Abrindo a temporada
Em consonância com as teorizações dos Estudos Culturais em Educação, dos Estudos de Gênero e Sexualidade, e, ainda, dos Estudos sobre Juventudes, em uma abordagem pós-estruturalista, pretendemos, no presente texto, analisar e problematizar narrativas de jovens autistas, produtores do podcast Introvertendo, sobre experiências afetivas e sexuais vivenciadas pelos mesmos e descritas em episódios do referido podcast. Importante salientar que este trabalho decorre de uma pesquisa de Mestrado, recentemente defendida por uma das autoras em um curso de Mestrado em Educação ofertado por uma instituição particular de ensino superior.1
Entendemos que a discussão sobre as dimensões do gênero e da sexualidade de/sobre sujeitos autistas ainda é uma pauta negligenciada nos mais diferentes contextos e grupos sociais, seja por desconhecimento e/ou por insegurança no trato do assunto. Apesar dos avanços verificados nos últimos tempos, no que se refere às políticas e às práticas de inclusão derivadas das lutas dos grupos LGBTQIA+, constituídos por lésbicas, gays, bissexuais, transgênero, queer, intersexo, assexual, entre outras identidades de gênero e orientação sexual, quando essa pauta se aproxima do campo do autismo, enfrenta processos recorrentes de resistência e/ou negação.
Frente à parca existência de materiais midiáticos sobre o tema, sejam esses filiados ao entretenimento ou relacionados às campanhas governamentais sobre corpo e sexualidade - dimensões, sobre as quais, encontra-se vasta produção de materiais dirigidos a determinados grupos sociais, tais como a população LGBTQIA+, gestantes, jovens, entre outros -, podemos afirmar que há um silenciamento para o gênero e sexualidade de sujeitos autistas, mesmo para os mais jovens.
Dentre as razões para tais silenciamentos, destacam-se possíveis dificuldades de pais e familiares de jovens autistas em falarem sobre essas questões e, ainda, em compreenderem que os(as) jovens autistas passam por transformações quando chegam a essa etapa de suas vidas. Ressaltamos, ainda, no que tange à dimensão dos afetos e da sexualidade de sujeitos autistas, as dificuldades que eles próprios narram, em alguns episódios do podcast Introvertendo, em relação às disfunções sensoriais, entendimento de seus sentimentos, emoções, desejos, comportamentos e modos como cada um e cada uma interage com o mundo.
Tais narrativas sinalizam a necessidade não apenas de revisar as práticas culturais e os significados produzidos acerca do autismo e dos(as) autistas, mas, também, de desenvolver pesquisas que levem em conta as singularidades dos sujeitos, entendendo que são diversos em seus modos de ser, pensar, sentir, agir e se relacionar. Nesse viés, quando falamos em “singularidades”, não estamos nos referindo, exclusivamente, às características físicas, psicossociais, entre outras, que têm servido de ancoradouro para naturalizar a ideia de que os/as autistas são diferentes dos sujeitos enquadrados em padrões de normalidade histórica e culturalmente inventados, entoando binarismos que reforçam práticas de exclusão. Referimo-nos, sim, aos diferentes modos como estes grupos se veem, gostariam de ser vistos, vivenciam seus sentimentos e desejos, manifestam suas opiniões, mostram-se para o mundo.
No que concerne à (in)visibilidade das pessoas com deficiência, a discussão em torno das necessidades e dilemas destes grupos ganhou notoriedade, no Brasil, a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988, que instituiu o reconhecimento de todos(as) brasileiros(as), independentemente de quaisquer diferenças. A partir desse marco legal, as pessoas com deficiência também passaram a ser reconhecidas como sujeitos de direitos e não apenas como pessoas assistidas por/em instituições de acolhimento, tais como as APAES e instituições religiosas.
No entanto, ainda que as pessoas com TEA tenham os mesmos direitos assegurados a todos os cidadãos do país pela CF/1988 e outras leis nacionais, para a garantia desses direitos, foi necessário criar leis específicas voltadas a estes grupos, a exemplo da Lei Berenice Piana (Lei 12.764/2012), que criou a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista, para terem direito a atendimento pelo Sistema Único de Saúde, bem como acesso à educação, à proteção social, ao trabalho e a serviços que propiciem a igualdade de oportunidades.
Hodiernamente, as juventudes autistas diagnosticadas com TEA nível 12, que se encontram no espectro sem deficiência intelectual e com linguagem funcional, vêm adentrando ao movimento ativista, principalmente através da mídia no ciberespaço, dimensão na qual expressam suas subjetividades em relação ao autismo e lutam por garantias de direitos, buscando direcionar o olhar para além da diferença. Entre as mídias mais utilizadas pela juventude autista, destacam-se a rede social Instagram, os canais do Youtube e, considerado o fator interativo, no qual está implicada a dificuldade de exposição visual dos corpos e a aderência ao uso de Podcasts, por meio das quais pessoas podem compartilhar suas ideias, experiências e vivências, sem a necessidade de aparecer na tela.
Ao realizar levantamento acerca de teses e dissertações sobre autismo, observamos a existência de pesquisas que abordam a importância do diagnóstico e intervenções precoces no TEA, os movimentos ativistas e de advocacy3, e estudos relacionados à representação social que as famílias têm sobre o autismo infantil. Contudo, não encontramos estudos que tratassem sobre a juventude autista - mais especificamente, sobre gênero e sexualidade no autismo. Ángel Riviére (2004, p. 234) corrobora essa percepção ao afirmar que, “apesar da enorme quantidade de pesquisas realizadas durante mais de meio século, o autismo continua ocultando sua origem e grande parte de sua natureza, apresentando desafios à intervenção educativa e terapêutica”, evidenciando a necessidade de estudos mais centrados nas questões relacionadas às subjetividades autistas.
A partir desse mapeamento, destacamos que uma parcela significativa dos discursos sobre o tema derivam, sobretudo, de conhecimentos disseminados no campo da neurociência e do ativismo das famílias de pessoas com TEA, indicando a necessidade de pesquisas que considerem os diferentes modos como esses sujeitos produzem e são produzidos culturalmente, em diferentes dimensões, como no gênero e na sexualidade, razão pela qual o processo investigativo, no âmbito deste estudo, concentrou-se nos episódios do podcast que abordam as experiências de relacionamento afetivas e sexuais vivenciadas pelos(as) jovens autistas do Introvertendo.
Ao tomar a mídia podcast como objeto de análise, adotamos como ferramenta metodológica a netnografia, concebida por Shirlei Sales (2021) como uma forma de etnografia realizada em ambientes virtuais, que permite, a(o) pesquisador(a), observar os sujeitos e o conjunto de verdades postas em circulação no ciberespaço. A partir desse olhar sobre a juventude autista, pela perspectiva dos Estudos Culturais, dos Estudos de Gênero e Sexualidade e dos Estudos sobre Juventudes, esperamos contribuir para a ampliação da temática invisibilizada até o momento, em diferentes espaços de nossa sociedade e, por conseguinte, colaborar para o combate aos preconceitos (de toda ordem) que atingem os sujeitos autistas, em especial os/as jovens.
