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Revista Brasileira de Educação

versión impresa ISSN 1413-2478versión On-line ISSN 1809-449X

Rev. Bras. Educ. vol.24  Rio de Janeiro  2019  Epub 29-Jul-2019

https://doi.org/10.1590/s1413-24782019240031 

Artigos

Cursinho popular por estudantes da universidade: práticas político-pedagógicas e formação docente

Cursillo popular por estudiantes de la universidad: prácticas político-pedagógicas y formación docente

Luís Antonio Groppo I  
http://orcid.org/0000-0002-0143-5167

Ana Rosa Garcia de Oliveira II  
http://orcid.org/0000-0003-4156-7372

Fabiana Mara de Oliveira III  
http://orcid.org/0000-0003-0455-7335

IUniversidade Federal de Alfenas, Alfenas, MG, Brasil.

IIRede Pública de Ensino de Minas Gerais, Alfenas, MG, Brasil.

IIIUniversidade Federal de Itajubá, Alfenas, MG, Brasil.


RESUMO

O artigo trata de um núcleo da Rede Emancipa Movimento Social de Cursinhos Populares, formado por estudantes de uma universidade pública mineira com o objetivo de compreender os processos de formação política e a formação docente desse núcleo. Uma pesquisa bibliográfica fundamenta a análise de campo dos cursinhos populares no Brasil, constatando um dilema que lhe é constitutivo: a conciliação entre o objetivo de preparar para os exames e a intenção de ser um instrumento de luta popular pela democratização da educação superior pública. Por meio de pesquisa de campo, analisa-se o núcleo da Rede Emancipa buscando compreender como tais dilemas são aí vividos. Os principais resultados registram a grande relevância desse coletivo autogerido por estudantes para sua formação docente, incluindo importantes componentes políticos voltados à mobilização popular pela ampliação dos direitos sociais.

PALAVRAS-CHAVE: cursinho popular; formação política; formação docente

RESUMEN

El artículo trata de un núcleo de la Rede Emancipa Movimento Social de Cursinhos Populares (Red Emancipa Movimiento Social de Cursillos Populares), formado por estudiantes de una universidad pública minera, con el objetivo de comprender los procesos de formación política y docente de ese núcleo. Una investigación bibliográfica fundamenta el análisis del campo de los cursillos populares en Brasil, constatando un dilema que le es constitutivo: la conciliación entre el objetivo de preparar para los exámenes y la intención de ser un instrumento de lucha popular por la democratización de la educación superior pública. Por medio de investigación de campo, se analiza el núcleo de la Rede Emancipa, buscando comprender cómo tales dilemas son allí vividos. Los principales resultados registran la gran relevancia de ese colectivo autogestionado por estudiantes para su formación docente, incluyendo importantes componentes políticos dirigidos a la movilización popular por la ampliación de los derechos sociales.

PALABRAS CLAVE: cursillo popular; formación política; formación docente

ABSTRACT

The article deals with a nucleus of the Rede Emancipa Movimento Social de Cursinhos Populares (Emancipate Network Social Movement of Popular Education), made up of students from a public university in Minas Gerais, with the purpose of understanding the processes of political formation and teacher training at this nucleus. Bibliographical research bases the field analysis of popular pre-college courses in Brazil, observing the constitutive dilemma of: the conciliation between the objective of preparing for the exams and the intention to be an instrument of popular struggle for the democratization of public higher education. Through a field research, the nucleus of Rede Emancipa is analyzed, with the objective of understanding such dilemmas experienced. The main results reveal the great relevance of this collective, self-managed by students for their self-training as teachers, including important political components aimed at popular mobilization for the expansion of social rights.

KEYWORDS: popular pre-college courses; political education; teacher training

A PESQUISA

A Rede Emancipa Movimento Social de Cursinhos Populares iniciou suas atividades em 2008, na Grande São Paulo, com a intenção de retomar o sentido político-pedagógico original do “Cursinho da Poli”, a saber: promover o acesso de jovens das classes trabalhadoras à universidade e lutar pelo direito ao amplo acesso à educação superior pública. A Rede Emancipa está atualmente presente em todas as regiões do Brasil e nos últimos anos tornou-se importante referência para um crescente campo de cursinhos populares, pautada no empenho pelo acesso de jovens populares à universidade pública e na mobilização desses jovens na luta pela ampliação dos direitos sociais.

A pesquisa A dimensão educativa das organizações juvenis, durante os anos de 2016 e 2017, investigou o Emancipa Minas,1 um dos núcleos da Rede Emancipa. Essa pesquisa tem tratado dos coletivos juvenis atuantes na Universidade, focando suas práticas educativas não formais e informais e suas contribuições para a formação política de seus integrantes. Assim como o Emancipa, outras organizações estudantis, de caráter político, cultural e religioso, têm sido pesquisadas pelo Grupo de Estudos sobre a Juventude de Alfenas, da Universidade Federal de Alfenas (UNIFAL-MG), grupo que congrega estudantes de ensino médio, graduação e pós-graduação.

Para pesquisar o Emancipa Minas, foram feitos registros em diário de campo a respeito das atividades de planejamento e das aulas desse cursinho pré-universitário. Também foram feitas seis entrevistas ao longo de 2017. Foram convidadas para as entrevistas pessoas com distintas formas de participação no coletivo: sua “fundadora”, três militantes e duas voluntárias. A entrevista teve caráter semiestruturado, com base em um roteiro elaborado para ser aplicado em toda a pesquisa supracitada.2

Inicialmente, o artigo descreve a analisa o que chamamos de campo dos cursinhos populares no Brasil. Esse campo constituiu-se ao longo dos anos de 1990 e destacou-se como movimento social pela educação no início do século atual, enfrentando um dilema constitutivo: a conciliação entre o objetivo de preparar para os exames de acesso e a intenção de ser um instrumento de luta popular pela democratização da educação superior pública.

Em suas duas últimas seções, o artigo busca sistematizar e analisar os dados colhidos na pesquisa de campo sobre o Emancipa Minas. Foi necessário considerar também algumas questões que apareceram ao longo da pesquisa de campo, que são específicas desse coletivo, como as diferentes formas de adesão ao grupo e as particularidades de suas práticas político-pedagógicas. Esta análise buscou compreender como aqueles dilemas do campo dos cursinhos populares são vividos por um deles em particular, o Emancipa Minas. Porém os principais resultados apontam sobre a grande relevância desse coletivo, autogerido por estudantes da educação superior, para sua autoformação como docentes.

O artigo, desse modo, pretende não apenas caracterizar o Emancipa Minas e a própria Rede Emancipa no interior do campo dos cursinhos populares, mas também debater sobre a relevante contribuição da Rede Emancipa na inclusão de importantes componentes políticos na formação docente voltados à mobilização popular pela defesa e ampliação dos direitos sociais, sobretudo a educação pública, gratuita e de acesso universal.

O CAMPO DOS CURSINHOS POPULARES

Em janeiro de 2018, foi empreendida uma pesquisa bibliográfica fazendo uso das palavras-chave “cursinho popular” e “cursinho alternativo”. O objetivo era o de selecionar trabalhos acadêmicos, publicados a partir do ano de 2000 no Brasil, que tratavam de cursinhos populares, preferencialmente enfocando corpo docente, princípios pedagógicos e estrutura organizacional. Parte dos 31 textos selecionados, dos quais 9 abordam a Rede Emancipa, é citada ao longo deste artigo.

A sistematização da leitura desses trabalhos contribui para a compreensão do que podemos chamar de campo dos cursinhos populares no Brasil. Com o auxílio das categorias de Bourdieu relativas à noção de campo social,3 podemos tratar de: as origens desse campo; os principais agentes fomentadores, como cursinhos e redes de cursinhos precursores; os ideais em disputa na constituição de uma doxa (conjunto de “verdades” aceito pelos agentes do campo); as diferentes práticas na configuração de um nomos (conjunto de práticas tidas como específicas ao campo); e os diversos agentes em relação e disputa (no caso, entidades estudantis, organizações ligadas ao movimento negro e à Igreja católica, universidades públicas, governos, tendências de partidos políticos de esquerda, estudantes da educação superior que se tornam docentes dos cursinhos ou membros da sua equipe coordenadora, discentes dos cursinhos, entre outros).

