, cuja elaboração data do primeiro semestre de 2016.

[...] omnilateralidade no sentido de busca da universalidade e totalidade do desenvolvimento humano, nas dimensões ética, afetiva, moral, estética, sensorial, intelectual, prática; no plano dos gostos, dos prazeres, das aptidões, das habilidades, dos valores, se opõem à socialização unilateral, alienante e reducionista das perspectivas humanas da sociedade de consumo. (FÓRUM DE DIRIGENTES DE ENSINO; CONSELHO NACIONAL DAS INSTITUIÇÕES DA REDE FEDERAL DE EDUCAÇÃO PROFISSIONAL, CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA, 2016, p. 18).

Ainda assim, a referência se dá em torno da afetividade como uma dimensão para o desenvolvimento humano circunscrita a um conceito teórico específico. Constatamos, assim, que em nenhum momento de tal abordagem os afetos correspondem ao processo orgânico e dinâmico estabelecido pelo homem na natureza.

Todas as análises documentais da RFEPCT nos indicam que a proposta integralizadora para a formação profissional, independentemente da influência teórica prevalecente, continua alicerçada sobre um padrão universal de homem, sociedade e educação no qual a razão se encontra superestimada. Mesmo quando se propõe disruptivo para com a realidade dada, não há em qualquer dos documentos do EMI referência aos afetos como dimensão corpórea pela qual se dá o conhecimento sensível, ou seja, como condição necessária ao processo constitutivo do ser, da sua ação e da sua existência na relação com as coisas, inclusive com o conhecimento.

Considerações finais

Diante do que expusemos e, ainda, considerando o atual momento histórico-político do país, conveio-nos assumir o risco de tecer críticas à proposta do Ensino Médio Integrado da RFEPCT em meio à luta por não sucumbir diante das recentes reformas educacionais para a Educação Profissional e dos constantes cortes orçamentários. A bem da verdade, quando se persegue a sobrevivência, todos os outros pleitos parecem perder a relevância. No entanto, esperamos que nossas análises possam ter contribuído para o alargamento da compreensão acerca da importância dos afetos para a Educação Integral e para uma Pedagogia que se pretenda integradora.

Vivenciamos um momento de disputas de narrativas, com destaque para o fortalecimento do discurso moral religioso, inclusive no âmbito das instituições públicas e da política institucionalizada. Consequentemente, concluímos que há em curso novas tentativas de ampliação de controle sobre os corpos. Ao admitirmos o desenvolvimento dessa guerra moral contemporânea, não há como negar que ela esteja se desenvolvendo no campo afetivo, utilizando-se dos corpos fragilizados e vulneráveis.

Avaliamos, outrossim, que nesse cenário a teoria dos afetos possa ganhar ainda maior relevância, tendo em vista que à luz do conhecimento o viver ético produz corpos políticos amadurecidos e conscientes da força que possuem. Se a moral é sempre uma âncora que prende as paixões, cuja força nos conduz para baixo e nos impele à passividade, a Ética é o conhecimento que liberta as mãos para puxar essa âncora.

Somos corpos afetivos em potência produtiva, prontos para criar outras formas de pensamento, outros modos de vida. Essa latência criativa precisa ser compreendida e levada em consideração nas políticas educacionais, nos currículos, projetos e nas ações educativas como um compromisso assumido com a integralidade na educação.

Se constatamos todos que a escola ocupa uma etapa significativa da vida humana, concordaremos acerca da importância do seu papel social. Quando defendemos, contudo, a implementação da Educação Integral é porque avaliamos a necessidade de transformação desse organismo escolar, que ultrapassa a representação de um mero edifício estruturado sobre a racionalidade moderna. É preciso resgatar a ideia de que a escola é, também, construída pelos corpos políticos dos estudantes, entendimento básico que pode nos levar a ações que valorizem e promovam o fortalecimento destes corpos individuais e coletivos.

Conhecendo que a educação conserva em si duas premissas contrastantes, conservar e transformar, admitimos que a Pedagogia Integradora deva estar mais empenhada com os aspectos da transformação. Sabemos que não são novas as discussões acerca das limitações de um processo educacional que submete o indivíduo ao poder disciplinar ou à autoridade de pessoas e instituições, mas, possivelmente, não seja tão comum a proposta de reavaliação da concepção humanística moderna racional pela lente da teoria dos afetos.

Propomos uma escola que opere na ordem de um laboratório de criação de novos circuitos de afetos, onde as paixões alegres sejam perseguidas e não condenadas, não no sentido piegas do termo, mas no sentido ontológico e epistemológico da Ética, cujo ponto de partida está no campo do sensível, dos encontros, da coletividade.