Na próxima seção, apresentamos as bases teóricas que respaldam o exame das narrativas da juventude autista veiculadas no podcast Introvertendo, compreendido como uma, entre tantas, pedagogias culturais que atuam na (re) constituição de modos de ser, pensar e agir na sociedade em que vivemos.
O pano de fundo: as bases teóricas
A emergência do campo dos Estudos Culturais (EC) teve como um de seus precursores o sociólogo Stuart Hall, diretor do Centro de Birmingham, no Reino Unido, nos anos 1960. Além de contribuir para a consoli0dação do Campo dos Estudos Culturais, suas ideias sobre gênero, raça, etnicidade, entre outros temas contemporâneos, subsidiaram os Estudos Culturais chineses, australianos, latino-americanos, irlandeses, eslovenos, austríacos e, a partir de 1990, os Estudos Culturais no Brasil, com a tradução de seus escritos e seminários organizados pelo professor Tomaz Tadeu da Silva (Wortmann; Santos; Ripoll, 2019).
As teorizações de Stuart Hall estão voltadas ao conceito de cultura como fundamento epistemológico e, também, como “conceito metodológico nas análises que realiza de diferentes fenômenos e artefatos culturais” (Zubaran; Wortmann; Kirchof, 2016, p. 15), a exemplo do podcast Introvertendo. Na perspectiva de Stuart Hall, segundo apontam estes autores, a cultura abarca fenômenos da vida social e cognitiva, pois, “devido a esse poder para constituir os sujeitos, a produção e o consumo dos sistemas culturais são alvos constantes de disputas de poder e de regulação” (Ibid., p. 15). Importante salientar que os Estudos Culturais não se referem apenas ao estudo sobre a cultura, mas lida com a teoria como um conjunto de conhecimentos contestados, localizados e conjunturais que se entrelaçam nas relações de poder.
Os EC têm se ocupado com políticas raciais e étnicas, políticas públicas relacionadas à saúde, ambiente, educação, trabalho, bem como com questões relacionadas à globalização, razão pela qual a pesquisa em Educação e Estudos Culturais tem sido desenvolvida através da busca de articulações com e0studos sobre gênero, raça, sexualidade, identidade e diferença, etc., recorrendo não somente aos trabalhos acadêmicos, mas, também, aos que decorrem de movimentos sociais, étnicos, raciais, sexuais, ambientalistas, entre outros, que constroem posições e formas alternativas de interpretar o mundo. Isto é, ocupam-se dos diferentes fenômenos, práticas e manifestações culturais.
A mídia encurtou as distâncias e a velocidade com que as imagens viajam, formando uma sociedade com histórias distintas, diferentes modos de vida e estágios diversos de desenvolvimento. Essas revoluções da cultura causaram impacto sobre os modos de viver, sobre o sentido que as pessoas dão para a vida, sobre suas aspirações para o futuro. As mudanças culturais globais, estão criando uma rápida mudança social, mas também sérios deslocamentos culturais. Segundo Marisa Costa e Maria Lúcia Wortmann (2016, p. 339), o foco prioritário incide sobre “questões vinculadas a políticas culturais, onde poder, representação, significado, identidade, diferença, alteridade, pedagogias culturais, governo das subjetividades, bem como seus efeitos nos processos educativos examinados, são centrais nas agendas de pesquisa”.
A partir desta visão, é possível pensar o podcast Introvertendo como uma pedagogia cultural que ensina sobre autismo, sobre como jovens autistas se reconhecem e querem ser reconhecidos(as), como vivenciam sua sexualidade e participam de processos identitários nos quais está(ão) implicada(s) a(s) identidade(s) de gênero. De acordo com Viviane Camozatto (2014), as pedagogias respondem às exigências de cada tempo, produzindo sujeitos que correspondam e se adaptem a ele.
No âmbito deste trabalho, entendemos que as pedagogias culturais, as quais se configuram nos mais diversos espaços de participação e poder, para além de produzir subjetividades e comportamentos alinhados à racionalidade segundo a qual a sociedade pensa e age, podem, também, produzir estranhamentos, desencaixes e rebeldias, conforme os sujeitos se sintam desconfortáveis com as narrativas e verdades propagadas nesses espaços e passem a pensar e agir de outros modos. E que, quando essas narrativas incorporam discussões sobre gênero e sexualidade, como é o caso das falas dos integrantes do podcast Introvertendo, acabam por tensionar dimensões naturalizadas sobre deficiência, juventude e sexualidade.
Da mesma forma, respaldadas nos Estudos de Gênero e de Sexualidade, compreendemos as diferenças entre homens e mulheres como consolidadas no âmbito da cultura e das distintas construções sociais acerca dos diferentes sexos, como pontua Guacira Louro (2003). Segundo a autora, é preciso entender o conceito de gênero como constituinte da identidade dos sujeitos, que se caracteriza por uma pluralidade de identidades, as quais estão em constante transformação. Como destacam Suzana Barros e Paula Ribeiro (2016, p. 431) “É importante salientar que os gêneros são construções socioculturais, que se constituem por meio de relações de poder e saber. Desde cedo, meninos e meninas são ensinados sobre as questões de gênero e sexualidade”.
Como invenções sociais, gênero e sexualidade são constituídos a partir de discursos que regulam, normalizam e produzem saberes e verdades sobre estas temáticas. Segundo Michel Foucault (2010, p. 12), “a verdade é deste mundo; ela é produzida nele graças a múltiplas coerções e nele produz efeitos regulamentados de poder. (...) tipos de discursos que [a sociedade] acolhe e faz funcionar como verdadeiros”. Conforme o autor, o termo sexualidade surge como discurso no início do século XIX, relacionado, entre outros fenômenos, ao desenvolvimento de áreas de conhecimentos diversas que “[...] cobriram tanto os mecanismos biológicos da reprodução como variantes individuais ou sociais do comportamento [...]” (Foucault, 2009, p. 10). É possível perceber, principalmente nas sociedades ocidentais, que a difusão de determinadas regras e normas, comumente apoiadas por instituições como igrejas, hospitais e escolas, parece estar relacionada às mudanças nas significações de dever e prazer, que se constituem como fenômenos relacionados ao discurso da sexualidade.
Para o referido autor, a sexualidade também pode ser compreendida como um dispositivo histórico articulado por estratégias de saber -poder, as quais regulam corpos, prazeres, discurso, controles e resistências (Foucault, 2007). A própria conceituação do sexo constitui um elemento do dispositivo da sexualidade, intimamente relacionado às relações de poder estabelecidas em uma sociedade. Assim, as tecnologias do sexo podem ser entendidas, a partir dessa premissa, como estratégias de funcionamento do dispositivo da sexualidade, materializadas em operações políticas, intervenções econômicas, em processo de moralização e responsabilização da conduta dos indivíduos nas sociedades, tal como afirma Foucault (2007, p. 159): “De um polo a outro dessa tecnologia do sexo, escalona-se toda uma série de táticas diversas que combinam, em proporções variadas, o objetivo da disciplina do corpo e da regulação das populações”.