Esse novo campo de cursinhos - os “populares” - vai surgir e consolidar-se ao longo dos anos de 1990 e início do século XXI, principalmente como resposta aos “[…] interesses dos novos grupos de concluintes da educação básica”, ou seja, jovens das camadas populares que acessaram e concluíram o ensino médio público, dada a sua expansão desde o fim do século passado (Mitrulis e Penin, 2006, p. 269). O campo dos cursinhos populares, por um lado, nasce de modo análogo ao campo dos cursinhos comerciais, ou seja, como resposta, em um diferente momento histórico, à demanda de certos grupos sociais pela educação superior, após terem conseguido acessar o ensino médio. Por outro lado, ao menos no auge de sua consolidação, os cursinhos populares propõem outras práticas pedagógicas, adequadas a seus discentes, vindas/vindos das classes populares e das etnias marginalizadas, e buscam acoplar o pedagógico ao político, tanto pela formação da consciência crítica da juventude popular e negra quanto pelo fomento de lutas sociais. Para Zago (2009, p. 1), trata-se de “iniciativas coletivas pela democratização do ensino no país e o acesso ao Ensino Superior”. Não à toa, Oliveira (2006, p. 1) apresenta os cursinhos populares como um “movimento social de educação popular”.

A origem do campo dos cursinhos populares tende a ser identificada com a construção de cursos preparatórios ao vestibular a partir do fim dos anos de 1980, por agentes coletivos com pautas sociopolíticas mais claramente direcionadas à promoção do acesso popular à educação superior (Whitaker, 2010). Entre esses sujeitos, destacam-se as entidades estudantis, exemplarmente o “Cursinho da Poli”,4 ao lado da rede de cursinhos criada por uma parceria entre militantes do movimento negro e setores da Igreja católica (primeiro, o Pré-Vestibular para Negros e Carentes -PVNC;5 em seguida, o Educação e Cidadania de Afrodescendentes - Educafro). Menções muito breves são feitas sobre os cursinhos comunitários - ligados a associações de moradores, aqui se destacando as “comunidades” e periferias da Região Metropolitana do Rio de Janeiro - e menores ainda acerca do movimento sindical (Oliveira, 2006; Silva, 2017).

A constituição desse campo percorre os anos de 1990, quando se configura, principalmente entre os cursinhos ligados a entidades estudantis e ao movimento negro, uma doxa e um nomos que conjugam práticas pedagógicas e pautas políticas. As práticas pedagógicas desejam ensinar jovens das camadas outrora excluídas da educação superior, populares e negras, a “passar no vestibular” ou a “se dar bem no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM)”. As pautas políticas giram em torno do ideal da democratização da educação superior, por meio de demandas que se acabaram tornando vitoriosas, como a isenção de taxas para inscrição em vestibulares e ENEM, a lei n. 10.639/2003 (sobre o ensino de história e cultura afro-brasileira),6 cotas sociais e raciais, além de outras que ainda estão no horizonte de algumas redes de cursinhos, como o acesso universal à educação superior pública, o concomitante fim dos exames de acesso e políticas consistentes de permanência de jovens que vêm de grupos social e racialmente marginalizados.

Entretanto, desde suas origens, trata-se de um campo com múltiplos atores e diversas experiências, que nem sempre cabem perfeitamente na proposição mais aceita, que combina o pedagógico e o político. Entram no campo, disputando legitimidade, recursos, docentes e discentes. Um dos menos pesquisados, em dissonância com sua importância relativa, sobretudo na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, são os cursinhos comunitários ligados a associações de moradores de favelas e regiões ditas periféricas. As poucas referências indicam o caráter “pragmático” desses cursinhos comunitários, mais preocupados com “passar no vestibular” que com a politização. Experiências de cursinhos populares mantidos por governos municipais em parceria com organizações da sociedade civil parecem ter sido mais comuns no início dos anos 2000, como as de Jandira, São Paulo, e Porto Alegre, Rio Grande do Sul (Pereira, 2007; Ruedas, 2005). Duas dissertações que fazem um “mapeamento” de cursinhos em duas grandes capitais indicam a multiplicidade de sujeitos e experiências, ainda que muitas com vida breve: preponderam entidades estudantis e o movimento negro, mas também há organizações não governamentais (ONGs), associação de mães, instituição religiosa católica, movimento espiritualista etc. (Bacchetto, 2003; Pereira, 2007).

Foi tornando-se muito comum a institucionalização dos cursinhos populares por meio da extensão universitária, em diversos casos amparando ou até mesmo adotando a iniciativa original de entidades estudantis, como é o caso dos cursinhos populares da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP) (Nascimento, 2013). No município mineiro, o Emancipa Minas recebeu durante dois anos apoio da Pró-reitoria de Extensão da Universidade, por meio de bolsa de extensão e ajuda com material de consumo. Porém a própria Universidade mantém seu cursinho popular, gratuito a partir de 2016. Outro exemplo de cursinho popular criado pela iniciativa da universidade é o Cursinho Pré-Vestibular da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), em São Carlos, São Paulo (Oliveira, 2006).

As diferentes formas de institucionalização dos cursinhos populares, especialmente as parcerias entre as entidades estudantis e a extensão das universidades, também contribuíram para a generalização de uma característica marcante do campo, mas que não era tão clara nos anos de 1990: a gratuidade para as/os discentes.7 A gratuidade, certamente, também é possível pelo caráter voluntário da docência e pela concessão de bolsas de extensão por universidades públicas. Mendes (2011) alerta sobre os riscos da institucionalização dos cursinhos populares: em busca de mais estabilidade financeira e amparo organizacional, pode-se perder o caráter radical da pauta política, sobretudo quando há a sua transformação em ONG ou o amparo por fundações empresariais, órgãos governamentais e até mesmo projetos de extensão universitária.8 Assim, se, por um lado, a institucionalização dos cursinhos populares pode garantir a estabilidade e a gratuidade, por outro, há o risco de sua despolitização com a imersão total ou parcial no campo das práticas socioeducativas, campo este voltado basicamente ao que Mendes (2011, 2012) chama de “inclusão” - caindo na armadilha de focar a equalização das oportunidades, em vez de lutar contra a estrutura “meritocrática” da educação superior.9

No âmago da práxis dos cursinhos populares, é patente uma contradição que tensiona o campo, bem como a relação entre os atores coletivos e a dinâmica interna de cada cursinho: a ênfase no “pedagógico” desvinculado da pauta política versus a ênfase no “político” (Mendes, 2012). A ênfase no “pedagógico” desvinculado da pauta política tende a aproximar esses cursinhos do campo das práticas socioeducativas, promotoras da “inclusão social” por meio do voluntariado, como organizações do “terceiro setor” e entidades assistenciais (Groppo et al., 2013). A influência de diversas forças sociais sobre os cursinhos, deslocando a precedência da luta social e da “conscientização” em prol da “inclusão”, sempre foi forte nesse campo, segundo Mendes (2012). Por sua vez, a ênfase no “político” busca tratar as práticas pedagógicas também como um meio para politizar docentes e discentes do cursinho e, ao lado de outras ações, busca fomentar lutas sociais que representam demandas da juventude das camadas populares, principalmente o acesso à educação superior.

Em sua constituição, o campo dos cursinhos populares buscou aproximar-se do referencial pedagógico e político representado por Paulo Freire e pelos movimentos sociais que demandam direitos à educação. São marcantes ideias freirianas, como a intencionalidade conscientizadora da educação e a defesa de que as práticas formativas devem considerar a realidade concreta de estudantes (Mendes, 2011; Pereira, 2007). A pauta política prevê o fomento de lutas sociais pela educação, tanto quanto conteúdos como cidadania, direitos humanos e cultura, provendo formação crítica a discentes (Mitrulis e Penin, 2006; Oliveira, 2006).