Defendemos uma ampliação do princípio da integralidade na educação profissional para que nos desvencilhemos da emancipação moderna, que emoldura o sujeito na sua concepção limitada de liberdade, pois acreditamos que a negligência com os afetos prejudica a relação com o conhecimento e, consequentemente, o processo de elaboração de pensamento.

Se a luz é sinônimo da saída das trevas de outrora, nossa responsabilidade hoje é com a decomposição dessa luz. Uma racionalidade ainda aprisionada às representações da consciência nos impede de alcançar o terceiro gênero do conhecimento. Queremos avançar sobre a perspectiva da apropriação de saberes como sinônimo de intelectualidade ativa, assim como desejamos que os afetos não sejam meros instrumentos para regulação de comportamentos.

Pensamos em um Ensino Médio Integrado fundamentado sobre as premissas do pensamento e da liberdade, que objetiva, antes de mais nada, que os estudantes cheguem ao máximo da potência possível, produzindo conhecimento a partir do uso rigoroso do intelecto. Um EMI que considere integrar diferentes segmentos em inclusão, sem pretensões de universalidade, pois as diferenças não precisam ser encaradas em antagonismos, mas em um jogo de forças que operam para a continuidade da existência.

1Este artigo está de acordo com os procedimentos éticos em pesquisa, devidamente amparado e autorizado pelo parecer consubstanciado de nº 5.021.225.

2Atualizada pela Portaria nº 2.116/2019 (BRASIL, 2019).

3Os Institutos Federais compõem a Rede Federal de Educação Científica, Profissional e Tecnológica (RFEPCT), instituída pela Lei nº 11.892/2008 (BRASIL, 2008).

4Pesquisa em andamento desenvolvida pela primeira autora no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Sergipe.

5As Diretrizes Nacionais para a EPTNM, definidas pela Resolução de nº 1/2021 (BRASIL, 2021b), estabelecem que esta modalidade de ensino pode ser ofertada sob as formas integrada, concomitante e subsequente ao Ensino Médio. A forma subsequente se dá após a conclusão do ensino médio, onde se oferta especificamente a formação profissional. A forma concomitante ocorre a partir da oferta do ensino médio regular e do ensino profissional na mesma instituição ou em duas instituições diferentes e a forma integrada, quando se oferta através de um currículo integrado o ensino médio e o ensino profissional em uma única instituição. É sobre esta última forma de oferta que vamos dedicar nossas análises.

6A Ética é a obra mais importante da filosofia espinosana e sobre a qual debruçamos nosso olhar. Neste trabalho utilizamos o termo como sinônimo do que chamamos “teoria dos afetos”.

7Baruch Spinosa ou Bento Espinosa (versão portuguesa) é um filósofo racionalista que vive no século XVII e fica conhecido pela defesa do conhecimento como única possibilidade de libertar-se do domínio dos outros. É pelo entendimento que Espinosa nos ensina a compreender as paixões e a razão como forças ativas em nós.

8Na Ética espinosana, paixão é o termo adotado para se referir à dimensão afetiva humana.

9Em Espinosa, a substância é o próprio Deus ou a natureza, a qual não está sobre nós em situação de governo e determinação, mas se compõe de todos os corpos em uma relação de produção.

10Imanência é a concepção que parte da ideia de univocidade da natureza. “Deus é causa imanente e não transitiva de todas as coisas.” (ESPINOSA, 2020, p. 29), parte da compreensão de uma mesma origem para todas as coisas. Um conceito que se contrapõe à eminência, cuja admissão de diferentes substâncias na natureza causa fragmentação da realidade e fomenta a ideia da transcendência, que nos sugere domínio e desconhecimento. (CHAUÍ, 1995; DELEUZE, 2002).

11A epistemologia espinosana atribui três gêneros ao conhecimento: o primeiro é o gênero da experiência vaga, aprisionado no estado de representação da consciência, quando só percebemos os resultados das relações entre as coisas, um conhecimento enganoso. No segundo gênero, ou noção comum na natureza, conseguimos conhecer o que existe fora das nossas percepções enganosas, apesar da capacidade mais elaborada do intelecto, ainda não se faz singular. Já o terceiro gênero está ligado diretamente à intuição, quando se produz novas formas de existência e pensamentos, pois nasce do discernimento afetivo e intelectivo, fora do domínio da consciência representativa e distanciado da influência externa sobre si (ULPIANO, 1988).

12Termo apropriado do princípio de inércia da física, segundo o qual o movimento ou repouso dos corpos depende da ação de corpos externos sobre eles. A partir deste Espinosa explica a tendência natural que todo corpo possui para se autoconservar e autopreservar (CHAUÍ, 1995, p. 106).