A partir dessa premissa, podemos depreender o silenciamento sobre o exercício da sexualidade de determinados grupos sociais, a exemplo dos jovens com TEA, como, possivelmente, uma estratégia de controle sobre tais sujeitos, a qual opera na regulação de seus corpos, desejos e prazeres, através do temor, do desconhecimento, do medo… No entanto, esses jovens querem viver sua sexualidade, seus afetos, seus prazeres, como apresentaremos a seguir.
Vozes atípicas - Juventude autista
O Autismo passou a ser compreendido como TEA através da última edição revisada do Manual de Diagnóstico e Estatística de Transtornos Mentais (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders), conhecido como DSM-5 instituído pela Associação Americana de Psicologia (APA). A OMS aponta que a evolução científica em torno das pesquisas sobre o Autismo tem revelado a multiplicidade de sinais, sintomas e diferentes níveis de gravidade no TEA.
Em razão dessa variabilidade, a CID-114 reuniu em um único diagnóstico o que se conhecia como Transtornos Globais do Desenvolvimento, do qual a Síndrome de Asperger fazia parte, e passou a denominar de Transtorno do Espectro Autista (TEA) o conjunto de diferentes transtornos de desenvolvimento, os quais são classificados conforme a existência ou não de deficiência intelectual e de linguagem funcional. Pensamos que agregar o autismo em um único diagnóstico contribuiu para reduzir a discriminação em torno das pessoas diagnosticadas com TEA nível 1 de suporte, haja vista os estereótipos de “não parecerem autistas” ter causado prejuízos de cunho social e a não garantia de direitos.
John Donvan e Caren Zucker (2017) apontam que famílias e ativistas têm dispensado seus esforços para uma luta constante, a fim de fazer com que as autoridades públicas passem a enxergar as pessoas com TEA como sujeitos de direito e essa intenção tem sido buscada, também, pela juventude autista, como o caso dos jovens que integram o podcast Introvertendo.
Em consonância com os aportes escolhidos, destacamos a categoria Juventude constituída por critérios históricos e sociais, os quais, segundo Juarez Dayrell (2003), contribuem para a construção do sujeito em razão da relação com o outro. Na contemporaneidade, grupos de jovens autistas aderem ao movimento pela neurodiversidade inspirada no campo do modelo social de deficiência, cujo lema é “nada sobre nós sem nós”, assumindo uma posição crítica no discurso de profissionais e médicos sobre o autismo, como forma de constituir uma categoria de juventude autista.
Percebe-se, com isso, que foram renegadas, às antigas gerações de jovens autistas, oportunidades de participarem de mudanças culturais, já que essas gerações eram impossibilitadas de participarem do processo de socialização em razão dos estereótipos sob sua condição autista, como também não puderam viver a “moratória social” (um período da vida em que se permite postergar diversas exigências sociais - tais como trabalho, matrimônio, ter filhos e formar o próprio lar - e em que há uma especial tolerância para com o comportamento juvenil.) já que não lhes foi proporcionado a aprendizagem de hábitos, atitudes e experiências tipicamente jovens por serem considerados seres não-sociáveis (Groppo, 2017).
A esse respeito, o Estatuto da Juventude (EJUVE) determina, nos Corpos, gêneros e sexualidadess 21 e 22 da Lei nº 12.852, de 5 de agosto de 2013, que os(as) jovens devem exercer a participação nas decisões de política cultural, ter direito à identidade e diversidade cultural e à memória social, cabendo ao poder público garantir, a(o) jovem com deficiência, acessibilidade e adaptações razoáveis (BRASIL, 2013).
No entanto, na análise de Maria Claudia Dal’Igna et. al (2019), as políticas públicas contemporâneas servem ao propósito de regular a vida de determinados grupos para diminuir os riscos sociais e ampliar níveis de segurança para a população. Nesse sentido, as questões de gênero e sexualidade, segundo estas autoras, têm sido mobilizadas para tornar mulheres e homens capazes de agir sobre si e sobre os outros, para torná-los agentes de mudança social.
O Podcast Introvertendo
Denominamos como podcast a produção de áudio que disponibiliza arquivos a serem ouvidos online, de modo geral, por plataformas de streaming, as quais podem ser reproduzidas em diferentes artefatos tecnológicos (computadores, celulares, tablets, entre outros).5 Eugênio Freire (2013) aponta que os conteúdos da mídia digital podcast são destinados para a veiculação de relatos de experiências, acontecimentos e debates informativos sobre os mais variados temas. Nesse sentido, a escolha do podcast Introvertendo fundamentou-se no interesse em analisar, com base nos conceitos do campo dos EC, como jovens autistas expressam suas emoções, entendimentos e principalmente abordam suas experiências de vida.
A concepção do mundo da Podosfera, onde os ouvintes sejam capazes de fornecer material para outros ouvintes, vem sendo realizada de forma mais abrangente na era digital, constituindo, assim, uma cultura participativa. Segundo Henry Jenkins et. al (2014), o podcasting foi capaz de fazer reaparecer o formato do rádio com uma tecnologia diferenciada, em razão de proporcionar um meio mais participativo, permitindo que grupos diferentes possam produzir e circular conteúdo como o rádio.
O podcast se transformou na cultura popular da internet, tornando-se uma das mídias mais acessadas pela juventude em razão da sua praticidade para fazer downloads de conteúdo, de músicas, e como ferramenta pedagógica. Daí, unindo-se à intenção em investigar sobre artefatos que produzem pedagogias culturais e sobre autismo, surgiu a ideia de pesquisar sobre o podcast Introvertendo, um artefato midiático cultural do ciberespaço apresentado por jovens autistas.
O podcast Introvertendo está presente em diversas plataformas, como Spotify, Apple Podcasts, Deezer, CastBox, Google Podcasts, Amazon Music, Podcast Addicta e YouTube. Importante destacar que a ideia do podcast surgiu durante os encontros do Grupo Asperger do “Programa Saudavelmente”, organizado pela Universidade Federal de Goiás (UFG), que oferecia cuidados em saúde mental, através do atendimento de uma equipe multiprofissional, à comunidade universitária.
Em 2018, os(as) integrantes do podcast começaram a produzir os primeiros episódios em uma das salas de terapia da UFG. O grupo reuniu, inicialmente, estudantes universitários, entre os quais cinco autistas, Luca, Marcos, Michael, Otávio e Tiago, que seriam responsáveis, mais tarde, pela formação original do podcast Introvertendo. Atualmente, a equipe de integrantes do podcast Introvertendo reúne oito jovens autistas: Tiago Abreu (Porto Alegre - RS), Luca Nolasco (Goiânia - GO), Michael Ulian (Arapongas - GO), Otávio Crosara (Goiânia - GO), Thaís Mosken (Florianópolis - SC), Paulo Alarcón (Caçapava - SP), Willian Chimura (Porto Alegre - RS) e Carol Cardoso (Macapá - AP).