Entretanto, sempre houve - e tende a crescer quanto mais o campo dos cursinhos populares se aproxima do campo das práticas socioeducativas (e da meta da “inclusão”) - um currículo “alternativo”. Esse currículo deve menos à referência a Paulo Freire e à educação popular e prefere palavras-chave como “autoestima”, socialização, preparação para o mercado de trabalho ou inclusão na sociedade. Mitrulis e Penin (2006, p. 265) referenciam-se em autores como Dubet, Tedesco e Martuceli para defender que os cursinhos deveriam ter “proposta educativa na qual a socialização e a aprendizagem estejam intimamente ligadas”, propiciando ao docente “uma nova maneira de ver o mundo, relacionar-se consigo mesmo e com o outro”. Também falam em “formação para a vida” e “formulação de projetos de vida” (Mitrulis e Penin, 2006, p. 290). O Cursinho Popular de Jandira, segundo Ruedas (2005), diante dos baixos índices de aprovação para as universidades públicas, optou por privilegiar a formação geral para elevar a “autoestima” de discentes, bem como o aprendizado de competências e habilidades para a vida e o mercado de trabalho.

Os trabalhos sobre orientação profissional e orientação educacional nos cursinhos populares também seguem a rota do currículo “alternativo” (Soares, 2007). Whitaker (2010) recomenda universalizar a orientação profissional nos cursinhos populares, forma que também permitiria o ganho pela juventude popular de um “capital cultural” que equilibraria a disputa pelo acesso à educação superior pública.

Outra contradição não abandonou o campo dos cursinhos populares: a aproximação com o mercado dos cursinhos comerciais. A Rede Emancipa nasce em meados da década de 2000, embalada por sujeitos que demandavam um “retorno às origens” do “Cursinho da Poli”, sujeitos que consideravam que esse cursinho popular precursor, com sua transformação em organização não governamental, desvinculação com o movimento estudantil, despolitização da formação e taxas cada vez mais caras, tornava-se um cursinho pré-vestibular comercial, ainda que de preço mais acessível, voltado a uma nova e crescente fatia do mercado consumidor de cursinhos comerciais (Mendes, 2011).

A história do “Cursinho da Poli”, de certa forma, repete a de alguns outros cursinhos ligados a entidades estudantis que, nascidos entre os anos de 1960 e 1970, deram origem a cursos pré-vestibulares comerciais e a colégios privados de prestígio. Mas, em contraposição, há uma novidade, já que se anuncia um novo setor dos cursinhos comerciais, demandados por um público das camadas populares que tem a educação superior como algo mais próximo de seus projetos pessoais e familiares, advindo do sucesso da adoção das cotas sociais e raciais no sistema público da educação superior e da generalização das Instituições de Educação Superior (IES) privadas. Os dados de Bacchetto (2003) sobre os cursinhos “alternativos” na capital paulista ao longo dos anos de 1990 trazem indícios de que já se formava então tal setor dos cursinhos comerciais para as camadas populares, com algumas iniciativas que já anunciavam a preponderância dos interesses econômicos de seus proponentes.

Constitui-se como um paradoxo, contudo, o fato de que as cotas foram uma das principais pautas das redes dos cursinhos populares nos anos de 1990 e 2000, principalmente daqueles ligados ao movimento negro. É muito comum entre os militantes da Rede Emancipa o bordão de que o objetivo do cursinho é acabar com a própria necessidade do cursinho - uma ênfase na luta social pela universalização do acesso à educação superior pública.10 É revelador que esse slogan não tenha sido criado pelo Emancipa, tendo sido herdado, entre outras práticas e pautas, de agentes percursores desse campo dos cursinhos populares.11 Em parte, a profecia do bordão parece se cumprir graças a alguns frutos do próprio sucesso das lutas sociais protagonizadas por cursinhos populares, justamente a adoção das cotas sociais e raciais, que criam ao menos mais um caminho de acesso à educação superior pública, paralelo ao da “ampla concorrência” (Marques e Queiroz, 2018). Para a juventude que tem o direito de disputar esse caminho alternativo, o chamado “efeito cursinho” pode fazer a diferença, já que as políticas de cotas foram acompanhadas de políticas bem mais modestas de ampliação de vagas nas IES públicas. Os cursinhos populares não conquistaram a universalização do acesso, mas uma de suas vitórias, as cotas, tem ajudado a tornar esses cursinhos desnecessários no novo contexto que se cria, ou os pressiona a se despolitizar. No tempo em que havia apenas a “ampla concorrência” para as IES públicas, o “efeito cursinho” - ou seja, a frequência durante um ou dois anos a cursinhos comerciais prestigiados - poderia garantir o acesso para frações das classes médias. Agora, o “efeito cursinho” começa a se fazer valer também entre quem tem o direito de concorrer via cotas. Para estes, a frequência a cursinhos gratuitos ou baratos - populares ou comerciais - pode garantir um bom desempenho nos exames de acesso - exames que não acabaram, a despeito da luta dos cursinhos populares (Whitaker, 2010).

O caminho alternativo à educação superior, sem a universalização do acesso e com a manutenção dos exames seletivos, criou o “efeito cursinho” para a juventude das classes populares. Em relação ao campo dos cursinhos populares, isso tem significado um provável ocaso de sua sempre instável doxa - a articulação entre práticas pedagógicas e a luta social em prol do acesso popular à educação superior pública. Os cursinhos populares têm sido empurrados ao pragmatismo dos cursinhos comunitários, bem como à despolitização dos cursinhos vinculados ao campo das práticas socioeducativas, ainda assim enfrentando a concorrência dos cursinhos comerciais baratos.

Não se deve esquecer que os cursinhos populares também podem ser usados como instrumento de acesso a cursos superiores de IES privadas, bem como a carreiras e IES públicas de menor prestígio e ainda a bolsas via Programa Universidade para Todos (Prouni). Parte importante da evasão ou da frequência instável da discência parece explicar-se pela clarificação que esses cursinhos promovem. As/os estudantes passam a compreender logo as reais dificuldades de se ter acessar ao curso ou à IES inicialmente desejados. Isso não necessariamente os leva a desistirem da educação superior, porque, muitas vezes, reavaliam seus projetos e buscam IES privadas ou até mesmo cursos de menor concorrência em IES públicas (Bonaldi, 2015; Zago, 2009). A defesa da adoção geral nos cursinhos populares de orientação profissional e educacional também é justificada pelo fato de poder apresentar de modo mais metódico essas alternativas às/aos discentes, ou seja, para “ajudar os alunos a ajustarem seus níveis de aspiração às suas condições reais”, segundo Whitaker (2010, p. 295), amparando o processo descrito por um professor entrevistado por Zago (2009, p. 16): “a gente vê muitas vezes os sonhos começarem a se adaptar à realidade”.

REDE EMANCIPA E O CURSINHO EM MINAS

O campo dos cursinhos populares também se tem articulado, de modo mais consciente ou deliberado, por agentes que promovem encontros e fóruns. Esses eventos ou coligações têm sido registrados como importantes fontes de inspiração e de recursos político-pedagógicos para que outros sujeitos venham a formar novos cursinhos populares (Carvalho e Freitas, 2013; Costa e Gomes, 2017; Kato, 2011). Outra forma deliberada de articulação dos cursinhos populares é o de os núcleos já nascerem articulados em forma de “rede” ou “movimento”. Ao que parece, iniciativas pontuais, na forma de “núcleos” isolados de cursinhos, tendem a ter vida mais curta, especialmente pela falta de apoio institucional e político-pedagógico. Alguns buscam formar redes, como os da UNESP, com o apoio da pró-reitoria de extensão (Castro, 2011). Outros já nascem com o propósito de serem redes, e conseguem formar mesmo redes muito amplas, com grande influência no campo, como o Educafro. Pode ser usado, com intenção similar, o termo “movimento”, como é o caso Movimento dos Sem Universidade (MSU). A Rede Emancipa Movimento Social de Educação Popular também herda essas intenções: seu próprio nome junta os termos “rede” e “movimento”.