13Este trabalho não tem pretensões de enveredar pela discussão acerca da política em Espinosa, contudo, percebemos a importância de apontar a construção do corpo político estudantil através da teoria dos afetos, tendo em vista o compromisso da instituição escolar, também, no que se refere à socialidade dos estudantes.

14Ifetização é o processo pelo qual se reestrutura a Rede Federal, que dá origem aos Institutos Federais, habilitados para ofertar educação básica, superior e profissional. Dentre as exigências legais, contudo, está a necessidade de oferta de, pelo menos, 50% das vagas para o EMI, que sustenta o compromisso dessa rede com esta modalidade/forma de oferta (BRASIL, 2008).

15No Documento base da Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica do Ministério da Educação (BRASIL, 2007) encontramos com clareza as concepções e princípios da Educação Profissional Técnica de Nível Médio Integrada ao Ensino Médio. Assim como encontramos nas legislações a referência à formação integrada: Lei nº 11.892/2008 (BRASIL, 2008); Resolução nº 6/2012 (BRASIL, 2012), além de outros documentos da RFEPCT, a exemplo do Relatório do CONIF de 2021 que analisa a Resolução nº 1/2021 (BRASIL, 2021b).

16O trabalho como princípio educativo é considerado o ponto central de desenvolvimento da educação integral nos documentos oficiais que fundamentam a RFEPCT. Inspirado nos conceitos marxianos de omnilateralidade e politecnia, a ideia é superar as contradições existentes nas relações de produção imbricadas na constituição dos modos de vida, que corroboram a divisão classista de sociedade para, a partir da união entre trabalho e educação, gerar conscientização, autonomia e emancipação do sujeito para transformação da sociedade.

17Referimo-nos ao processo de impeachment sofrido pela então presidenta Dilma Roussef.

18A Reforma do Ensino Médio instituída pela Lei nº 13.415/2017 (BRASIL, 2017), em alinhamento com a BNCC, alterou a LDB, Lei nº 9.394/1996 (BRASIL, 1996), exigindo que os currículos do ensino médio propusessem a educação integral nos aspectos físicos, cognitivos e socioemocionais.

19Definido como “cada conjunto de unidades curriculares ofertadas pelas instituições e redes de ensino que possibilitam ao estudante aprofundar seus conhecimentos e se preparar para o prosseguimento de estudos ou para o mundo do trabalho de forma a contribuir para a construção de soluções de problemas específicos da sociedade” (BRASIL, 2018).

20Para maiores esclarecimentos, consultar as Diretrizes indutoras para a oferta de cursos técnicos integrados ao ensino médio na rede federal de educação profissional, científica e tecnológica elaborado pelo Fórum de Dirigentes de Ensino e Conselho Nacional das Instituições da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica (2018) e o documento Análise da Resolução 01/2021/CNE e diretrizes para o fortalecimento da EPT na RFEPCT (FÓRUM DE DIRIGENTES DE ENSINO; CONSELHO NACIONAL DAS INSTITUIÇÕES DA REDE FEDERAL DE EDUCAÇÃO PROFISSIONAL, CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA, 2021).

21Segundo a Lei nº 11.892/2008 (BRASIL, 2008), os IFs são comparados às Universidades Federais no que diz respeito à autonomia pedagógico-administrativa.

22Em nota pública, o CONIF alerta que só no ano de 2022 se registra o corte de mais 300 milhões de reais na Rede Federal (CONSELHO NACIONAL DAS INSTITUIÇÕES DA REDE FEDERAL DE EDUCAÇÃO PROFISSIONAL, CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA, 2022).

23Referimo-nos às diretrizes regulamentadas pela Resolução CNE/CP nº 6/2012 (BRASIL, 2012) e pela Resolução CNE/CP nº 1/2021 (BRASIL, 2021b). Encontramos, também, as mesmas referências no documento base para a EPTNM elaborado no ano de 2007 (BRASIL, 2007).

24Esse documento, elaborado pelo Fórum de Dirigentes de Ensino da RFEPCT, passou por outras atualizações e aperfeiçoamentos após a Lei nº 13.415/2017 (BRASIL, 2017), e no ano de 2018 foi apresentado no II Seminário Nacional do EMI

REFERÊNCIAS

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Recebido: 23 de Outubro de 2022; Aceito: 21 de Março de 2023

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Doutoranda e Mestra em Educação (UFS). Professora do Instituto Federal da Bahia. Aracaju, SE, Brasil.Email: clamed.lima@ gmail.com.

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Pós-doutora em Filosofia da Educação pela Universidade Complutense de Madrid. Professora e Pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Sergipe. Aracaju, SE, Brasil. Email: dinag.feldens@gmail.com.

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