Importante destacar que os participantes receberam o diagnóstico de TEA tardiamente, entre os 14 e 26 anos, e identificam-se como homossexuais, bissexuais e heterossexuais. A produção do podcast Introvertendo é realizada exclusivamente por autistas, incluindo trilha sonora, edição de áudio, edição de textos e transcrições, projeto gráfico e capas, sendo que, do episódio 1 ao 81, foram produzidos de forma independente. A partir de dezembro de 2019, do episódio 82 ao 84, a produção passou a ser semi-independente e, após a fase de transição, do episódio 85 em diante, contrataram o apoio técnico da Superplayer & CO (empresa especialista em produção técnica de podcasts). Podemos pensar que o podcast Introvertendo busca garantir visibilidade aos jovens autistas, abordando diversos temas ligados ao TEA, dentre os quais, gênero e sexualidade. O Introvertendo provoca a questão da representatividade de pessoas com deficiência, as quais produzem conteúdos sobre si próprias, destacando principalmente as privações afetivas pelas quais passam.
Nos bastidores: a metodologia de pesquisa
As teorias pós-críticas, de acordo com Dagmar Meyer (2021, p. 52), contestam teorizações totalizantes, por meio de ações interventivas, sob a abordagem de processos de diferenças e hierarquias sociais e culturais. Visam problematizar as formas de produção de “corpos, posições de sujeitos e identidades - como homem e mulher, heterossexual e homossexual, saudável e doente [...] categorizando-os no interior de uma cultura determinada”.
Nessa perspectiva, a pesquisa foi desenvolvida por meio da análise de um artefato cultural, de caráter midiático, denominado podcast Introvertendo, produzido por jovens diagnosticados com Transtorno do Espectro Autista (TEA) nível 1 (grau leve de autismo). Cabe salientar que, em se tratando de pesquisa que faz uso de vozes de pessoas consideradas, legal e culturalmente, como pertencentes a grupos vulneráveis - neste caso, autistas -, a pesquisa precisaria ser aprovada por Comitê de Ética em Pesquisa com seres humanos. No entanto, a pesquisa não envolveu entrevistas ou quaisquer outras formas de comunicação e contato com os jovens autistas do podcast Introvertendo, e as vozes/falas que constituíram a empiria analisada, são vozes de acesso público, sem restrição de uso, desde que mencionada a fonte, razão pela qual não se viu a necessidade de registro no sistema CEP/CONEP (Resolução CNS n°510/2016)6.
Destaca-se, ainda, que os estudos desenvolvidos sobre o ciberespaço têm utilizado dispositivos metodológicos provenientes da netnografia ou etnografia digital que, conforme pontuado anteriormente, consiste em uma das formas da etnografia realizada em ambientes virtuais onde se observa os sujeitos tendo como objetos de pesquisa as produções no ciberespaço (Sales, 2021). Para isso, o(a) pesquisador(a) adentra o ciberespaço como forma de ter subsídios para sua investigação, a fim de compreender como se processa o funcionamento de determinado artefato cultural, onde são analisadas as interações sociais, dos artefatos culturais, das características dos interlocutores, a história, linguagem, assim como elementos contextuais para compreender e analisar o objeto.
Ao escutar os áudios disponíveis no podcast Introvertendo, observou-se que, entre as temáticas abordadas, sobressaiam-se falas que tratavam sobre experiências de relacionamentos afetivos e sexuais vivenciadas pelos(as) jovens autistas do podcast Introvertendo, o que impulsionou a construção de uma pesquisa que buscasse examinar os modos como a juventude autista entende, assume e vivencia a sua sexualidade e constitui identidades de gênero, contribuindo para a compreensão de como estes jovens pensam, representam e representam-se em relação a estas questões.
Importante destacar que, para a constituição da investigação maior da qual deriva o presente Corpos, gêneros e sexualidades, foram selecionados 09 (nove) episódios disponíveis no podcast, no período de 2018 a 2022, os quais se mostraram profícuos para analisar e problematizar as narrativas de jovens autistas, sobre experiências afetivas e sexuais. No entanto, frente ao espaço delimitado deste Corpos, gêneros e sexualidades, priorizamos a análise de quatro episódios, como referimos a seguir:
Episódio 02 (37 minutos), intitulado “Terapia do Amor”, publicado no podcast no dia 18 de maio de 2018, no qual os jovens falam sobre as experiências dos podcasters, como os jovens autistas se relacionam e flertam nas redes sociais e temas sexuais. Participam, deste episódio, Abner Mattheus, Luca Nolasco, Michael Ulian e Tiago Abreu (integrantes do podcast).
Episódio 16 (44 minutos), intitulado “Sexualidade: uma introdução”, publicado no dia 03 de agosto de 2018, no qual falam que sexualidade é “Um dos temas mais pedidos pelas pessoas e um dos mais negligenciados pela comunidade científica”. Abordam sobre a sexualidade dos aspies, orientações sexuais, educação sexual e situações de perigo que envolvem sexualidade. Participam, deste episódio, Guilherme Pires, Letícia Lyns, Luca Nolasco, Otávio Crosara e Tiago Abreu (integrantes do podcast).
Episódio 182 (38 minutos), intitulado “Precisamos falar sobre autistas que não transam”, publicado no dia 13 de agosto de 2021, no qual os jovens falam sobre as queixas de autistas nas redes sociais por não conseguirem ter sexo e relacionamentos, sobre aplicativos de relacionamento, solidão, capacitismo, machismo, prostituição e outras questões que rondam a ausência de sexo para alguns autistas. Participam, deste episódio, Carol Cardoso, Michael Ulian e Tiago Abreu (integrantes do podcast) e Fábio Sousa (convidado).
Episódio 201 (25 minutos), intitulado “Sexualidade no Autismo”, publicado no dia 18 de janeiro de 2022, no qual falam sobre suas experiências, as questões de sexualidade na prática clínica e os atuais entendimentos sobre sexualidade e identidade de gênero entre autistas. Participam, deste episódio, Tiago Abreu (integrante do podcast) e Raquel Del Monde (convidada).
Tais episódios foram ouvidos e, para fins analíticos, foram transcritas as edições das falas dos(as) jovens autistas do podcast Introvertendo, para, na sequência, eleger/recortar os trechos das falas que abordavam aspectos importantes para os tensionamentos em torno das dimensões do gênero e da sexualidade no TEA. Nesse sentido, consideramos a orientação de Cláudia Schneider Marques (2020), que ensina a importância de salvar, em arquivos, os episódios a serem analisados, haja vista o risco de serem excluídos do ciberespaço. Nessa linha de pensamento, Sales (2021, p. 24) declara a necessidade de se fazer downloads do conteúdo a ser investigado, “devido ao dinamismo decorrente das mudanças constantemente feitas pelas(os) usuárias(os), no conteúdo dos perfis e das comunidades [virtuais] (...)”, pois não se pode ter a ilusão de que as informações encontradas na rede de internet estarão eternamente disponíveis, razão pela qual, em um estudo netnográfico, os registros asseguram o acesso ao material empírico e a consolidação das análises.