Nas narrativas da origem da Rede Emancipa, a referência costuma ser o Movimento de Resgate do Cursinho da Poli (Mendes, 2011). Mas as diretrizes do Emancipa parecem conter também outras características, para além da retomada da “pureza” do projeto original do “Cursinho da Poli”, tais como a radicalização da luta pelo acesso à universidade e o estabelecimento de cursinhos preferencialmente em escolas públicas na periferia. Comprovam isso os conflitos surgidos quando da tentativa de refundar, em 2006, o “Cursinho da Poli” novamente sob a guarida do Grêmio Politécnico. A maior parte das/dos integrantes do Movimento defendia a formação de cursinhos nas periferias, enquanto o Grêmio, na versão vitoriosa, preferia a concentração das atividades na Universidade de São Paulo (USP). Entre as/os que defendiam a proposta derrotada, nasceria a Rede Emancipa, envolvendo docentes demitidas/demitidos do “Cursinho da Poli”, ex-integrantes da Associação de Estudantes do Cursinho da Poli, militantes do movimento estudantil e outros. Fundaram-se três cursinhos em 2008 com base nessa iniciativa, sendo que desses apenas o Cursinho Chico Mendes, em Itapevi, São Paulo, teve sobrevida e manteve-se dentro da Rede Emancipa (Mendes, 2011). Hoje, a Rede tem cerca de 40 núcleos de cursinhos, envolvendo 20 municípios e 7 estados, em todas as regiões do país: São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Rio Grande do Norte, Pará, Distrito Federal e Rio Grande do Sul (Carvalho, 2017).

Do ponto de vista das redes de cursinhos populares, a novidade da Rede Emancipa parece ser a proximidade de grande parte de suas coordenações com um partido político de esquerda, o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), mais propriamente da tendência que defende que o partido deva ser uma composição de movimentos sociais, o Movimento Esquerda Socialista (MES), em especial via o coletivo juvenil Juntos! (Castro, 2011). O partido e suas relações com movimentos sociais e sindicatos têm sido importantes fontes de recursos organizacionais, ideológicos e políticos à Rede Emancipa, de quem compartilha o seu acúmulo de saberes e práticas político-pedagógicos (Bonaldi, 2015). Segundo relato de militantes, a grande coesão da Rede Emancipa, em comparação com outras redes de cursinhos populares, deve-se à força da “ferramenta política” que a ampara, o MES. Ao mesmo tempo, o Emancipa é fonte de recursos humanos valiosos para que o partido e o Juntos! participem destacadamente de ações coletivas, como as Jornadas de 2013, e conquistem entidades estudantis, como o Diretório Central Estudantil (DCE) da USP (Castro, 2011). No entanto, essa ligação com o PSOL e o Juntos! também tem sido fonte de tensões e conflitos dentro do corpo docente.

Zago (2009) - sobre professores de cursinhos populares no Rio de Janeiro - e Bonaldi (2015) - sobre professores de um cursinho da Rede Emancipa em São Paulo - apontam algumas das características mais comuns do corpo docente, as quais se repetem no Emancipa Minas: são jovens estudantes de IES públicas, superaram o capital escolar paterno e materno, são egressas/egressos da rede pública de ensino e, entre aquelas/aqueles que se envolvem com profundidade com os cursinhos, o tempo de atuação é mais prolongado. Referendam a tese de que o envolvimento da/do docente com o cursinho tem muito a ver com a sua história de vida e com a identificação social com o corpo discente, ainda que haja uma porção de docentes que tem origem social e trajetória escolar mais privilegiada. Bonaldi (2015, p. 312) é ainda mais específico em relação ao cursinho da Rede Emancipa que pesquisou, na capital paulista: tanto o público discente quanto o docente, em relação à origem de classe, é formado de pessoas menos privilegiadas em relação às/aos estudantes de classes médias, porém mais bem situadas em relação à maioria das/dos demais jovens das classes populares, ou seja, provêm de “frações privilegiadas das camadas populares”. Tal identificação do corpo docente com o corpo discente está expressa na entrevista dada por Bianca, coordenadora do Emancipa Minas:

Eu vejo que o Emancipa traduz toda essa minha trajetória, e que são coisas que eu quero, com pessoas como eu, que não tiveram chance de fazer um cursinho, estudaram a vida inteira em escola pública, não tinham perspectiva… porque eu não tinha perspectiva nenhuma quando eu estudava no ensino médio, eu fui perceber que tinha o ENEM através de amigos, eu fui descobrir que eu poderia fazer o ENEM e podia tentar uma vaga. Então, eu quero que pessoas como eu, que não têm acesso à educação de qualidade, tenham condição de entrar na universidade. (Bianca, coordenadora)

Outra importante semelhança entre o corpo docente e o discente é o predomínio das mulheres, chegando próximo dos 70% no cursinho do Emancipa que Bonaldi (2015) investigou. Diversos dados têm indicado no Brasil, desde há alguns anos, a maior aposta das jovens mulheres das classes populares na escolarização, tanto no ensino médio quanto na educação superior (Carvalho, 2003). Os resultados parciais da pesquisa A dimensão educativa das organizações juvenis também têm trazido à tona a maior presença das jovens mulheres nas organizações juvenis da Universidade. Em diversas dessas organizações, tem sido patente o predomínio das mulheres nos papéis de direção e liderança. Elas também se têm destacado na profundidade e longevidade da sua militância, e por isso a maioria das selecionadas para as entrevistas semiestruturadas desta pesquisa - como foi o caso do Emancipa Minas - têm sido as jovens. Essas constatações precisam ser mais teorizadas, mas parecem indicar duas coisas. Primeiro, o que a própria militância feminista tem propagado: a luta pela democratização dos espaços (inclusive no interior dos movimentos sociais) é intrínseca à luta pela equidade de gênero, ou seja, sempre que um espaço se democratiza, aumenta a atuação destacada das mulheres. Segundo, pensando nos projetos pessoais e trajetórias de vida: há um investimento maior das jovens estudantes não apenas na escolarização superior, mas também na militância e/ou ativismo, em especial daquelas advindas de grupos sociais e raciais com presença mais recente nas IES públicas (pela expansão do ensino médio e por meio das políticas de cotas). Tais investimentos podem ser, entre outras coisas, formas de elas demandarem a conquista de relativa ascensão social e/ou igualdade econômica em relação aos homens desses mesmos grupos.

A Rede Emancipa é um dos exemplos de redes e núcleos de cursinhos que têm origem e funcionamento, basicamente, por meio do trabalho coletivo, largamente autogestionado, do corpo docente (Mendes, 2012). Há, portanto, assim como em diversos outros cursinhos populares, um conjunto de militantes que dá origem e coordena a Rede e os cursinhos do Emancipa - que não necessariamente precisam militar no Juntos! e/ou no PSOL. Entretanto, especialmente em cursinhos maiores, como o cursinho do Emancipa pesquisado por Bonaldi (2015), é necessária a adesão do que ele e outros textos chamam de docentes “voluntários”. A porção voluntária do corpo docente nem sempre compreende ou mesmo concorda com a proposta política do cursinho e as suas motivações podem ser diversas, como experiência docente e ajuda de custo (Pereira, 2007; Siqueira, 2011). Ainda que a porção militante também não tenha perenidade na Rede, dada a própria transitoriedade da condição estudantil, a rotatividade da porção voluntária é ainda maior, afetada, por exemplo, pelo aumento da carga horária na universidade ou oportunidade de trabalho remunerado (Bonald,(2015). Mas as diversas motivações, parecendo por vezes opor o voluntariado à militância, segundo Bonaldi (2015), são fontes não apenas de rotatividade nos cursinhos populares, incluindo o Emancipa, mas também de tensões.

Se as/os militantes precisam de pessoas voluntárias para dar conta das aulas, o voluntariado precisa que a militância organize o cursinho, para ter onde ministrar aulas sem a necessidade de se engajar na coordenação. No cursinho investigado por Bonaldi (2015), há a busca de sincronizar, mesmo que provisoriamente, as identidades dos agentes heterogêneos que compõem o corpo docente, criando um “quadro comum de referências” (framing). O quadro seria composto do caráter horizontal e participativo das decisões, pela referência à educação popular de Paulo Freire e por um repertório aceito de práticas pedagógicas e de iniciativas políticas. Há, ainda segundo Bonaldi (2015), um acordo tácito entre militantes e voluntariado, que cria um solo comum de coesão e cooperação: as aulas e atividades devem ser politizadas, mas nunca “instrumentalizadoras”, ou seja, não deve haver propaganda partidária nem práticas de recrutamento. Esse acordo tácito, entretanto, nem sempre é suficiente para evitar tensões e conflitos.

No Emancipa Minas, a voluntária Fabrícia, muito pouco engajada na proposta política do cursinho, revelou insatisfação com as/os militantes que coordenam o coletivo, afirmando que “às vezes a ideologia [do grupo] não sai do papel”. Por sua vez, sobre pessoas voluntárias que não concordam com a visão política do Emancipa, Bianca afirmou que isso acontece mais nos grandes cursinhos em São Paulo, mas no Emancipa Minas houve poucos casos, ainda que com resultado semelhante: “Geralmente, quando elas começam a ver que o cursinho tem essa linha de esquerda, essas próprias pessoas acabam se afastando” (Bianca, coordenadora).

As relações de amizade também parecem marcar o vínculo entre a militância do Emancipa Minas. Daiane (coordenadora) é bastante taxativa, revelando que as novas formas de ativismo requerem relações afetivas entre os sujeitos: “Se você não tem uma amizade dentro do movimento, não dá. Isso te motiva a construir algo”. Voluntárias, em contrapartida, têm relação menos próxima. Estela vê a relação até como “maravilhosa”, relatando que foi muito bem recebida, mas que não tem amizades. O grau de vinculação política acompanha o grau de vínculo afetivo, ao que parece, pois Fabrícia, a menos engajada, diz que o grupo é “um pouco fechado” e “não conseguiu ainda sentir-se realmente acolhida”.

O Emancipa busca se diferenciar tanto dos cursinhos comerciais quanto de cursinhos que se dizem populares, mas que não se engajam na perspectiva de “conscientização” dos sujeitos nem de inserção em lutas pela democratização da educação superior (Mendes, 2011, 2012). Para tanto, além da referência à educação popular e a Paulo Freire, destacam as práticas político-pedagógicas próprias, principalmente o “círculo” ou “círculo do Emancipa” - uma espécie de assembleia e/ou roda ampliada de conversa em que são debatidos temas de caráter político progressista, relativos tanto às lutas pela democratização da educação superior quanto a pautas dos movimentos negro, das mulheres, LGBTT, sindical etc. Durante o círculo, diversos núcleos costumam chamar militantes desses movimentos para dialogar com as/os estudantes. Nas entrevistas com o Emancipa Minas, o círculo foi citado por todos os integrantes como a atividade mais marcante.

A gente forma tanto nós, que estamos mediando o círculo, quanto os estudantes se formam coletivamente, criticamente. Eles trazem opiniões coletivamente, e o que a gente leva é informações, dados e conhecimentos, pra gente ter uma ideia da discussão, que saia algum fruto dali. […] É um espaço do qual a gente sai sempre muito feliz. (Bianca, coordenadora)

O Emancipa também destaca, entre suas atividades próprias, o “tempo livre”, espaço em que as/os discentes podem se engajar em diversas oficinas e outras atividades lúdicas oferecidas, ou apenas conversar e descansar (Carvalho, 2017). Sobre o tempo livre, assim relata Estela (voluntária) em sua entrevista:

Eu acho interessante também os espaços livres, para os alunos, para eles conversarem, às vezes eles conversam com a gente, são momentos em que surge bastante ideia interessante, como na primeira semana do Emancipa, em que a galera estava formando grêmio.

O Emancipa em São Paulo também realiza atividades de caráter político-pedagógico específicas, para as quais busca agregar pessoas vindas de outros estados, em especial as aulas-protesto ou aulas públicas, realizadas no início de cada semestre letivo, no vão do Museu de Arte de São Paulo (MASP). Outra atividade atraente do Emancipa em São Paulo é o Dia na USP, em que, em forma de passeata, estudantes e docentes da Rede percorrem o campus da cidade universitária não apenas apresentando a universidade, mas também reivindicando as demandas da Rede, como a adoção da política de cotas (que só ocorreu na USP a partir de 2017) e o fim dos vestibulares. Essa atividade ilustra outro gosto da Rede Emancipa, já citado anteriormente: o incentivo ao engajamento de docentes e discentes em ações coletivas. A participação do Emancipa nas Jornadas de 2013, fomentadas pela luta contra os aumentos das tarifas do transporte público, é bastante citada não apenas em São Paulo, mas também em outros locais, como em Marabá, Pará (Aragão et al., 2015; Carvalho, 2017).

A Rede Emancipa propõe como uma de suas metas algo que, de certa forma, poderia ser visto como uma concessão ao chamado currículo “alternativo”, apresentada logo no início do Editorial da revista comemorativa de seus 10 anos: “É preciso entender o vestibular, formular seu projeto individual e ser parte de um projeto coletivo” (Carvalho, 2017, p. 4). A concessão parece residir no acolhimento do projeto individual, explicado como “conhecer os mecanismos de seleção e as profissões, mas também pensar no seu futuro, em que tipo de pessoa e trabalhador você pretende ser” (Carvalho, 2017, p. 4). Relatos da militância do Emancipa Minas, colhidos durante observação participante, aventaram a ideia de fazer uma “Feira de Profissões”.

Em consonância com isso, as atividades que mais mobilizam os sujeitos do Emancipa continuam sendo as aulas do cursinho. A maioria deles, na verdade, parece concentrar seu interesse principal nessa ação, incluindo o corpo docente nos casos de cursinhos muito grandes, que precisam recorrer a um número maior de pessoal voluntário. A motivação do discente de “passar no vestibular” ou se “dar bem no ENEM” continua tendo muita força, ainda que a militância enfatize a necessária crítica aos exames seletivos e o direito de todos à educação pública de qualidade, particularmente nos momentos do “círculo”. Reside aí também outra fonte de dilemas no Emancipa, narrados tal qual um drama por Bonaldi (2015) em referência a um grande cursinho da rede, mas que se replica, ainda que com particularidades, em um cursinho menor como o do município mineiro.

Já apresentamos parte desse enredo anteriormente. Segundo Bonaldi (2015), há um entusiasmo esperançoso compartilhado por corpo docente e discente nas primeiras semanas de aula. Contudo, esse ambiente vai sofrendo abalos ao longo do ano, com a crescente percepção das defasagens e dificuldades das/dos discentes para ter aprovação nos exames. Momento forte disso são os simulados, que materializam essa distância e esfriam o entusiasmo inicial. Tanto o esfriamento quanto o aconselhamento familiar podem levar ao rebaixamento das expectativas e à escolha de IES privadas. Também podem levar à evasão ou a uma frequência ocasional, algo reforçado pela necessidade de trabalhar (Bonaldi, 2015).

FORMAÇÃO SOCIAL E POLÍTICA NO EMANCIPA MINAS

As aulas públicas no vão do MASP tiveram grande impacto formativo para as duas alunas de Ana, docente da Universidade. As três, que fundariam depois o Emancipa Minas, foram para a aula inaugural no vão do MASP, em agosto de 2014. A própria constituição do Emancipa Minas se deveu a uma sequência de atividades formativas centradas na Universidade, no segundo semestre de 2014, buscando, como atesta Ana em sua entrevista, “juntar mais gente, porque só tinha pessoas das ciências sociais, e avaliar o que iríamos fazer”: atividade de apresentação do Emancipa Minas na Universidade; “Aulão Pré-ENEM” no Núcleo do Movimento Negro; participação em mesa-redonda sobre as cotas raciais na Universidade; atividade sobre a ditadura militar em escola de ensino médio pública; roda auto-organizada de mulheres, com outros coletivos, contra a violência patriarcal; e atividade de denúncia do massacre de estudantes em Ayotzinapa, México.