Das experiências de relacionamentos e sexuais vivenciadas pelos(as) jovens autistas do podcast Introvertendo
A abordagem sobre as vivências de relacionamentos afetivos e sexuais de pessoas com deficiência, ainda é vista como tabu e preconceito por inúmeras dimensões de nossa sociedade. Contudo, os relacionamentos e a sexualidade de pessoas com TEA são problematizados pelos apresentadores do podcast Introvertendo, que contestam os tabus de que pessoas autistas são assexuadas e incapazes de vivenciar relacionamentos. No episódio 02, intitulado “Terapia do Amor”, Luca Nolasco fala sobre suas experiências de relacionamento e flertes:
Luca Nolasco: Ocorre dos relacionamentos modernos. De ocorrer de colocarem o *PINTO* na *ENTRADA USB* do computador para praticar o famoso websexo. [...] o Tinder, eu comecei a usar para um motivo completamente obtuso, que era aprender a conversar com gente. E eu até agora acho que aprendi um pouco. Depois que tiveram as experiências mais voltadas ao sexual, mas, inicialmente, foi basicamente só para conversar. Michael: Cara, minha experiência mais estranha que eu tive com o relacionamento foi a primeira vez que eu vi um par de peitos. Para dar um pequeno contexto, quando eu fazia natação, na época dos meus treze ou quinze anos, eu era a única pessoa de sexo masculino da minha turma. E uma das garotas que ironicamente é minha melhor amiga até hoje em dia, ela estava saindo da piscina e veio falar comigo. O maiô dela era folgado e quando ela se abaixou para falar comigo e bem. Né? Essa foi a primeira vez, mesmo que não seja metade do que eles são hoje, e isso é um elogio. Mas puta que pariu. Peitos a parte, essa é uma das pouquíssimas experiências que eu tenho pra contar. (INTROVERTENDO 02, 02:00 - 10:53) |
É possível notar, no discurso de Luca, que vezes, não lhe são proporcionadas as oportuparte dos jovens autistas vivem o isolamento nidades de interagir socialmente, impedindo social em razão do TEA, isso porque, muitas uma interrelação real, sexual, física e afetuosa. O integrante Luca fala que começou a usar o aplicativo “para aprender a conversar com gente” e que somente depois passou a vivenciar o sexo na internet, denominado por eles de “websexo”.
A interconectividade propiciada pela internet encurtou distâncias e possibilitou relacionamentos antes impensáveis, permitindo a interação entre pessoas e grupos diversos. Para Luis Mauro Martino (2015), a comunicação via mídias digitais tem proporcionado a facilidade para encontrar companhias, relacionamentos digitais e fazer amigos. Neste contexto, as transformações no mundo contemporâneo atravessam e modificam a vida de homens e mulheres em vários aspectos, principalmente no que concerne às mudanças de concepções de práticas e identidades sexuais.
A sexualidade da pessoa autista tem sido marcada, socialmente, por estereótipos, estigmas e preconceitos e tratada por muitos, como inexistente. Contudo, o comentário de Michael, no excerto destacado, sobre o interesse no corpo feminino, contesta tais afirmações, uma vez que ele narra uma experiência pela qual muitos jovens (autistas ou não) também vivenciam na mesma idade.
A partir das perspectivas teóricas escolhidas, compreendemos a sexualidade como produto de uma construção social e histórica. Assim, quando se pensa em questões relacionadas à sexualidade das pessoas com deficiência, tem-se que levar em conta, conforme sinalizam Ana Cláudia Bortolozzi Maia e Teresa Vilaça (2019), como são constituídas, nos diferentes tempos e espaços, a identidade dessas pessoas, nas quais estão implicadas as questões estigmatizantes e as dificuldades agregadas à deficiência.
Tiago: A melhor forma de treinar o autismo. Inclusive, tem outras redes com objetivos mais diretos. Se a pessoa quer sexo, ela vai no Bate-Papo UOL. Ou no Badoo. As minhas experiências não foram nada agradáveis, por isso eu sempre usei outras coisas, mas tem umas redes sociais mais submundos ainda, que são muito mais pesadas e o pessoal já vai direto mesmo. A pessoa nem conversa com você, já manda foto do membro… Luca: Cara, o flerte comigo é engraçado, porque eu consigo até flertar razoavelmente bem na internet. Eu só consigo flertar com pessoas que eu já tive contato inicial na internet, em geral assim. Então, pra mim facilita bastante isso. Se eu tiver conhecido a pessoa pessoalmente, é improvável que eu tenha capacidade de flertar com ela com pouco tempo de conversa, que seja só pessoal. Não sei vocês, podem falar aí. Tiago: Eu também sou muito ruim de flertar, inclusive, todas as pessoas que eu já fiquei na minha vida até hoje, nenhuma delas já tomei uma iniciativa direta a todas as pessoas ou se tinha um consentimento, assim, mútuo de que era pra existir um envolvimento ou a pessoa me agarrou. Luca: Flerte não é necessariamente você ter essa pegada. Flerte é mais aquele jogo da sedução, de ficar mandando indiretinha, de ficar falando sobre como você queria sarrar a pessoa pela internet, quando, na verdade, não vai ocorrer. A coisa não é necessariamente tomar iniciativa. Tiago: É quase ter uma web namorada, né? Luca. É quando você tem um web namoro, ocorrem muitos flertes. Tiago: E você já teve uma web namorada? Luca: Já, já, quatorze anos, foi uma época de… Michael: Temos um webcorno entre nós. (INTROVERTENDO 02, 14:56 - 25:23). |
No mesmo episódio, Luca, Tiago e Michael falam de suas experiências sexuais em sites e aplicativos de relacionamento:
Conforme Larissa Pelúcio (2015), os reou computador, e visualizam-se os perfis das lacionamentos no mundo da cibercultura pessoas cadastradas para relacionamentos são comparados a um “jogo” em que se faz o amorosos e/ou sexuais, sem a necessidade de download do aplicativo, seja no smartphone contato físico.
Em relação às experiências sexuais na internet, Tiago destaca, no excerto acima, que vivenciou experiências desagradáveis em aplicativos de relacionamento, dizendo que “a pessoa nem conversa com você, já manda foto do membro”. Tais práticas podem representar riscos para os participantes, como salientam Barros e Ribeiro (2016). As autoras apontam que a disseminação de conteúdo erótico sem a autorização, pode provocar importunação e constrangimento.
Tiago: Mas, enfim, uma noção que eu percebi a partir desses pais é que eles enxergavam a partir do diagnóstico. A partir da noção de quem está no espectro autista, que é tecnicamente uma deficiência. De que deficiente não transa e isso não se resume somente a questão do Asperger, mas de todas as pessoas incomuns dentro desse espaço. Então é um preconceito muito forte, muito arraigado. E eles se sentiam desconfortáveis ao falar de sexo em relação aos filhos, como se isso não fizesse parte do meio deles. (INTROVERTENDO, 16, 17:19 - 17:57). Otávio: Eu dei muita sorte de ter nascido numa família que me proveu muito amor e conversa. Eu sempre discuti vários assuntos com a minha família. Em minha família tem pessoas muito religiosas. Mas conversando, discutindo, perguntando e eles me perguntando o que eu achava, eu me tornei a pessoa com a sexualidade que eu tenho hoje. (INTROVERTENDO, 16, 17:55 - 18:24) |
Sobre sexualidade no TEA, os(as) jovens afirmam ser um tema negligenciado pela comunidade científica. No episódio #16, publicado na rede em 03 de agosto de 2018, eles(as) abordam sobre a sexualidade dos Aspies, orientações sexuais, educação sexual e situações de perigo que envolve sexualidade. Participam desse episódio: Guilherme Pires, Letícia Lyns, Luca Nolasco, Otávio Crosara e Tiago Abreu.