Em 2015, o Emancipa Minas já tinha cerca de 20 integrantes, preparando-se para o início do cursinho popular. Primeiro, buscou-se uma escola pública do município que acolhesse o cursinho. A mais receptiva ficava em frente à Universidade. Em seus relatos, as fundadoras afirmam que preferiam outra escola periférica, mas que havia um aspecto simbólico importante nessa escolha, já que muitas/muitos estudantes dali nem sabiam que a Universidade em frente era gratuita, nem que tinham chances reais de nela estudar. Foram feitos, a seguir, encontros de formação ministrados por coordenações de cursinhos da Rede de São Paulo.

A aula inaugural do cursinho do Emancipa Minas foi em abril de 2015, atraindo 120 estudantes do ensino médio. O tema foi “Acesso à cidade”, com a palestra de professor da Universidade. Houve também a acolhida da escola, a apresentação da equipe e da dinâmica do cursinho e atividades culturais. A chamada “aula zero” também foi em abril, já adotando a dinâmica que se repetiria nas semanas subsequentes: aulas aos sábados, almoço coletivo, tempo livre e círculo. Nesse ano, o cursinho atingiu o seu maior público: formaram-se três salas, cada qual com cerca de 40 alunos.

A dinâmica de planejamento do cursinho e das aulas repetiu-se em 2016 e, em parte, em 2017. Na dinâmica das aulas, deve-se acrescentar que, em 2016, funcionou o Espaço da Criança, com atividades para acolher filhas/filhos das/dos discentes do cursinho. Ainda em 2016, buscou-se formar duas turmas do cursinho pré-universitário, repetindo a tradição de outros cursinhos da Rede - uma extensiva (durante todo o ano), outra intensiva (no segundo semestre) - e, enfim, foi ministrado um curso de preparação ao concurso para o magistério municipal.

A procura, no entanto, reduziu em 2016, com apenas 30 estudantes na aula zero. Mais que a redução da procura, entretanto, a evasão é narrada como sendo a maior frustração das pessoas entrevistadas, ainda que elas compreendam as causas sociais e econômicas envolvidas, bem como que se trata de um problema de toda a Rede e característica de qualquer Educação de Jovens e Adultos (EJA). As últimas aulas de 2017 chegaram a não ter estudante algum.

Relatos colhidos na observação participante flagraram outra dificuldade que pode ter relação com a evasão: a incompreensão por parte do corpo discente da pauta política proposta pelo Emancipa Minas. Em 2017, os círculos destacaram a temática LGBTT, inclusive organizando a participação do Emancipa Minas na Parada LGBTT do município. Enquanto a professora voluntária Fabrícia acreditava que os gays e lésbicas da militância formavam um grupo fechado, os diários de campo recolheram falas debochadas de secundaristas ao término de um desses círculos.

Enquanto esteve em funcionamento, apesar do problema com a evasão de discentes e tensões dentro do corpo docente, o Emancipa Minas - que pode vir a se reestruturar em um futuro breve, como deseja a sua militância - foi muito importante para a formação sociopolítica e para o processo de integração à Universidade e ao município de suas/seus militantes, como atestam as entrevistas.

Para pessoas que vieram de fora do município que abriga a Universidade, como Carlos, Daiane e a própria Ana, o Emancipa foi importante como forma de integração à vida na cidade. Mas o que há de unânime nas entrevistas é o reconhecimento da importância do Emancipa na construção ou afirmação de dada concepção de educação, tanto quanto a escolha da carreira no campo da educação - de que trataremos melhor adiante. Diferentemente do que se esperava inicialmente, em suas entrevistas as/os militantes indicaram mediana influência do coletivo para outras questões sociais e políticas para além da educação, como: politica, religião, família, relações raciais, relações de gênero e desigualdade social. A influência é ainda menor no caso das professoras voluntárias.

Depois da educação em seu sentido mais amplo, a principal influência relatada refere-se ao tema “função da universidade” - diretamente ligado ao tema da educação, tanto quanto às pautas políticas mais caras ao Emancipa. Em relação às/aos militantes, na verdade, constatou-se que já militavam antes ou concomitantemente em outras organizações, algumas voltadas mais especificamente à política, como Bianca (no Juntos!) e Carlos (no PSOL, em outro município). Daiane circulava por outros coletivos estudantis, ainda que sem se engajar em nenhum deles como militante. Outro exemplo de ativismo múltiplo é o de Bianca, que, além do Juntos! e do próprio Emancipa, participava do grupo de Maracatu. Essa experiência prévia ou paralela em coletivos voltados mais diretamente à política estudantil teria reduzido a influência do Emancipa na formação política delas/deles, pois já estavam bastante formadas/formados.

Hoje me sinto uma pessoa muito melhor, inclusive por entender de fato o que são os valores democráticos, da necessidade de lutar por uma sociedade diferente, muito mais do que a universidade. Desde que eu saí da universidade, eu critico muito minha universidade, mas o Emancipa me ajudou a ter mais fundamentos, mais elementos de discussão para fazer um debate de mais qualidade. (Ana, ex-coordenadora geral)

Em muitas coisas que eu não conhecia, passei a conhecer por estar dentro do cursinho, principalmente discussões políticas. Antes eu tinha acesso a discussões políticas, mas não sabia que direcionamento tomar. (Bianca, coordenadora)

Acho que os nossos círculos tendem a tratar dessas pautas, das opiniões diversas e do que a gente constrói. A gente trata sempre da questão étnico-racial, está muito presente a questão de gênero, contra o preconceito, contra o machismo. Têm sido espaços construtivos. Também a questão da universidade, se é só ficar dentro da universidade. Sempre se tenta trazer esses temas pra cá, religião, a gente sempre está dialogando, os estudantes têm religiões diversas. O Emancipa é um espaço formativo para essas discussões. (Carlos, coordenador)

A militância traz muita vivência que a vida acadêmica não traz. Então, eu vejo outra realidade, a realidade dos estudantes do Emancipa, dos professores. […]. O movimento, às vezes, contribui muito mais do que os debates construídos aqui dentro da Universidade. Eu consigo compreender bem mais a situação brasileira dentro do Emancipa e do movimento estudantil do que dentro de uma sala de aula. […]. A minha participação nesses grupos mudou completamente minha visão sobre a universidade. Quando eu entrei, eu achava que tinha que entrar, formar e sair. Hoje, eu sei que é bem mais difícil. Que é preciso viver a universidade, todos os seus espaços. […]. Tem a Daiane antes do Emancipa e a Daiane pós-Emancipa. Hoje sou outra pessoa. (Daiane, coordenadora)

Esses relatos da militância trazem em destaque o tema da universidade. A pauta política do Emancipa, destacando a luta por sua democratização, apareceu não apenas como objetivo da Rede como movimento social, mas também, especialmente no relato de Daiane, como experiência transformada em sua relação com a Universidade - aliás, Daiane traz um forte testemunho de transformação pessoal. Mas Daiane enfatiza pouco os outros temas. Para Ana e Bianca, o Emancipa serviu mais como reforço de ideias e valores, enquanto Carlos destacou o trabalho formativo do círculo de modo mais genérico.

A influência social e política, para além da educação, do Emancipa Minas sobre Estela também não foi muito grande. Docente voluntária, mas com um bom grau de adesão à causa político-pedagógica do Emancipa, já tinha participado, como ela diz, de “outros espaços de militância”. Além disso, já estava nos momentos finais de sua graduação em ciências sociais. Seu relato destaca a importância do Emancipa Minas na concepção de educação, como veremos adiante, e no reforço ao seu conceito de universidade:

Função da universidade sim, mas bem que eu já pensava nisso antes, em uma universidade mais democrática, em abrir as portas da universidade para qualquer tipo de pessoa, que até então não podia entrar, que é uma tarefa do Emancipa, fazer com que pessoas de baixa renda, e às vezes as próprias pessoas que moram na mesma cidade da universidade, possam entrar na universidade. (Estela, voluntária)

A voluntária Fabrícia afirma que o Emancipa Minas, em relação à influência social e política sobre ela, “não interferiu muito, pois estas construções foram adquiridas durante a formação acadêmica, somente reforçaram alguns pontos”. Seu relato traz um grande estranhamento em relação à pauta LGBTT, assim como insatisfação com o que poderia ser visto como a distância entre o discurso político e a prática da Rede e do Juntos!.

Como anunciado, a maior unanimidade encontrada nas entrevistas, que é também a grande influência do Emancipa Minas sobre sua militância e voluntariado, refere-se à importância do coletivo para a concepção de educação e a formação docente. Os relatos a seguir foram tomados quando, no início da entrevista, foi perguntado sobre a importância do coletivo para a vida da pessoa entrevistada. Tratam da relevância do Emancipa na construção ou afirmação de certa noção de educação, para a definição da docência como carreira profissional e para a escolha de dadas práticas pedagógicas. Até mesmo a docente voluntária mais arredia confirma essa importância,12 mas isso é mais fortemente reconhecido entre a militância e pela voluntária que melhor acolheu a proposta do coletivo:

Eu fiz escola de elite em São Paulo, então achava que as universidades tinham que ser democratizadas, mas também achava que as pessoas tinham que fazer por merecer. Depois você vai amadurecendo nas discussões ligadas ao direito à educação. A primeira vez que eu entrei em contato direto com Paulo Freire foi através do Emancipa, e Paulo Freire mudou muito minha concepção como professora e, mais do que isso, como me entender como formadora de outros professores. (Ana, ex-coordenadora)

Sem o Emancipa, não teria contato com a educação popular […] e talvez eu não tivesse tanto gosto pela licenciatura e nem pensasse em seguir a carreira da educação, ou de fazer um mestrado em educação. […] Eu me formo como educadora […] Fazer licenciatura não garante que a gente vai ser um bom professor, no sentido de entender a realidade dos alunos, de não ser um professor que esteja reproduzindo as mesmas estruturas de opressão. (Bianca, coordenadora)

O Emancipa foi o lugar onde eu dei minha primeira aula, minha primeira experiência como coordenador também está sendo aqui. […] Trouxe a clareza de que eu quero ser professor e também a tranquilidade para atuar como professor. (Carlos, coordenador)

O Emancipa foi um espaço que encontrei em que vale a pena lutar. Eu acho que através dele eu consigo alcançar meus objetivos de luta. Por meio do Emancipa eu posso realizar transformações através da educação, o que eu acredito muito. (Daiane, coordenadora)

É uma utopia possível, é uma coisa que eu imaginava na educação e que eu achava que era muito distante de acontecer, porque quando a gente vai para o estágio, a gente vê uma realidade muito diferente. Quando a gente está lendo os textos, a gente começa a idealizar a educação, e de repente a gente vai para a escola pública e vê que não é bem assim, e aí é quando todos os nossos ideais começam a morrer e a gente começa a perder todos os nossos ideais, nossos sonhos com uma educação emancipadora. É muito diferente a teoria da realidade, e quando eu entrei no Emancipa eu comecei a perceber que é possível construir uma educação da maneira que a gente acredita. (Estela, docente voluntária)

Como dito, os relatos registram a grande influência do Emancipa na construção de uma noção de educação alicerçada em Paulo Freire e na educação popular - fundamentos pedagógicos e horizonte de atuação política assumidos pela Rede. Nesse aspecto, destacam-se elementos como a superação da crença no valor da meritocracia (Ana), a defesa do amplo direito à educação (Ana), a ruptura com práticas educativas incapazes de superar o que Freire chamaria de “educação bancária” (Bianca), a construção de uma concepção de educação que se pretende transformadora da realidade social (Daiane) e a retomada de uma concepção emancipadora da educação (Estela).

Sobre a carreira docente, os relatos anteriores ainda trazem importantes elementos. Os cursinhos, comerciais ou populares, têm caráter paraescolar, ou seja, são práticas educativas não reconhecidas oficialmente pelos sistemas de ensino (Nascimento, 2013). Contudo, a participação no Emancipa Minas deu a certeza para algumas das pessoas entrevistadas acerca de sua escolha profissional, de que elas queriam realmente ser professoras/professores. É claro, Daiane não era estudante de licenciatura, e Fabrícia afirma que já se tinha definido pela docência. A rigor, Estela também já seguia o caminho da docência, mas seu relato registra a retomada de uma noção “utópica” de educação, após algumas frustrações. Ana também já seguia a carreira docente, mas, quando conheceu o Emancipa e, por meio dele, Paulo Freire, reconstruiu-se como professora e formadora de docentes. Carlos teve, com o Emancipa, suas primeiras experiências como professor e coordenador. Bianca parece ter sido a mais afetada, decidindo-se finalmente pelo campo profissional da educação - como professora e/ou pesquisadora - graças a sua militância.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste artigo, inicialmente, foi trazida uma pesquisa bibliográfica que selecionou textos acadêmicos que mostram tanto a genealogia do campo dos cursinhos populares quanto revelam seus dilemas constitutivos. Foi feita a comparação com campos análogos, como o campo dos cursinhos comerciais e o das práticas socioeducativas. Se os cursinhos comerciais foram uma resposta ao anseio das classes médias pelo acesso à educação superior, os cursinhos populares têm sido uma resposta a projetos análogos das juventudes das classes populares. Esse campo teria se constituído a partir do fim dos anos de 1990, principalmente pela ação de entidades estudantis universitárias e movimentos negros, com a participação menos documentada de outros atores, como as associações comunitárias e os sindicatos. Buscando se diferenciar dos objetivos econômicos dos cursinhos comerciais, os cursinhos populares vão constituir uma doxa e um nomos, ainda que instáveis, que congregam dadas práticas pedagógicas (específicas ao seu público) e pautas políticas (pela democratização da educação superior pública).

Há nesse campo uma tensão que lhe é constituinte, fruto de um dilema nunca resolvido, sobre como combinar o político e o pedagógico. Esse dilema tem, na verdade, uma origem profunda, oriunda das próprias contradições sociais criadas quando populações, outrora alijadas da educação superior, passam a ter esse nível de ensino em seu horizonte. Projetos individuais de ascensão social convivem com a estratégia de promover a universalização da educação superior por meio de ações coletivas. Como visto, a Rede Emancipa não esconde que essa contradição se aloja no próprio centro de sua proposta, qual seja, combinar o projeto individual com a luta coletiva.

Mesmo diante desse dilema, os atores mais combativos do campo tiveram importantes vitórias, em especial a adoção das cotas sociais e raciais. Entretanto, a ampliação das vagas nas IES públicas ficou muito longe de prover o acesso universal, assim como os exames seletivos continuam a vigorar como porta (ou muro) entre o ensino médio e a educação superior. Desenha-se assim uma situação paradoxal, em que os cursinhos populares são ameaçados pelo sucesso de suas próprias lutas, mas de um modo transformado ao que o PVNC já profetizava antes mesmo do Emancipa. Constitui-se um caminho próprio a jovens populares e de etnias negra e indígena para as IES públicas, paralelo ao da ampla concorrência. Para essas/esses jovens, os cursinhos populares podem fazer a diferença no acesso, ou seja, constitui-se um “efeito cursinho” no campo dos cursinhos populares, algo que outrora era residual, mas que agora reforça a individualização e a concorrência entre os postulantes à educação superior, em vez de sua unidade em projetos coletivos e movimentos sociais pela educação.