A sexualidade, para as famílias de filhos autistas, é delimitada em razão do diagnóstico médico e, consoante se percebe no discurso de Tiago, vista, muitas vezes, com preconceito, tabus e estereotipia. Podemos pensar que os discursos oficiais sobre o tema, a exemplo dos propagados pelos Ministério da Saúde e pela Secretaria de Juventude, os quais negligenciam a possibilidade do exercício da sexualidade das pessoas com qualquer deficiência, fomentam as discursividades das famílias. Fazemos essa afirmação por não encontrarmos, nos canais midiáticos dessas instâncias, materiais publicitários que abarquem sexualidade, juventude e deficiência. Nesse sentido, Ana Carla Vieira (2016) aponta que as famílias infantilizam e rotulam as pessoas com deficiência como incapazes. A visão destas famílias pode estar respaldada em mitos do senso comum, de que estas pessoas são assexuadas, sem sentimentos, ou até mesmo hipersexualizadas.
Outro ponto a destacar, refere-se à superproteção da família para com seu(a) filho(a) autista, que, em alguma medida, impossibilita a vivência de experiências comuns a suas respectivas faixas etárias. Condutas paternalistas/maternalistas, como essas, respaldam-se, muitas vezes, em abordagens terapêuticas comportamentais e psicofarmacológicas que permitem controlar e monitorar “comportamentos sexuais inapropriados” (BRILHANTE et al, 2021, p. 418). Oprimidos(as) pelo controle e protecionismo dos pais e familiares, estes jovens não conseguem vivenciar as experiências da sexualidade e/ou lhes é negado o reconhecimento de sua identidade sexual e/ou de gênero.
No entanto, com base em outros estudos, Ana Cláudia Bortolozzi, Leilane Raquel Spadotto de Carvalho e Teresa Vilaça (2019, p. 33), pontuam que “a sexualidade faz parte de todos os seres humanos; é um conceito que inclui, além da genitalidade, também os desejos, as emoções, os valores e as crenças e sua expressão é influenciada pela cultura em que a pessoa vive, além de suas experiências ao longo das várias etapas do desenvolvimento na vida”.
Tiago Abreu (2022), um dos integrantes do podcast Introvertendo, em seu livro sobre Neurodiversidade, argumenta que:
Embora a sexualidade no autismo seja um tema hoje em crescente debate, sabe-se que muitas pessoas autistas não conseguem construir relacionamentos mais duradouros, nem ter experiências sexuais satisfatórias. As lacunas no conhecimento da área, bem como os equívocos de certa simplificação se devem ao fato de que grande parte da comunidade do autismo, centrada em famílias e profissionais, de forma geral, ainda não conseguiu acompanhar esses debates e nem mesmo pensar em pessoas autistas, ao mesmo tempo, como público-alvo e como sujeitos ativos de suas pesquisas. Na prática, em grande parte dos eventos sobre autismo, ainda não se consegue pensar nos autistas além de uma participação cultural ou palestras e falas baseadas em relatos de experiência, isso quando pessoas autistas não são vistas apenas como “anjos azuis” para “inspiração”. (ABREU, 2022, p. 45)
Em razão de estarem inseridos(as) em uma sociedade normativa, patriarcal e moralista, as juventudes autistas têm maior probabilidade de sofrerem abusos com relação à sexualidade, em razão da acentuada vulnerabilidade e direitos negligenciados. Esse ponto ficou evidente nas declarações de Letícia e Guilherme:
Leticia: Porque eu sempre fui uma pessoa que tive muita dificuldade de dizer não. Então assim eu já fui assediada e eu já passei por muita coisa em relação à sexualidade que me deixaram sem saber o que fazer a primeira foi que eu estava no ponto de ônibus lá no terminal da Praça Bíblia de calça tal e um cara simplesmente enfiou a mão no meio da minha calça e colocou a mão na minha mariazinha e eu olhei pra trás e não sabia quem era porque tinha muita gente e eu entrei em estado de choque e comecei a chorar dentro do ônibus. As pessoas perguntavam se eu estava bem e eu falava que eu estava bem e eu não conseguia explicar, não consegui dizer o que tinha acontecido, né (INTROVERTENDO 16, 29:30 - 30:30) Leticia: A segunda vez foi na boate, foi lá na The Pub. Inclusive eu nunca mais fui lá, porque eu peguei um trauma desse dia. Eu passo na porta e lembro. Eu tinha bebido um pouco, mas eu tava assim, como posso dizer, consciente. Eu fiquei com um cara lá que ele era aparentemente mais velho do que eu e ele começou a vim com a mão boba e começar a falar,” resolve o meu problema, resolve meu problema” e duro daquele jeito e o cara querendo que eu transasse alí de qualquer jeito. Tipo isso e eu não sabia o que fazer. Eu tenho um problema que quando eu entro em estado de choque eu não consigo falar. Então eu só balbuciava e tentava empurrar ele já quase perdendo a força, até que eu consegui sair dele e sai correndo. Meu primo estava lá e eu pedi pro meu primo pra ir embora. E foi tão traumatizante para mim que eu fiquei um bom tempo sem conseguir pensar em sexo, e em ser tocada porque eu achava que qualquer cara que eu fosse ficar ia fazer a mesma coisa e não foi diferente, realmente. (INTROVERTENDO 16, 30:37 - 32:00) Guilherme: Há pessoas que acham que você é um objeto de cristal, tem medo de ir pro lado da sexualidade contigo. Eu mesmo deixo bem claro quando eu converso com as pessoas. Se é uma pessoa que eu acabei de conhecer e estou dialogando, sou transparente, falo de cara. Que eu tenho asperger associado com desvio de atenção. E aí as pessoas ficam surpresas, né? Mas é aquela questão, há casos e há casos. Vai muito também do caráter da pessoa, né? Isso daí de abusar da sua condição. Então, assim como os meninos disseram, não deixe passar batido, diga não. Por mais que a verdade doa quem doer, diga não, não aceite. Não seja submisso. (INTROVERTENDO 16, 42:56 - 43:52) |
O relato de Letícia visibiliza as violências e os abusos 0 as mulheres sofrem de forma geral, sejam autistas ou não, e a realidade aponta que esses problemas são estruturantes da desigualdade de gênero. Importante destacar possíveis dificuldades da pessoa com TEA em perceber atitudes ou situações de risco, em razão do déficit na comunicação e na compreensão de sinais, impossibilitando uma situação favorável às violências e abusos sexuais. Conforme Ana Carla Vieira Ottoni (2022), a educação sexual, além de possibilitar o desenvolvimento da sexualidade, é considerada fator de proteção para pessoas autistas que estão vulneráveis a abusadores e assediadores.
Em continuidade ao tema “Sexualidade no Autismo”, os(as) jovens autistas, no episódio #201 publicado em 28 de janeiro de 2022, voltam sobre esse tema com uma nova abordagem. Falam sobre suas experiências, as questões de sexualidade na prática clínica e os atuais entendimentos sobre sexualidade e identidade de gênero entre autistas. Participaram do episódio: Tiago Abreu e a convidada Raquel Del Monde, que vê a sexualidade como questão social e que tem aprendido muito sobre o TEA com a comunidade autista e as experiências de vida de seus pacientes.
Tiago: E essa parte do espectro do autismo muitas vezes não tem acesso a educação sexual, as famílias também não sabem como lidar porque são pessoas que muitas vezes não desenvolveram uma linguagem no sentido de você conseguir explicar as coisas de uma forma mais abstrata, ou de você conseguir ensinar isso de forma mais fácil. Eu vejo que tem muitas famílias que têm um pouco de dificuldade nesse sentido. Porque o autista cresce, chega na adolescência, precisa lidar com essas questões, precisa manifestar às vezes um desejo sexual e isso pode ser reprimido, isso pode envolver até violação de direitos humanos em níveis mais complexos… A gente tem algumas coisas disso na comunidade do autismo. (INTROVERTENDO 201, 16:53 - 17:35). |
Durante boa parte deste episódio é abordado acerca do impedimento de o(a) autista expressar sua sexualidade, seja por repressão de familiares e/ou profissionais. Na perspectiva de Vieira (2016apudOttoni, 2022, p.16), “a falta de programas interventivos com orientações sobre sexualidade, ou espaços onde o assunto possa ser tratado com segurança e liberdade” são obstáculos ao pleno desenvolvimento da sexualidade. Depreende-se, da visão desta autora, que a educação sexual é extremamente relevante para a aprendizagem de comportamentos sexuais, sejam de jovens autistas ou não autistas. No entanto, em razão do estigma em torno do TEA, não há programas de incentivo para a educação sexual. Os EC direcionam a compreender como se estabelecem as relações culturais das juventudes autistas e, neste campo, a sexualidade é percebida como, frequentemente, invisibilizada - as vivências sexuais são negadas e há vulnerabilidade com relação a abusos e violências.
No episódio #182, “Precisamos falar sobre autistas que não transam”, os(as) jovens falam sobre as queixas de autistas, nas redes sociais, por não conseguirem ter sexo e relacionamentos, bem como sobre capacitismo e outras questões que rondam a ausência de sexo para alguns ou algumas autistas. Participam desse episódio: Carol Cardoso, Michael Ulian, Tiago Abreu e o convidado Fábio Sousa.
Tiago: [...] eu entendo que o capacitismo no contexto das relações afetivas e sexuais no meio da deficiência, é muito evidente. A gente tem dentro da nossa sociedade várias formas de você flertar e conseguir relações. Hoje em dia, até onde eu entendo, as formas mais comuns são aplicativos, a gente já falou aqui do Tinder, existe também o Happn, também tem o OK Cupid e também tem, como eu falei, os próprios apps da comunidade gay como Grindr e etc. Então, você já tem vários aplicativos, onde você pode conhecer novas pessoas. E também tem o encontro presencial, em festas, bares, em espaços sociais, de uma forma geral. Quando as pessoas estão interagindo nesses espaços coletivos, a gente já tem um ambiente com muitas variáveis, com muita comunicação não-verbal, isso já complica pros autistas. Dentro dos aplicativos, a gente tem outras variáveis operando. Você ter um bom perfil, de alguma forma chamar atenção das pessoas, ter habilidades pra conversar ali no texto por texto. E a gente tem uma discussão recente, por exemplo, que em aplicativos como Tinder, a grande maioria das pessoas que têm contas nesses aplicativos não conseguem muitos matchs, principalmente, em relações heterossexuais. No sentido de que só uma “nata”, digamos assim, de pessoas nesses aplicativos costumam se sair bem. E aí, eu acho que os autistas, definitivamente, não vão estar nessa minoria. Eu não sei se vocês têm 95 experiências com aplicativos, mas vocês percebem esse ambiente excludente, de alguma forma? (INTROVERTENDO 182, 9:38 - 11:17). |
A fala de Tiago representa a dificuldade que as pessoas autistas têm de interagir nos espaços sociais e estabelecer relacionamentos e flertes. Isso porque as características de pessoas no TEA como dificuldade de interação, comunicação não-verbal, entender piadas e ironias, atrapalham essas relações. Contudo, não significa que os(as) jovens autistas sejam incapazes de ter relações afetivas e sexuais, pois, a internet, por meio dos aplicativos de relacionamentos, possibilita que esses(as) jovens estabeleçam vínculos, indo de encontro à visão capacitista que se tem sobre as pessoas autistas.
Segundo Maia e Vilaça (2019), a sociedade cria expectativas em relação à sexualidade das pessoas e estabelece um padrão cultural que considera ser “normal”, forçando as pessoas corresponderem a esses padrões. E, a respeito da sexualidade de pessoas com deficiência, julgam que essas são assexuadas ou possuem hiperseconsiderados tabus, como é o caso da sexualixualidade. É possível dizer que, apesar dos avandade e da deficiência. Percebe-se o sofrimento ços nas sociedades, em especial na ocidental, e a discriminação dessas pessoas, em razão da ainda existem assuntos que continuam sendo deficiência, como argumentam Tiago e Fábio:
Tiago: Tem autistas que não vão conseguir nem um match, isso é uma realidade. Tem autistas que conseguem o match e aí a gente tem um outro cenário, que é um cenário que, inclusive, eu já vivi, que é o momento que você fala que você é autista, que você tem uma deficiência. E, evidentemente, a tua deficiência é um motivo para que a pessoa se afaste de você, que ela desfaça o match ou que ela não queira nada contigo. OK, eu entendo que as pessoas têm liberdade de escolherem com quem elas querem ficar, mas nesse contexto tá muito evidente de que a deficiência é um impeditivo pras pessoas quererem manter uma certa relação com você. E isso é preconceito, evidentemente. Então, a gente já tem essa exclusão dentro do aplicativo. Dentro do encontro presencial, a coisa fica mais complexa. Então, imagina: passar por todas essas etapas e terminar em uma relação sexual ou em algum caso, até que se dê ainda melhor em um relacionamento, é muito difícil. Você precisa ter muitas habilidades. Já é difícil para as pessoas não autistas, imagina autistas. (INTROVERTENDO 182, 12:14 - 13:13). Fábio: A pessoa pode ter o papo mais maravilhoso do planeta, a partir do momento que ele fala que ele é um deficiente, a coisa muda, sabe? Então, se fala: “ah, nossa, você é uma pessoa muito legal”. Aí, cê fala: “sou 96 cadeirante, eu sou surdo, eu sou cego”, automaticamente a pessoa que tava interessada em você acaba pensando com “dó, tadinho”. “Será que essa pessoa vai servir pra mim? Será que eu vou conseguir transar? Será que essa pessoa vai servir de alguma forma como um companheiro, uma companheira?”. E no final, você percebe que para qualquer deficiente, não só os autistas, o capacitismo será a maior barreira para um relacionamento com uma pessoa que não é deficiente (INTROVERTENDO, 182, 14:43 - 15:33). |
Nesse sentido, faz-se necessário dar visibilidade às pessoas com deficiência como forma de desnaturalizar ideias capacitistas, que, atualmente, atravessam os espaços social e virtual. Quando se trata da interseccionalidade dos marcadores gênero e deficiência, a experiência de opressão vivida pelos(as) jovens autistas é acentuada. Nesse ponto, há “necessidade da convergência entre os corpos vulnerabilizados, buscando fortalecer-se contra as estruturas de opressão, pensando nas questões de raça, classe e gênero.” (Gesser et al, 2022, p. 132).