Os cursinhos populares são empurrados ao pragmatismo - a ênfase na preparação aos exames - e à despolitização. Ainda assim, têm de concorrer com um novo setor dos cursinhos comerciais, mais baratos, voltados especificamente a esse público mais pobre. E continuam a enfrentar severos índices de evasão ou participação volúvel às aulas, o que não necessariamente significa o fim do desejo pela educação superior, já que, em diversos casos, indica a reformulação dos projetos pessoais, buscando IES privadas ou cursos em IES públicas menos concorridos.

A seguir, este texto interpretou os dados colhidos na pesquisa de campo com o Emancipa Minas, coletivo formado por estudantes da Universidade investigada. Na análise, buscou-se primeiro compreender como esse coletivo viveu os dilemas que são inerentes ao campo dos cursinhos populares. Outra questão se relacionou ao objetivo geral da pesquisa A dimensão educativa das organizações juvenis, ou seja, como se dava a formação social e política promovida pelas organizações juvenis da Universidade, no caso, pelo Emancipa Minas.

O Emancipa congrega em seu nome tanto o termo “rede” quanto “movimento”, ambos ilustrando a intenção de articular diversos núcleos e organizá-los em tarefas político-pedagógicas comuns. Ao mesmo tempo, seus núcleos, como o Emancipa Minas, funcionam largamente como cursinhos autogestionados por militantes, particularmente na coordenação, com níveis diversos de adesão à pauta política pelo corpo docente e discente.

Diversos são os objetivos da Rede Emancipa, que caminham próximos aos de outros atores desse instigante campo dos cursinhos populares. Mais claramente, o Emancipa projeta lutas sociais pelos direitos à educação, contesta os limites da democratização da educação superior, fomenta cursinhos populares em que se busca combinar o desejo individual do acesso à universidade com projetos coletivos de transformação social, além de promover a formação de docentes para os cursinhos que mantêm vivas as práticas pedagógicas alternativas que marcam a Rede (círculos, tempo livre, aulas públicas, formação política e mobilização para lutas sociais). É inegável que, apesar de sua autonomia, a Rede Emancipa articula-se à tendência de um partido de esquerda, o MES, e sua organização juvenil, o Juntos!, em uma relação que, se traz alguns pontos de tensão entre a militância e o voluntariado, e por vezes certa incompreensão por parte do corpo discente, também garante relativa unidade e força político-pedagógica a essa rede de cursinhos populares. Por sua vez, o Emancipa promove relativo enraizamento social daquelas organizações políticas, além de captar novas lideranças e firmar bases sociais para a participação em mobilizações e lutas.

Contudo, no que se refere ao Emancipa Minas, as observações sobre suas práticas pedagógicas, assim como os relatos colhidos nas entrevistas, revelam que o maior mérito desse coletivo foi o seu grande poder de formação de educadoras e educadores - até mesmo a docente voluntária mais esquiva reconheceu essa influência. Revela-se uma nova dimensão da autoformação das/dos estudantes da Universidade que tem sido investigada pela pesquisa A dimensão educativa das organizações juvenis. Trata-se da autoformação de professoras/professores, para além do mero exercício de uma prática preparatória antes da entrada plena no mercado de trabalho (como talvez fosse o desejo de Fabrícia, tanto quanto de outras/outros que se voluntariam na docência dos cursinhos populares). As/os estudantes, em porção considerável, vieram autoformando-se na docência pelo cultivo das práticas pedagógicas próprias do Emancipa, bem como tiveram aprendizados sobre a gestão educacional por meio do exercício da coordenação. Há também uma dimensão coformativa na colaboração entre gerações: ela marca a própria origem do Emancipa Minas, em que a docente da Universidade se uniu a alunas para criar a célula original desse coletivo no município mineiro; continua com o processo de formação do corpo docente, com a participação de coordenadoras e coordenadores mais experientes de cursinhos paulistas; e se perpetua com a tentativa de a militância atrair a docência voluntária para as causas do Emancipa, com diversos graus de sucesso (mais com Estela do que com Fabrícia).

Ao autor e às coautoras tem sido inesperado e, mais ainda, indesejado, assistir ao ocaso do cursinho mantido pelo Emancipa Minas, ao longo de 2017 e no início de 2018, justamente quando nosso desejo era documentar um pulsante encontro entre jovens da Universidade e adolescentes populares da cidade. O sentimento nos deve devolver ao que nos diz a própria realidade, ilustrado por pesquisas empíricas e reflexões teóricas, que nos recordam da volatilidade das organizações juvenis e dos coletivos estudantis. Outros coletivos da Universidade também têm conhecido seu auge e esvaziamento diante de nossos olhos, durante os poucos anos da pesquisa, tal qual estudantes vêm e vão da Universidade. Enquanto isso, essas/esses jovens, ou outras/outros que chegam em novas levas, criam outras organizações, trazem novas pautas e inventam outras formas de atuar politicamente, tão surpreendentes quanto aquele coletivo que, ao desejar promover o direito à educação para adolescentes populares, foi capaz de autoformar docentes com uma concepção de educação e um repertório pedagógico ímpares.

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1As pessoas entrevistadas receberão pseudônimos para garantir o anonimato dos sujeitos, conforme procedimentos aprovados pelo Comitê de Ética da UNIFAL-MG. Com o mesmo objetivo, o município, a universidade e o próprio cursinho local onde foi feita a pesquisa de campo não serão identificados, sendo aqui denominados, respectivamente, de “município mineiro”, Universidade e Emancipa Minas.

2Entre as referências metodológicas utilizadas para a entrevista semiestruturada, destaca-se Syzimanski (2004). Para a observação participante, Magnani (2009).

3O autor sistematizou a forma como utiliza essas categorias em Groppo et al. (2013). Ver também Bourdieu (1989).

4Criado em 1987 pelo Grêmio Estudantil da Escola Politécnica da USP, em São Paulo.

5Nascido no fim dos anos de 1980, na Região Metropolitana do Rio de Janeiro.

6Pauta que reuniu o PVNC e o MSU, entre outros cursinhos populares (Castro, 2011).

7Entre os 17 cursinhos “alternativos” atuantes na capital paulista nos anos de 1990, segundo Bacchetto (2003), apenas um não cobrava nenhum tipo de taxa a discentes.

8Até a Rede Emancipa buscou fazer uso dessa alternativa, criando uma ONG - a Associação 19 de Setembro - para apoiar o movimento por meio da “captação de recursos” (Mendes, 2011, p. 100). Entretanto, segundo Bonaldi (2015), o apoio institucional do PSOL e da rede de movimentos sociais envolvidos com esse partido costumam ser mais importantes.

9Podem caber aqui os exemplos do Educafro (Siqueira, 2011) e do Cursinho Alternativo de Petrópolis, em Manaus, Amazonas (Mendes, 2011).

10Segundo Mendes (2012, p. 140), os cursinhos do Emancipa “defendem o desaparecimento de sua razão de existir”.

11Assim afirmou militante do PVNC sobre os cursinhos populares: “[...] chegará o dia em que o PVNC não mais existirá, pois ele terá alcançado seu objetivo maior” (apudOliveira, 2006, p. 16).

12“O Emancipa trouxe algum esclarecimento e visão de atuação de novas formas de ensino” (Fabrícia, docente voluntária).

Recebido: 16 de Maio de 2018; Aceito: 14 de Março de 2019

Luís Antonio Groppo é doutor em ciências sociais pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Professor na Universidade Federal de Alfenas (UNIFAL). E-mail: luis.groppo@unifal-mg.edu.br

Ana Rosa Garcia de Oliveira é graduada em ciências sociais pela Universidade Federal de Alfenas (UNIFAL). Professora na rede pública de ensino do estado de Minas Gerais. E-mail: anarosagarciadeoliveira@hotmail.com

Fabiana Mara de Oliveira é mestranda em ensino de ciências pela Universidade Federal de Itajubá (UNIFEI). E-mail: fabianamaradeoliveira@hotmail.com

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