Ainda nesse episódio (#182), os(as) jovens autistas falam acerca das habilidades sociais para encontros, como se percebe no trecho abaixo:
Tiago: [...] Então, eu fico pensando: será que seria legal ensinar essas habilidades do flerte para autistas? Talvez isso resolveria parte do problema. E conversar um pouco mais sobre educação sexual? Queria saber a opinião de vocês sobre isso. (INTROVERTENDO 182, 29:17 - 30:29). Fábio: Muitos de nós iam se beneficiar com um programa que, tipo, ajuda não a treinar pessoa, mas eu acho que seria algo que juntasse tipo assim: “vocês são autistas, né? Então, a gente vai ajudar vocês a se comunicarem e quem sabe, arrumar um parceiro, uma parceira neste programa”. Porque por mais que a gente tenha aula, na hora do vamos ver diante de uma pessoa não autista, a gente ia ficar todo durinho, sabe? Tipo o Charlie Chaplin tentando mostrar, fazer gracejos. É tudo muito mecânico, porque a gente não tem essa habilidade in natura dentro do nosso corpo. E outra coisa, educação sexual, pra nós, autistas, ela tem cunho diferente, porque os corpos de pessoas atípicas funcionam de forma diferente de um corpo não autista. Em qual sentido? Eu não sei direito o processo biológico, eu posso também estar falando besteira, mas é muito comum você ouvir de autistas que às vezes um toque pode ser extremamente prazeroso ou extremamente doloroso, às vezes um toque não faz nada na pessoa, a sua zona erógena é outro lugar. Então, educação sexual para nós é importante para saber o que nos dá prazer, o que não nos dá prazer, porque ajuda a ter problemas na hora H. Às vezes, ter uma terapia pra poder dessensibilizar, tudo mais. Outra coisa é que a questão sexual ajuda muitas pessoas a entenderem e talvez evitarem abusos, né? Porque a gente é presa muito fácil por ser autista. É só você pensar as estatísticas de abuso sexual no autismo, que é muito maior do que a população geral. Então, eu acho que a educação sexual pra nós não tem um cunho que vai ajudar a gente a arrumar um parceirão, uma parceira. Ele é mais um kit de sobrevivência e de autoconhecimento. (INTROVERTENDO, 182, 30:30 - 32:32) |
Apesar das dimensões do gênero e da sexualidade estarem afastadas, atualmente, do currículo de muitas escolas, em razão do tempo de conservadorismo que atualmente vivemos no Brasil, impossibilitando a organização da Educação Sexual nas instituições de ensino, devemos recordar que legislações garantem a discussão de tais temas, em especial, para as juventudes. Assim, vale comentar que tanto o Estatuto da Juventude (Lei 12.852/2013), quanto o Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146/2015), dispõem sobre o direito do jovem com deficiência à diversidade, à igualdade, a não discriminação em razão de orientação sexual e deficiência, bem como, à capacidade civil para exercer direitos sexuais e reprodutivos e o respeito a sua identidade de gênero e orientação sexual. No entanto, se pode notar que os jovens autistas se sentem excluídos, o que demonstra a não garantia desses direitos.
Considerações finais
Por meio de canais virtuais de interação social, como o podcast, Youtube, Instagram, Twitter, Facebook, entre outros aplicativos e redes sociais, sujeitos das mais diversas faixas etárias podem participar, de forma mais ativa, como (re)produtores de cultura. No entanto, em razão, sobretudo, das desigualdades sociais, a inclusão digital ainda não é uma realidade na vida de muitos jovens. E, quando consideramos os jovens com deficiência, esse acesso pode ocorrer de modo mais precário, visto a necessidade de ferramentas, por vezes, de acessibilidade. Contudo, para jovens autistas, o acesso às ferramentas digitais se apresenta como impulsionadoras para “estarem juntos sem estarem perto”, fato que pode mobilizar sua inclusão em diferentes grupos sociais, uma vez que as interações pessoais podem ser mais complexas para os sujeitos com TEA. Entretanto, vale ressaltar as barreiras econômicas ainda relacionadas ao acesso às ferramentas digitais, tais como o valor dos aparelhos celulares e o acesso pago às redes de internet, as quais, mesmo mais acessíveis, ainda representam um custo considerável para parte da população jovem.
No presente texto, buscamos problematizar experiências de relacionamento e sexuais vivenciadas pelos(as) jovens autistas do podcast Introvertendo. Nesse eixo, as juventudes autistas abordaram que flertam, relacionam-se e aprendem sobre sexualidade por meio de aplicativos na internet e utilizam o ciberespaço para estabelecer relações sociais e sexuais. Viviane Vargas (2021, p.116), pesquisadora que analisou a série Atypical, aponta que apesar do(a) jovem autista apresentar características como “inabilidade no relacionamento interpessoal, comportamentos repetitivos e estereotipados”, o interesse em namorar é comum como qualquer outro(a) jovem não autista, pois sua diferença não reprime o modo de tornar-se jovem na contemporaneidade. Desse modo, destacamos que tanto no estudo de Vargas, como em nossa pesquisa, percebe-se o interesse dos jovens autistas sobre as práticas de namoro e afeto. No entanto, em ambos os estudos, também foi possível notar que as famílias e as escolas enfrentam dificuldades para dialogar com os(as) jovens autistas sobre sexualidade e afeto. Essa juventude autista não vivenciou, em sua maioria, uma educação emocional, tampouco sexual, na família e na escola. Muitas vezes, essas instâncias não acreditam na capacidade desses sujeitos para se relacionar, sentirem desejos ou expressarem identidades sexuais e/ou de gênero, devido a ideias capacitistas, e acabam por infantilizar tais sujeitos, desconsiderando sentimentos, desejos e afetos.
Importante salientar, que esses(as) jovens podem correr o risco de sofrerem abusos e/ou violências por não ser proporcionada a eles/ elas uma educação emocional e sexual como fator de proteção a essa juventude. Considera-se importante proporcionar, à juventude autista e à não autista, uma educação emocional e sexual pautada na diversidade, para valorizar as escolhas dos diferentes sujeitos, suas formas de pensar e viver a sexualidade, assim como, considerar as múltiplas identidades sexuais. A educação sobre sexualidade, no TEA e para todos, todas e todes, ajuda a desconstruir normas opressoras e estigmatizantes sobre a sexualidade de pessoas com deficiência, contribuindo para um mundo mais inclusivo, justo e igualitário